A PRODUÇÃO DE UMA FORMA ESCOLAR PARA O ESPORTE: OS PROJETOS CULTURAIS DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO (1926-1935) COMO INDÍCIOS PARA A HISTORIOGRAFIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA. Meily Assbú Linhales/UFMG Introdução Conteúdos ou práticas sociais, quando transformados em conteúdos ou práticas escolares, nos remetem a uma necessária reflexão acerca das condições históricas e culturais que possibilitaram tal realização. Por certo, tais processos acontecem a partir de determinadas configurações que merecem ser tratadas de forma contextualizada, nos tempos e espaços que as produziram e pela ação dos sujeitos que as organizam e fazem circular interesses e necessidades de classes, de grupos, de instituições e de projetos políticos capazes de constituir e reconstituir os sentidos do pertencimento humano e social (Bourdieu & Wacquart 2002). Atentar para estes elementos implica discutir criticamente os processos lineares que neutralizam os contextos históricos e operar, então, com o pressuposto de que fatores aparentemente isolados, quando atuam em conjunto, produzem configurações próprias, singulares, mesmo que referenciadas em experiências similares. Estas são premissas que tem orientado meus estudos sobre as práticas institucionais e discursivas que , no âmbito da Associação Brasileira de Educação- ABE, indiciam um projeto cultural para a escolarização do esporte no Brasil.1 Por meio de seus congressos e conferências, revistas e boletins, das ações e proposições realizadas por sua Seção de Educação Física e Higiene, a ABE e seus educadores “produziram” o esporte como prática educativa e como conteúdo escolar. No período analisado, 1926 –1935, este projeto ganha consistência nos debates e ações relativas à formação de professores, na composição do modelo pedagógico denominado “escola ativa” e nas propostas e articulações políticas que, pretendendo orientar a construção de um novo projeto de educação/socialização, tinha a escola como lugar irradiador. Desde a constituição da Seção de Educação Física e Higiene, em 1925, até o seu VII Congresso Brasileiro de Educação que, realizado no Rio de Janeiro em 1935, teve a Educação Física como o seu Tema Central, um conjunto de práticas, expresso a partir de fontes documentais, tem permitido inventariar que, na abrangência da ação cultural da ABE nas práticas de seus associados, bem como no diálogo que estabeleceu com a sociedade e com o Estado o esporte, entre outros conteúdos culturais, foi gradativamente consolidado como conteúdo curricular da educação física e como prática escolar. O esporte participou do projeto sócio-educativo que pretendeu transformar a escola em uma referência cultural moderna, democrática, ativa e eficiente. Na condição de Presidente da ABE, o Professor Lourenço Filho assim se expressou na abertura do VII Congresso Brasileiro de Educação, em 1935: “Nações há que procuram resolver os problemas de eficiência, mesmo às custas das liberdades individuais. Outros, que preferem manter todos os ditames de uma romântica liberdade individual, pereça embora a eficiência...Entre tais extremos, simplistas ambos, e ambos perigosos, os estadistas mais avisados começam a compreender que “eficiência com liberdade” ou “liberdade com eficiência”, só num cadinho se fundem e esse é o da educação. Dificuldades ou defeitos da educação, dificuldades e defeitos de disciplina social e, portanto, de eficiência. (...) liberdade e eficiência não representam, assim, no mundo de hoje, pontos de partida, nem aspirações românticas. Mas, ao contrário, tem que se apoiar em uma grande reforma de costumes que ajuste os homens a novas condições e valores de vida, pela pertinácia da obra de cultura, que a todas atividades impregne, dando sentido à organização de cada povo”.2 Então, na trama que produziu esse projeto educacional, essa “reforma de costumes”, o que busco conhecer é a tessitura que, no período analisado, estreitou o encontro entre o esporte e a escola. Como é sabido, as práticas esportiva já estavam bastante disseminadas na sociedade brasileira desde o final do século XIX e freqüentavam algumas