ROTEIRO Nº 8
CONVERSÃO E TRANSFORMAÇÃO EM CRISTO
1. Opção por Cristo, exigência de vida nova
Se a nossa opção por Cristo implica a nossa inserção na Igreja, de modo a
sermos Igreja, à semelhança da comunidade cristã de Jerusalém, nascida
do Pentecostes, e de Saulo, tocado por Cristo na estrada de Damasco, a
comunhão com o Senhor faz-nos sentir «a necessidade de redescobrir o
caminho da fé para fazer brilhar, com evidência sempre maior, a alegria e
o renovado entusiasmo do encontro com Cristo» (Bento XVI, Porta fidei 2).
Toda a vida cristã é, pois, um aproximar-se da luz (cf. Jo 3,21), para se
ser iluminado e ser transformado em luz no Senhor, «pois tudo o que é
posto às claras é luz. Por isso se diz: “Desperta, tu que dormes, levanta-te
de entre os mortos, e Cristo brilhará sobre ti”» (Ef 5,14).
Esta luz transformadora é próprio Cristo, com o qual o Terceiro se quer
identificar cada vez mais: «O compromisso de seguir Jesus Cristo com toda
a nossa pessoa e de o servir “fielmente com coração puro e total entrega”
é o compromisso de viver n’Ele, deixando que seja Ele a guiar os nossos
movimentos, pensamentos, sentimentos, palavras, ações, relações
fraternas e o uso que fazemos das coisas, de modo que tudo provenha e
seja feito “na Sua Palavra” (R 19). O terceiro carmelita «sente-se atraído
pelo Senhor Jesus Cristo e convidado a alimentar uma relação pessoal,
viva, profunda e constante com Ele, até assumir os seus traços espirituais
e se revestir da sua personalidade» (RIVC 6). Tão grande atração traz
consigo o desejo de um despojamento de si mesmo, a necessidade de um
desapego de todos os bens (cf. Mc 10,17-20), a exigência de uma união a
Jesus em ordem a uma transformação interior para viver uma vida nova da
graça (cf. Gl 6,15; 2 Cor 5,17), numa palavra: de uma identificação e
conformação de todo o ser com Jesus. Ora, isto só é possível se houver
uma profunda conversão de todo o ser a Jesus.
Na realidade, porém, a maior parte do tempo não estamos, nem vivemos
«em casa». Agitados por inúmeras preocupações, dispersos em numerosas
solicitações, inquietos por causa de tantos apegos e outros tantos temores,
vivemos completamente voltados para fora, para as coisas, procurando
alguma “distração” que abafe o próprio ruído interior. Por isso, quando
Jesus se aproxima e diz: «Eis que Eu estou à porta e bato; se alguém ouvir
a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele,
comigo» (Apoc 3,20), nem sequer o ouvimos, porque não estamos «em
casa», vivendo algures no passado ou no futuro, para onde nos arrasta o
coração, como diz o Senhor: «Onde está o teu tesouro, aí estará também o
teu coração» (Mt 6,21), mas não no «aqui e agora» da presença e do
encontro com Deus, só possível a partir da fé, na intimidade da oração.
2. Dom da graça e conhecimento próprio
Quando se inicia o caminho da oração, a proximidade com Cristo abre o
coração à luz do Espírito Santo, que nele refulge. Nessa ocasião tudo se
passa como quando entramos num quarto de uma casa que tinha sido
arrumada e limpa há muito tempo, sem que ninguém lá tivesse ido.
Chegando lá pelo cair da noite, acendem-se algumas luzes e tudo parece
em ordem. Mas quando, pela manhã, no dia seguinte, abrimos as portadas
e corremos as persianas, a luz do sol entra nesse quarto e logo vemos que
há lixo em muitos lugares e uma fina camada de pó em toda a parte. Por
outro lado, o Reino de Deus é como um campo (cf. Mt 13,24-30; 1 Cor
3,9). Se um campo não for cuidado, nem cultivado, enche-se de toda a
espécie de ervas daninhas, de bichos, silvas, etc., a terra torna-se mais
dura ou mais rala, tanto mais, quanto mais longo tiver sido o tempo
durante o qual não foi trabalho. Assim acontece também com a nossa
alma. Disso não nos apercebemos, mas quando se começa a oração, a luz
de Deus põe em evidência não só a grandeza, a verdade, o amor, a
pureza, a bondade e o poder de Deus, mas também, por contraste, a
nossa pequenez, miséria, inconstância e pecado. Este contraste é
percebido tanto maior, quanto mais próxima for a presença de Deus e mais
íntima a união com Ele. Cresce-se desta no conhecimento próprio e no
conhecimento de Deus (cf. Jo 16,8-10; S. Teresa, Mor. 1, 2, 8-10.14;
Fund. 22,6), tão necessários para caminhar com humildade e confiança,
progredindo na humildade que é andar na verdade (cf. Mor. 6, 10, 7).
