LOURDES de Jessica Hausner_15 de Dezembro de 2011
sinopse Confinada a uma cadeira de rodas devido a uma doença degenerativa nos ossos,
Christine (Sylvie Testud) sente a revolta de quem, todos os dias, enfrenta as dificuldades
inerentes à sua condição. Sem perder a esperança, empenha-se numa peregrinação ao Santuário
de Lourdes, nos Pirenéus franceses, visitada por milhares de crentes de todo o mundo. Aí
conhece Madame Hartl, uma senhora de meia-idade que, à custa de uma vida de profunda
solidão, procura em Lourdes o sentido para a sua existência. Entre as duas nasce uma relação de
fé tão grandiosa que Christine, assistindo ao milagre da sua própria vida, acaba por voltar a andar.
Decidida a agarrar aquela que considera ser a grande oportunidade da sua vida, nada a parece
fazer parar. Terceira longa-metragem de Jessica Hausner ("Lovely Rita", "Hotel"), um filme sobre
a fé e a coragem das pessoas comuns perante a adversidade.
ficha técnica
Título original: Lourdes (Áustria/Alemanha/França, 2009, 98 min.)
Realização e Argumento: Jessica Hausner
Interpretação:Sylvie Testud, Léa Seydoux, Bruno Todeschini,
Elina Löwensohn
Produção: Philippe Bober, Martin Gschlacht, Susanne Marian
Montagem: Karina Ressler
Distribuição: Alambique
Estreia: 12 de Maio de 2011
Classificação: M/12
Os mistérios da fé
Jorge Mourinha, Público de 12 de Junho de 2011
Se a fé é algo de profundamente íntimo, interiorizado, decorre que um filme onde se interrogue a
fé dificilmente será uma obra dinâmica. Isto serve já para desencorajar aqueles espectadores que
gostam que se "passe" qualquer coisa de "visível" nos filmes. "Lourdes" é um filme onde a tensão
está toda no que não se diz, no que se sugere, na ambiguidade que a austríaca Jessica Hausner
instala desde a primeira imagem, nos movimentos quase imperceptíveis que propulsionam o seu
olhar clínico sobre uma excursão de peregrinos ao santuário de Lourdes.
Essa frieza costuma ser marca registada dos novos cineastas austríacos (Michael Glawogger,
Ulrich Seidl, Barbara Albert) mas surge aqui mediada por um olhar significativamente humanista,
pacientemente equilibrado, que recusa tomar partido e prefere deixar ao seu espectador a escolha
de um ponto de vista perante os acontecimentos que se contam. Que não são tanto
acontecimentos físicos como o jogo de emoções entre uma entrevada desencantada para quem
estas peregrinações são uma fuga à solidão (uma grande Sylvie Testud), três voluntários da
Ordem de Malta com atitudes diferentes perante o seu voluntariado, e alguns peregrinos para
quem a fé e os milagres são questões de foros bem diferentes, contrapostos ao retrato do
santuário como um ponto de turismo religioso ostensivo.
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Hausner filma tudo com uma extraordinária paciência observacional, um uso inteligentíssimo do
zoom, sempre em planos de conjunto - como se neste contexto fosse impossível separar o
homem do grupo, como se a religião quase exigisse que o homem abdicasse de uma postura
pessoal perante o mistério da fé. Mas tudo não passa de interpretações possíveis perante um
filme cuja transparência límpida da forma esconde um espantoso mistério de conteúdo.
Confirma-se: não é preciso encher o écrã com explosões para que se passem coisas
assombrosas num filme. "Lourdes" é magnífico.
Um conto de fadas contra o destino
12.05.2011 - Francisco Valente
"Lourdes é a terceira longa-metragem da austríaca Jessica Hausner. Uma história sobre a
fé num milagre, sobre a fé no amor
Antes de conhecer Lourdes, local de peregrinação católica no Sul de França, Jessica Hausner
procurava criar um filme a partir da ideia de um milagre. Mas foi na função desse local - um ponto
geográfico onde as pessoas rumam para celebrar um desejo de fé - que Hausner viu o palco ideal
para se debruçar sobre o sentimento contraditório da crença no inatingível: o amor pelo outro.
"Antes de descobrir o sítio, já pensava criar uma história sobre isso. E uma das razões que me
levou a fazer o filme em Lourdes foi o facto de ser um local verdadeiro onde se anunciam
milagres. Pegar num sítio real em vez de o inventar na escrita deu-me a oportunidade, enquanto
autora, de me colocar num ponto exterior e desenvolver a ideia", diz ao Ípsilon.
