A PRODUÇÃO DE UMA FORMA ESCOLAR PARA O ESPORTE: OS PROJETOS
CULTURAIS DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO (1926-1935) COMO
INDÍCIOS PARA A HISTORIOGRAFIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA.
Meily Assbú Linhales/UFMG
Introdução
Conteúdos ou práticas sociais, quando transformados em conteúdos ou práticas
escolares, nos remetem a uma necessária reflexão acerca das condições históricas e culturais
que possibilitaram tal realização. Por certo, tais processos acontecem a partir de determinadas
configurações que merecem ser tratadas de forma contextualizada, nos tempos e espaços que
as produziram e pela ação dos sujeitos que as organizam e fazem circular interesses e
necessidades de classes, de grupos, de instituições e de projetos políticos capazes de constituir
e reconstituir os sentidos do pertencimento humano e social (Bourdieu & Wacquart 2002).
Atentar para estes elementos implica discutir criticamente os processos lineares que
neutralizam os contextos históricos e operar, então, com o pressuposto de que fatores
aparentemente isolados, quando atuam em conjunto, produzem configurações próprias,
singulares, mesmo que referenciadas em experiências similares.
Estas são premissas que tem orientado meus estudos sobre as práticas institucionais e
discursivas que , no âmbito da Associação Brasileira de Educação- ABE, indiciam um projeto
cultural para a escolarização do esporte no Brasil.1 Por meio de seus congressos e
conferências, revistas e boletins, das ações e proposições realizadas por sua
Seção de
Educação Física e Higiene, a ABE e seus educadores “produziram” o esporte como prática
educativa e como conteúdo escolar. No período analisado, 1926 –1935, este projeto ganha
consistência nos debates e ações relativas à formação de professores, na composição do
modelo pedagógico denominado “escola ativa” e nas propostas e articulações políticas que,
pretendendo orientar a construção de um novo projeto de educação/socialização, tinha a
escola como lugar irradiador.
Desde a constituição da Seção de Educação Física e Higiene, em 1925, até o seu VII
Congresso Brasileiro de Educação que, realizado no Rio de Janeiro em 1935, teve a Educação
Física como o seu Tema Central, um conjunto de práticas, expresso a partir de fontes
documentais, tem permitido inventariar que, na abrangência da ação cultural da ABE  nas
práticas de seus associados, bem como no diálogo que estabeleceu com a sociedade e com o
Estado  o esporte, entre outros conteúdos culturais, foi gradativamente consolidado como
conteúdo curricular da educação física e como prática escolar. O esporte participou do projeto
sócio-educativo que pretendeu transformar a escola em uma referência cultural moderna,
democrática, ativa e eficiente.
Na condição de Presidente da ABE, o Professor Lourenço Filho assim se expressou na
abertura do VII Congresso Brasileiro de Educação, em 1935:
“Nações há que procuram resolver os problemas de eficiência, mesmo às custas das liberdades
individuais. Outros, que preferem manter todos os ditames de uma romântica liberdade individual,
pereça embora a eficiência...Entre tais extremos, simplistas ambos, e ambos perigosos, os estadistas
mais avisados começam a compreender que “eficiência com liberdade” ou “liberdade com eficiência”,
só num cadinho se fundem  e esse é o da educação. Dificuldades ou defeitos da educação,
dificuldades e defeitos de disciplina social e, portanto, de eficiência. (...) liberdade e eficiência não
representam, assim, no mundo de hoje, pontos de partida, nem aspirações românticas. Mas, ao contrário,
tem que se apoiar em uma grande reforma de costumes que ajuste os homens a novas condições e
valores de vida, pela pertinácia da obra de cultura, que a todas atividades impregne, dando sentido à
organização de cada povo”.2
Então, na trama que produziu esse projeto educacional, essa “reforma de costumes”, o
que busco conhecer é a tessitura que, no período analisado, estreitou o encontro entre o
esporte e a escola. Como é sabido, as práticas esportiva já estavam bastante disseminadas na
sociedade brasileira desde o final do século XIX e freqüentavam algumas escolas como
conteúdos curriculares ou como experiências lúdicas trazidas pelo próprios alunos para os
