Jornalismo, Interdiscursividade e Popularização Científica1 Msanda. Joseline Pippi2 e Prof. Dr. Adair Caetano Peruzzolo 3 Resumo: O jornalismo científico atende, prioritariamente, à demanda social, explicando em termos correntes e simples as descobertas inerentes ao campo científico. Tendo por base a Teoria da Comunicação como Relação e recorrendo aos princípios metodológicos de Análise do Discurso, o presente trabalho demonstra a transcrição lingüística entre o discurso científico e o discurso de popularização científica articulada pelo jornalismo em reportagens sobre ciência e tecnologia. Ademais, ressalta as características discursivas do jornalismo científico e do jornalismo de popularização científica. Palavras-chave: jornalismo científico; popularização científica; interdiscursividade; Introdução: Este estudo propõe-se a analisar a transcrição lingüística entre os discursos que estruturam o discurso de popularização científica articulado pelo jornalismo em reportagens sobre ciência e tecnologia, tendo como ponto de referência a Teoria da Comunicação como Relação e utilizando como objeto de análise treze reportagens de capa da revista Superinteressante (veiculadas entre julho de 2002 e junho de 2003, compondo doze edições regulares e uma edição extra). A maneira como realizamos a análise discursiva das reportagens evidencia os efeitos de sentido almejados pelo enunciador enquanto agente da tessitura de uma interdiscursividade. Em meio a exemplos retirados das reportagens, os sujeitos da enunciação mostram-se para logo mais desaparecerem num emaranhado de efeitos de sentido e assim permanecem durante todo o discurso, insinuando ao leitor a brincadeira que permeia a construção de sentidos nas reportagens de popularização científica. A comunicação como relação no jornalismo No jornalismo impresso4 , o repórter antecipa a representação (atribuição de valor à mensagem percebida) do leitor com o intuito de ser entendido. O repórter preenche seu 1 Trabalho apresentado à Sessão de Temas Livres. Bacharel em Jornalismo e mestranda em Extensão Rural pela Universidade Federal de Santa Maria, linha de pesquisa de Processos de Inovação Social e Tecnológica. 3 Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, com pós-doutorado na Universitat Autònoma de Barcelona e professor titular da faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal de Santa Maria. 4 Tomando-se como base reportagens de revistas de periodicidade mensal. 2 texto com marcas culturais familiares ao leitor, almejando que este entenda a informação nova presente no mesmo texto, tornando a relação de comunicação entre eles eficaz. A princípio o repórter partirá do conhecimento prévio do leitor e introduzirá no texto as informações inéditas (ou supostamente desconhecidas) que deseja transmitir. Sendo assim, uma reportagem publicada numa revista é uma mensagem que se utiliza de uma linguagem incrustada de informações, ideologias, impressões previamente compostas pelo autor do texto. A relação de comunicação entre o repórter e o leitor, dar-se-à a partir da representação que o leitor fará sobre o texto escrito. A leitura de uma reportagem só vai redundar em comunicação quando os signos presentes no texto tiverem significação simbólica para o leitor. Tanto o repórter - emissor (E), quanto o leitor – receptor (R), são os comunicantes envolvidos no processo e devem compartilhar conhecimentos culturais através da página impressa – mensagem (M). Devem ter acesso à mesma língua ou pelo menos estarem aptos a representar determinados símbolos sígnicos, compartilhar conhecimentos prévios nos mais diferentes âmbitos (icônicos, visuais, gramaticais, etc.), enfim, devem ter a possibilidade de engajarem-se numa relação potencialmente comunicativa. Sendo assim, temos que a comunicação entre os dois interlocutores pode ser representada pelo diagrama 5 : REPORTAGEM REPÓRTER LEITOR Diagrama da Relação de comunicação na reportagem Numa reportagem veiculada numa revista, podemos concluir que a relação entre repórter e o leitor se estabelece através da página impressa. O meio - suporte das representações do emissor é a página da revista. O enunciador é o jornalista, que muitas vezes ocupa o lugar do narrador da reportagem ou se faz conhecer como uma personagem texto. O leitor, por sua vez, sempre se vê inserido no texto enquanto enunciatário. 