ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128
Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra
São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015
O QUE É OU O QUE PARECE SER: POR UMA LITERATURA DE TRÂNSITOS
Débora Chaves (IFBA)
A narrativa contemporânea segue em passos urgentes e nervosos,
rumo a uma necessidade de resolver questões que se instauram, mesmo antes de
fechar as anteriores. É uma correria que não deixa evidente a motivação para sua
existência ou o seu verdadeiro modo de agir e pensar. O sujeito que pertence a essa
dinâmica traz traços bem característico dessa emergência, visto que se deixa
comprometer com soluções imediatas, inserido nessa urgência, com uma repentina
mudança de comportamento e de opinião, buscando muitas vezes, apenas a forma,
sem nem se preocupar com o conteúdo.
É em meio a toda essa turbulência de informações que notamos a
crônica e suas contribuições para as narrativas de experiências contemporâneas,
onde o espaço que serve de cenário para as revisitações textuais, se prestam
também a cenários do cotidiano, onde sujeitos e textos transitam em busca de
significados e significações.
A CONTRIBUIÇÃO DA CRÔNICA
O estudo da crônica há tempos vem sendo objeto de discussão, por
motivações diversas, que vão, desde a sua natureza fronteiriça, quando é posta
entre o documento e a ficção literária, até as filiações estéticas que questionam sua
forma como texto e sua apropriação por jornais diários. Ainda assim, é valido
registrar que a tradição textual brasileira lida com a crônica desde os primeiros
cronicões do século XVI, que foram vinculados à natureza histórica, documental, de
caráter descritivo, mas também de inegável transparência estético-literária, qual o
caso da notória Carta de Caminha.
Em termos históricos, mesmo cumprindo um papel destacado na
tradição cultural-literária brasileira, a crônica passou e passa por aclives e declives,
onde constantemente é exposta à polêmicas e discussões de natureza teórica ou
formal. A figura do cronista traz traços desta incerteza ou ambiguidade da crônica,
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pois tanto possibilita um homem de letras, como remete naturalmente ao mais
puro jornalismo.
Com isso, são muitos os cronistas brasileiros, aproximados a uma ou
outra vertente, desde o mais engajado letrólogo, que tem na crônica um exercício
de ofício único, qual o caso do notório Rubem Braga (que escreveu tão somente
crônicas no que tange ao texto literário), até escritores que fizeram da crônica uma
extensão ou desdobramento de seus escritos e, neste caso, foram decisivos para a
conquista de espaços para este gênero breve. São os casos entre tantos, de
Machado de Assis, no século XIX, João Ubaldo Ribeiro já em fins do século XX e a
própria Martha Medeiros, que neste estudo será citada por suas crônicas.
Caminhando ainda nesse contexto de cronistas brasileiros, é possível
citar o caso de João do Rio no início do século XX, pois aí a crônica encontra um de
seus momentos mais profícuos, com a fotografia do cotidiano (SÁ, 1985). João do
Rio apreende o espírito da Belle Époque através de suas crônicas e seria decisivo na
influência de toda uma geração de cronistas posteriores, tais como Carlos
Drummond de Andrade, Sergio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Fernando Sabino,
Rubem Braga, entre outros.
Mas é em Martha Medeiros que localizamos os desafios e a
pertinência deste texto, visto que a autora, embora vinculado à produção de
poesias até o ano de 1996, passou a ser reconhecido como cronista com o
lançamento de seu primeiro livro de crônicas, publicado em 1995, pela editora
Artes e Ofícios, intitulado Geração Bivolts, sendo assim inserida nesse gênero de
natureza controversa, mas que, associado às características que o delimitam, como
a efemeridade ou ao registro funcional e célere do presente, assegura a afirmação
de que o seu estudo pode ser revelador de questões que afligem este presente
chamado contemporâneo.
Em Martha Medeiros, a crônica adquire tamanha dimensão,
especialmente quando tematiza a vida e as relações humanas como eixo teórico
que subliminarmente parece preencher os espaços de suas motivações. Essas
relações nas crônicas de Martha Medeiros são revestidas de um tratamento
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simbólico de tamanha natureza que é visível o entendimento das complexas
relações que regem sua influência nos escritos da autora.
Essa temática deve ser associada a uma certa pessoalidade, visto que,
na maioria das vezes, parte de um discurso pessoal, ou mesmo de uma experiência
individual vivida pela cronista. Com isso, há um trânsito relacional que se desloca
do real ao ficcional para compor as evidências de seus textos, trazendo um discurso
quase autobiográfico, a fim de inserir no cotidiano do leitor uma articulação
peculiar, que o faz acreditar que cada situação descrita nas crônicas, pode ser uma
observação individual de sua própria vida, assegurando coerência e significado a
um texto que, aparentemente não tem pretensão alguma em flertar com a
realidade.
O percurso das personagens da crônica de Martha Medeiros (que
quase sempre são pessoas de sua convivência: amigos, filhos, ela mesma)
apresenta um tom linear, algumas vezes correto e metódico, que de certa forma,
conduz o leitor a uma viagem carregada de opiniões ou mesmo de
questionamentos. De um lado, há uma a viagem metafórica, traduzida em suas
crônicas como narrativas em trânsito. De outro lado, uma viagem real, que transita
em cenários já conhecidos por esse leitor, como cidades, livros e outros aspectos
da realidade.
Na crônica de Martha Medeiros, esses aspectos estão profundamente
tensionados e, a cada texto, especialmente os de relações familiares, conjugais e
afetivas há uma velada experiência de sua vida particular, não apenas como parte
integrante da crônica como também como uma forma de legitimação do texto,
aproximando-o da experiência individual que se identifica com o leitor de cada
crônica publicada semanalmente no jornal.