escolas como conteúdos curriculares ou como experiências lúdicas trazidas pelo próprios alunos para os momentos de recreio (Melo,1998; Cunha Júnior, 1998; Silva, 1998 e Pereira, 2000). Todavia, a pesquisa em curso permite sugerir que é no pós-1920 que essa prática social emprestará decisivamente à escola os seus dotes modernos e, neste processo, também receberá dela sua forma socializadora. Tendo a ABE como o lugar cultural de referência, não é conveniente perder de vista que esta entidade se legitimou na cidade do Rio de Janeiro, na época, Capital da República. Embora com pretensões de abrangência nacional, a Associação Brasileira de Educação comportou sempre fortes matizes do que se construía em seu “Departamento Carioca”. Essas são hipóteses centrais da pesquisa, corroboradas no diálogo estabelecido com outros estudos da história da educação e da educação física, especialmente os de Marta Carvalho, Tarcísio Mauro Vago e Fernanda Paiva3 Dentro dos limites deste texto, escolhi apresentar algumas categorias de análise que têm contribuído na construção de meu problema de pesquisa, na organização de alguns balizamentos teórico-connceituais e no diálogo com as fontes. Inicialmente destaco a noção de forma escolar e a construção por mim realizada para propor a identificação das estratégias de produção do que denomino forma escolar para o esporte.Em seguida, dialogando com alguns estudos que no âmbito da história e da sociologia da educação se ocupam da constituição dos saberes escolares, proponho pensar o esporte como uma disciplina que participa da (con)formação da escola, da prescrição pedagógica e da organiza sócio-cultural atinentes à experiência escolar moderna. Considerando ser este artigo um fragmento de um estudo ainda em curso apresento, ao final, caminhos possíveis, continuidades..., ao invés de conclusões. Uma forma escolar para o esporte: Ao problematizar as estreitas relações que se estabelecem entre processos escolarização e práticas de disciplinarização, Marta Carvalho (1997) convida ao debate sobre os múltiplos dispositivos que, na modernidade, compõem um modelo especial de socialização das pessoas, o “modelo escolar”. Nele, uma diversidade de práticas e de conteúdos culturais vem, na longa duração, sendo acionados para fazer da sociedade moderna uma sociedade disciplinada e escolarizada. Essas práticas, com suas potencialidades socializadoras, com suas tensões e contradições, constituem “a escola como instituição intrinsecamente disciplinar, e a modernidade como a sociedade da escolarização” (idem, p.297). Proponho então pensar o esporte como um destes dispositivos que modelam a escola e são, ao mesmo tempo por ela modelados. Tomando de empréstimo uma noção utilizada por Guy Vicent, Bernard Lahire & Daniel Thin (2001) parece razoável considerar que o processo de expansão experimentado pelo esporte moderno incluiu a "forma escolar" como uma de suas estratégias de socialização, tanto na escola como fora dela. Para estes autores, "A emergência da forma escolar, forma que se caracteriza por um conjunto coerente de traços entre eles deve-se citar, em primeiro lugar, a constituição de um universo separado para a infância; a importância das regras na aprendizagem, a organização racional do tempo; a multiplicação e a repetição de exercícios, cuja única função consiste em aprender e aprender conforme as regras ou, dito de outro modo, tendo por fim seu próprio fim , é a de um novo modo de socialização, o modo escolar de socialização. Este não tem cessado de se estender e de se generalizar para se tornar o modo de socialização dominante de nossas formações sociais." (Idem, pp.37-38) A “forma escolar” como estratégia de socialização não se limita aos muros da escola. Em seu processo de consolidação na sociedade moderna, ela se estendeu a outras práticas e instituições sociais. No ano de 1926, o Boletim da Associação Brasileira de Educação (Departamento do Rio de Janeiro) apresentava notícias relativas às ações desenvolvidas por sua Seção de Educação Física e Higiene. Na época, essa seção era presidida pelo Dr. Faustino Esposel que, na mesma década foi presidente do Clube