Anais do V SENALIC – TEXTOS COMPLETOS
ISSN – 2175-4128
Organizadores: Gomes, Carlos; Ramalho, Christina; Ana Leal Cardoso
São Cristóvão: GELIC, Volume 05, 2014
O DUPLO EM CORPO FECHADO:
UM PÉRIPLO PELAS FACETAS DE MANUEL FULÔ E GUIMARÃES
Ozéias Pereira da Conceição Filho (UFS)
Introdução
Em Guimarães Rosa muito se escreveu sobre a dicotomia língua-fala,
acentuando o caráter oral de suas obras, contrapondo os valores da tradição literária
aos valores do Modernismo, embora já saibamos que na obra roseana esses dois polos
se encontram para formar uma literatura complexa, composta por vários elementos
antagônicos, mas fundantes do mais alto estilo literário brasileiro.
É exatamente sob a luz da duplicidade que pretendemos lançar nosso olhar
sobre uma das novelas do livro Sagarana (1937), Corpo fechado. Não para discorrer
sobre a dicotomia já tão trabalhada língua-fala, mas para investigar como a figura do
personagem principal da novela é constituída sob a insígnia do duplo. Analisaremos a
relação de Manuel Fulô, o protagonista, com os valentões da história. Perquiriremos
também sobre a figura do narrador e do autor, defendendo que em certa medida essa
relação também é perpassada pelo conceito de duplo, que de modo bastante genérico,
pode-se entender “como qualquer modo de desdobramento do ser” (FRANÇA, 2009,
p.07).
João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, aos 27 de junho de 1908. Foi
também médico e diplomata. Sua profissão como médico no interior de Minas Gerais
lhe possibilitou conhecer um universo que mais tarde foi representado em sua obra. Seu
valor dado a linguagem foge ao clichê regionalista da década de 30, elevando o autor a
categoria de um dos principais ficcionistas brasileiros, e transcendendo o regionalismo
brasileiro, que também passa a ter um tom mais universal, focado mais no conhecimento
do homem do que no conhecimento da terra, do regional, do pitoresco.
Antes de partirmos para as análises propriamente ditas, iremos primeiro
esboçar um rápido resumo sobre o enredo da novela. Corpo fechado conta a história de
Manuel Fulô, um prosador bêbado metido a valente, amigo do médico do arraial onde
vive, chamado Laginha. A narrativa conta a trajetória de Manuel Fulô desde seu
deslumbramento pelos causos de famosos valentões até sua própria tomada do posto
de valentão da região, que é lograda por meio de um duelo entre o atual homem mais
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brabo da região e Manuel. O protagonista tem como bem mais precioso sua égua: BeijaFulô. Ele tem uma noiva, Maria das Dores, e também está prestes a se casar. O doutor,
como já dissemos, é o seu melhor amigo e também a pessoa para quem ele conta suas
prosas.
Identidade, repetição e diferença: Manuel Fulô, o duplo dos valentões
Nesse tópico avaliaremos em que medida o personagem Manuel Fulô
funciona na narrativa como duplo dos valentões. Analisaremos esse fenômeno da
dualidade por duas vias: a primeira partindo da construção discursiva de Manuel Fulô
sobre ele mesmo; e a segunda partindo das ações propriamente ditas do personagem.
Em suas narrativas pessoais o nosso herói se apresenta sempre como um
sujeito de coragem extrema, homem de sangue quente. Note que já na abertura da
narrativa Manuel está contando um causo de um tal José Boi, valentão por profissão.
Num resumo ele narra como este morreu:
José Boi caiu de um barranco de vinte metros; ficou com a cabeleira
enterrada no chão e quebrou o pescoço. Mas, meio minuto antes,
estava completamente bêbado e também no apogeu da carreira: era o
“espanta-praças -, porque tinha escaramuçado, uma vez, um cabo e
dois soldados, que não puderam reagir, por serem apenas três. - Você
o conheceu, Manuel Fulô?
