1 de outubro de 2012 I Aproximou-se da mulher e enquanto punha as mãos abertas no cabelo dela, dizia: — Sempre me esqueço de trazer uma lente para ver como são as plantas que tem no verde destes olhos; mas já sei que a cor da pele você consegue se esfregando com azeitonas. A cada 15 - Felisberto Hernández A mulher acariciou novamente o nariz dele com o indicador; depois o afundou na face, até o dedo se dobrar como uma pata de mosca e lhe respondeu: — E eu sempre me esqueço de trazer uma tesoura para aparar as tuas sobrancelhas! Ela se sentou à mesa e, vendo que ele saía da sala de jantar, perguntou: — Esqueceu alguma coisa? — Quem sabe. Ele voltou logo e ela pensou que não tinha tido tempo de falar ao telefone. — Você não quer falar o que foi fazer? — Não. — Eu também não vou te falar o que os homens fizeram hoje. Ele já tinha começado a responder: — Não, minha querida azeitona, não me diga nada até o fim do jantar. E se serviu de um vinho que recebia da França; mas as palavras de sua mulher tinham sido como pequenas pedras caídas num lago onde viviam suas manias; e não conseguiu abandonar a ideia do que esperava ver nessa noite. Colecionava bonecas um pouco mais altas que as mulheres normais. Num grande salão tinha feito construir três cômodos de vidro; no mais amplo estavam todas as bonecas que esperavam o instante de serem escolhidas para participar de cenas que compunham nos outros cômodos. Essa tarefa era responsabilidade de muitas pessoas: em primeiro lugar, autores de lenda (em poucas palavras devia expressar a situação em que se encontravam as bonecas que apareciam em cada cômodo); outros artistas cuidavam da cenografia, dos vestidos, da música etc. Naquela noite seria aberta a segunda exposição; ele assistiria enquanto um pianista, de costas para ele e no fundo do salão, executaria as peças programadas. De repente, o dono da casa negra percebeu que não devia pensar nisso durante o jantar; então, tirou do bolso do fraque um binóculo de teatro e tentou enfocar o rosto de sua mulher. — Gostaria de saber se as sombras das tuas olheiras são produzidas por vegetações... Ela compreendeu que o marido tinha ido ao escritório buscar o binóculo e decidiu festejar a brincadeira. Ele viu uma cúpula de vidro; e quando 1 de outubro de 2012 percebeu que era uma garrafa deixou o binóculo e se serviu outra taça do vinho da França. Sua mulher olhava os borbulhões caindo na taça; eles salpicavam o cristal de lágrimas negras e corriam para se encontrar com o vinho que ascendia. Nesse momento entrou Alex — um russo branco de barba pontuda —, se inclinou perante a senhora e lhe serviu feijão com presunto. Ela dizia que nunca tinha visto um criado de barba; e o senhor respondia que essa tinha sido a única condição exigida por Alex. Agora ela deixou de olhar a taça de vinho e viu a extremidade da manga do criado; dali saía um espesso tufo de pelos que se arrastava pela mão e chegava até os dedos. No momento de servir o dono da casa, Alex disse: — O Walter chegou. (Era o pianista.) No final do jantar, Alex retirou as taças numa bandeja; elas batiam umas nas outras e pareciam contentes de se reencontrarem. O senhor — em quem tinha brotado um silêncio sonolento — sentiu prazer em ouvir os sons das taças e chamou o criado: — Diga ao Walter para ir ao piano. No momento em que eu adentrar o salão, ele não deve falar comigo. E o piano, está longe das vitrines? — Está, sim senhor, está na outra extremidade do salão. — Bom, diga ao Walter para se sentar de costas para mim, começar a tocar a primeira obra do programa e repetir sem interrupção até eu dar o sinal da luz. Sua mulher sorria para ele. Ele foi beijá-la e deixou uns instantes o rosto congestionado junto à face dela. Depois se dirigiu para a salinha próxima do grande salão. Ali começou a beber café e fumar; não iria ver suas bonecas enquanto