Efeito-equipe: por uma prática concernida Autora: Aline Aguiar Mendes Uma contextualização: No Brasil coordeno juntamente com a professora da Universidade Federal de Minas Gerais, Ângela Vorcaro, um trabalho de construção do caso clínico com equipes de profissionais de instituições de saúde mental que atendem crianças e adolescentes em crise. Tenho encontrado formas de exercício profissional pulverizadas, sem referência, muitas vezes assentadas seja na adoção alienada e superficial das classificações da psicopatologia contemporânea, baseadas no DSM, seja na ausência de pelo menos um técnico que se responsabilize por um caso, ou mesmo na resposta reativa ao discurso judiciário quando este aciona as equipes devido ao risco de atos violentos de um sujeito. A hipótese é a de que a metodologia da construção do caso clínico permita, atravessar o que convencionalmente é nomeado como “equipes” (diferentes profissionais designados para operarem num mesmo lugar, com os mesmos casos), para introduzir uma prática cernida por uma opacidade do caso. Destacada como traço de verdade, torna-se passível de polimerização por concernir os praticantes. Apenas nesse instante, pode-se localizar o que nomeamos como efeito equipe. Suas consequências: a incidência desse traço sobre os profissionais pode recrutá-los à urgência de inventar modos de tocar os sujeitos atendidos, retirando-os do campo de inércia. A construção é reconhecida aqui como uma metodologia clínica de intervenção no campo da saúde mental cujo objetivo é orientar as condutas dos profissionais do serviço mediante um caso que lhes cause impasse. Instigada pela formulação de interrogações que demarcam seus limites e impotências em relação ao caso, a “equipe convencional, normativa” construirá, por meio da conversação clínica, o caso clínico, expressando suas atitudes na condução do mesmo, recolhendo momentos em que podem distinguir que o próprio sujeito oferece uma resposta diferente daquela que faz com que o caso seja difícil. Em uma primeira aproximação da noção de construção é interessante ressaltarmos que nos deparamos como nos diz Lacan com a impressão dos primeiros milagres freudianos: encontrar no próprio impasse de uma situação a força viva da intervenção (2003, p. 113). Freud, em seu texto Construções em análise (1937), questiona e legitima o saber extraído da experiência analítica ao responder a uma crítica de Popper de que o critério de refutabilidade, essencial a um campo de saber para se legitimar como científico está ausente na psicanálise, já que tudo que o analista diz a seu paciente pode ser tomado como verdadeiro, não importando se o paciente concorde ou não com ele. Freud se opõe a essa afirmação, introduzindo a noção de construção. Ele prefere situar a verdade de uma construção no que ela pode produzir como efeito na fala do paciente, ou seja, no mecanismo propriamente significante em jogo. (Lacan, 1958) O autor também afirma que o trabalho do analista se aproxima ao do arqueólogo, já que o único material que ambos têm em mãos são fragmentos e restos, o que faz com que as construções sejam sempre incompletas. Nessa perspectiva, vale ressaltar como ele define o que chama de fragmentos de verdade histórica, ou seja, algo (traços, fragmentos) que a criança viu e ouviu quando ainda mal conseguia articular palavra, o que nos propicia considerar que há traços que propriamente resistem ao simbólico. Ter me deparado com essa definição no texto freudiano me possibilitou entender que apesar da amplificação, da composição de elementos da fala do paciente serem importantes em uma construção, a decantação desse fragmento é fundamental, é ela que tem efeito de verdade. Desse modo, podemos pensar, seguindo a metáfora da arqueologia, que a construção em psicanálise é mais próxima de uma escavação feita pelos arqueólogos, e que amplificação de que se trata é do detalhe que se decanta como restos do que foi ouvido, visto provenientes do Outro. A construção acaba, pois por nos conduzir não para o sentido, mas para um ponto de opacidade no simbólico, cingindo um buraco no saber. Portanto, o que Freud introduz como construções em análise nos remete a um real, que não podendo se dá saber totalmente, convoca-nos a uma construção sob transferência. O que o caso nos ensina: O encontro com a evidência-opacidade do traço a partir da leitura de Construções em Análise, me permitiu considerar, à medida em que o trabalho com as equipes foi acontecendo, que ao construir o caso clínico a equipe acaba por construir seu próprio caso, já que se aproxima cada vez mais de pontos de opacidade em suas intervenções. Essa consideração me permitiu elaborar o que se tornou um achado, um saber que me permite operar nessa prática, qual seja, a equipe não existe previamente a um caso, ao contrário, é a construção do caso que faz existir uma equipe, ou melhor dizendo, o que chamamos de efeito-equipe. A construção do caso clínico ao implicar os profissionais, faz existir uma equipe, fazendo valer que ali há sujeitos concernidos