momentos de recreio (Melo,1998; Cunha Júnior, 1998; Silva, 1998 e Pereira, 2000). Todavia,
a pesquisa em curso permite sugerir que é no pós-1920 que essa prática social emprestará
decisivamente à escola os seus dotes modernos e, neste processo, também receberá dela sua
forma socializadora. Tendo a ABE como o lugar cultural de referência, não é conveniente
perder de vista que esta entidade se legitimou na cidade do Rio de Janeiro, na época, Capital
da República. Embora com pretensões de abrangência nacional, a Associação Brasileira de
Educação comportou sempre fortes matizes do que se construía em seu “Departamento
Carioca”. Essas são hipóteses centrais da pesquisa, corroboradas no diálogo estabelecido com
outros estudos da história da educação e da educação física, especialmente os de Marta
Carvalho, Tarcísio Mauro Vago e Fernanda Paiva3
Dentro dos limites deste texto, escolhi apresentar algumas categorias de análise que
têm contribuído na construção de meu problema de pesquisa, na organização de alguns
balizamentos teórico-connceituais e no diálogo com as fontes. Inicialmente destaco a noção de
forma escolar e a construção por mim realizada para propor a identificação das estratégias de
produção do que denomino forma escolar para o esporte.Em seguida, dialogando com alguns
estudos que no âmbito da história e da sociologia da educação se ocupam da constituição dos
saberes escolares, proponho pensar o esporte como uma disciplina que
participa da
(con)formação da escola, da prescrição pedagógica e da organiza sócio-cultural atinentes à
experiência escolar moderna. Considerando ser este artigo um fragmento de um estudo ainda
em curso apresento, ao final, caminhos possíveis, continuidades..., ao invés de conclusões.
Uma forma escolar para o esporte:
Ao problematizar as estreitas relações que se estabelecem entre processos
escolarização e práticas de disciplinarização, Marta Carvalho (1997) convida ao debate sobre
os múltiplos dispositivos que, na modernidade, compõem um modelo especial de socialização
das pessoas, o “modelo escolar”. Nele, uma diversidade de práticas e de conteúdos culturais
vem, na longa duração, sendo acionados para fazer da sociedade moderna uma sociedade
disciplinada e escolarizada. Essas práticas, com suas potencialidades socializadoras, com suas
tensões e contradições, constituem “a escola como instituição intrinsecamente disciplinar, e a
modernidade como a sociedade da escolarização” (idem, p.297). Proponho então pensar o
esporte como um destes dispositivos que modelam a escola e são, ao mesmo tempo por ela
modelados.
Tomando de empréstimo uma noção utilizada por Guy Vicent, Bernard Lahire &
Daniel Thin (2001) parece razoável considerar que o processo de expansão experimentado
pelo esporte moderno incluiu a "forma escolar"
como
uma de suas estratégias de
socialização, tanto na escola como fora dela. Para estes autores,
"A emergência da forma escolar, forma que se caracteriza por um conjunto coerente de traços
 entre eles deve-se citar, em primeiro lugar, a constituição de um universo separado para a infância; a
importância das regras na aprendizagem, a organização racional do tempo; a multiplicação e a repetição
de exercícios, cuja única função consiste em aprender e aprender conforme as regras ou, dito de outro
modo, tendo por fim seu próprio fim  , é a de um novo modo de socialização, o modo escolar de
socialização. Este não tem cessado de se estender e de se generalizar para se tornar o modo de
socialização dominante de nossas formações sociais." (Idem, pp.37-38)
A “forma escolar” como estratégia de socialização não se limita aos muros da escola.
Em seu processo de consolidação na sociedade moderna, ela se estendeu a outras práticas e
instituições sociais. No ano de 1926, o Boletim da Associação Brasileira de Educação
(Departamento do Rio de Janeiro) apresentava notícias relativas às ações desenvolvidas por
sua Seção de Educação Física e Higiene. Na época, essa seção era presidida pelo Dr. Faustino
Esposel que, na mesma década foi presidente do Clube de Regatas do Flamengo. Essas
notícias expressam a aproximação da ABE com as práticas esportivas e revelam a construção
do que Vincent, Lahire e Thin denominam de “propriedades da forma escolar”(2001, p.40).