de Regatas do Flamengo. Essas notícias expressam a aproximação da ABE com as práticas esportivas e revelam a construção do que Vincent, Lahire e Thin denominam de “propriedades da forma escolar”(2001, p.40). “Iniciativas da Seção: 1- Dirigir-se a ABE aos clubes esportivos pedindo cederem, pelo menos nas quintas feiras de manhã os seus campos, nos quais permanecerão instrutores dos próprios clubes ou da municipalidade que orientarão as crianças das escolas públicas nos exercícios físicos, ginásticos e recreativos; 2- Organizar a seção, uma série de conselhos sobre educação física adequada ao sexo feminino, regulamentando e indicando os esportes mais apropriados. Esses conselhos deverão ter larga vulgarização.”4 Neste movimento, as práticas e os interesses escolares (con)formam a prática de esportes, ao mesmo tempo em que os “formatos” instituídos no campo esportivo também adentram a escola. Entre esses formatos podemos citar os clubes e agremiações, de uma ou mais modalidade esportiva, com equipes estruturadas e como representação de um coletivo, organizadas na expectativa da existência de outras similares, para que se justifiquem as disputas esportivas: os “matchs” ou “certamens”.5 Relacionar clube e escola significa, então, aproximar interesses e compartilhar um tipo próprio de socialização. O professor Mário de Queiroz Rodrigues, assim propôs em sua tese sobre “Educação Física Feminina no Ensino Secundário”, proferida no VII Congresso Nacional de Educação, em 1935: “Poderão os professores de Educação Física, em colaboração com os demais professores, organizar finalmente, dentro de cada escola um Club, onde pelos seus estatutos a vida esportiva será intensificada por meio de jogos e excursões, e a vida social dê, como resultante, uma aproximação maior entre alunas e professores; o que será de grande vantagem para o ensino em geral, despertando um amor crescente pela escola e pelo seu desenvolvimento e um espírito de colaboração e de estima entre todos os alunos”. Neste, e em qualquer outro processo de apropriação realizado na escola, torna-se também pertinente considerar que os sujeitos escolares não se limitam apenas a transpor saberes e práticas pré-existentes, organizando-os em estratégias de ensino e aprendizagem. Professores e alunos podem também produzir saberes e estes não permanecem fechados no interior da escola. As criações escolares, relativamente autônomas, influenciam as práticas culturais e os modos de pensamento que organizam vários outros campos sociais. Ao analisar a história social do futebol no Rio de Janeiro nos primeiros 40 anos do século XX, Leonardo Afonso de Miranda Pereira, assim escreve sobre a relação das escolas e de seus alunos com o “esporte bretão”: “A situação fez com que, em muito pouco tempo, ele se tornasse o principal esporte praticado nas escolas elegantes da cidade. Colégios como o Alfredo Gomes e o Abílio, onde a educação era, havia muito tempo, ‘objeto de solícitos cuidados’, tinham o jogo entre suas atividades principais, como atestavam as preferências esportivas dos jovens fundadores do Botafogo, que neles haviam dado seus primeiros chutes. Ainda em 1905, o Colégio Latino-Americano, inaugurado naquele ano no Leme que se gabava de funcionar ‘segundo os moldes dos colégios ingleses americanos [sic]’ formava entre seus alunos diversos times, que disputavam em seu campo jogos contra times adversários; entre esses adversários estariam, por vezes, times como aquele composto pelos alunos do Colégio Paula Freitas, que fundavam naquele mesmo ano a sua Associação Atlética. Jogos como esses evidenciavam para os cronistas esportivos ‘quanto tem progredido os guapos rapazes no jogo da pella com grande vantagem para o seu desenvolvimento físico’, dando forma na cidade a um ‘grande entusiasmo por esse belíssimo gênero de sport.’” ( 2000, p. 52-53) Se a "escolarização do esporte" consiste no movimento por meio do qual a escola incorpora os valores, os códigos e a institucionalidade esportiva, estamos nos referindo e uma variedade de práticas que, antes não incluídas na escola, passam então a caracteriza-la. Neste movimento, produzem novos formatos