- Mas muito!... Bom homem... Muito amigo meu. Só que ele sempre
andava coçando a cabeça, e eu tenho um medo danado de piolho...
(ROSA, 2012, P.262).
Já aí observe que aparecem dois elementos que aproximam Manuel Fulô dos
valentões: o fato dele mesmo se apresentar como amigo de José Boi; e o fato de que
os dois são beberrões, bêbados, perceberá o leitor conforme adentre na narrativa. Não
é gratuita a informação introdutória de que José Boi era bêbado, porque já daí se traça
uma identidade entre Manuel e os valentões.
Para Zilá Bernd, “segundo uma acepção psicológica, o duplo é a projeção do
sujeito, que se vê a si mesmo, como Outro, como entidade autônoma, mas idêntica ou
semelhante em todos os aspectos” (2007, p.229). Assim, Manuel, que não é de fato
nenhum valentão, vê a si mesmo como um Outro, este que está ligado a figura da
valentia. Criando, desse modo, uma identidade por semelhança com elementos que
enformam um homem valente; e para isso reforça que mantinha laços de amizade
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duvidosa com famoso valentão morto. É até irônico ele escolher a narrativa sobre um
suposto amigo valentão que não está mais lá para atestar essa amizade declarada.
Contudo, no próprio discurso do personagem, apesar do chiste desviar nossa
atenção dessa realidade, podemos supor que a declaração da amizade de Manuel com
José Boi não se trata a bem dizer de uma verdade: “ - Mas muito!... Bom homem...
Muito amigo meu. Só que ele sempre andava coçando a cabeça, e eu tenho um medo
danado de piolho...” (ROSA, 2012, p.262). O medo descabido de piolho de um suposto
valentão é a maneira de Manuel Fulô dizer subliminarmente que ele não se aproximava
muito do sujeito devido a essa fobia. Mas, no mínimo, podemos pensar como sujeitos
tão “muito amigos” podem sustentar uma amizade sendo que um deles tem fobia a algo
que faz parte da existência do outro? E como um sujeito tão valente também tem uma
fobia absurda dessas? Aqui já notamos uma falha no discurso de Manuel Fulô que
aponta para sua covardia, sinaliza um distanciamento entre discurso e prática.
No plano do discurso Manuel cria uma identidade entre ele e o valentão,
aproximando-os, ele projeta uma imagem de si no outro. Todavia, no plano da ação
enquanto valentão Manuel é simulacro, e “por simulacro não devemos entender uma
simples imitação, mas, sobretudo o ato pelo qual a própria ideia de um modelo ou de
uma posição privilegiada é contestada, subvertida” (DELEUZE, 2006, p.109), dito de
outra maneira, o simulacro é uma cópia imperfeita em sua função de ser cópia.
O modelo do valentão sugerido pela figura de José Boi corresponde ao um
homem sem temeridades, disposto a enfrentar desafios, enfim, tudo o que não
encontramos no plano da ação em Manuel Fulô: medroso, covarde. Enquanto valentão
nosso herói é subversivo, pois ele inverte valores atribuídos aos homens de coragem;
ele aceita, por exemplo, subterfúgio para encarar o desafio imposto por Targino, o
verdadeiro valentão da região, de um duelo pela honra da noiva de Fulô. Targino havia
“solicitado” a presença de Maria das Dores na cama dele antes do casamento dela com
Manuel, e caso o noivo não concordasse com esses termos, então que encarasse o
desafio com o valentão. Manuel se deixa ser enfeitiçado para poder encarar o desafio
contra Targino, e essa é uma atitude imprópria para um valentão, é uma burla que dá
uma vitória para Manuel, mas também o transforma num pseudo valentão. Antonico das
Pedras, o feiticeiro da região, utilizando o feitiço do corpo fechado, é quem prepara
Manuel Fulô para a ocasião:
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Aí, de chofre, se abriu a porta do quarto-da-sala, onde os dois davam
as suas vozes, e o Antonico das Pedras surgiu, muito cínico e
sacerdotal, requisitando-lhe agulha e linha, um prato fundo, cachaça e
uma lata com brasas [..] E, nisso, abriram outra vez a porta do quartoda-sala, e Manuel Fulô saiu primeiro. Surgiu como uma surpresa,
trasmudado, teso, sonambútico [...] Vi-lhe um brilho estricto, nos olhos
[...]