“Iniciativas da Seção:
1- Dirigir-se a ABE aos clubes esportivos pedindo cederem, pelo menos nas quintas feiras de manhã os
seus campos, nos quais permanecerão instrutores dos próprios clubes ou da municipalidade que
orientarão as crianças das escolas públicas nos exercícios físicos, ginásticos e recreativos;
2- Organizar a seção, uma série de conselhos sobre educação física adequada ao sexo feminino,
regulamentando e indicando os esportes mais apropriados. Esses conselhos deverão ter larga
vulgarização.”4
Neste movimento, as práticas e os interesses escolares (con)formam a prática de
esportes, ao mesmo tempo em que os “formatos” instituídos no campo esportivo também
adentram a escola. Entre esses formatos podemos citar os clubes e agremiações, de uma ou
mais modalidade esportiva, com equipes estruturadas e como representação de um coletivo,
organizadas na expectativa da existência de outras similares, para que se justifiquem as
disputas esportivas: os “matchs” ou “certamens”.5 Relacionar clube e escola significa, então,
aproximar interesses e compartilhar um tipo próprio de socialização. O professor Mário de
Queiroz Rodrigues, assim propôs em sua tese sobre “Educação Física Feminina no Ensino
Secundário”, proferida no VII Congresso Nacional de Educação, em 1935:
“Poderão os professores de Educação Física, em colaboração com os demais professores, organizar
finalmente, dentro de cada escola um Club, onde pelos seus estatutos a vida esportiva será intensificada
por meio de jogos e excursões, e a vida social dê, como resultante, uma aproximação maior entre alunas
e professores; o que será de grande vantagem para o ensino em geral, despertando um amor crescente
pela escola e pelo seu desenvolvimento e um espírito de colaboração e de estima entre todos os alunos”.
Neste, e em qualquer outro processo de apropriação realizado na escola, torna-se
também pertinente considerar que os sujeitos escolares não se limitam apenas a transpor
saberes e práticas pré-existentes, organizando-os em estratégias de ensino e aprendizagem.
Professores e alunos podem também produzir saberes e estes não permanecem fechados no
interior da escola. As criações escolares, relativamente autônomas, influenciam as práticas
culturais e os modos de pensamento que organizam vários outros campos sociais.
Ao analisar a história social do futebol no Rio de Janeiro nos primeiros 40 anos do
século XX, Leonardo Afonso de Miranda Pereira, assim escreve sobre a relação das escolas e
de seus alunos com o “esporte bretão”:
“A situação fez com que, em muito pouco tempo, ele se tornasse o principal esporte praticado
nas escolas elegantes da cidade. Colégios como o Alfredo Gomes e o Abílio, onde a educação era, havia
muito tempo, ‘objeto de solícitos cuidados’, tinham o jogo entre suas atividades principais, como
atestavam as preferências esportivas dos jovens fundadores do Botafogo, que neles haviam dado seus
primeiros chutes. Ainda em 1905, o Colégio Latino-Americano, inaugurado naquele ano no Leme 
que se gabava de funcionar ‘segundo os moldes dos colégios ingleses americanos [sic]’  formava
entre seus alunos diversos times, que disputavam em seu campo jogos contra times adversários; entre
esses adversários estariam, por vezes, times como aquele composto pelos alunos do Colégio Paula
Freitas, que fundavam naquele mesmo ano a sua Associação Atlética. Jogos como esses evidenciavam
para os cronistas esportivos ‘quanto tem progredido os guapos rapazes no jogo da pella com grande
vantagem para o seu desenvolvimento físico’, dando forma na cidade a um ‘grande entusiasmo por esse
belíssimo gênero de sport.’” ( 2000, p. 52-53)
Se a "escolarização do esporte" consiste no movimento por meio do qual a escola
incorpora os valores, os códigos e a institucionalidade esportiva, estamos nos referindo e uma
variedade de práticas que, antes não incluídas na escola, passam então a caracteriza-la. Neste
