Carajás 15 anos, o massacre presente
Aniversário da chacina lembra a necessidade de punição aos assassinos e de tratamento
e indenização às vítimas
Ao andar pelas ruas da vila do assentamento 17 de abril em Eldorado dos Carajás, ainda
escuta-se muitas histórias sobre a marcha que culminou no massacre da curva do S, na
rodovia PA 150, em Eldorado do Carajás, há 15 anos. Os sobreviventes ainda têm
dúvidas quanto ao número oficial de mortos divulgados pelo Estado, pois há crianças,
homens e mulheres desaparecidos que não estavam na lista dos mortos e, tampouco,
foram encontrados depois. As marcas do massacre persistem tanto na simbologia da
conquista das cinco fazendas, parte das 15 existentes no complexo Macaxeira, quanto
no corpo dos mutilados ou na cabeça de muitos que viveram aquele 17 de abril de 1996.
“Foi a tarde mais sangrenta da minha vida”, recorda Haroldo Jesus de Oliveira, o
primeiro sobrevivente a conversar com a reportagem. Quem o vê trabalhando atencioso
e calmo na Casa Digital 17 de abril, monitorando jovens e crianças no manuseio da
internet, não imagina as recordações que ele guarda. “Acordamos felizes naquela manhã
do dia 17, pois o Coronel Pantoja, junto a uma comissão, do então governador Almir
Gabriel (PSDB), disse que daria os ônibus para que fossemos até Belém, onde
pressionaríamos o governo para desapropriação dessas terras. Inclusive, já tínhamos
desobstruído a rodovia na noite anterior, já que esse era nosso acordo, e preparado a
alimentação para as famílias que participavam da marcha”, diz Oliveira.
Onze horas da manhã venceu o prazo do acordo, e em vez de chegar os ônibus, que
levariam cerca das 1,8 mil famílias da marcha, chegou o batalhão da Polícia Militar, o
que fez com que as famílias retomassem a estrada. “Eu me lembro como se fosse hoje.
Estávamos de prato na mão, almoçando, sob uma chuvinha leve, um sereninho bom.
Muitos homens começaram a descer dos ônibus da polícia e montar o acampamento,
por volta de três da tarde, e ficaram cerca de 90 minutos preparando-se, como se fossem
para uma guerra”, relata Oliveira.
Depois de estabelecidos os policiais no local, a mesma comissão disse que não
providenciaria os ônibus e que tinha ordens do governador para retirar as famílias da
via. “Nós nunca pensamos que poderia acontecer aquilo. Perto das 17 horas, começaram
a jogar bombas de efeito moral contra as pessoas e a atirar no chão. Pessoas tomavam
tiros nas pernas e caiam. Mas aqueles que iam para cima, eles atiravam no peito
mesmo”. A carnificina começou naquele momento e pelas contas de Oliveira durou
cerca de cinquenta minutos.
“Tive que sair pelo chão me arrastando para o miolo de gente junto à água da chuva,
que se misturava com sangue, tinha muita gente no asfalto ferida, gritando, chorando...”,
lembra emocionado Oliveira.
Amanhece no assentamento 17 de abril e, enquanto, muitos agricultores já estão na roça,
as 7h, começa a entrada das crianças na escola que leva o nome de Oziel Alves Pereira,
sem-terra de 17 anos espancado até a morte no hospital pelos policiais, por gritar
palavras de ordem do MST, na noite do dia 17 de abril, em Curianópolis (PA), para
onde foram levados os feridos.
Zé Carlos, companheiro de linha de frente junto a Oziel no dia do massacre, confere a
mochila do filho na frente da escola, passa algumas recomendações e o beija ao se
despedir. Sobre o dia da chacina, que lhe custou uma bala alojada na cabeça e a perda
de um olho, Zé Carlos é enfático: “utilizaram-se de táticas de guerra”. Zé lembra que
um caminhão que estava parado na estrada, por causa do bloqueio, foi oferecido às
famílias como proteção. “O motorista chegou e disse: ‘vou atravessar esse caminhão na
pista para ajudar vocês’. Mas estranhamente toda a ação policial iniciou-se atrás desse
veículo, sendo o escudo principal deles, tapando nossa visão. Foram os policiais que
pediram”, garante.
Zé conta que os policiais vinham do sentido de Parauapebas e Marabá, ambas cidades
paraenses interligadas pela rodovia, além dos que saíam do meio da mata dos dois lados
da pista. “Nos cercaram para matar mesmo, pois vinham de todas as direções atirando”.