5 Montado com base no diagrama Emissor – Mensagem – Receptor de Peruzzolo, 2002. Ao aplicarmos os conceitos teóricos descritos em Superinteressante percebemos que é através da enunciação que se manifesta o discurso em forma de texto (em forma de signos e de relações entre signos). O sujeito enunciador é aquele ente que domina os códigos lingüísticos e distribui “marcas” na obra que organiza, caracterizando-a enquanto sua. O enunciatário, por sua vez, é aquele a quem o texto é destinado. Tanto enunciador quanto enunciatário são sujeitos da enunciação. Barros (1997, p. 62) os caracteriza e conceitua: enunciador e enunciatário são desdobramentos do sujeito da enunciação que cumprem os papéis de destinador e destinatário do discurso. O enunciador define-se como o destinador-manipulador responsável pelos valores do discurso e capaz de levar o enunciatário a crer e a fazer. A enunciação é a ação; o discurso é a obra. A partir dessa premissa inferimos que o discurso se constitui como as opções lingüísticas feitas pelo enunciador enquanto forma de dirigir-se ao enunciatário, organizadas como um texto. Eliseo Verón (apud Peruzzolo, op. cit, p.144) afirma que “um discurso é sempre uma mensagem situada, produzida por alguém e endereçada a alguém”. Comparando esse conceito ao processo de comunicação como relação surgem as semelhanças entre os sujeitos envolvidos no ato de comunicar-se. O discurso enquanto uma mensagem situada faz alusão ao meio mensagem que, enquanto meio material relaciona os comunicantes: enunciador e receptor. Dessa forma temos um enunciador que se refere a um enunciatário (que pode ser o receptor) através da mensagem organizada enquanto um discurso. Inserindo essas analogias ao processo de comunicação realizado através de uma reportagem impressa estabelecemos que: 1) o enunciador estrutura a narrativa jornalística, insere-se na reportagem e dirige-se a alguém de forma sistemática: o enunciatário. O repórter, nesse caso, é externo ao texto e institui o enunciador enquanto seu delegado no sistema de enunciação. O enunciador é o lugar abstrato e discursivo que atualiza no texto o autor; 2) o enunciatário tem seu lugar construído no texto e será o leitor em potencial da reportagem. Assim, o leitor assume o seu lugar no texto, fazendo-o funcionar como discurso; 3) o discurso da reportagem impressa é constituído pela interdiscursividade entre os fazeres jornalístico, científico e do senso comum; 4) o texto da reportagem é constituído pelo arranjo e organização dos signos lingüísticos e iconográficos. O dispositivo6 de enunciação que suporta a reportagem é a revista; 5) a relação de comunicação acontece quando o leitor representa simbolicamente a mensagem presente na reportagem e o dito exposto faz sentido para os sujeitos da enunciação; Temos, portanto, uma revista como o dispositivo de enunciação que suporta a reportagem; essa, por sua vez, expressa o dizer de um destinador que procura fazer sentido para o destinatário. A reportagem constitui-se como um texto que abriga um enunciador que, além de fazer parte do enunciado, refere-se a um suposto enunciatário a fim de enlaçálo num percurso de leitura pré-determinado. O enunciador tece seu interdiscurso para fazer sentido para o enunciatário. O leitor, por sua vez, ocupa o lugar abstrato do enunciatário ao realizar a leitura. O Discurso da Ciência Quem se comunica quer se fazer entender, para tanto, há a necessidade de fazer uso de uma linguagem. Segundo Braga (1996, p 42), basicamente, a linguagem científica se define por uma luta constante e ininterrupta contra a conotação. O caráter científico de um processo de construção de uma linguagem que descreve a realidade se expressa na introdução de elementos que denotam as próprias operações realizadas pelo emissor. O sistema científico se constitui de um conjunto de teorias que, por sua vez, se compõem de leis; estas constituem asserções que pretendem representar lingüisticamente a realidade dos fatos, relacionando, da forma mais direta possível, o referente7 e a linguagem. A linguagem científica, portanto, deve ser constituída de elementos que garantam incondicionalmente sua objetividade e imparcialidade (verbos na terceira pessoa), como se o pesquisador, especialista ou cientista que faz uso da linguagem dita fosse apenas um ente que organizasse lingüisticamente o conhecimento pré-existente. Além disso, deve construir o texto de forma lógica (raciocínio ordenado). Este posicionamento frente à construção da linguagem científica é que garante sua hermeticidade e sua especificidade em relação ao vocabulário utilizado. 