- O-quê que o senhor foi fazer com o meu irmão, seu Toniquinho?
- Fechei o corpo dele. Não careçam de ter medo, que para arma de
fogo eu garanto!...
[...] E, quando espiei outra vez, vi exato: Targino, fixo, como um
manequim, e Manuel Fulô pulando nele e o esfaqueando, pela altura
do peito ¬ tudo com rara elegância e suma precisão. Targino girou na
perna esquerda, ceifando o ar com a direita; capotou; e desviveu, num
átimo. Seu rosto guardou um ar de temor salutar (ROSA, 2012, p.288290).
Antes mesmo desse desfecho revelador da covardia de Manuel em enfrentar
Targino com “mais honradez”, o leitor pode observar em outros momentos sinais de que
seria concretizada a suspeita de que na verdade o prosador contador de causos, Manuel
Fulô, não passava de sujeito medroso, que “aumentava histórias”, contava vantagens
não acontecidas, antecipava uma coragem forjada. A começar pela epígrafe da história:
“A barata diz que tem sete saias de fito... É mentira da barata: ela tem é uma só” (ROSA,
2012, p.262). Essa epígrafe é ilustrativa do espírito de Manuel Fulô, trata do jogo das
aparências: o herói que discursa como herói e se porta as avessas.
Outro ponto a ser notado é a narração discorrida por Manuel a respeito dos
feitos dos valentões: segundo ele, na historiografia dos valentões da região de Laginha,
terra do protagonista, alguns desses homens mantinham com ele algum tipo de relação.
De José Boi, Fulô era “muito amigo”, como já apontamos; de Miligido, Manuel herdou
uma escova de dente, sinal da consideração daquele por este: “Mas foi meu amigo.
Valentão valente, mesmo. Um dia ele me deu uma escova de dente, quase nova...Eu
acho que ele encontrou a tal nalgum lugar e não sabia que serventia aquilo tinha”
(ROSA, 2012, p.264). Aí, note a redundância para acentuar o caráter de seu amigo
valente, que por ser seu amigo, aproxima Fulô desse universo dos valentões, dá um
testemunho de veracidade da sua também valentia.
E ainda para atestar o tom de verdade dos fatos discorridos o narrador
parodia: “E assim falou Manuel Fulô” (ROSA, 2012, p.266), numa clara remissão a
Zaratustra (Assim falava Zaratustra), de Nietzsche. E é interessante perceber que é
exatamente nesse livro que o filósofo aborda questões referentes ao eterno retorno
(SALAQUARDA, 1997, p.21-22), afirmando que tudo e todas as coisas retornam, uma
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vez mais e sempre. E não é exatamente isso que acontece na jocosa historiografia dos
valentões de Laginha? A repetição, acontecida sempre pela substituição de um valentão
por outro?
Targino é um duplo de todos os outros que o antecederam: ele é a prova viva da
narrativa do eterno retorno (do mesmo), reafirmado pela identidade com os
antecedentes. E, consequentemente, Manuel ao assumir o lugar de Targino em seu
posto de valentão da vez, acaba perpetuando esse ciclo; contudo, repetido nesse
momento por um duplo que se repete, mas que também se diferencia pela sua covardia,
pela sua frouxidão:
E o melhor foi que meu afilhado [Manueu Fulô] conservou o título,
porque, pouco depois, um destacamento policial veio para Laginha, e
desapareceram os cabras possantes, com vocação para o disputar.
Mas Manuel Fulô ficou sendo um valentão manso e decorativo, como
mantença da tradição e para glória do arraial. Só, de vez em longe,
quando conseguia burlar a vigilância da esposa, ingeria um excesso
de meia garrafa da branquinha, pedia a Beija-Fulô emprestada ao
Antonico das Pedras-Águas, e dava trabalho ao povo, bloqueando a
rua Direita, galopando e disparando, para cima, tiros de mentira ou de
verdade [...] (ROSA, 2012, p.290, grifo nosso).