movimento, produzem novos formatos nos tempos e nos espaços escolares, na estruturação
dos saberes e dos currículos, na formação docente e ainda na organização institucional do
Estado.6 O esporte passa a ser incluído destes múltiplos desenhos e diálogos que organizam a
experiência escolar. Mas ele não é somente um efeito, um conteúdo ou uma conseqüência. Sua
incorporação implica o fato de que ele passa a participar da construção de uma nova ordem
escolar e também social O desenvolvimento esportivo pressupõe, nas sociedades
escolarizadas, a adoção de uma série de condicionantes, regras, práticas e saberes que são
tipicamente escolares. Nestes termos a escolarização do esporte ultrapassa os muros escolares,
se estendendo para outras instituições sociais. Apoio-me aqui nas pertinentes indicações que
Luciano Faria Filho:
“...podemos dizer que na transição de uma sociedade não-escolarizada para a escolarizada, a tensão desta
recai sobre a totalidade do social, não deixando intocada nenhuma de suas diversas dimensões. Tal
tensão pode ser percebida não apenas naquilo que toca diretamente à escola e ao seu entorno, mas
naquilo que de mais profundo há na cultura e nos processos sociais como um todo: das formas de
comunicação às formas de constituição dos sujeitos, passando pelas inevitáveis dimensões materiais que
garantem a vida humana e sua reprodução, tudo isso se modifica, mesmo que lentamente, sob o impacto
da escolarização.” (2002, p.22).
Em seu discurso de posse como Presidente da ABE em 15 de julho de 1925, Levi
Carneiro ressaltou a importância da entidade estender a sua ação político-educacional sobre a
tessitura social, entre outros argumentos e exemplos, assim se expressou:
“...creio que poderemos provocar algumas leis, ou deliberações, de repercussão apreciável ou de
significado relevante. No Chile, há pouco, excluíram-se os analfabetos das associações de foot-ball.
Entrenós, não seia talvez difícil conseguir das associações esportivas, mesmo em relação a todos os
deportos, deliberação análoga, ainda que tivesse de ser aplicada gradativamente.” 7
Estas são noções iniciais que desafiam a construção de um olhar complexo sobre os
variados fatores que, em relação, constituem a configuração que aqui denomino, forma escolar
para o esporte, capaz de interferir nos sentidos sócio-históricos que conformam o fenômeno
esportivo e a própria escola.
O esporte como conteúdo escolar:
Nesta trama é necessário referendar a premissa de que os saberes e as práticas
escolares não são sempre conteúdos derivados de saberes eruditos e/ou científicos, na medida
em que existe uma variedade de práticas sociais que também constituem referências para os
saberes incorporados e realizados na escola. A noção de “práticas sociais de referência”
(Martinand apud Forquin 1996) corrige a forma demasiadamente intelectualista presente na
noção da “transposição didática”, constituída por Chevalland (1985) para tematizar a
constituição das disciplinas e dos saberes escolares.
Reconhecer que o esporte adentra a escola brasileira quando já era uma prática social
de grande expressividade, um verdadeiro “surto”8, possibilita compreender a efervescência
das mediações culturais como referências em processos de construção dos saberes escolares.
Pode-se assim, consolidar caminhos interpretativos capazes de questionar uma perspectiva
evolucionista dos saberes, que justifica o esporte como o estágio mais acabado e complexo do
curso linear de desenvolvimento das práticas corporais de movimento. Como se ele fosse, por
exemplo, o substituto “naturalmente” mais evoluído da ginástica ou dos jogos infantis.
Tais observações são especialmente importantes para a compreensão do esporte, como
conteúdo, e da educação física, como disciplina escolar. Temáticas que tenho compartilhado
na apreciação da historiografia construída por outros pesquisadores. Em seus estudos sobre a
constituição dos currículos escolares de Educação Física, mesmo que em outro período (dec.