Ao mesmo tempo que o carmelita reconhece por experiência própria a
realidade e miséria da sua condição humana, surge nele a exigência de
uma profunda renovação, abrindo-se ao poder de Deus e abandonando-se
total e confiadamente à Sua ação. Como diz a RIVC 10: «O chamamento,
dom gratuito de Deus, não cai numa terra neutra, antes vai dirigido a uma
pessoa com a sua história de santidade e pecado. Cada um de nós
experimenta o poder da graça, que dá a própria força e vida para realizar
com alegria o projeto de Deus, simultaneamente a um conflito interior que
tem influência no crescimento interior. Como diz S. Paulo: “Não faço o bem
que quero, mas o mal que não quero... E, quando quero fazer o bem, é o
mal que está ao meu lado” (Rm 7,14-25). Mas também nesta fragilidade, a
cada um é dirigida a palavra tranquilizadora do Senhor a Paulo: “Basta-te
a minha graça; porque é na debilidade que a minha força se manifesta
plenamente” (2 Cor 12,9)».
3. A tríplice dimensão da conversão carmelita
A Sagrada Escritura ao falar da conversão distingue dois termos. Um,
vindo do Antigo Testamento, é o verbo shub, que quer dizer “voltar”.
Significa que a pessoa que caminhava numa direção, que o desviava do
caminho da vida, afastando-o para longe de Deus e conduzindo-o assim à
morte, alcança, por graça de Deus, o dom de “voltar” e regressar ao Pai
(cf. Lm 5,21; 1 Rs 13,37; Jr 18,11; Lc 15,11-32). Este é o primeiro
momento da conversão: entrar em si, regressar ao Pai, ir ao seu encontro,
abraçá-lo. É deste encontro e união a Deus que nascem as forças para se ir
renovando a própria vida. A conversão não é, pois, em primeiro lugar um
esforço de renovação e só depois reconciliação e união a Deus no seio da
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Sua «casa», a Igreja. Antes de mais, ela é reconciliar-se com Deus e unirse a Ele, graças à obra de Cristo (cf. 2 Cor 5,18), deixando-se instruir por
Ele (cf. Mt 18,3), sendo a renovação da vida o fruto e consequência desta.
O Novo Testamento, além deste vocábulo, conhece também outro:
metanóia. Este significa literalmente “mudança de mente”, reconsiderar,
mudando de atitude, de maneira de julgar, dos valores que contam, dos
interesses que se perseguem, das preferências e prioridades, da orientação
da própria vida. Implica sempre por a Deus em primeiro lugar e no centro
da própria existência, como o único Absoluto e o mais importante da nossa
vida (cf. Mt 4,17; Lc 17,4; At 2,38; Hb 6,1), sendo sempre o fruto da ação
do Espírito em nós (cf. Lc 5,32; At 11,18; Rm 2,4; 2 Pd 3,9).
A partir da sua experiência profundamente bíblica e evangélica da vida no
Espírito segundo o Evangelho, o Carmelo acentua três notas particulares,
mas fundamentais, da conversão, enquanto regresso/união com Deus, e
purificação/transformação interior:
(1) conversão da exterioridade para a interioridade: «Ó alma
formosíssima entre todas as criaturas, que tanto desejas saber onde está o
teu Amado para te encontrares e unires a Ele, já te foi dito que tu mesma
és o aposento onde Ele mora, o refúgio e o esconderijo onde Ele Se
oculta… Mas também perguntas: “Então, se Aquele que a minha alma ama
está em mim, porque é que não O encontro nem O sinto?”. A razão disso é
que Ele está escondido e tu não te escondes para O encontrar e sentir…
Fica-te dito, ó alma, o modo que mais te convém para achares o Esposo no
teu esconderijo. Mas, se quiseres que to diga outra vez, atende a esta
palavra cheia de substância e de verdade inacessível: busca-O em fé e
amor, sem te quereres satisfazer em coisa alguma, nem possuí-la ou
entender mais do que deves saber, pois estes dois são os moços de cego
que te hão-de guiar por onde não sabes até ao esconderijo de Deus. A fé,
que é o segredo…, são os pés que levam a alma até Deus; o amor é o guia
que a encaminha» (S. João da Cruz, Cântico espiritual, 1, 7.9.11);
(2) Vacare Deo (esvaziar-se para Deus). Esta expressão, tirada da
Vulgata: «Silenciai-vos (Vacate) e sabei que eu sou Deus; ergo-me sobre
as nações, ergo-me na terra» (Sl 45[44], 11), expressa todo «o empenho
do Carmelita em fazer de Cristo crucificado, homem despojado e
esvaziado, o fundamento da própria vida, e em ordenar para Ele todas as
suas energias através da fé, destruindo qualquer obstáculo que se levante
contra a perfeita dependência dele e contra a perfeição da caridade para
com Deus e com os irmãos. Este processo de despojamento, que conduz à
união com Deus, fim último de todo o crescimento do homem, na nossa
espiritualidade é evocado pelos temas da "puritas cordis" e do "vacare
Deo", expressões da abertura total para com Deus e do esvaziamento
progressivo de si mesmo» (Const. 15). É o caminho do esquecimento de si
mesmo e do nada para alcançar o Tudo, que é Deus, criando espaço para
Deus e deixando que Deus seja Deus na nossa vida.