nos tempos e nos espaços escolares, na estruturação dos saberes e dos currículos, na formação docente e ainda na organização institucional do Estado.6 O esporte passa a ser incluído destes múltiplos desenhos e diálogos que organizam a experiência escolar. Mas ele não é somente um efeito, um conteúdo ou uma conseqüência. Sua incorporação implica o fato de que ele passa a participar da construção de uma nova ordem escolar e também social O desenvolvimento esportivo pressupõe, nas sociedades escolarizadas, a adoção de uma série de condicionantes, regras, práticas e saberes que são tipicamente escolares. Nestes termos a escolarização do esporte ultrapassa os muros escolares, se estendendo para outras instituições sociais. Apoio-me aqui nas pertinentes indicações que Luciano Faria Filho: “...podemos dizer que na transição de uma sociedade não-escolarizada para a escolarizada, a tensão desta recai sobre a totalidade do social, não deixando intocada nenhuma de suas diversas dimensões. Tal tensão pode ser percebida não apenas naquilo que toca diretamente à escola e ao seu entorno, mas naquilo que de mais profundo há na cultura e nos processos sociais como um todo: das formas de comunicação às formas de constituição dos sujeitos, passando pelas inevitáveis dimensões materiais que garantem a vida humana e sua reprodução, tudo isso se modifica, mesmo que lentamente, sob o impacto da escolarização.” (2002, p.22). Em seu discurso de posse como Presidente da ABE em 15 de julho de 1925, Levi Carneiro ressaltou a importância da entidade estender a sua ação político-educacional sobre a tessitura social, entre outros argumentos e exemplos, assim se expressou: “...creio que poderemos provocar algumas leis, ou deliberações, de repercussão apreciável ou de significado relevante. No Chile, há pouco, excluíram-se os analfabetos das associações de foot-ball. Entrenós, não seia talvez difícil conseguir das associações esportivas, mesmo em relação a todos os deportos, deliberação análoga, ainda que tivesse de ser aplicada gradativamente.” 7 Estas são noções iniciais que desafiam a construção de um olhar complexo sobre os variados fatores que, em relação, constituem a configuração que aqui denomino, forma escolar para o esporte, capaz de interferir nos sentidos sócio-históricos que conformam o fenômeno esportivo e a própria escola. O esporte como conteúdo escolar: Nesta trama é necessário referendar a premissa de que os saberes e as práticas escolares não são sempre conteúdos derivados de saberes eruditos e/ou científicos, na medida em que existe uma variedade de práticas sociais que também constituem referências para os saberes incorporados e realizados na escola. A noção de “práticas sociais de referência” (Martinand apud Forquin 1996) corrige a forma demasiadamente intelectualista presente na noção da “transposição didática”, constituída por Chevalland (1985) para tematizar a constituição das disciplinas e dos saberes escolares. Reconhecer que o esporte adentra a escola brasileira quando já era uma prática social de grande expressividade, um verdadeiro “surto”8, possibilita compreender a efervescência das mediações culturais como referências em processos de construção dos saberes escolares. Pode-se assim, consolidar caminhos interpretativos capazes de questionar uma perspectiva evolucionista dos saberes, que justifica o esporte como o estágio mais acabado e complexo do curso linear de desenvolvimento das práticas corporais de movimento. Como se ele fosse, por exemplo, o substituto “naturalmente” mais evoluído da ginástica ou dos jogos infantis. Tais observações são especialmente importantes para a compreensão do esporte, como conteúdo, e da educação física, como disciplina escolar. Temáticas que tenho compartilhado na apreciação da historiografia construída por outros pesquisadores. Em seus estudos sobre a constituição dos currículos escolares de Educação Física, mesmo que em outro período (dec. 1970/1980), Marcus Aurélio Taborda de Oliveira, convida ao debate: “Apesar de não ser o centro da minha análise aqui, pergunto: não teria o esporte prevalecido como saber escolar em virtude justamente da