1970/1980), Marcus Aurélio Taborda de Oliveira, convida ao debate:
“Apesar de não ser o centro da minha análise aqui, pergunto: não teria o esporte prevalecido como saber
escolar em virtude justamente da facilidade de decompô-lo, seqüênciá-lo, enfim, da facilidade de
pedagogizá-lo? Aliado ao grande apelo científico com o qual era tratado e à sua expansão como
fenômeno de massa, o esporte aparecia naqueles anos como uma possibilidade efetiva de consolidação e
universalização da Educação Física Escolar.” (2003, p. 201)
Embora possamos considerar que as práticas escolares de ensino do esporte também
comportam todo um processo de produção de “substitutos didáticos” (Michel Verret, apud
Forquin, 1992 e 1996), torna-se necessário investigar as experiências socioculturais que lhe
conferem sentido e que irão, inclusive, justifica-lo e legitima-lo como parte de uma “seleção
cultural” inevitavelmente realizada na escola.
O Programa de Educação Física para o Ensino Secundário estabelecido pela ABE em
1928 incluía algumas práticas esportivas e já organizava uma “forma escolar para o esporte”,
que inclui ordenamentos de tempos e espaços, seleção de conteúdo e dispositivos que se
revelam como substitutos didáticos. Para a 1ª série: “bola americana, malho, foot-ball e
basket-ball”; para a 2ª série: “volley-ball, malho, bola americana, peteca, natação, waterpolo,
foot-ball e basket-ball” e para as 3ª e 4ª séries: “os mesmos jogos praticados na 2ª série e
mais o tennis”. Ao apresentar o esporte como conteúdo curricular, o Programa indica que as
aulas devem ser divididas em 3 tempos: “1º) marchas e evoluções, 2º) exercícios
propriamente ditos e 3º) jogos”
“Em tempos de aula o professor deve fazer com que os alunos executem movimentos que interessem o
organismo integralmente. Nos dias que os alunos não tiverem aula de exercícios físicos deverão praticar
jogos do programa, nas horas de recreio, não se esquecendo de executar a respiração nos intervalos e no
fim de cada partida. (...) em campos de dimensões mínimas, o foot-ball pode ser praticado durante 15
minutos, divididos em dois tempos de 10 e 5 minutos, com intervalos de 5. A basket-ball, também em
campo mínimo poderá ser praticada em dois tempos de 4 minutos, de 5 de intervalo” 9
Estas seleções comportam os seus elementos de tensão e contradição, expressando
permanentes negociações de significados culturais (Perez Gómez,1998). Apenas um ano antes
da Seção de Ensino Secundário estabelecer o Programa acima apresentado, durante a I
Conferência Nacional de Educação, realizada em dezembro de 27 em Curitiba, a Sra. Amélia
de Rezende Martins, do Rio de Janeiro, apresentou uma tese, a de Número 27, intitulada
“Uma palavra de atualidade”, onde levantou os seguintes “problemas” acerca do esporte:
“Um ponto hoje muito atacado, em se tratando da educação, é o da cultura física. Neste
momento, merecem, entre nós, especial atenção os esportes. Ginástica, dança e outros começam na
idade escolar e continuam em voga, com a maior aceitação na sociedade; e os esportes vão exigindo
cada vez menos roupa, para que não sejam tolhidos os movimentos, e a moral leiga não acha mal em que
se banhem juntos todos os meninos de todas as idades, nus, porque assim, sendo uma coisa natural e a
curiosidade não ficando aguçada, a criança não vê malícia  moral leiga, moral de princípios
pervertedores, sob a capa de muita ingenuidade. A criança começa não achando mau na nudez e acaba
não achando mal em tudo que exige a nua natureza. (...) Para os esportes femininos, por tal forma a
mulher se habitua a vestir pouco que depois, na sociedade, já não tem o pudor do seu corpo. Se não há
mal na nudez, porque fazem os governos, os próprios governos sem crença, vestir os índios?10
Como outras novidades liberais e democráticas dos “sem crença”, o esporte foi
também ponto de tensão e questionamento para o grupo católico no interior da ABE,
confirmando que a história política também se produz na negociação e na produção de uma
história cultural que envolve questões de gênero, etnia, corpo, idade e religiosidade.
