As lembranças esquecidas de Diva: uma forma de escrever sua história Me. Fernanda Kimie Tavares Mishima1 Me. Luciana Mian Barreto Campello2 Profa. Dra. Sonia Regina Pasian3 Resumo Este trabalho traz a importância do acompanhamento terapêutico (AT) como recurso facilitador no cuidado e apoio ao paciente com transtorno mental, por meio de experiência que permita a espontaneidade e plena utilização do potencial do indivíduo ao agir no mundo. Tal processo pode ser facilitado pelo uso de histórias. Como forma de ilustrar o AT com histórias, este trabalho apresenta atendimento, em 5 sessões, de uma paciente do sexo feminino, 29 anos, com Transtorno de Personalidade Esquizotípica (CID-10: F.21), em tratamento por três meses, em regime de semi-internação no hospital psiquiátrico da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Por meio do AT foi possível recriar a vivência do fenômeno da ilusão e, por consequência, a passagem pela transicionalidade. Ao final, a paciente pôde contar sua própria história de vida, demonstrando grande criatividade e espontaneidade, entrando em contato com aspectos internos e compartilhando sua vivência com a terapeuta. Palavras-chave: acompanhamento terapêutico, histórias, gesto espontâneo, transicionalidade, doença mental. Um dos recursos facilitadores no cuidado e apoio ao paciente diagnosticado com doença mental é o acompanhamento terapêutico (AT). Além de fazer com que o estigma da doença torne-se mais brando, possibilita que o próprio indivíduo seja capaz de encontrar o potencial que tem para poder atuar no mundo de maneira espontânea, exercitando sua 1 Doutoranda pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Psicóloga contratada da Clínica de Psicologia da FFCLRP-USP. 2 Mestre em Psicologia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo (FMRPUSP). Psicóloga clínica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto. 3 Docente do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). autonomia de ser. É importante para o paciente sentir-se capaz de tomar decisões e guiar sua vida, mostrando seu estilo pessoal e expressando sua criatividade. Ao exercitar a autonomia de ser, o paciente vivencia a transicionalidade, a habilidade de criar e articular vivências de seu mundo interno e externo (Safra, 2005). Tal processo pode ser facilitado pelo uso de histórias, que funciona como forma de efetivar o encontro da dupla analítica por meio do oferecimento de uma melhor comunicação e um maior contato com o inconsciente do paciente (Hisada, 1998). O AT funcionou como espaço potencial, ou seja, um lugar de criação, de encontro do self, onde a imaginação pode se desenvolver. Esse espaço se apresenta como uma área intermediária do experenciar (entre a fantasia e a realidade), permitindo o paradoxo, outro conceito winnicottiano que abrange o campo do psíquico e do real, a passagem entre nãoser e ser, o repouso e movimento (Winnicott, 1975/1971). O uso de conto de fadas é feito no intuito de entrar em contato com uma problemática existencial, já que há expressão de obstáculos e a autorealização do herói (Coelho, 1991). Dessa forma, ocorre a aproximação do processo onírico, facilitando o contato com aspectos mais primitivos, sem que haja invasão do paciente. Para Hisada (1998), o contato com aspectos mais primitivos por meio de histórias acontece, especialmente, em adultos que não tiveram experiências com o lúdico e que têm falhas em seu desenvolvimento. Como aconteceu neste caso, em que Diva, portadora de doença mental, mostrava um comprometimento geral em relação à vivência compartilhada. Caso clínico Diva, uma mulher de 29 anos, estava há três meses internada em um hospital psiquiátrico em regime de semi-internação, em uma cidade do interior de São Paulo, com diagnóstico médico de transtorno de personalidade esquizotípica, uma forma branda de esquizofrenia. A paciente chegou ao hospital com graves prejuízos da memória, tinha perdido um filho e estava sendo acusada de tê-lo negligenciado, provocando assim sua morte. Ela não se lembrava de nada, apenas de que tinha uma filha, mais velha, de 4 anos, que estava sob os cuidados da sogra. Diva havia sido adotada quando criança e dizia ter sido muito mal tratada por seus pais adotivos. Além do acompanhamento médico e de encontros com a terapeuta ocupacional, Diva foi convidada a participar do Acompanhamento Terapêutico com a psicóloga estagiária do serviço. O AT foi feito em cinco encontros terapêuticos. Nos dois primeiros encontros, a paciente mostrou dificuldade no contato com a terapeuta, chegando a adormecer em uma das conversas, o que denotou prejuízo na comunicação interpessoal e na vivência compartilhada com o mundo externo. A partir deste momento, a terapeuta recorreu ao uso de histórias de conto de fadas, a fim de possibilitar a recriação do fenômeno da ilusão, possibilitando a passagem pela experiência da transicionalidade. A primeira história a ser contada foi da Bela Adormecida, suscitando grande curiosidade e estabelecendo comunicação