Saudade Reflexões de Maria Livia Marchon Luiz Gonzaga, em uma música famosa, diz que “ se a gente vive a sonhar/Com alguém que se deseja rever/Saudade, entonce, aí é ruim” e conclui: “amarga qui nem jiló”, e “ o meu remédio é cantar.” Como diz o ditado, “Quem canta seus males espanta”.Quem faz poesia, também. Até hoje cantamos tangos como “Nostalgia”, que significa saudade em espanhol”: “Nostalgia de escuchar su risa loca, de sentir junto a mi boca, como um fuego, su respiración”( saudade de escutar seu riso louco, de sentir junto à minha boca , como um fogo, sua respiração”. Até hoje,lemos o poema “O lago”,em que, junto do lago de Bourget,o poeta francês Lamartine, do século XIX, se recorda, saudoso, da amada Julie, que antes havia passeado ali com ele e agora está morrendo.Os versos são lindos, mas dizem alguns que o poeta, nesta ocasião, já estava se envolvendo com outra pessoa...A saudade de um ser amado é um tema literário e musical muito usado.Como distinguir, dentro desse tema, uma poesia ou música de valor de uma de carregação , descartável? Provavelmente, o texto literário ou musical tem valor quando expressa um sentimento real e o faz com cuidado, escolhendo bem os sons e as palavras, sejam elas cultas, como as de Lamartine para a amada Julie, no poema O lago, sejam simples, populares, como as de Luiz Gonzaga que compara o amargor da saudade com uma comida bem conhecida, o jiló. Podemos ter saudade de alguém que correspondeu ao nosso amor e já morreu, seja um pai, uma mãe, um par amoroso. A falta daquela pessoa cria um buraco dentro da gente, dói muito, mas, com o passar do tempo, essa dor pode suavizara ponto de podermos recordar a pessoa querida em paz e até com alegria. A perda irreparável, com o tempo, pode gerar em nós lembranças agradáveis e risonhas, em especial quando nos reunimos com parentes e amigos e começamos a lembrar de velhas histórias. A dor da perda, a saudade, não deve nos fazer descuidar dos que dependem de nós. Temos responsabilidades para com os que nos cercam, em especial se forem crianças.Além disso,ocupar-se, com equilíbrio, dos outros, é algo que ajuda.Uma jovem que conheci sofreu pela perda da mãe, mas o fato de precisar cuidar do filho pequenino ajudou-a a superar tal dor. Já o escritor alemão Rainer Maria Rilke sofreu atrozmente porque sua mãe, quando ele nasceu, estava tão triste pela morte da filhinha que ignorou o filho vivo. Em nossos dias,há uma certa tendência de não querer que as pessoas vivam suas dores reais.Procura-se distrair os enlutados, levá-los a viajar, aturdi-los com mil ocupações. É normal a pessoa enlutada ficar triste, desanimada.Precisamos deixá-la chorar, sentir-se triste. A tristeza e a morte fazem parte da vida. Assim como se vivenciam intensamente as alegrias, é necessário, para o ser humano, viver intensamente suas tristezas reais. Pode fazer mal para nossa vida emocional não nos permitirmos sofrer dores reais, dores que não são de mentirinha. Diante da saudade de alguém que morreu, as pessoas não reagem do mesmo modo, elas encontram soluções diferentes para a sua dor, que precisamos respeitar. Há quem fique a olhar as fotos do ente querido e chore lágrimas suaves que lhe aliviam o coração.Há outras que, mesmo muitos anos depois, sofrem ao ver fotos dos entes amados que morreram e preferem ficar longe das mesmas. Há quem viva a se lamentar porque o ente querido não conseguiu ver realizado um certo sonho. Já outros se sentem quase na obrigação, em homenagem ao morto, de realizar aquilo por que ele tanto sonhou. São soluções diferentes , muitas vezes , das que escolheríamos, mas precisamos respeitá-las. Embora o verdadeiro amor implique não amar sozinho, músicas de “fossa”, de saudade de alguém, vivo, que não correspondeu ao nosso amor existem em grande quantidade. Muitas, até, enquanto músicas, não enquanto modo de agir, são lindas. “Agora, que faço eu da vida sem você? Você não me ensinou a te esquecer. Você só me ensinou a te querer e te querendo eu vou buscando te encontrar, vou me perdendo...” Essa música é linda, mas não é boa conselheira, assim