6 Mouillaud (apud Porto, S., 1997). conceitua dispositivos como lugares materiais ou imateriais nos quais se inscrevem os textos. Os dispositivos têm uma forma que é sua especificidade, ou seja, um modo de estruturação no tempo e no espaço. O discurso científico é rotulado como uma categoria discursiva justamente pelo fato de representar um grupo que tem formas metodológicas próprias de se legitimar entre os pares e perante a sociedade, remetendo à uma construção sígnica de cunho específico. A linguagem de cunho científico reduz o âmbito de sentido a partir do momento que torna necessário um conhecimento específico tanto do emissor quanto do receptor, na organização e decodificação, respectivamente, da mensagem. A comunidade científica na qual se insere determinado pesquisador utiliza um jargão específico para sua área de pesquisa que nem sempre é inteligível para outra comunidade de pesquisadores ou ainda para o público em geral. A fim de suprir esse “ruído de comunicação”, existem muitas publicações voltadas exatamente para realizar a decodificação8 de termos específicos da área científica numa linguagem simples e inteligível para a população em geral. Como exemplo citamos as revistas de popularização científica que decodificam os jargões científicos para uma linguagem popular, transmitindo informações antes restritas a pequenos grupos, para um público mais generalizado e heterogêneo. O Dito Popular: Postulamos que a existência de um discurso específico de uso restrito opõe-se à existência de um discurso que seja amplo e difundido pela população em geral. Dessa forma, o discurso do senso comum mostra-se como uma construção discursiva inerente ao grande público, abrangente e de cunho popularesco, com enunciadores responsáveis pela difusão de mensagens numa linguagem simples e acessível, almejando estabelecer uma relação de comunicação com o maior número possível de enunciatários. Assim, toda e qualquer mensagem direcionada para a população em geral deve compartilhar dos mesmos códigos de significação que ela, a fim de fazer-se entender, ou seja, de fazer sentido. Enquanto conceito filosófico o termo senso comum surgiu no século XVIII, como representação do combate ideológico da burguesia emergente contra os conceitos e estamentos do Antigo Regime. Segundo Braga (Op. cit, p. 78), O senso comum é um conjunto de informações não sistematizadas que aprendemos por processos formais, informais e às vezes, inconscientes, e que inclui um conjunto de valorações. Essas informações são, no mais das vezes, fragmentárias e podem incluir fatos históricos verdadeiros, doutrinas religiosas, lendas ou parte delas, princípios 7 Ente ou situação ao qual se refere o texto, dando-lhe o aspecto de real. Aqui referimo-nos, especificamente, ao conceito do termo decodificação apresentado por Shannon (apud Mattelart, 2000), que estipula o decodificador como um ente que reconstrói a mensagem a partir dos sinais. No caso, o termo emprega-se como uma releitura sígnica que performa a eficácia da relação de comunicação entre E – R. 8 ideológicos às vezes conflitantes, informações científicas popularizadas pelos meios de comunicação de massa, bem como a experiência pessoal acumulada. O discurso do senso comum é amplamente conhecido e popularizado, característica que o torna simples, metafórico e muitas vezes construído com base em termos vulgares, ou seja, é a linguagem de domínio da maioria da população, desatenta à gramática e aos purismos lingüísticos, que se modifica no decorrer do tempo e pode, ainda, ter diferentes significados para segmentos distintos da população. Enquanto o senso comum representa o imagético e o metafórico, ou seja, os valores individuais criados e posteriormente agregados aos significados, o discurso científico apega-se ao seu rigor metodológico e objetividade inerentes à sua prática. O discurso do senso comum é representado, portanto, pelo conhecimento generalizado sobre determinado assunto ou tema que é difundido para a população em geral, estando arraigado no cerne da mesma e sendo responsável pela legitimação de um discurso popular amplamente divulgado. Como afirma Santos (1989, p. 40): “o senso comum é transparente e evidente; desconfia da opacidade dos objetos tecnológicos e do esoterismo do conhecimento em nome do princípio da igualdade do acesso ao discurso, à competência cognitiva e à competência lingüística”. O Relato Jornalístico: O jornalismo, de acordo com Barbosa e Rabaça (1978), é a “atividade profissional que tem por objeto a apuração, o processamento e a transmissão de informações da atualidade, para o grande público ou para determinados segmentos desse público, através de veículos