DIVULGAÇÃO
COMPORTAMENTO
Gente que é louca
por (discutir) sexo
Clubes de leitura, fãs clubes e fanfics
são alguns dos sintomas do interesse de
públicos heterogêneos pelo gênero literário
“Livros, putaria, chá e gatos.” Assim
é descrito o Clube do Livro Erótico, projeto
criado pela dupla paulista Isadora Sinay,
crítica cinematográfica, e Lívia Furtado,
jornalista. O vlog (tipo de blog que utiliza
o vídeo como plataforma) literário
começou em outubro de 2014, a partir
de uma lista de obras eróticas divulgada
num site norte-americano. “A Lívia deu
a ideia e eu topei, meio por impulso.
Mas também porque sexo, desejo e
literatura pareciam um bom ponto de
partida para discussões relevantes.
Além disso, percebemos que, misturado
a tantos vlogs e blogs literários, era um
gênero meio esquecido. A lista do
Flavorwire serviu para aguçar a nossa
curiosidade e fazer a gente pensar além
dos clichês esperados”, explica Sinay.
Um vídeo novo por semana
mobiliza o canal do projeto no
YouTube. Na lista de obras analisadas:
O amante, de Marguerite Duras; Chéri,
de Colette, e História de O, de Pauline
Réage, entre outras. Na adolescência,
Isadora acumulou na sua lista de
leitura clássicos eróticos como Lolita.
Durante o mestrado em Ciências da
1
Religião descobriu a importância
de Sade como filósofo e pensador.
Mas foi após a leitura de A vida sexual,
de Catherine M., e dos diários de
Anäis Nin que surgiu a vontade de
discutir literatura erótica com mais
afinco. “Esses dois livros trouxeram,
pela primeira vez, uma perspectiva
feminina da sexualidade, algo que eu
não tinha encontrado em nenhum
outro lugar. Ainda hoje penso que o
que mais me interessa na literatura
erótica e nas discussões do Clube, é
trazer para o debate o olhar feminino
sobre o desejo, que me parece
sempre (ainda) tão raro”, relata.
Assim como aconteceu com
a crítica paulista, Anäis Nin foi o
encontro literário cativante que estava
faltando entre Cristiane Olímpio,
estudante de Design, e o erotismo.
“Aos 14 anos, li Escrito nas estrelas, de
Sidney Sheldon. Lembro que o livro,
a partir de sua protagonista, fala um
pouco da descoberta da sexualidade,
o que coincidia com questões que
estavam passando pela minha
cabeça na época. Isso me despertou
o desejo de encontrar uma literatura
direcionada ao erótico. Buscando obras
que falassem sobre sexualidade de
maneira mais sofisticada, tive a sorte
de conhecer aquela que, para mim, é a
maior e melhor referência no gênero,
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CON
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FOTOS: DIVULGAÇÃO
Anäis Nin. Delta de Vênus e A fugitiva são
os meus preferidos”.
Já o jornalista Breno Pessoa, assíduo
leitor de narrativas libidinosas, lembra
a espontaneidade presente na obra da
francesa. “Embora eu tenha começado
por Sade, não me senti tão fisgado.
Em alguns momentos, achava tudo
muito visceral ou soando panfletário
demais na questão da libertinagem;
acho que muitas vezes o sexo soa
pouco natural em seus escritos. Gosto
de Nin pois, em seu texto, tudo me
parece crível e natural”, compara.
50 TONS DE CINZA
O programa do Clube do Livro Erótico mais
comentado até o dia da nossa entrevista
foi o de Cinquenta tons de cinza, de acordo
com Lívia. “Nós nem íamos falar dele,
mas vimos tantas questões surgindo,
porque o filme seria lançado, que
resolvemos aproveitar a oportunidade
e fizemos um especial. Os comentários
me ajudaram a indagar o livro de
maneira mais crítica e aconteceram
debates ricos sobre abuso, amor,
obsessão, BDSM (Bondage, Disciplina,
Dominação, Submissão, Sadismo e
Masoquismo) e, claro, literatura.”
Derivada de uma fanfiction da série
Crepúsculo, a trilogia de Cinquenta tons de
cinza vendeu mais de 5,5 milhões de
exemplares no Brasil, segundo dados
da editora Intrínseca, responsável
pela publicação dos livros por aqui.
“Não encaramos a série como um
produto erótico – E. L. James conta,
essencialmente, uma história de
amor. Acho que talvez essa tenha
sido a contribuição da trilogia para o
mercado erótico: romances palatáveis,
sensuais, que alcançaram milhões
de leitores e, com isso, trouxeram
a atenção para outros produtos na
mesma linha, ou, de fato eróticos”,
avalia a editora Danielle Machado.
A conjectura parece certeira, no
que diz respeito ao aquecimento do
mercado editorial erótico brasileiro.
Segundo Jorge Sallum, editor da Hedra
– um dos catálogos que mais investem
em livros libidinosos do Brasil –, o selo
Sexo, lançado em 2014, foi também
“uma reação à diluição cheia de tons
de cinza que essa literatura enfrentou
recentemente”. Entre os títulos da
série, estão O outro lado da moeda, de
Oscar Wilde e um clássico moderno,
2
ensaístico, sobre o tema, Perversão, do
psiquiatra americano Robert Stoller.
Para o jornalista Breno Pessoa,
Cinquenta tons de cinza trouxe um
acréscimo positivo no comportamento
social diante dos hábitos de leituras
alheios. “Agora, algumas pessoas
parecem encarar com maior
naturalidade alguém com um livro
erótico por perto”, observa.