Esse conjunto de sinais a serem decifrados sugere a necessidade de um diálogo
acadêmico entre historiadores e sociólogos do currículo (Forquin, 1992 e 1996) na medida em
que estas diferentes áreas de conhecimento, em inter-relação, podem apresentar elementos
importantes para
a compreensão da singular experiência brasileira de escolarização do
esporte. Possibilidade que convida a questionar a “ilusão de uma gênese pura” (Bourdieu &
Wacquart, 2002) ainda tão impregnada na produção historiográfica da educação física
brasileira. A idéia de universal  sempre agregada à lógica da evolução linear e cumulativa
da história e das práticas sociais , nos faz, por vezes, esquecer que as práticas, e os
discursos que as engendram, “têm sua origem nas realidades complexas e controvertidas de
uma sociedade histórica particular, construída taticamente como modelo e medida de todas as
coisas” (Idem).
Novos saberes, ao adentrarem a escola podem produzir mudanças que vão além do
currículo (aqui tomado em uma acepção restrita), incidindo na reconfiguração da própria
escola. Esse parece ser o caso do esporte que, já realizado na sociedade brasileira como
atividade de lazer e/ou como atividade profissional passa, pouco a pouco, a compor um
conjunto das práticas produzido e compartilhado permanentemente pelos sujeitos escolares.
Formas de expressão, portanto, práticas culturais:
"conhecimento do mundo implícito, mas apenas semiconectado, a partir do qual, mediante negociação,
as pessoas alcançam modos de atuar satisfatórios em dados contextos (...) a cultura está recriando-se
constantemente ao ser interpretada e renegociada por seus integrantes (...) é tanto um fórum para
negociar e renegociar os significados e explicar a ação como um conjunto de regras e especificações
para a ação" (Bruner apud Pérez Gómez, 1998, p. 60).
Nesses termos, a escola é lugar de aprendizagens sobre um conjunto de regras e
especificações para a ação esportiva e, neste conjunto, estariam também incluídas
as
aprendizagens de como “negociar e renegociar os significados” constituintes destas práticas.
Parecem aqui pertinentes os argumentos que Forquin toma emprestado de Bourdieu para
problematizar a “força formadora de hábitos” presente nos saberes e nas práticas escolares:
“Numa sociedade onde a transmissão cultural é monopolizada por uma escola as afinidades
subterrâneas que unem as obras humanas (e ao mesmo tempo as condutas e os pensamentos) encontram
seu princípio numa instituição escolar, investida da função de transmitir conscientemente (e também,
por um lado, inconscientemente) o inconsciente, ou mais exatamente, de produzir indivíduos dotados
deste sistema de esquemas inconscientes (ou profundamente escondidos) que constitui a cultura.”
(Bourdieu apud Forquin 1992, p. 36-37)
Continuidades...
Para além do que aqui foi tratado, estudar os detalhes do processo de escolarização do
esporte no Brasil implicará levar ainda em consideração a complexidade do contexto que
produz uma configuração própria ao segundo quartel do século XX: a conformação de uma
modernidade pedagógica, os processos de urbanização e industrialização, o movimento da
escola ativa, a tensão/composição entre militares e educadores, a expansão de um sistema
público de ensino combinado com um autoritarismo de Estado e ainda as experiências
culturais que indicam a produção de dispositivos de racionalização do corpo e do movimento.
A idéia de “eficiência”, já bastante destacada por Carvalho (1997) e também por
Vago (2002) , parece ser o mote, a senha por meio da qual será importante buscar as
pertinências deste estudo. “De par com as últimas descobertas tecnológicas, de fato como um
desdobramento delas, se destacou a noção de que o corpo humano em particular, e a sociedade
como um todo, são também máquinas, autênticos dínamos geradores de energia”. Assim
Nicolau Sevcenko (1992, p.45) interpretou a presença do esporte na produção cultural da
metrópole paulistana dos anos de 1920. E continua: “quanto mais se aperfeiçoassem,
regulassem e coordenassem esses maquinismos, tanto mais efetivo seria o seu desempenho e
mais concentrada sua energia potencial” (idem). Seriam essas também tarefas para as escolas?
Por isso a produção de uma forma escolar capaz de aperfeiçoar “dínamos geradores de
energia”?
