UMA PROPOSTA INDECENTE
Introdução
Alberto, homem português, emigrado, encontra-se ao cuidado de um tio na cidade de Belém do
Pará (Brasil), na foz do grande rio Amazonas. O tio, desejando ver-se livre dele, propõe-lhe
trabalho num seringal no meio da selva amazónica, a milhares de quilómetros de distância.
Macedo encaminhava já os passos em direitura à cozinha, para
investigar o andamento do jantar, quando a existência do sobrinho,
com o seu peso morto de inactivo, lhe sobreveio no espírito.
Encontrava, finalmente, uma solução. Parou, hesitante e com as
pálpebras semicerradas. «Lá bom não era, porque o corte de seringa
e as doenças não deixavam ninguém pôr pé em ramo verde... Mas,
que diabo! Se não aparecia outro emprego e se ele não podia estar
ali a sustentá-lo toda a vida!»
A imagem da irmã, esquecida em Lisboa, velha e doida por aquele
filho, entibiou, por momentos, a sua decisão.
Macedo reagiu. Não, não podia ser! Muito já ele tinha feito!
O RECRUTAMENTO, José Emídio,
Outros, com mais posses, não fariam tanto! Empregara-o duas
in «Era uma vez… a selva»
vezes e estava a dar-lhe cama, mesa e roupa lavada desde que o
vira de novo sem trabalho. Que culpa tinha ele de que a borracha se desvalorizasse e os
patrões que lhe arranjara despedissem empregados? E não era caso de morte! Havia muitos
que iam para os seringais e gozavam lá de perfeita saúde. Alberto era inteligente e, se não se
deixasse engazupar, talvez aquilo até lhe fosse um bem...
Decidido, arrepiou caminho, arrastando-se em andar lento e pesado, fazendo ranger as
velhas tábuas, corredor em fora. Brilhavam na penumbra a sua calva e a calça branca que
subia, em curva larga, para o ventre. Boas arrobas de carne fofa, sedentária e doentia,
detiveram-se junto à porta de um dos quartos interiores, dando volta à tranqueta. Não se via
nada.
— Ó Alberto! Estás aí?
— Estou.
— Estavas a dormir?
— Não; fechei o postigo porque lá de baixo vinha mau cheiro.
Rumorejou um corpo que devia saltar da cama, uns passos rápidos soaram na escuridão e
logo, atrás da portinhola que se abriu, entrou no recinto uma fosca claridade. Iluminou-se
então, no quarto miserável de hospedaria, com a cama de ferro a insinuar existências
parasitárias e o travesseiro liso, de quartel, um jovem alto e magro, cabelo negro e olhos
amortecidos, denunciando vida indolente. A calça dançava-lhe na cintura e os ossos adquiriam
forte relevo no tronco seco e nu. Sentou-se no rebordo do leito e começou a vestir,
apressadamente, o casaco do pijama.
— Desculpe...
— Não faz mal; está à vontade.
— É que fazia um calor...
Macedo enfiou nos suspensórios os dedos grossos e felpudos e encostou-se ao postigo,
com a mais benévola das expressões que o sobrinho lhe conhecia.
— Não soubeste, hoje, de nada?
— Não. Estive com o Agapito. Disse-me que não se esquecia, que ia ver…
— Ora! De promessas estamos nós fartos! É bem verdade que tudo está mau e cada dia é
maior o número de caixeiros sem emprego. E o pior é que não vejo que isto possa melhorar. A
borracha cada vez desce mais. Vão arrebentar muitas casas por aí... Olá se vão! Por isso eu me
lembrei... Sim, foi apenas uma lembrança... Se tu não estiveres de acordo, paciência! A falar
verdade, já não sei o que hei-de fazer... Já não há empenhos que valham!
— Mas o que é?
— Eu tinha pensado... É que está aí um seringueiro — o Balbino, aquele que anda sempre
com um charuto na boca — que foi ao Ceará buscar pessoal para o rio Madeira. Mas, ontem,
fugiram-lhe três homens... Ora, eu pensei... Sim, talvez falando com ele tu pudesses...
Mais uma vez Macedo se deteve, vacilante, a contemplar o sobrinho e quase admirado de
não ter sido ainda interrompido.
— Pelo menos por agora ficavas arrumado...
— É para eu ir para o seringal?
— Se tu quiseres, está bem de ver. É cá uma ideia minha...
Com a mão, o rapaz pôs-se a alisar, em silêncio, as rugas da calça.
— Para o rio Madeira, disse o tio?
— É. O seringal chama-se o Paraíso.
— Rio Madeira... Rio Madeira... Não é lá que há muitas febres?
— No rio Madeira...