Então, como também já dissemos, a cópia do valentão configurada em
Manuel acaba subvertendo todos os modelos que o antecederam: aqueles arraigados
na mais pura valentia, na brabeza dos homens que tem verdadeiramente sangue
quente. O retorno do mesmo em Manuel se apresenta comicamente, pois ele representa
o avesso do mesmo, mas ainda sim considerado e tratado como o mesmo: “Mas Manuel
Fulô ficou sendo o valentão manso e decorativo, como mantença da tradição e para a
glória do arraial” (ROSA, 212, p.290).
Sobre a origem de Manuel Fulô, ela também apresenta-se como dupla: por
um lado o protagonista é associado à família Véiga, e por outro Fulô auto se denomina
um Peixoto. As duas origens são dicotômicas: uma, a dos Véiga, é a representação do
fracasso; a outra, a dos Peixoto, além de ser de família de comerciantes ricos, simboliza
também a valentia do homem. Sobre os Véigas:
Era de uma apócrifa e abundante família Véiga, de uma veiguíssima
veigaria moambo-mazeenta, tribo de trapeiros fracassados, que se
mexiam daqui p’r’ai, se queixando da hida e da vida: ¬ “Um maltírio”...
¬; uns homens que trotavam léguas a bordo de uma égua magra,
empilhados ¬ um na garupa, um na sela, mais um meninote no arção -
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para virem vender no arraial um cacho de banana-ouro, meio saco de
polvilho pubo, ou uma pele de raposão (ROSA, 2012, p.269).
Note que há nesse trecho algumas aliterações (“tribo de trapeiros
fracassados”, “trotavam”, “magra”) e ainda uma assonância (“Véiga, veiguíssima
veigaria”) que podem nos remeter a um processo natural de repetição. Uma observação
a ser feita é que é dessa família dos Veiga que Manuel se recusa a fazer parte. Ele não
quer repetir a “veigaria” de sua verdadeira origem, recusa-se a ser duplo do que
naturalmente seria caso se referisse aos Veigas como sendo sua verdadeira família;
Manuel foge a essa repetição, diferenciando-se como um Peixoto. O fracasso não faz
parte do repertório de um valentão:
- Vou lhe contar, seu doutor: sou filho natural de Nhô Peixoto! O Senhor
não reparou que eu não sou branquelo nem perrengue como esses
Véigas?... Meu pai é meu pai por cortesia, e eu respeito... Mas sou
mesmo é Peixoto. Raça de gente braba! Eu cá sou assim mesmo:
estou quieto, não bulo com ninguém... Mas, não venham mexer
comigo! Porque desfeita eu não levo p’ra casa, e p’ra desaforo grosso
a minha Beija-Fulô não dá condução... (ROSA, 2012, p.272).
Então numa tentativa de aproximar-se ainda mais da figura do valentão
destemido, Manuel escolhe dividir os laços sanguíneos com uma família afamada. Para
ele não basta contar feitos de gente valente, também tem que ter origem de gente
valente. A valentia, nesse sentido, não é uma qualidade que se conquista com ação,
mas sim com a procedência, com a pertença a uma família já consolidada na brabeza.
E para Manuel é mais cômodo ser valente por procedência, pois a priori isso não lhe
exige ação, e como covarde a ação pode ser um ultimato que ele prefere não encarar.
Conversa de doutores: Rosa e seu duplo
Nesse tópico apontaremos para a hipótese de que o narrador de Corpo
fechado e seu autor se constituam num duplo. Para isso, partiremos primeiro da noção
barthesiana sobre a autoria:
Será para sempre impossível sabê-lo, pela boa razão de que a escrita
é a destruição de toda a voz, de toda a origem. A escrita é esse neutro,
esse compósito, esse oblíquo pra onde foge o nosso sujeito, o preto-ebranco aonde vem perder-se toda a identidade, a começar
precisamente pela do corpo que escreve [...] a voz perde a sua origem,
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o autor entra na sua própria morte, a escrita começa (BARTHES, 2004,
p.01).