Segundo Zé, é difícil para quem esteve no dia aceitar o número de apenas 21 mortos
ditos pelo Estado.“Isso é brincadeira. Morreu muita gente, entre homens, mulheres e
crianças. Vi muita gente morta, não pode ser, Tenho até medo de falar, deixa isso para
lá. Mas garanto que foi muito mais”.
Ao apagar das luzes
Como se um espetáculo tivesse acabado, ao anoitecer no dia 17 de abril, as luzes do
município de Eldorado do Carajás foram apagadas e seu cenário de morte, desmontado.
Essa é a sensação que teve a jovem Ozenira Paula da Silva, com 18 anos na época do
acontecido. “Apagaram as luzes para desmontar o que tinham feito, para limparem a
via. Jogavam corpos e mais corpos em caçambas de caminhão, que tomavam rumos
diferentes”.
Após os primeiros disparos, Ozenira só teve tempo de pegar os seus três filhos, todos
com menos de cinco anos, e correr para a mata ao lado, percebendo momentos depois
que tinha sido baleada na perna esquerda, na altura da coxa. “Tinha muita gente
escondida na mata, próximo às margens da rodovia e foi justamente essas pessoas que
viram muitos corpos sendo desviados para fora do caminho do Instituto Médico Legal
(IML), de Marabá, para onde eram levados os mortos”.
Ozenira diz que algo lhe intriga até hoje. “Depois que terminou a matança, uma criança
branquinha de uns dois anos foi achada na escuridão do mato, aos prantos, por uma
mulher que procurava seus familiares. Essa mulher a recolheu. Sei que essa criança
viveu com ela bastante tempo em Curianópolis, mas depois perdi o contato”.
Onde estariam os pais da criança naquela noite? Ozenira responde: “Não tenho como
provar, mas tenho quase certeza que estavam em algum caminhão de remoção de
cadáveres”, finaliza.
O massacre continua
Poucos mutilados receberam seus direitos de indenização e até hoje, quinze anos depois,
muitos nem recebem a pensão mensal de R$346. Ozenira é uma delas. “Fui atendida no
hospital apenas no dia do acontecido, depois nunca mais tive atendimento médico,
tenho dias de dores horríveis e outros de dormência na perna”, conta.
Já Zé, hoje aos 32 anos, foi um dos únicos a receber, em 2008, uma indenização de R$
85 mil reais, mais a pensão mensal no valor citado acima. Hoje vive do que seus irmãos
plantam em seu lote, já que tem dificuldades para trabalhar em função das sequelas do
tiro na cabeça.
Mas, um caso em especial entre os mutilados chama a atenção. Mirson Pereira, um dos
únicos que conseguiu uma cirurgia, no Hospital Regional de Marabá, para retirar uma
bala alojada na perna esquerda. “Pensei que seria o fim das dores, mas quando voltei da
sala de cirurgia o médico disse que havia errado e feito o corte na perna errada, disse
que no outro dia realizaria o procedimento na perna certa, mas desisti, fiquei com medo
e saí do hospital”. Pereira continua com a bala na perna e ainda aguarda sua
indenização.
O descaso do Estado brasileiro em relação ao massacre de Eldorado dos Carajás já
gerou contra o governo um processo, em 1998, na Corte Interamericana de Direitos
Humanos, com sede nos Estados Unidos, feita pelo Centro pela Justiça e o Direito
Internacional (CEJIL). “O governo brasileiro agiu de duas formas quando foi notificado
pela entidade internacional. Primeiramente, culpou os próprios marchantes pelo
ocorrido e, num segundo momento, por força da opinião pública, disse que já fazia
coisas no assentamento, o que compensava o ocorrido”, explica Viviam Holzhacker,
advogada assistente da CEJIL, que acompanha o caso.
No entanto, por pressão internacional, a advogada diz que o governo brasileiro aderiu a
um processo, recentemente, de buscar acordo com os mutilados. “São feitas propostas
de ambos os lados até chegar a um acordo. Deve levar mais uns cinco anos para ser
resolvido o caso de todos”, explica.
Diante deste imbróglio, na ausência de um tratamento médico adequado que cuide do
corpo e da mente dos participantes da marcha, Índio, um dos mutilados, com duas balas
alojadas na perna esquerda desabafa: “Aconteceu o massacre em 1996. Mas ele
terminou? Não! Pois esse grupo [do assentamento] ficou apenas porque o Estado não
deu conta de matar no dia. Ficamos para contar a história, sofrer e ir morrendo aos
poucos num massacre diário, que só terminará por completo com nossa morte”.
BRASIL DE FATO
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