facilidade de decompô-lo, seqüênciá-lo, enfim, da facilidade de pedagogizá-lo? Aliado ao grande apelo científico com o qual era tratado e à sua expansão como fenômeno de massa, o esporte aparecia naqueles anos como uma possibilidade efetiva de consolidação e universalização da Educação Física Escolar.” (2003, p. 201) Embora possamos considerar que as práticas escolares de ensino do esporte também comportam todo um processo de produção de “substitutos didáticos” (Michel Verret, apud Forquin, 1992 e 1996), torna-se necessário investigar as experiências socioculturais que lhe conferem sentido e que irão, inclusive, justifica-lo e legitima-lo como parte de uma “seleção cultural” inevitavelmente realizada na escola. O Programa de Educação Física para o Ensino Secundário estabelecido pela ABE em 1928 incluía algumas práticas esportivas e já organizava uma “forma escolar para o esporte”, que inclui ordenamentos de tempos e espaços, seleção de conteúdo e dispositivos que se revelam como substitutos didáticos. Para a 1ª série: “bola americana, malho, foot-ball e basket-ball”; para a 2ª série: “volley-ball, malho, bola americana, peteca, natação, waterpolo, foot-ball e basket-ball” e para as 3ª e 4ª séries: “os mesmos jogos praticados na 2ª série e mais o tennis”. Ao apresentar o esporte como conteúdo curricular, o Programa indica que as aulas devem ser divididas em 3 tempos: “1º) marchas e evoluções, 2º) exercícios propriamente ditos e 3º) jogos” “Em tempos de aula o professor deve fazer com que os alunos executem movimentos que interessem o organismo integralmente. Nos dias que os alunos não tiverem aula de exercícios físicos deverão praticar jogos do programa, nas horas de recreio, não se esquecendo de executar a respiração nos intervalos e no fim de cada partida. (...) em campos de dimensões mínimas, o foot-ball pode ser praticado durante 15 minutos, divididos em dois tempos de 10 e 5 minutos, com intervalos de 5. A basket-ball, também em campo mínimo poderá ser praticada em dois tempos de 4 minutos, de 5 de intervalo” 9 Estas seleções comportam os seus elementos de tensão e contradição, expressando permanentes negociações de significados culturais (Perez Gómez,1998). Apenas um ano antes da Seção de Ensino Secundário estabelecer o Programa acima apresentado, durante a I Conferência Nacional de Educação, realizada em dezembro de 27 em Curitiba, a Sra. Amélia de Rezende Martins, do Rio de Janeiro, apresentou uma tese, a de Número 27, intitulada “Uma palavra de atualidade”, onde levantou os seguintes “problemas” acerca do esporte: “Um ponto hoje muito atacado, em se tratando da educação, é o da cultura física. Neste momento, merecem, entre nós, especial atenção os esportes. Ginástica, dança e outros começam na idade escolar e continuam em voga, com a maior aceitação na sociedade; e os esportes vão exigindo cada vez menos roupa, para que não sejam tolhidos os movimentos, e a moral leiga não acha mal em que se banhem juntos todos os meninos de todas as idades, nus, porque assim, sendo uma coisa natural e a curiosidade não ficando aguçada, a criança não vê malícia moral leiga, moral de princípios pervertedores, sob a capa de muita ingenuidade. A criança começa não achando mau na nudez e acaba não achando mal em tudo que exige a nua natureza. (...) Para os esportes femininos, por tal forma a mulher se habitua a vestir pouco que depois, na sociedade, já não tem o pudor do seu corpo. Se não há mal na nudez, porque fazem os governos, os próprios governos sem crença, vestir os índios?10 Como outras novidades liberais e democráticas dos “sem crença”, o esporte foi também ponto de tensão e questionamento para o grupo católico no interior da ABE, confirmando que a história política também se produz na negociação e na produção de uma história cultural que envolve questões de gênero, etnia, corpo, idade e religiosidade. Esse conjunto de sinais a serem decifrados sugere a necessidade de um diálogo acadêmico entre historiadores e sociólogos do currículo (Forquin, 1992 e 1996) na medida em que estas diferentes áreas de conhecimento, em inter-relação, podem apresentar elementos importantes para a