pelo caso, o que é distinto de uma equipe composta, por exemplo, pelos profissionais designados burocraticamente pela instituição. Além disso, não pode-se entender o efeito-equipe como o estabelecimento de uma unidade, de uma equipe coesa em torno do caso, nem tão pouco que todos os profissionais se impliquem, mas que um ou mais profissionais ao serem tocados cada um ao seu modo por suas próprias dificuldades se tornem um aprendiz do caso, o que reorienta suas intervençoes que antes eram dirigidas pelos significantes mestres normatizantes da instituição. É o que o caso Juan nos ensina Juan é um adolescente que mobiliza vários serviços de uma cidade, como comissariado de menores, escola e CAPSI por ter relatado em reação ao que ele denomina de bullying na escola, um projeto de vingança com os mesmos objetivos do que ocorreu em Realengo no Rio de Janeiro onde um jovem mata vários de seus colegas com uma arma de fogo. Tal relato desencadeia uma série de ações no município onde Juan morava. A escola mobiliza o poder judiciário temendo um ato com o mesmo desfecho ocorrido nessa cidade. A partir daí há um desdobramento de uma demanda para outros serviços, dentre eles, o CAPSI – Centro de Atenção Psicossocial para Infância e Adolescência. Nesse contexto, a equipe do CAPSI passou a traçar suas estratégias de intervenção para evitar uma possível passagem ao ato do paciente. Como Juan tinha uma grande dificuldade em falar (suposto mutismo), a equipe se movimentou em fazer com que ele falasse. A questão da fala era trabalhada visando saber se Juan ainda estava pensando em uma suposta vingança, pois dessa forma o serviço teria possibilidade de intervir antes que ele cometesse algum ato violento. O silêncio nesse caso causava tal barulho na instiuição que a equipe se mobilizava em torno do mutismo de Juan. Assim, o técnico de referência do caso se ocupa em fazer o adolescente falar para obter informações sobre seu plano de vingança, o Acompanhante Terapêutico (AT) é acionado com esse intuito, e a coordenação de saúde mental aciona a rede para que se previna a tragédia anunciada. Nesse momento, a equipe do CAPSI solicita a construção do caso clínico que foi realizada junto com a supervisora clínica da insituição. A construção do caso clínico permitiu a equipe reorientar suas intervenções. Ao esvaziar a relação do caso de Juan com o ocorrido em Realengo, abriu a possibilidade para que se decantasse algo do caso que permanecia, a dificuldade de falar do jovem, o seu silêncio foi pela primera vez escutado, o que por sua vez, produziu a expressão por parte de alguns profissionais de suas dificuldades na condução do tratamento. O técnico de referência chega a “oferecer” o caso para outro colega, a coodenador da rede de serviços revela seu temor pela responsabilização do serviço caso um ato violento ocorresse. Ao serem trabalhadas essas dificuldades foi possível para equipe reconhecer o laço transferencial do adolescente com o técnico de referência, único com o qual ele falava e fazer valer esse laço no qual a fala era possível. O técnico de referência passa então a não se ocupar mais em perguntar sobre os planos de vingança, e a conversar com o adolescente sobre o que este propunha, como interesse pelo namoro com o menino da escola, pelo gosto por desenhar e pelo canto. A coordenadora de saúde mental legitima a condução da equipe, fazendo valer a necessidade da participação de Juan nas oficinas de desenho oferecidas na comunidade, o AT passa a ser um dispositivo silencioso no trânsito pela cidade e o psiquiatra da equipe faz uma consideração que serve de baliza para o diagnóstico, na medida em que reconhece o mutismo como índice de uma psicose, já que própria fala de Juan parecia ser um fenômeno invasivo e auto-referente. É interessante notar que essas ações nos permitem entender que na medida em que o serviço pode incluir Juan fora da nomeação (do massacre) de Realengo, foi possível a ele encontrar um lugar junto a essa equipe, já que a referência da insituição para esse jovem passa a de ser um local onde ele pode fazer amigos. A construção do caso clínico nessa instituição pode se valer propriamente da falha que todo saber comporta, para propiciar um deslocamento no discurso dos profissionais que permitiu concerni-los de alguma forma em sua prática. Nesse sentido entendemos que a equipe não existe previamente ao caso, mas a construção pode propiciar um efeito-equipe, onde a transferência pode fazer soar seus ecos nos profissionais, mobilizando um desejo de saber assentado no caso clínico o que tem efeitos para o paciente e para a própria equipe. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: FREUD, S. Construções em análise. Rio de Janeiro: Imago, 1980- 1937. (Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXIII). LACAN, J. A fantasia para além do princípio do prazer in O Seminário livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.1958/1999. LACAN, j. A psiquiatria inglesa e a guerra in Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003.