de difusão coletiva”. Sendo assim, o jornalismo configura-se como um conjunto de regras que visam a cumprir certas exigências quanto à divulgação de fatos, principalmente no que concerne à forma narrativa escolhida para transmitir os acontecimentos ao público, especificamente aos leitores. Objetivo, simples e voltado para um grande público, essas são as qualificações básicas de um texto jornalístico. O que interessa é puramente comunicar ao público os fatos relativos ao presente (ou referentes a um passado próximo). Fatos que necessitam de maior apuração, geram discussão ou permanecem na mídia por muito tempo originam reportagens. Reportagem é a matéria jornalística mais ampla e mais complexa que a notícia. Segundo Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari (1986, p. 10) é “uma extensão da notícia e, por excelência, a forma-narrativa do veículo impresso”. O discurso jornalístico pretende ser a transcrição do social. Sendo assim, é através da ótica do repórter que os leitores saberão do acontecido. “A matéria-prima do discurso jornalístico se encontra em algum lugar do social e se torna notícia por apontar para alguma conseqüência (um futuro discurso), e que, portanto, se faz necessário observar de que maneira a linguagem se vincula à realidade” (Berger apud Fausto Neto e Pinto, 1996, p. 119). Segundo Medina (1988, p. 91), essa matéria-prima constitui-se de fatos e acontecimentos de interesse da população, fazendo com que o jornalista transforme fatos em segmentos lingüísticos: Na realidade, os signos lingüísticos representam um espaço muito significativo na página impressa, mas ao lado, ou melhor, inter-relacionados com eles estão outros signos (fotografia e ilustração). Esse acréscimo, indispensável, ainda não completa o quadro possível de formulação da mensagem: palavra e imagem se articulam num espaço gráfico composto com destaques de cor, preto e branco, relevo de blocos densos e áreas livres, dimensões físicas de tipos (das famílias tipográficas), ordenação hierárquica por áreas físicas de valor visual. Tudo isso, que simplesmente se chama diagramação ou planejamento gráfico, compõe mais um ângulo de análise da linguagem jornalística. É o jornalismo científico, por sua vez, que agencia a relação de comunicação entre o universo científico e o público, visto que o jornalismo, enquanto agente de uma correlação lingüística, usa a informação científica para interpretar o conhecimento da realidade, aproximando a ciência do grande público. O jornalismo científico, segundo Melo (apud Bueno, 1988, p. 24) é, portanto, Um processo social que se articula a partir da relação (periódica/oportuna) entre organizações formais (editoras/empresas) e coletividade (públicos/receptores) através de canais de difusão (jornal/revista/rádio/televisão) que asseguram a transmissão de informações (atuais) de natureza científica e tecnológica em função de interesses e expectativas (universos culturais ou ideológicos). O jornalismo científico atende, prioritariamente, à demanda social, explicando em termos correntes e simples os processos e descobertas inerentes ao campo científico que são de interesse do público em geral. Entretanto, o conceito de jornalismo científico não se limita a detalhar apenas os ramos da ciência constituídos por teorias complexas e tecnologia avançada, ele incorpora, também, as ciências humanas e os processos mais simples e básicos, ampliando o campo de ação da sua prática. Ou seja, “os limites do jornalismo científico estão na especificidade mesma do processo de comunicação jornalística. Não são decisivos, portanto, os veículos utilizados, as áreas de conhecimento sob cobertura e o nível de complexidade dos fatos e informações científicas” (Bueno, Op. cit, p. 26). Como a tarefa do jornalista é transmitir informações de interesse público para a população, “o fundamental num texto de informação jornalística científica é fazer compreender e aproximar o universo da ciência do universo em que vive e pensa o consumidor da informação” (Lage, 2000, p. 125). Para tanto, o jornalista recorre a conexões entre conceitos científicos e o cotidiano dos receptores da informação. A redação de uma reportagem de cunho científico, por sua vez, apresenta algumas diferenças em relação às demais. Recorrendo á inteligibilidade, o repórter deve redigir um texto claro, simples e com objetivos bem definidos, deve abolir os termos técnicos (ou fazer correlações que ilustrem os termos específicos), explicitar os jargões científicos e aproximar a descoberta (ou fato científico) do