compreensão da singular experiência brasileira de escolarização do esporte. Possibilidade que convida a questionar a “ilusão de uma gênese pura” (Bourdieu & Wacquart, 2002) ainda tão impregnada na produção historiográfica da educação física brasileira. A idéia de universal sempre agregada à lógica da evolução linear e cumulativa da história e das práticas sociais , nos faz, por vezes, esquecer que as práticas, e os discursos que as engendram, “têm sua origem nas realidades complexas e controvertidas de uma sociedade histórica particular, construída taticamente como modelo e medida de todas as coisas” (Idem). Novos saberes, ao adentrarem a escola podem produzir mudanças que vão além do currículo (aqui tomado em uma acepção restrita), incidindo na reconfiguração da própria escola. Esse parece ser o caso do esporte que, já realizado na sociedade brasileira como atividade de lazer e/ou como atividade profissional passa, pouco a pouco, a compor um conjunto das práticas produzido e compartilhado permanentemente pelos sujeitos escolares. Formas de expressão, portanto, práticas culturais: "conhecimento do mundo implícito, mas apenas semiconectado, a partir do qual, mediante negociação, as pessoas alcançam modos de atuar satisfatórios em dados contextos (...) a cultura está recriando-se constantemente ao ser interpretada e renegociada por seus integrantes (...) é tanto um fórum para negociar e renegociar os significados e explicar a ação como um conjunto de regras e especificações para a ação" (Bruner apud Pérez Gómez, 1998, p. 60). Nesses termos, a escola é lugar de aprendizagens sobre um conjunto de regras e especificações para a ação esportiva e, neste conjunto, estariam também incluídas as aprendizagens de como “negociar e renegociar os significados” constituintes destas práticas. Parecem aqui pertinentes os argumentos que Forquin toma emprestado de Bourdieu para problematizar a “força formadora de hábitos” presente nos saberes e nas práticas escolares: “Numa sociedade onde a transmissão cultural é monopolizada por uma escola as afinidades subterrâneas que unem as obras humanas (e ao mesmo tempo as condutas e os pensamentos) encontram seu princípio numa instituição escolar, investida da função de transmitir conscientemente (e também, por um lado, inconscientemente) o inconsciente, ou mais exatamente, de produzir indivíduos dotados deste sistema de esquemas inconscientes (ou profundamente escondidos) que constitui a cultura.” (Bourdieu apud Forquin 1992, p. 36-37) Continuidades... Para além do que aqui foi tratado, estudar os detalhes do processo de escolarização do esporte no Brasil implicará levar ainda em consideração a complexidade do contexto que produz uma configuração própria ao segundo quartel do século XX: a conformação de uma modernidade pedagógica, os processos de urbanização e industrialização, o movimento da escola ativa, a tensão/composição entre militares e educadores, a expansão de um sistema público de ensino combinado com um autoritarismo de Estado e ainda as experiências culturais que indicam a produção de dispositivos de racionalização do corpo e do movimento. A idéia de “eficiência”, já bastante destacada por Carvalho (1997) e também por Vago (2002) , parece ser o mote, a senha por meio da qual será importante buscar as pertinências deste estudo. “De par com as últimas descobertas tecnológicas, de fato como um desdobramento delas, se destacou a noção de que o corpo humano em particular, e a sociedade como um todo, são também máquinas, autênticos dínamos geradores de energia”. Assim Nicolau Sevcenko (1992, p.45) interpretou a presença do esporte na produção cultural da metrópole paulistana dos anos de 1920. E continua: “quanto mais se aperfeiçoassem, regulassem e coordenassem esses maquinismos, tanto mais efetivo seria o seu desempenho e mais concentrada sua energia potencial” (idem). Seriam essas também tarefas para as escolas? Por isso a produção de uma forma escolar capaz de aperfeiçoar “dínamos geradores de energia”? De acordo com Clarice Nunes (1994), o “moderno” que vinha sendo estabelecido na sociedade brasileira desde o final do século XIX, configura-se