De acordo com Clarice Nunes (1994), o “moderno” que vinha sendo estabelecido na
sociedade brasileira desde o final do século XIX, configura-se de forma mais efetiva nas
décadas de 1920 e 1930. Nessa fabricação coube aos educadores uma grande
responsabilidade: discutir e propor projetos compatíveis com a modernidade, que fossem
capazes de relacionar a escola com o mundo urbano, seus saberes e seus poderes. Ao
protagonizar inúmeras ações do período, a ABE e seus educadores profissionais  católicos
ou comunistas, liberais ou autoritários, de direita ou à guauche, civis e militares  acionaram
vários dispositivos, travaram grandes debates, organizaram interesses e fizeram composições.
O esporte participou dessa produção que, sabemos, culminou na chamada “modernização
conservadora”. (idem)
Dialogando com os lugares de fabricação destes projetos culturais vale perguntar: O
que aconteceu com a organização dos Clubs esportivos escolares que, no VII Congresso, em
1935, o professor Mário de Queiroz Rodrigues indicou como “uma grande vantagem para o
ensino em geral”? Que tipo de integração lógica, moral e social foi produzida pela presença
do esporte na escola brasileira?
O jogo está apenas começando, mas não se pode perder de vista, como bem alerta
Alexandre Vaz, que “o esporte é um dos principais vetores de idéia de um progresso linear e
infinito, cuja concepção de natureza é fortemente vinculada à produtividade e à
tecnificação”(2002, p.25). Mas não foi só o esporte que tomou “máquinas eficientes” como
metáforas. A forma escolar moderna também o fez, e com primor. Por isso uma história do
esporte escolar não pode negligenciar os buracos, os tropeços e os silêncios mas deve duvidar,
e talvez desafiar, as sedutoras versões referendadas na universalidade civilizadora e no
progresso linear.
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1
Apresento neste trabalho resultados parciais de minha tese de doutoramento ainda em construção. A
pesquisa está sendo realizada junto ao Programa de Pós-Graduação em “Educação e Inclusão Social”
da Faculdade de Educação da UFMG, sob orientação do Prof. Dr. Luciano Mendes de Faria Filho.
Previsão de defesa: março/2006
2
Anais do VII Congresso Nacional de Educação.Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Educação,
1935. p. 22.
3
Constituíram-se como balizadores do recorte temporal da tese em construção os estudos: “Molde
nacional e forma cívica...” (1986) e “Quando a historia da educação é a história da disciplina e da
higienização das pessoas” ( 1997) de Marta Maria Chagas de Carvalho; “Cultura escolar, cultivo dos
corpos...” (2002) e “Educação Física na Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1930): estudo
exploratório de uma estratégia de formação do professorado” (2004) de Tarcísio Mauro Vago e
“Relatório de Pesquisa submetido ao exame de Qualificação” (2001) e “Sobre o pensamento médicohigienista oitocentista e a escolarização...” (2003) de Fernanda Simone Lopes de Paiva. As referências
completas constam na bibliografia.
4
Boletim da Associação Brasileira de Educação, Ano I, nº 03, 1926.
5
Essas são expressões bastante usuais na imprensa esportiva dos anos 20 e 30 para notificar eventos
esportivos. Veja-se, entre outros: Pereira (2000) e Sevcenko (1992).
6
Estes eixos se expressam como elementos chaves do processo de escolarização do esporte. Nesses
termos, constituem referencia no diálogo com as fontes e na escrita da tese.
7
Boletim da Associação Brasileira de Educação, Ano 01, nº 02, 1925, p.04.
8
O “surto dos sports”, nas primeiras décadas do Século XX, é noticiado pela imprensa carioca e também pela
Revista Educação Physica
9
Boletim da Associação Brasileira de Educação, Ano V, nº 33, 1929, p.29.
As teses da I Conferência, realizada em 1927, foram recentemente editadas pelo INEP. Veja-se:
COSTA, Maria José et alli (org). I Conferência Nacional de Educação. Brasília: INEP, 1997. p.155.
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A PRODUÇÃO DE UMA FORMA ESCOLAR PARA O ESPORTE: OS