cotidiano dos leitores. Deve, ainda, anexar informações extras, infográficos, fotos, gravuras torna o texto atraente e leve para o leitor, além de facilitar a adequação lingüística de termos científicos. A explanação que deve envolver conceitos científicos deve pertencer ao nível de conhecimento do público-alvo a fim de ser compreendida. Como afirma Lage (Op. cit, p. 124): Em nenhum outro campo a comparação é mais relevante do que na informação científica. aqui, quando lidamos com unidades desconhecidas do público (mícron, anoluz), grandezas fora da dimensão humana corrente (milhões de toneladas, milionésimos de segundo), configurações inexistentes no mundo aparente (cristalização de partículas, buracos negros) ou leis que não admitem exemplos, ou o pressuposto da existência (a lei de Newton, segundo a qual um corpo não sujeito a qualquer força manterá seu estado de inércia ou movimento), a comparação é o único meio de apreensão parcial de uma realidade que se deseja transmitir. O jornalismo relaciona os mais diferentes discursos, agenciando a produção de sentidos com o intuito de estabelecer uma relação de comunicação com os leitores. O jornalismo científico, por sua vez, também mostra-se como uma ferramenta de correlação discursiva, ao promover a produção de sentidos através da interdiscursividade que agencia ao construir um discurso de popularização científica com base em outros discursos distintos: o científico e o senso comum. Popularização Científica e Interdiscursividade: Segundo Maingueneau, “um discurso não vem ao mundo numa inocente solitude, mas constrói-se através de um já-dito em relação ao qual toma posição” (apud Koch, 1998, p. 47). O discurso, portanto, apóia-se em outros discursos previamente existentes para fazer-se, o que torna a intertextualidade9 uma condição de sua produção. Dessa forma, como afirma Verón, “as operações produtoras de sentido são sempre intertextuais no interior de um mesmo universo discursivo” (apud Koch, op.cit. p. 47). Ao partirmos da proposição de que todo discurso é um interdiscurso, concluímos que a análise da interdiscursividade presente nas reportagens de Superinteressante pode evidenciar os supostos universos discursivos que compõem o discurso do veículo. Assim, o discurso da revista demonstra fragmentos textuais originados de três universos discursivos distintos: o científico, o jornalístico e o discurso do senso comum. O discurso científico é representado (no discurso legítimo da revista enquanto dispositivo de enunciação) pela sua singularidade conceitual. Admitimos que o dispositivo encaminha aos leitores reportagens de divulgação científica, logo, envolve fragmentos do discurso científico porque, para fazer sentido para o enunciatário, o enunciador precisa de termos oriundos e específicos do universo da ciência. Mesmo fazendo correlações entre termos específicos para uma linguagem mais simples (hiperglicemia para altos níveis de açucar na corrente sangüínea10 ), o enunciador não pode negar a existência do termo original e citá-lo no texto. Ele precisa do termo científico para poder estruturar suas relações vocabulares a fim de explicá-lo. O discurso científico, portanto, apresenta-se na revista como os termos e conceituações pertinentes à área científica de forma geral. O discurso jornalístico é representado pela construção discursiva que remete à metodologia utilizada pelo jornalismo. O enfoque das reportagens, a notoriedade dos títulos, a importância das fontes consultadas, a transcrição, adaptação e explanação dos termos científicos, são itens que caracterizam um discurso como sendo jornalístico. Ao analisarmos o discurso do senso comum, percebemos a adoção de uma linguagem ainda mais simples, pois o enunciador utiliza figuras de linguagem e palavras do cotidiano para tornar o texto mais claro para o leitor. O discurso científico, então, é jornalisticamente transcrito para o senso comum. O uso de expressões como “desenvolveu9 Todo texto é um objeto heterogêneo, constituído de fragmentos de outros textos que lhe deram origem, ao qual faz referência ou alude. Isso, nos dizeres de Barthes implica afirmar que “todo texto é um intertexto” (apud Koch, op. cit). 