de forma mais efetiva nas décadas de 1920 e 1930. Nessa fabricação coube aos educadores uma grande responsabilidade: discutir e propor projetos compatíveis com a modernidade, que fossem capazes de relacionar a escola com o mundo urbano, seus saberes e seus poderes. Ao protagonizar inúmeras ações do período, a ABE e seus educadores profissionais católicos ou comunistas, liberais ou autoritários, de direita ou à guauche, civis e militares acionaram vários dispositivos, travaram grandes debates, organizaram interesses e fizeram composições. O esporte participou dessa produção que, sabemos, culminou na chamada “modernização conservadora”. (idem) Dialogando com os lugares de fabricação destes projetos culturais vale perguntar: O que aconteceu com a organização dos Clubs esportivos escolares que, no VII Congresso, em 1935, o professor Mário de Queiroz Rodrigues indicou como “uma grande vantagem para o ensino em geral”? Que tipo de integração lógica, moral e social foi produzida pela presença do esporte na escola brasileira? O jogo está apenas começando, mas não se pode perder de vista, como bem alerta Alexandre Vaz, que “o esporte é um dos principais vetores de idéia de um progresso linear e infinito, cuja concepção de natureza é fortemente vinculada à produtividade e à tecnificação”(2002, p.25). Mas não foi só o esporte que tomou “máquinas eficientes” como metáforas. A forma escolar moderna também o fez, e com primor. Por isso uma história do esporte escolar não pode negligenciar os buracos, os tropeços e os silêncios mas deve duvidar, e talvez desafiar, as sedutoras versões referendadas na universalidade civilizadora e no progresso linear. Referências: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO. Anais do VII Congresso Nacional de Educação.Rio de Janeiro, 23 de junho a 7 de julho de 1935. BOLETIM DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO (Departamento do Rio de Janeiro). BOURDIEU, Pierre. Como é possível ser esportivo? In: Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. BOURDIEU, P.& WACQUANT, L. Prefácio: sobre as artimanhas da razão imperialista. In: NOGUEIRA, Maria Alice e CATANI, Afrânio (orgs.) Escritos de Educação. Petrópolis, RJ: vozes, 1998. CARVALHO, Marta Chagas de. Molde Nacional e Fôrma Cívica: higiene, moral e trabalho no projeto da ABE (1924-1931). 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Previsão de defesa: março/2006 2 Anais do VII Congresso Nacional de Educação.Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Educação, 1935. p. 22. 3 Constituíram-se como balizadores do recorte temporal da tese em construção os estudos: “Molde nacional e forma cívica...” (1986) e “Quando a historia da educação é a história da disciplina e da higienização das pessoas” ( 1997) de Marta Maria Chagas de Carvalho; “Cultura escolar, cultivo dos corpos...” (2002) e “Educação Física na Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1930): estudo exploratório de uma estratégia de formação do professorado” (2004) de Tarcísio Mauro Vago e “Relatório de Pesquisa submetido ao exame de Qualificação” (2001) e “Sobre o pensamento médicohigienista oitocentista e a escolarização...” (2003) de Fernanda Simone Lopes de Paiva. As referências completas constam na bibliografia. 4 Boletim da Associação Brasileira de Educação, Ano I, nº 03, 1926. 5 Essas são expressões bastante usuais na imprensa esportiva dos anos 20 e 30 para notificar eventos esportivos. Veja-se, entre outros: Pereira (2000) e Sevcenko (1992). 6 Estes eixos se expressam como elementos chaves do processo de escolarização do esporte. Nesses termos, constituem referencia no diálogo com as fontes e na escrita da tese. 7 Boletim da Associação Brasileira de Educação, Ano 01, nº 02, 1925, p.04. 8 O “surto dos sports”, nas primeiras décadas do Século XX, é noticiado pela imprensa carioca e também pela Revista Educação Physica 9 Boletim da Associação Brasileira de Educação, Ano V, nº 33, 1929, p.29. As teses da I Conferência, realizada em 1927, foram recentemente editadas pelo INEP. Veja-se: COSTA, Maria José et alli (org). I Conferência Nacional de Educação. Brasília: INEP, 1997. p.155. 10