(3) Abandono confiante, total e incondicional ao amor misericordioso de
Deus, deixando que Ele tome a iniciativa, venha a nós como quer, quando
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quer e como quer, nos guie e use, desejando apenas amá-l’O e agradarLhe em tudo, abrindo-se cada vez mais profundamente à sua graça, deixando que Ele toque, inunde e renove o nosso nada, todas as zonas e
dimensões do nosso ser: «A natureza humana, débil e limitada, por causa
das suas misérias, deixa-se conduzir pela vontade divina e abraça uma
vida de conversão sempre mais profunda. Envolvendo o ser humano por
toda a vida e em todas as dimensões, a conversão implica um radical e
novo direcionamento a uma progressiva transformação. Guiados pelo
Espírito os terceiros buscam a superação dos obstáculos que encontram
nos seus caminhos e evitam tudo aquilo que possa desviá-los da estrada
rumo ao cume. Além disso, reconhecendo possíveis limitações e
resistências, empenham-se em seguir, sem vacilar e sem desvios, por um
caminho gradual rumo aos ideais escolhidos» (ROTC 21).
4. A «Subida do Monte Carmelo», símbolo do processo de
purificação através da noite e do deserto da contemplação até
chegar à união e transformação do próprio
Toda a verdadeira obra de conversão, purificação e transformação é uma
graça insigne de Deus, que, conduzindo o Terceiro através do deserto, o
introduz na contemplação de modo a dispô-lo para uma ação mais
profunda de Deus, que cure as raízes do seu ser e o transforme
interiormente, tornando possível a conformação do seu «homem interior»
com o Homem novo, no qual é inserido mediante comunhão com Cristo e
com os irmãos no seio da Igreja. Diz a ROTC 22: «A “Subida do Monte”
implica a experiência do deserto, no qual “a chama viva do amor” de Deus
realiza uma transformação que faz com que o carmelita secular se
desapegue de tudo, até mesmo da imagem que fez de Deus, purificando-a.
Revestindo-se de Cristo, começa a resplandecer como imagem viva de
Cristo, transformando-se nele em nova criatura». E a RIVC 23
acrescenta: «A contemplação constitui a viagem interior do carmelita
proveniente da livre iniciativa de Deus que o toca e o transforma em
ordem à união de amor com Ele, elevando-o até poder gozar
gratuitamente de ser amado por Deus e viver na Sua presença amorosa.
Esta é uma experiência transformante do amor de Deus que transborda.
Este amor esvazia-nos dos nossos modos humanos limitados e imperfeitos
de pensar, amar e agir, e transforma-os em “modos divinos” (cf. Const.
40), habilitando-nos “não só depois da morte, mas também nesta vida
mortal, a saborear no coração e experimentar na alma o poder da
presença divina e a doçura da glória celeste” (Instituição dos primeiros
monges 1, 2». Através deste processo, o Terceiro começa a «ver a
realidade com os olhos de Deus» (RIVC 15), transformando-se a sua
atitude segundo o amor de Deus e tornando-se desta forma cada vez
«mais capaz de discernir os sinais dos tempos e a presença de Deus na
história, reforçando em si mesmo o sentido da fraternidade que o conduz a
um empenho sério e decisivo em favor da transformação do mundo»
(ROTC 23), onde vive e passa a agir como luz, sal e fermento.
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08 Conversão e transformação em Cristo