10 Superinteressante, ano 16, n. 08. São Paulo: Editora Abril, setembro de 2002. se um arsenal variado para combater todos os males que afligem as camas do planeta”11 , aproximam o texto do leitor, pois ele identifica-se com o nível simples da linguagem utilizada, além disso, gera um tom de informalidade no texto. As relações discursivas presentes nas reportagens representam o modo como os três segmento culturais pertencentes a universos do saber articulam-se a fim de explicar conceitos científicos para um leitor com conhecimento médio sobre o assunto. De acordo com as características de tratamento e linguagem referentes aos discursos jornalístico, científico e do senso comum já explicitados no decorrer do presente trabalho, temos como exemplo da articulação entre eles: A diabete é uma desordem no metabolismo da glicose e se caracteriza pelo excesso desse nutriente no sangue – o que vai de encontro aos padrões de bom funcionamento do organismo. (...) Todas as células precisam de energia para funcionar a pleno vapor. Essa energia vem dos alimentos, em especial dos carboidratos. Pães, massas e tubérculos, depois de digeridos, se transformam em açúcar – isto é, glicose - , que vai para a corrente sangüínea s fim de ser distribuído para as células do corpo todo, principalmente as do cérebro. A glicose, porém, só pode ser absorvida com a ajuda da insulina, um hormônio produzido pelo pâncreas especialmente para essa tarefa. (...) O nível de açúcar no sangue, chamado glicemia, se mantém equilibrado graças à atuação da insulina. A quantidade do hormônio aumenta ou diminui de acordo com a disponibilidade da glicose na corrente sangüínea. A cada missão cumprida, a insulina presente no corpo é degradada naturalmente. Por isso, novos estoques do hormônio precisam ser constantemente fabricados pelas células especializadas do pâncreas. (...) A diabete surge quando esse processo começa a apresentar falhas. Na diabete do tipo 1, por motivos ainda incompreendidos, o organismo passa a enxergar as ilhotas do pâncreas como estruturas estranhas e, por meio de um mecanismo imunológico, produz anticorpos para atacá-las12 . No trecho acima o discurso científico é representado pelos termos que necessitam de explicação (glicose, carboidratos, insulina, glicemia), os quais não são de todo desconhecidos da população mas mesmo assim são detalhadamente transcritos para o leitor. Nessa instância entra o jornalismo enquanto forma discursiva que visa a transformar a linguagem específica da ciência em códigos acessíveis para o leitor. O discurso jornalístico, portanto, é representado pela transcrição dos termos científicos e pela forma como esses termos se articulam no decorrer do texto com os demais discursos. O discurso do senso comum pode ser percebido em duas instâncias: nas inserções realizadas por parte do enunciador e pela utilização de figuras linguagem ou termos inerentes à linguagem popular 11 12 Superinteressante, ano 17, n. 06. São Paulo: Editora Abril, junho de 2003. (p. 33) Superinteressante, Ano 16, n. 09. São Paulo: Editora Abril, setembro de 2002. (p. 43 – 44) no decorrer do texto. Assim, o enunciador coloca as informações extras de forma a explicar o que realmente determinado termo significa, além de fazer uso de figuras de linguagem que representam as associações feitas no dia-a-dia. Como exemplo da utilização do discurso científico, temos ainda: Tomate – contém licopeno, um poderoso antioxidante que a juda a combater cânceres como o da próstata. Outra boa fonte desse composto é a melancia. Óleo de canola – rico em ômega 3, um tipo de gordura que ajuda na coagulação, evita trombose e reduz moderadamente os triglicérides. A substância é também encontrada em peixes de água fria, como o salmão. Brócolis – assim como a couve e o repolho, possui um grande estoque de fitoquímicos capazes de diminuir o risco de câncer de cólon e de mama 13 . O discurso jornalístico é representado pelas informações extras, comentários, explicações de temos científicos e também pelos depoimentos das fontes. Assim, temos um discurso de divulgação científica que é predominantemente jornalístico (por estar inserido num veículo midiático impresso), mas que se alia aos universos discursivos científico e do senso comum a fim de construir um discurso simples e claro para o leitor. Um outro tópico da interdiscursividade são as relações dialógicas entre enunciador e enunciatário, nas quais os sujeitos da enunciação dialogam no espaço do discurso. Estabelece-se um contrato de leitura entre os sujeitos da enunciação, através do qual o enunciatário terá de buscar os sentidos implicados no texto. No pacto de leitura, o enunciador oferece ao enunciatário um percurso de leitura, guiando-o através do texto. Em alguns casos o enunciador dirige-se ao enunciatário a fim de enlaçá-lo no texto, fazendo com que ele continue a leitura. Essas relações argumentativas tornam-se perceptíveis através dos fenômenos de: - Interlocução, quando há um diálogo entre os sujeitos da enunciação. O enunciador subjetiviza o discurso e transporta o leitor para dentro do texto, ao referir-se a ele. É pela interlocução que percebemos o lugar dos sujeitos da enunciação no texto; - Interpelação do enunciatário, ocorre quando o enunciador “captura” o leitor, guiando-o através de um caminho de leitura pré-estabelecido; ocorre de maneira mais incisiva através das ordens de leitura do texto, ou seja, quando o enunciador remete o leitor a um outro texto ou a segmentos do mesmo texto (“veja”, “saiba”, “confira”). 