O conservadorismo travestido de
obscenidade selvagem converte-se
num dos elementos mais irritantes em
Cinquenta tons de cinza. Como defende
Danielle Machado, os livros possuem
um enredo romântico. Porém, também
voltado para a ostentação do consumo.
A professora de Literatura Brasileira
na Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras da Universidade de São Paulo
(USP), Eliane Robert Moraes, estranha
que o livro seja, às vezes, comparado
às melhores produções da ficção
sexual. “A meu ver, não há nada mais
equivocado que tal associação: entre
o desejo de absoluto que preside a
erótica de Sade ou de Sacher-Masoch
e o desejo de inclusão que orienta o
imaginário da tola trilogia. Não há um
só ponto em comum. Bem adequados
à sensibilidade contemporânea,
os romances da autora inglesa, e
seus congêneres, criam um mundo
sexual autônomo, onde prevalecem
os desregramentos da imaginação,
mas antes preferem conformar suas
fantasias ao que está na ordem do
dia, sejam os signos mais óbvios do
consumismo, sejam as bagatelas do
‘politicamente correto’”, detalha.
Sobre o comportamento da
protagonista do romance, Anastasia
(padronizado e normativo), o
historiador e professor adjunto
do Departamento de História da
Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro (UniRio), Daniel Wanderson
Ferreira, constrói uma análise
comparativa entre o conto Barba Azul, de
Charles Perrault, e o quarto de jogos de
Grey (o dominador de Anastasia). “No
primeiro caso, a interdição ao quarto e
a curiosidade da mulher conduzem ao
suplício feminino, afinal, a lição moral
de Perrault é que a mulher deve se
manter em seu papel definido, submissa
ao marido e resguardada por ele do
universo masculino. Há uma ideia do
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1 50 TONS DE CINZA
Adaptado de livro
de E. L. James,
filme mobiliza
fãs no cinema
Nestas páginas
2 CLUBE DO LIVRO
ERÓTICO
Vlog criado por
Lívia Furtado e
Isadora Sinay
discute sexo,
desejo e literatura
3 ANAÏS NIN
Autora francesa
cativa o público
com o célebre
Delta de Vênus
homem como livre, como chefe e como
dirigente. A mulher fica em um papel
submisso para ser protegida da violência
masculina. É uma visão tradicional,
produzida num esquema de dominação
que é complexo e ambivalente, porque,
em Charles Perrault, está claro que
o Barba Azul quer sua mulher feliz,
libera-a para festejar com amigos,
desde que não entre no quarto interdito.
Já em Cinquenta tons, a perspectiva
aparentemente é outra, afinal Anastasia
é convidada a entrar no quarto, o que
nos faz pensar se estamos em uma nova
dimensão do corpo feminino. Haveria
mesmo nos Cinquenta tons uma ideia
libertadora e emancipadora da mulher?
– essa é a questão”, pontua.
De acordo com Ferreira, a
personagem de E. L. James entra no
quarto por convite e por vontade, mas
sem assumir as rédeas de si mesma e do
jogo erótico. “Não vejo, no filme, uma
proposta para se ‘refazer’ a sociedade
e as hierarquias de gênero, nem
mesmo a ordem romântica do amor,
tal como ela passa a ser vista desde o
século 18.” Para Eliane, o que sobra é
pouco: uma sexualidade conformada
Diferente do pornôchic dos adeptos
de E. L. James, o
pornoterrorismo
propõe feminismo e
guerrilha erótica
às exigências da ordem social; um
erotismo reduzido às demandas da
utilidade. “Impossibilitados de recorrer
ao absoluto de seus imaginários, os
sádicos e masoquistas de plantão devem
se dar as mãos para formar um par e, de
quebra, serem felizes para sempre. Eis a
promessa do casal Christian e Anastasia:
perfeitamente adaptados ao jogo dos
papéis sociais, eles enfim brindam o
‘sadomasoquismo’ com seus portavozes ideais. Não por acaso, isso ocorre
justo num momento em que a prática da
transgressão vem sendo cada vez mais
normalizada pelo mercado”, reflete.
Na direção oposta a qualquer algema
ou chicote, está o movimento pós-pornô
e seus derivados, como o pornoterrismo.
Numa espécie de manifesto, escrito
3
pela psicóloga e pesquisadora Fabiane
M. Borges, estão expostos os conceitos
feministas e de guerrilha erótica que
catalisam a vertente. “O movimento
tem uma intenção real de inovação
do imaginário pornográfico em geral,
no qual se utilizam as ferramentas da
sexualidade promovidas até agora, mas
renovadas a partir da perspectiva de
fêmeas fortes, poderosas, agressivas,
inventivas, propositivas, que trazem
consigo a linguagem da violência
também. A ideia é incluir novos recursos
sexuais performativos dentro da
sexualidade cotidiana”, afirma Borges,
que este ano pretende lançar, junto
com Carola Gonzáles e Ana Girardello,
uma tradução do livro Pornoterrorismo,
realizado pela espanhola Diana Torres.
Sentinelas de um pressuposto
narrativo sempre escorregadio e
catastrófico à sua maneira, os leitores
de escritos licenciosos estão sujeitos
a “toda surpresa, deleite ou terror”,
parafraseando declaração de T.S.Eliot
sobre Ulisses. Afinal, Joyce ficaria mesmo
feliz de ter sua obra associada a enigmas,
apuros e intensas tentativas de discutir
o delírio do corpo na literatura. (P.C.)
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“Gente que é louca por (discutir) sexo” – Dossiê