não se sentisse bem isolado. No começo, prestou atenção nos barulhos das máquinas e nos sons do piano; parecia que vinham misturados com água, e ele os ouvia como se estivesse usando um escafandro. Finalmente acordou e começou a perceber que alguns dos barulhos desejavam lhe insinuar alguma coisa; como se alguém fizesse um chamado especial entre os roncos de muitas pessoas para acordar apenas uma delas. Mas quando ele prestava atenção nesses barulhos, eles fugiam como ratos assustados. Esteve intrigado alguns momentos e depois decidiu não dar importância. De repente, estranhou não se ver sentado na poltrona: tinha levantado sem perceber; recordou o instante, muito recente, em que abriu a porta e, em seguida, se encontrou com os passos que dava agora: eles o A cada 15 - Felisberto Hernández conduziam à primeira vitrine. Lá, acendeu a luz da cena e, através da cortina verde, viu uma boneca deitada numa cama. Correu a cortina e subiu no estrado — era mais uma tarimba com rodas de borracha e parapeito —; em cima havia uma poltrona e uma mesinha; dali dominava melhor a cena. A boneca estava vestida de noiva e os olhos abertos estavam colocados na direção do teto. Não se sabia se estava morta ou se sonhava. Tinha os braços abertos; podia ser uma atitude de desespero ou de feliz abandono. Antes de abrir a gaveta da mesinha e saber qual era a lenda dessa noiva, ele queria imaginar alguma coisa. Talvez ela esperasse o noivo, que não chegaria nunca; a teria abandonado um instante antes do casamento; ou talvez fosse viúva e relembrasse o dia em que se casou; também podia estar usando aquele vestido com a esperança de ser noiva. Então, abriu a gaveta e leu: “Um instante antes de se casar com o homem que não ama, ela se tranca, pensa que aquele vestido era para se casar com o homem que amou, e que já não existe, e se envenena. Morre com os olhos abertos e ainda ninguém entrou para fechá-los”. Então, o dono da casa negra pensou: “Realmente, era uma noiva linda”. E, após poucos instantes, sentiu prazer em perceber que ele vivia e ela não. Depois abriu uma porta de vidro e adentrou a cena para olhar os detalhes. Mas, ao mesmo tempo, lhe pareceu ouvir, entre o barulho das máquinas e da música, uma porta fechada com violência; saiu da vitrine e viu, preso na porta que dava para a salinha, um pedaço do vestido de sua mulher; enquanto se dirigia para ali, nas pontas dos pés, pensou que ela o estava espiando; talvez tivesse querido fazer uma brincadeira; abriu rapidamente e o corpo dela veio para cima dele; ele o recebeu nos braços, mas lhe pareceu muito leve e em seguida reconheceu Hortensia, a boneca parecida com a esposa; ao mesmo tempo sua mulher, que estava de cócoras atrás de uma poltrona, se levantou e disse: — Eu também quis preparar uma surpresa para você; mal tive tempo de pôr o meu vestido nela. Felisberto Hernández nasceu em Montevidéu em 1902. Antes de se dedicar inteiramente à literatura, foi pianista, tocando em cafés e em cinemas e compondo diversas obras. Em 1925 publica seu primeiro livro. A partir de 1942 abandona a música e volta-se totalmente à escrita. Em 1946, recebe uma bolsa do governo francês para morar em Paris, onde fica por alguns anos. Com livros 1 de outubro de 2012 publicados em diversos países e traduzidos para diversos idiomas, o autor foi admirado por escritores do porte de Juan Carlos Onetti, Julio Cortázar e Italo Calvino. Sua obra é o resultado de uma estranha e mescla de realidade e sonho, de observação irônica e fantasia poética e influenciou de forma determinante o que se conhece como realismo fantástico. Considerado um autor de obra literária fundamental, Hernández faleceu em 1964, aos 61 anos, na cidade em que nasceu. Vol. 1 Da Coleção Boca A Boca – edições bilíngues (espanhol/português) de autores uruguaios em co-edição com a editora uruguaia Yaugurú.