13 Superinteressante. Ano 16, n. 12. São Paulo: Editora Abril, novembro de 2002. (p. 47) As relações dialógicas entre enunciador e enunciatário 14 , no texto das reportagens é representado pela interlocução e pela interpelação do enunciatário. A interlocução é onde o enunciador simula a conversa com o interlocutor que ele insere no texto, enquanto enunciatário, aproximando o texto deste. Percebemos, portanto, um enunciador que insere o enunciatário no texto e dialoga com ele (expressões destacadas). Como exemplos de interlocução podemos citar: Um dia, sem querer, você abre uma das gavetas do seu filho adolescente e encontra um cigarro de maconha. A sensação é de decepção, medo, angústia, seguida da terrível constatação: “meu filho é um drogado”. Enquanto torce mentalmente para que ele não esteja viciado, você, sem perceber, se vê abrindo a gaveta de remédios para retirar o calmante que usa nos momentos de tensão, antevendo a inevitável e difícil conversa que precisará travar quando ele chegar15 . Na interlocução o enunciador supõe a existência de um futuro leitor que se identificará com o texto e continuará realizando a leitura. Mais do que escrever o texto para alguém ler, o enunciador insere o leitor no texto, tornando-o um sujeito da enunciação. Em alguns casos, o enunciador insere-se no texto não como um ser que produz o texto, mas como o próprio dispositivo de enunciação, onisciente e articulador das relações discursivas que permeiam a representação do leitor enquanto enunciatário. Como ilustrações, temos: “O último nome de Sophie é Freud. Isso mesmo: a neta do fundador da psicanálise disse à SUPER que é bastante cética diante das teorias do avô e acha que pouca coisa de suas teses ainda pode ser considerada16 .” Dessa forma, ocorre a personificação do dispositivo de enunciação enquanto próprio enunciador. A interlocução pode representar, ainda, a subjetividade do enunciador quando este dirige-se ao enunciatário (tu/vós/você) carregando o discurso de parcialidade. Além disso, através deste efeito o enunciador busca capturar o leitor empírico, levando-o a tomar o lugar do enunciatário dentro do discurso. Assim, o leitor identifica-se com o enunciatário e realiza a leitura do texto. No caso da interpelação, o enunciador não apenas guia o leitor no emaranhado de informações trazidas pelo texto, mostrando-lhe um verdadeiro percurso de leitura, mas procura também responsabilizá-lo pela decisão (ou não) pela adoção do valor mencionado. Exemplificando: 14 Relações diferentes do dialogismo apresentado na obra de Mikhael Bakhtin. Superinteressante. Ano 17, n. 02. São Paulo: Editora Abril, fevereiro de 2003. (p. 43) 16 Superinteressante. Ano 16, n. 10. São Paulo: Editora Abril, outubro de 2002. (p. 44) 15 Para você, que é diabético e sabe que lidar com a doença requer um esforço pessoal tremendo, a ciência encontra meios de proporcionar mais qualidade de vida e se esmera na busca de tratamentos menos desgastantes quanto da cura da doença, como essa reportagem vai lhe mostrar.(...) Saiba como se prevenir.17 A interpelação é mais perceptível quando o enunciador dá as ordens de leitura do texto, imperativos como: veja o infográfico da pág. x, leia com atenção, etc. O caminho de leitura é mostrado, também, na interlocução, quando o enunciador admite o lugar do leitor no texto e dialoga com ele, sugerindo opiniões e sentimentos. Na análise das reportagens de capa da revista Superinteressante percebemos que o dispositivo propõe-se a popularizar a ciência, fazendo uso de expressões e idéias referentes ao cotidiano popular. A esse discurso do cotidiano são inseridos os termos científicos, que permanecem em sua singularidade no texto e posteriormente são traduzidos de maneira jornalística. O jornalismo está presente tanto no caráter de montagem do texto, a qual privilegia a opinião de especialistas em discurso direto, numa delegação tanto de voz quanto de responsabilidade