O Corpo e Outros Lugares O Corpo e Outros Lugares poesias ALBENIZ CLAYTON ©2011 Albeniz Clayton Direitos desta edição reservados à Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor. Capa e Projeto Gráfico Laís Foratto Preparação Elisa Santoro Revisão Nicole Guim Imagem da capa Albeniz Clayton - Paris, 2000 Coleção particular 1ª Edição: Fevereiro de 2011 C6223 Clayton, Albeniz. O Corpo e Outros Lugares / Albeniz Clayton -- Jundiaí, Paco Editorial: 2011. 80 p. ISBN: 978-85-63381-45-3 1. Literatura Brasileira. 2. Poesia. I. Clayton, Albeniz. II. Título. CDD: B869.1 Rua 23 de Maio, 550 Vianelo - Jundiaí-SP - 13207-070 Para o meu pai, Rui Antonio Dias. Nota Prefacial Albeniz Clayton (1967) é um belo-horizontino de origem carioca que viveu parte de sua vida em um bairro boêmio da capital mineira – o Lagoinha – à margem do ribeirão Arrudas. Depois de descobrir naquelas imediações os matizes de uma vida despreocupada com o futuro, tomou o seu navio e como cigano pôs-se a conhecer mundo. Este, O Corpo e Outros Lugares, seu segundo livro de poesias, é, pois, a narrativa de suas perambulações que o aproximaram, como indicam os nomes de muitos poemas, de locais outros, visitados ou não. Mas, certamente, daqueles inatingíveis que tentamos alcançar só e através da alma com sua voz inaudível e quase sempre banhada de desejos nunca realizados, dores, frustrações e melancolia que não cabem em lugar nenhum. Seria de se esperar, portanto, um texto lacônico, mas, paradoxalmente, o que o autor nos apresenta é transbordante de uma linguagem prolixa que procura descrever com exatidão todos os lugares vistos (?) e perscrutados. Não se saberá nunca se Albeniz viveu realmente, de corpo presente, tudo o que nos oferece a compartilhar com ele. Não importa. No poema Aquilo nos surpreende “correndo atrás do tempo com o corpo atrás de mim” — valho-me aqui, como ilustração, de trecho das reflexões finais sobre Jorge Luis Borges, no qual o ensaísta cubano Italo Calvino em Por que ler os clássicos, ao analisar o estudo do escritor portenho sobre a canibalidade de Ugolino della Gherardesca no canto XXXIII do Inferno da comédia dantesca, esclarece: “O ensaio é importante pelas considerações gerais com que se encerra. Em particular aquela (que é uma das afirmações de Borges que mais coincide com o método estruturalista) sobre o texto literário que consiste exclusivamente na sucessão de palavras que o compõem, razão pela qual ‘de Ugolino devemos dizer que é um tecido verbal, que consiste em cerca de trinta tercetos’. Depois, aquela que se liga às ideias muitas vezes sustentadas por Borges sobre a impessoalidade da literatura para argumentar que ‘Dante não soube de Ugolino muito mais do que os seus tercetos registram’”. As viagens de Albeniz são árduas, e atravessá-las é, antes, emoção, jamais tristeza. Setembro de 2010. ELDER MOURÃO Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais Índice A cor do nada................................................11 A mosca.........................................................13 A Praça Gênese..............................................16 Aquilo............................................................18 O Azul de Renè Magritte................................20 Berlim, para Caetano Veloso..........................23 Café del Sol...................................................25 Dioxina..........................................................27 Desenho Italiano............................................30 Ela se chama delírio........................................32 Enxurrada......................................................34 Espantalho Urbano.........................................36 Fugaz.............................................................37 Feto...............................................................39 Globalizado ou “Nick is Back”........................41 Hotel Montaigne............................................43 Invasões.........................................................45 Ipanema em Paris...........................................46 Londres..........................................................50 Líquido..........................................................52 Morro............................................................54 Noctâmbulo, para Olga Savary........................56 O dromedário e a bicicleta.............................58 O homem sem sono.......................................61 O príncipe e as ondas onde me afogo............63 Oslo...............................................................66 Scanner.........................................................68 Sob os pés nus e mal gastos...........................70 Texas.............................................................72 Veneza..........................................................74 Anotações.....................................................76 11 O Corpo e Outros Lugares A cor do nada Branco cai sobre a minha cabeça uma chuva estranha branca, um dilúvio de neve que vai combrindo tudo como as horas lentamente do dilúvio de sêmen divino sobre a cidade que se tornou branca e fria de pós e ainda úmida dentro da minha cabeça uma branquidão sem passado nasce e passa, depois de derreter-se em pensamentos, derretendo-se feito cabelos longos se parece lá fora brancos que caem sobre os ombros e voam o manto de neve cobrindo meus olhos como alguma coisa desaparecendo por debaixo do pó branco, ALBENIZ CLAYTON 12 ... pelas narinas a dentro percorre todo o sangue, o leite da vaca sagrada e profanada neve gela-se, gelo-me e esquece-se a paisagem de antes nada e apenas outra cor só de olhos fechados um sudário cobrindo a cidade e a paisagem dela como uma maquiagem cobrindo verdades como um travesti querendo ser noiva como flocos em câmera lenta pousam e um caminho de pegadas que desaparece antes do altar onde vamos? transparecendo-se, mutante, mela-se a cor do nada é o branco? a tua ausência não tem cor e só um lobo por essas paragens sou eu. 13 O Corpo e Outros Lugares A mosca — Você está como uma bala perdida — gritou. O seu grito, como um tiro, atravessou meus tímpanos depois meus vitrificados olhos a ver-te debatendo-se contra a janela, mosca enjaulada no invisível, enquanto eu, ferido, tentava atravessar aquela noite mais uma noite de tiroteios. Só o desejo que o nega, incapaz de me alentar jamais explode, está tudo escuro neste barracão anêmico onde o que apalpo consome-se e some, maldição sem milagre vai dentro desta cegueira quase morro vou apalpando paredes a mosca o vidro e você ALBENIZ CLAYTON 14 ... temendo que me esmaguem a dengue dos diabos e este calor implorando justiça. Fiquei cego aquela noite quem me viu sabe mas só você gritou tiros antes de cair num precipício meus olhos pararam para sempre naquele quarto não sei quais foram as mãos que o fecharam — Estava, então, morto? Talvez as mesmas que esmagaram a mosca desesperada desesperada para atravessar o invisível que a detinha quiçá as mesmas que deram os tiros. E a janela, assim quebrada depois de mais uma bala cadáver ou mosca perdida manchou-se de algumas gotas de sangue do assassino também ferido barata finda aqui a vida enquanto a vítima não derramara uma gota pois, fora 15 O Corpo e Outros Lugares ... hemorragia interna e ninguém ninguém soube quem era quem a mosca, o assassino, o tiro, você, uns gritos, meus olhos dentro daquele barracão escuro fundo ensanguentado Mas acordei daquilo acordei com o seu grito e um zum-zum molestando meus ouvidos tentei matar o inseto e despertei dando-me tapas depois do pesadelo quando percebi que ainda estava vivo desesperado corri para a janela vi meus olhos refletidos na transparência no espelho você caminhando sem rancor logo já nem sabia si eras tu mulher ou mosca ou eu a mosca sonhando ser homem ou eu ainda homem depois de ter vivido este martírio.