Num momento da crítica em que estudiosos de prestígio da literatura
difundem a morte da figura do autor, ilustrado acima por Roland Barthes, Rosa parece
brincar em sua narrativa, registrando sua marca, dando pistas de sua “existência” em
sua obra. Não defendemos aqui a ideia de que são retratados literalmente lapsos da
vida do autor em sua obra, pois incorreríamos no risco de confundir a própria produção
literária de Rosa em uma autobiografia, e sabemos que isso não é procedente. Todavia,
instigamos que em certa medida podemos encontrar algo de Rosa em sua obra, uma
insígnia autoral que assume não o tom de um relato pessoal, mas um traço de memória,
um tanto de experiência1 (BENJAMIN, 2012, p.223-229) expressada e ficcionalizada,
um duplo de si mesmo expresso em sua arte. Sobre a tessitura de Corpo fechado,
Guimarães, numa carta escrita a João Condé, assume:
Talvez seja a minha predileta [referindo-se as histórias de Sagarana].
Manuel Fulô foi o personagem que mais conviveu “Humanamente”
comigo, e cheguei a desconfiar de que ele pudesse ter uma qualquer
espécie de existência. Assim, viveu ele para mim umas três ou quatro
histórias, que não aproveitei no papel, porque não tinham valor de
parábolas, não “transcendiam” (ROSA, 2012, p.26, grifo nosso).
O fato de assumir sua preferência pela história citada não quer dizer que o
autor tenha se auto personalizado na narrativa, porém nos dá um indicativo de
possibilidade de que quiçá encontraremos um pouco mais de pessoalidade, perceptível
em máxime pela escolha de um narrador médico, uma das profissões do autor, e pela
dicotomia língua-fala (muito trabalhada nas obras de Rosa), e representada pelo duplo
doutor-Manuel Fulô. A Guimarães, sabemos, encanta os meandros da língua, as
possibilidades de expressão, desarraigadas de normas, sem encapsulamento artístico
de criação. E em Corpo fechado todas essas premissas pessoais e artísticas do autor
são postas. Em suas próprias palavras, estava em Sagarana (livro onde está contido
Corpo fechado) toda a sua visão de mundo:
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Entendemos aqui experiência segundo os preceitos de Walter Benjamin, de algo que pode ser transmitido. Não
queremos dizer com isso que a literatura serve a fins pedagógicos, com lições a ser passadas, com uma moral
estabelecida. Queremos sim dizer que o espaço literário é de certa maneira também um lugar onde experiências são
postas, ficcionalizadas, tornadas em arte.
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Assim, pois, em 1937 ¬ um dia, outro dia, outro dia... ¬ quando chegou
a hora de o Sagarana ter de escrito, pensei muito. Num barquinho, que
viria descendo e passaria ao alcance de minhas mãos, eu ia poder
colocar o que quisesse. Principalmente, nele poderia embarcar,
inteiramente, no momento, a minha concepção de mundo (ROSA,
2012, p.23).
Essa concepção de mundo só poderia vir expressa com um pouco de
pessoalidade, atrelando a criação (obra) ao criador (autor), pois ao conjunto de
subjetividades é que também chamamos de visão ou concepção de mundo. Assim
posto, é possível inferir que o doutor de Corpo fechado é um espelho ficcionalizado de
Rosa, uma parte da memória do escritor, um fantasma que encontrou vida na literatura,
algo pessoal (contudo, não retratado, não confundido com relato), uma parte de seu eu
reconstruída em outros episódios que não os de sua vida, uma construção
metamorfoseada, um estranho que surge de sua intimidade, de suas peculiaridades,
algo enformado de proximidade, sentimento permitido pela sua memória de escritor; e
também de distanciamento, na medida em que a vida do doutor da narrativa não é a
mesma de Guimarães Rosa, pois este não viveu nenhum caso testemunhal sobre um
tal de Manuel Fulô , não conheceu nenhuma “rapariguinha risonha e redonda, peituda
como uma perdiz” (ROSA, 2012, p.272) de nome Maria das Dores, noiva de Manuel
Fulô; porém, de alguma forma há um cruzamento entre autor-obra permitido pela
liberdade discursiva encontrada na arte do fazer literário, na duplicação literariezada de
Rosa-doutor.