inicial com a paciente. No encontro posterior, foi contada a história da Cinderela, a Gata Borralheira, deixando a paciente muito à vontade e disposta a se expressar. Ela dizia que também queria ter uma vida de princesa e que sempre desejou encontrar o seu príncipe encantado. Ao final do trabalho, após contar essas histórias, a terapeuta propôs à paciente contar a sua própria história de vida. Logo ela ficou muito empolgada, dizendo que adoraria falar de si mesma, o que foi uma surpresa para a equipe em geral. Enquanto ela ia contando sua história, a terapeuta anotava. Diva dava detalhes com entusiasmo e criatividade, comunicando-se de uma maneira pessoal e espontânea. Neste momento, foi capaz de pensar sobre sua vida e sobre a forma como interagia no mundo, expressando detalhes de sua vivência que antes estavam encobertos. “Diva era magra, vivia rindo, mas tinha alucinações, às vezes ficava nervosa. Via coisa onde não tinha, achava que as pessoas não gostavam dela, tinha sentimento de culpa e muito medo, medo de tudo. Ela morava com os pais, as irmãs e dois sobrinhos que sua mãe havia criado. Em casa tinha muita briga, ela brigava muito, era muito nervosa e dizia que nada estava bom. Ela e as irmãs não se davam bem, ela fazia confusão de pensamentos, de palavras. Ela sonhava em ser professora de jazz nessa época. Aos 15 anos namorou durante quatro anos um rapaz carinhoso, alto, moreno e simpático. Como ele não quis casar, o namoro foi rompido. Aí ela encontrou o R. e depois de um ano de namoro eles se casaram. Ainda teve algumas coisas da doença, brigava muito, ele dizia que queria se separar, não agüentava tanto ciúmes. Agora ela já não é assim, às vezes nem liga pra ele. Com 24 anos teve uma linda menininha. E assim ela mudou muito, ficou mais carinhosa, deixava de se cuidar para cuidar dela, entregava-se a ela. Com 28 anos teve o E., era muito grudada nele, os dois filhos eram muito diferentes, a vizinha havia ajudado a criar o primeiro filho e o segundo ela fez tudo sozinha. O amor pelos dois era muito diferente. Quando o filho faleceu é como se ela tivesse perdido uma parte dela mesma. Aí passou a querer dormir a todo momento, talvez para fugir da morte. Hoje ela não se importa se o marido largar dela. Muita coisa mudou, ela não consegue explicar se é pela internação, pela morte do filho. Hoje ela não briga por qualquer bobeira, antes era mais briguenta. Agora está com dificuldade de ficar com muita gente, prefere ficar sozinha. Ela ficou menos atenciosa com as coisas da casa, mais relaxada. Hoje ela não se preocupa tanto com a limpeza. No Hospital ela teve muita ajuda para voltar a fazer as tarefas de casa, conseguindo retomar coisas que antes fazia, teve que aprender tudo de novo. Ela diz que não sente nada de diferente. Agora, para o futuro, ela está confusa. Não sabe se volta a estudar (para auxiliar de enfermagem), a trabalhar ou a fazer jazz. Agora não pensa mais em ter filhos. Ela pensa em fazer curso de Culinária, aulas de Bijuteria. Nos momentos que estiver sem fazer nada, ela vai deitar. Diva vai ter uma nova etapa, de expectativa, de sonho”. Ao contar sua própria história, Diva demonstrou diminuição da angústia persecutória, melhor qualidade no contato com a terapeuta e, conseqüentemente, com os outros, além de uma aproximação com a consciência de sua realidade psíquica. É possível assinalar que a comunicação de sua experiência emocional foi facilitada pelo estabelecimento da ilusão e passagem pela transicionalidade, já que havia sinais de falhas nesses processos devido a prejuízos na experiência lúdica vivenciada em sua infância. O estabelecimento do vínculo baseou-se na aproximação do AT ao mundo subjetivo do paciente, havendo um encontro real entre terapeuta e paciente, no qual este foi capaz de se expressar de maneira pessoal e por meio do gesto espontâneo, comunicando aspectos do próprio self. Este trabalho teve por objetivo enfatizar a importante experiência da transicionalidade ligada à vivência dos doentes mentais. Além de possibilitar a comunicação com a realidade compartilhada, houve melhora na capacidade de maternagem, aspecto de suma relevância para a paciente. Nesse sentido, há consonância com o que diz Mello Filho (1989), pois a relação terapêutica poder ser pensada além dos dois mundos, interno e externo, e levar em consideração o terceiro espaço da vida humana, o espaço potencial entre o paciente e seu analista, que, a partir de experiências vividas com o terapeuta, pode se conhecer e articular seu mundo interno com a realidade compartilhada. Referências Bibliográficas Coelho, N. (1991). O conto de fadas. 2ª. Ed. São Paulo: Ática. Hisada, S. (1998). A utilização de histórias no processo psicoterápico: Uma proposta winnicottiana. Rio de Janeiro: Revinter. Mello Filho, J. (1989). O ser e o viver: uma visão da obra de Winnicott. Porto Alegre: Artes Médicas. Safra, G. (2005). A face estética do self: teoria e clínica. São Paulo: Unimarco Editora. Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971).