Hausner escreveu a partir de Lourdes esta sua terceira longa-metragem: a história de Christine,
uma doente de esclerose múltipla que ali se
dirige como opção de último recurso para
recuperar o funcionamento do seu corpo,
agora preso a uma cadeira de rodas. No seu
trabalho de pesquisa no local, a realizadora
austríaca observou a movimentação de
pessoas vítimas da arbitrariedade da doença
física em busca da cura. Sylvie Testud, a
sua actriz principal, transpôs as limitações
da personagem para a sua vida real durante
a rodagem do filme: "Percebeu que, para uma
mulher deficiente motora, é constrangedor ser
tocada constantemente: alguém que a levante da cadeira para se deitar ou sentar, que a alimente,
vista ou dispa", nota a cineasta.
Todos esses momentos são acompanhados pela sua câmara: a aparente impassibilidade do olhar
da personagem é, no fundo, o que lhe resta de uma dignidade pessoal difícil de reproduzir aos
olhos dos outros: "Há uma urgência em reencontrar partes da sua dignidade, urgência de se sentir
como um ser humano e não como um bebé. Quando a a actriz percebeu isso, disse-me que tinha
entendido a personagem".
Mas Christine revela-se um elemento de um mecanismo preparado: a movimentação encenada do
turismo religioso, que busca, para além da devoção espiritual, a resolução de problemas palpáveis
que afectam uma vida terrena condicionada pelo físico. A personagem não esconde o objectivo da
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sua presença em Lourdes, ao contrário de outros visitantes com quem convive e que, entre o
desespero das suas limitações e a frustração, se entregam cegamente à irracionalidade do desejo
de um milagre. Um elo oposto a Christine é Cécile, religiosa e líder do grupo peregrino,
interpretada por Elina Löwensohn. "É como um espelho contrário de Christine. Enquanto esta é
uma personagem pragmática com um olhar realista sobre o que a rodeia, Cécile tem uma crença
muito forte", diz-nos Hausner.
Do milagre ao conto de fadas
É quando ocorre, aparentemente, a tão ansiada cura em Christine - mais pela fervorosa
competição dos outros peregrinos do que pela própria - que se espelha, ainda mais, o isolamento
e a incompreensão de cada personagem. Resta-lhes a entrega, por um lado, à inveja de Christine,
e por outro, ao absurdo do acontecimento, antes do desenlace final de uma doença escondida.
"Se Cécile duvida do milagre de Christine, será mais por uma punição que se inflige a si mesma,
pois não se atreve a desejar o mesmo para si. É algo que lhe dá um lado muito rígido, e a história
mostra que, por vezes, o destino cai sobre nós de forma injusta", ajuiza a realizadora.
É esse o motivo central de "Lourdes": "Procurava mostrar o lado absurdo da crença num milagre.
As coisas podem acontecer tanto de uma maneira como de outra, e, enquanto seres humanos,
tentamos sempre dar um sentido ao que nos acontece. Mas o destino é mais forte, e temos de
aprender que, independentemente do que tentamos fazer, as coisas acontecem da forma que elas
desejam e não como nós desejamos", continua.
A dúvida sobre o milagre de Christine transforma-se, entretanto, na segurança do seu renovado
desejo por um dos guardas do grupo de peregrinos. E aí revela-se o que todos buscam em
Lourdes: dar e receber amor, serem reconhecidos na sua capacidade de ternura e como fonte de
vida de uma relação. A história que se esconde por trás de "Lourdes" é esta, aponta Hausner: o
amor como conto de fadas. "Inspirei-me na 'Cinderela' dos irmãos Grimm, uma rapariga ignorada
que, um dia, encontra um príncipe. De repente, o seu pé cabe num sapato e ela torna-se na
princesa que todos invejam." Para a realizadora, "não é apenas o milagre de Lourdes que inspira
o filme, mas o milagre do amor: uma rapariga paralisada que encontra o seu príncipe encantado,
mas que poderá perdê-lo outra vez no fim."
A irracionalidade da fé absoluta na pureza de uma paixão, ou numa eterna felicidade interior,
servirá tanto de mote para o vazio que percorre as personagens peregrinas de Lourdes, como
para as relações de amor que as suas almas pedem naquela paisagem idílica. E o absurdo
daquelas crenças será o palco para que uma noite ouça, no milagre dos seus sonhos: "someday
my prince will come."
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