Ainda sobre a criação da obra e a experiência partilhada nela, podemos
pensar em Corpo fechado (e todo Sagarana), segundo o próprio Rosa já nos assegurou,
como um barquinho, onde nele está contida uma gama de concepções que o autor
aproveita para representar-se. A vida de Rosa trouxe para ele elementos fundadores de
sua narrativa. Sem medo de ser categorizado, ou rechaçado pela crítica da estética da
recepção, Rosa expõe suas inspirações para a construção literária, não deixando para
o leitor a noção de que a literatura surge de um lugar “neutro”, puro, vago. O autor existe
e é expresso, mesmo que subliminarmente nos elementos dispostos na obra.
Apreciações conclusivas
Foi possível perceber, através dessa investigação, como a manifestação do
duplo permeia a construção literária de uma das novelas de Guimarães Rosa, a saber,
Corpo fechado. Procuramos esclarecer como o personagem protagonista, Manuel Fulô,
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situa-se no centro da narrativa estabelecendo relações duplas com todo o universo que
o cerca: desde suas alcunhas até seu envolvimento com as figuras dos valentões.
Foi demonstrado que os apelidos do personagem carregam funções que
revelam o papel de cada duplo encontrado para o próprio Manuel, eles estabelecem em
que medida Fulô se aproxima ou se distancia dos símbolos atrelados aos valentões.
Percebemos a partir daí como o fenômeno da dualidade tornou-se um fio de tear que
conduziu o herói ao final de sua jornada, pois foi necessário que Manuel representasse
um simulacro, uma cópia imperfeita do valente para poder se utilizar de subterfúgios
que enfim acabaram por lhe conceder o título do novo valentão da região, vencendo o
ex-atual valentão, Targino, num duelo em que sua maior arma foi o feitiço do corpo
fechado.
Sobre a relação entre narrador e autor, podemos concluir que o doutor da
narrativa de Corpo fechado enquanto cópia, duplo de Rosa, concede a este a categoria
da imortalidade do autor, selada e ratificada pela perenidade da literatura. Rosa partilha
sua experiência, ao mesmo tempo em que funde realidades ficcionais e existenciais
para compor um personagem, para dar a vida à sua literatura. Desse modo, provando,
ou dando pistas que o autor não morre ao escrever, como postula a estética da
recepção. Sua marca permanece, mesmo que subliminar, sutil, tênue.
REFERÊNCIAS
AMARAL, Ana Maria. O ator e seus duplos: máscaras, bonecos, objetos. São Paulo: Editora
Senac São Paulo, 2004. p.01¬39.
BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre iteratura e história da cultura.
São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 223¬229.
BERND, Zilá (org.). Duplo. In: BERND, Zilá (org). Dicionário de figuras e mitos literários das
Américas. Porto Alegre: UFRGS, 2007. p. 227-234.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
FOUCAULT, Michel. O homem e seus duplos. In: FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 319-360.
FRANÇA, Júlio. O insólito e seu duplo. In: GRACÍA, Flávio; MOTTA, Marcus Alexandre (orgs). O
insólito e seu duplo. Editora UERJ, 2009.
FREUD, Sigmund. O inquietante. In: FREUD, Sigmund. Obra completa volume 14. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p.328-376.
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MACHADO, Roberto. Prólogo. In: DELLEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro:
Graal, 2006. p.15-18.
ROSA, Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
SALAQUARDA, Jörg. A concepção básica de Zaratustra. In: Cadernos Nietzsche 2. Zurique:
1997. p.
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