— É; em todos os seringais há muitas febres… — interrompeu-o, finalmente, Alberto.
Macedo contrariou-se, mas resistiu, encarcerando e substituindo as palavras de exaltação
que ferviam dentro dele.
— Tu és senhor da tua vontade, claro — disse, mal disfarçando o nervosismo. — Faze o que
entenderes! Cá por mim... Mesa onde come um, comem dois. Mas tudo aqui está mau. Tu
bem o sabes... Há dois meses que andas desempregado e não há sequer esperanças de te
colocares. E quem sabe lá onde isto vai parar! Quem nos diz que não se vai de mal a pior e que
daqui a um ano ainda te encontras à boa vida? Não é por mim, bem entendido, que assim falo;
é por ti. Quanto às febres, não digo que aquilo lá seja uma delícia, mas todos os dias chegam
aqui seringueiros do Madeira, do Purus e até do Acre, sãos como um pêro. É questão de sorte.
Alberto levantou os olhos, analisou, um instante, a expressão do tio — e compreendeu. Era
verdade tudo quanto havia pensado sobre a protecção que o parente lhe dava; certificava-se
das suspeitas que tinha tido, dos mil pequenos indícios interceptados, agora e logo, sobre o
estado de espírito de Macedo.
— Está bem, tio; irei! — disse pausadamente.
Pressentindo que as suas intenções haviam sido detectadas, Macedo tentou minorar o
ambiente.
— Lá contra a vontade, não! Tanto mais que eu ainda nem falei ao homem.
— Pode falar-lhe. Não é contra a vontade. Irei — declarou Alberto, atiçado de repente pelo
orgulho.
Calaram-se os dois, num silêncio incómodo, mas o ruído de um alguidar de água, que
alguém despejava no saguão, pareceu reanimar subitamente a voz de Macedo:
— Bem; desde que é esse o teu desejo... Vou ver o que o Balbino diz.
— Que é que eu iria fazer lá?
— O que irias fazer?... Não sei. Cortar seringa, talvez não, porque é duro. Mas os seringais
têm sempre um escritório, um armazém... Vamos a ver. Vamos a ver o que se arranja. E não te
aborreças, pois aquilo, para quem tem sorte e juízo, são terras onde se enriquece em pouco
tempo. Até já.
Saiu, fechando mansamente a porta.
[…]
Macedo não tardou a aparecer na saleta, com voz ressumando vitória.
— Está tudo arranjado!
— Tudo?
— O homem leva-te. Estive agora a falar com ele. Custou, porque eles preferem cearenses,
mas lá arranjei a coisa.
Fechou a porta atrás de si e, baixando o tom, acrescentou:
— O que tu tens é de pagar a despesa do outro. Do que fugiu...
— Do que fugiu?
— Sim. É para o Balbino se justificar lá no seringal. Assim, é como se tivessem fugido só
dois...
— Mas eu...
— Acho melhor não fazeres questão. Uns mil-réis a mais ou a menos... É que o homem
teimou em que só te levaria se tu pagasses a conta do outro. Eu também não acho bem, mas
que queres? Ele não deseja perder tudo...
— E que é que eu vou lá fazer, tio? Ele não disse?
Macedo embaraçou-se:
— Tu vais... Sim, eu já te preveni que o homem prefere cearenses... Foi difícil arranjar... Eu
bem queria que tu fosses como empregado. Mas ele respondeu-me que para já, não; que
depois se veria; que o que precisava era de seringueiros...
— Ah, eu vou, então, extrair borracha?
— Por um tempo... Até te arranjarem lá coisa melhor. Eu recomendei-te bem!
E, temendo um súbito desânimo, confortou:
— Mas não te aflijas por isso! Depois de lá estares e de verem de quanto és capaz, estou
certo de que te arranjam coisa melhor. De mais a mais, muitos donos de seringal começaram
por seringueiros. Quantos tenho eu conhecido aqui! A questão é uma pessoa ter sorte e
esperteza! O diabo não é tão feio como o pintam. É verdade: quantos anos tens agora?
— Vinte e seis.
— Vinte e seis? Foi isso mesmo que eu lhe disse. Mas como não tinha bem a certeza... Vinte
e seis anos! Quem mos dera! Estás uma criança! Podes ter um grande futuro. Aquilo são terras
para a gente ir com essa idade, quando se é novo...
Alberto quedou-se em silêncio, com os olhos pensativos fixos no velho sofá.
— Quando é a partida? — perguntou depois, como que alheadamente.
— É amanhã à noite, no «Justo Chermont». Tens alguma coisa a tratar?
— Nada. Nada...
Ferreira de Castro, A Selva. Guimarães Editores, 2009, pp. 24-33
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