como é lindo o famoso soneto de Vinícius de Moraes que apregoa, tal como a vida amorosa do poeta, o relacionamento intenso, mas passageiro, o paradoxal “infinito enquanto dure”. Há bastante masoquismo em cultivar uma dor amorosa como plantinha delicada. Provavelmente essa atitude também implique fuga a uma relação amorosa adulta e responsável pela felicidade do outro. É bem mais fácil sofrer sozinho do que trabalhar arduamente para construir um relacionamento respeitoso e criativo, capaz de recomeços após as falhas tão comuns a nós, pobres humanos imperfeitos... No Romantismo do século XIX, em especial, a saudade da pátria fez nascer lindas poesias, romances e músicas, textos literários e musicais de grande valor.“Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá. As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá.”,cantou nosso poeta Gonçalves Dias. Ousando abandonar as aves e árvores nobres da Europa que figuravam nos poemas e cantando sabiás e palmeiras humildes da nossa terra, o poeta revolucionava a arte e contribuía para criar a literatura nacional. Do mesmo modo, e mais ainda, com amor à sua terra, José de Alencar construiu uma literatura autenticamente brasileira. Saudoso da simplicidade de Fortaleza, no ambiente da corte no Rio de Janeiro, o escritor criou seu imortal romance Iracema. No prólogo da obra, ele chega a dizer que o livro é cearense e que o escreveu para ser lido em uma rede,ouvindo o murmúrio do vento nas palmas dos coqueiros.E Alencar construiu nossa literatura autenticamente brasileira. Se pensarmos nos imigrantes de todas as épocas e, em especial, na multidão de refugiados que hoje se vê obrigada a fugir da terra natal e buscar abrigo em terras distantes, talvez possamos esperar que o sonho de voltar à pátria origine uma nova safra de literatura desse tipo. Todos se lembram dos famosos versos de Casimiro de Abreu “Ai que saudades que tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida, que os anos não trazem mais. Se tivermos tido pais razoavelmente bons, não apenas os poetas, mas todos nós costumamos ter saudades da nossa infância, aquela sem grandes preocupações e repleta de segurança e permanência, como se a morte não existisse e nos rondasse. Embora o sentimento de saudade seja universal, nós, brasileiros, valorizamos muito a palavra saudade, que a língua portuguesa criou para expressá-lo e até desprezamos um pouco as palavras equivalentes das outras línguas. Realmente,nossa palavra é bonita e vem, provavelmente, da palavra latina solitate, que significa solidão. Quando perdemos alguém ou algo,ficamos sós. Mas não somos só matéria, há algo mais em nós, não importa o nome que lhe deem. Quando superamos o momento difícil da perda física, não será que, para compensá-la, vivemos uma presença espiritual dentro de nós, algo que ninguém nunca poderá nos roubar, simplesmente pelo fato de que aquilo que foi vivido existiu mesmo e não pode ser eliminado? A saudade verdadeira, não masoquista,não seria,assim, uma solidão acompanhada, por mais paradoxal que pareça? Vamos terminar lembrando uma música e uma poesia relacionadas com a saudade. A música mostra a dor sem remédio, a falta daquele que se foi mesmo, a saudade que o compositor Sérgio Bittencourt sentia do pai, Jacó do Bandolim, já falecido: “Naquela mesa ele sentava sempre/ e me dizia sempre o que é viver melhor/Naquela mesa ele contava histórias/ Que hoje na memória eu guardo e sei de cor.....Eu não sabia que doía tanto/Uma mesa num canto, uma casa e um jardim..... Naquela mesa tá faltando ele/ E a saudade dele tá doendo em mim.” A poesia fala da dor que podemos evitar. No famoso poema Juca Mulato, de nosso escritor Menotti de Picchia, depois de sofrer pelo amor não correspondido que sentia pela filha da patroa, o mulato Juca vai se acalmando, pensando, e os versos finais revelam esperança: “ Esquece calmo e forte.O destino que impera/um recíproco amor às almas todas deu./Em vez de desejar o olhar que te exaspera,/procura esse outro olhar que te espreita e te espera,/que há, por certo, um olhar que espera pelo teu...”