pelo dito. Toda a reportagem é baseada nas relações dialógicas entre o enunciador e o suposto enunciatário, que é inserido no próprio texto. A comunicação é buscada de forma mais evidente quando o leitor lê por completo a reportagem, estando a par de seus supostos sentidos. Por produzir um texto mais simples, próximo da maioria da população, a divulgação científica proposta é seguramente melhor alcançada, mas realiza um papel ainda mais profundo quando populariza o conhecimento científico a partir de um saber compartilhado pelo grande público. Contudo, mesmo nivelando o conhecimento científico no texto através da inter-relação entre universos discursivos diferentes, o discurso científico mantém seu caráter singular por fazer-se presente em sua forma mais trabalhada: termos específicos. A presença desses termos garante o caráter científico ao texto, mesmo que estes termos passem pelo crivo metodológico jornalístico, sendo correlacionados a outros termos. Dessa forma, temos, e, Superinteressante, a presença de relações entre discursos distintos, articuladas pelo jornalismo científico que visa única e exclusivamente o objetivo de fazer sentido para o leitor, através da aproximação de diferentes contextos de linguagem. Concluindo os estudos acerca das relações de interdiscursividade que permeiam o discurso de popularização científica promovido pelo jornalismo científico, resta-nos 17 Superinteressante. (Edição extra), Ano 16, n. 09. São Paulo: Editora Abril, setembro de 2002. (p.43) explicitar o conceito próprio de popularização científica. Muitos estudiosos da área da comunicação de ciência consideram os termos popularização científica, divulgação científica e vulgarização científica como sinônimos. Porém, consideramos que os termos possuem diferenças sutis quanto aos significados propostos e preferimos optar unicamente pelo termo popularização científica enquanto uma sub-categoria da divulgação científica, abolindo o uso do termo vulgarização18 . O dicionário da língua portuguesa traz o significado do termo popular (do latim, populare) como algo pertencente ao povo ou relativo à ele; que é do agrado do povo; democrático; comum; notório. Por sua vez, o verbo popularizar significa divulgar; difundir entre o povo, dar popularidade. Percebemos então o uso do termo popularização científica como uma forma de utilizar mais recursos lingüísticos e visuais na redação de uma matéria jornalística, é “esmiuçar” os conceitos e utilizar figuras de linguagem para explicar descobertas. Popularizar é nivelar a linguagem ao público-médio, utilizar gírias e termos populares, é fazer uso do discurso do senso comum com o intuito de inserir o conhecimento científico no cotidiano das pessoas de modo que esse conhecimento se torne útil. levar ao público, tornar comum, divulgar, o conhecimento sobre ciência e tecnologia. É nesse meandro que se insere a popularização como uma sub-categoria da divulgação científica. O jornalismo científico insere-se na popularização de ciência como uma ferramenta de construção textual que faz uso da metodologia de apuração e redação própria do jornalismo. Sua prática auxilia na democratização do conhecimento porque transcreve de forma inteligível para o grande público as informações de cunho científico, mantendo os cidadãos informados sobre C&T. Assim, o jornalismo científico leva as pessoas, através de um interdiscurso de popularização científica, a entender como os avanços do campo da ciência e tecnologia podem influenciar no seu cotidiano. Referências Bibliográficas BARBOSA, G; RABAÇA, Carlos A. Dicionário de comunicação. Rio de Janeiro: Codecri, 1978. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 3. ed. São Paulo: Ática, 1997. 18 O termo originou-se do latim vulgare, que significa tornar público, conhecido, popularizar. Porém, o vocabulário da língua portuguesa traz o verbo vulgarizar como sinônimo do verbo abandalhar (rebaixar-se, dar-se ao desprezo), o que desvirtua a palavra de seu significado original, incutindo-lhe um sentido pejorativo já legitimado pelo uso. BRAGA, William Dias. O Deus secular da ciência e seu filho discurso: a legitimação do saber científico na mídia. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura) – Escola de Comunicação – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1996. BERGER, Christa. Em torno do discurso jornalístico. In: NETO, Fausto A. e PINTO, Milton J. (Orgs.). O indivíduo e as mídias. Rio de Janeiro: Diadorim, 1996. BUENO, Wilson da Costa. 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