DIFUNDINDO A IDENTIDADE
A questão da identidade ainda é um tema muito discutido, devido à
seus múltiplos questionamentos e possibilidades. Embora a identidade do sujeito
seja marcada por traços específicos de sua origem, sua cultura e suas experiências
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de vida ele visualiza no outro a razão do próprio desejo de legitimação, de
pertencimento, buscando assim a sua realização individual. Esse outro pode ser
notado a partir de uma condição favorável ao contemporâneo, expressa em
teóricos que tematizam essa abordagem, reforçando a ideia de que o fragmento e
o trânsito, de fato, resultam dos deslocamentos da vida, uma vez que, transitam
em direção a culturas diferenciadas.
Com isso, Bauman (2007), afirma que a identidade são como peças de
um mosaico que não são concretas, específicas, mas se completam. Ele diz:
Con la globalización, la identidad se convierte en un asunto
candente. Se borran todos los puntos de referencia, las
biografías se convierten en rompecabezas cuyas soluciones son
difíciles y mudables. No obstante, el problema no son las piezas
croncretas del mosaico, sino como encajan entre sí. (p.104)
Ou seja, existirão ainda muitas formas de se pensar a identidade e cada
uma delas caberá na escrita contemporânea, pois essas sugerem a possibilidade de
uma “arte final” como em um mosaico; ao termina-lo, cada peça será relevante
para o seu acabamento; sua forma final. Essa identidade nos apresentam a
necessidade do sujeito por reconhecer os seus pares e, principalmente, por se
sentir representado na diferença.
Quando Martha Medeiros tematiza aspectos comuns ao leitor, esse se
reconhece nas experiências desenvolvidas na narrativa, daí a possibilidade de criar
a falsa impressão de dominar os lugares transitados no texto. Ao passo que a
narrativa vai caminhando, o leitor também realiza um trânsito identitário, que faz
com que, ao citar uma cidade ou um país por onde esse leitor tenha
Também é possível observar as descrições de Homi Bhabha, em seu
livro O local da Cultura (2007), quando este apresenta a identidade como uma
espécie de rastro, deixando um questionamento que a colocaria apenas como uma
representação, ou seja, como uma forma de se apresentar a si mesmo, sem
necessariamente falar de si. Com isso há uma aquisição por intermédio da cultura
e essa aquisição também contribui para uma mudança, pois esse sujeito é
constantemente submetido a novas experiências.
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Por outro lado, essas experiências de trânsito na identidade cultural
também se agregam a outras identidades que se movimentam em torno desse
sujeito, fazendo com que se constitua a partir de um novo processo de formação
identitária, abrindo caminhos para o encontro de várias construções que
desembocam em conceitos de identidades culturais móveis.
Cada vez que o encontro com a identidade ocorre no ponto em
que algo extrapola o enquadramento da imagem, ele escapa à
vista, esvazia o eu como lugar da identidade e da autonomia e
- o que é mais importante - deixa um rastro resistente, uma
mancha do sujeito, um signo de resistência. Já não estamos
diante de um problema ontológico do ser, mas de uma
estratégia discursiva do momento da interrogação, um
momento em que a demanda pela identificação torna-se,
primariamente, uma reação a outras questões de significação e
desejo, cultura e política. (BHABHA, 2007, p. 72)
Então, a identidade se torna uma reação de significação de trânsitos
que caminham entre a cultura e a formação individual de um sujeito, reforçando a
ideia de que, toda identidade se modifica, e, ao menor contato com outras
identidades, elas se juntam para trazer uma reconfiguração. Desse modo, o contato
de um leitor com a crônica faz com que haja uma troca (simbólica) onde o texto fica
carregado das experiências do leitor e esse leitor por sua vez, fica carregado
significação da crônica.
POR UMA LITERATURA DE TRÂNSITOS
É fato que ainda serão levantados inúmeros questionamentos com
relação a crônica e sua natureza literária. O fato é que a crônica se presta aos
desafios que a literatura de trânsito apresenta, tendo em vista esses desafios
exigem informação e comprometimento com o leitor para se alcançar um texto
descrito na emergência; no agora.
A crônica está interessada nessa emergência contemporânea. Seu
objetivo principal é captar a singularidade desse momento e transmiti-las ao seu
leitor de maneira natural e eficaz, deixando-o participar dessa construção e dessa
troca. Com essa articulação, a crônica se presta muito bem ao exemplo desta
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crônica, visto que ela se coloca no lugar da experiência, ou melhor, da
experimentação.
Essa crônica, além de se prestar a uma tradução do contemporâneo,
ela ainda concede ao leitor a possibilidade de interpretar os acontecimentos
humanos de maneira divertida e bem humorada, pois uma das suas características
é também a leveza e compreensão imediata dos acontecimentos. Muitas vezes é
preciso estar atento ao contexto em que a crônica está inserida, no entanto, isso
não impede que o leitor se torne participante e contribuinte de sua articulação,
pois é esse leitor que fará com que o texto transite entre a realidade e a ficção, já
que ele mesmo tem a capacidade de interpelar a escrita e reconstruir o seu estado
inicial.
O QUE É E O QUE PARECE SER: A REPRESENTAÇÃO DOS TRÂNSITOS NA CRÔNICA
DE MARTHA MEDEIROS
Martha Medeiros é gaúcha de Porto Alegre, onde reside. Abandonou
a carreira de redatora para se dedicar a Poesia e a crônica. Colaboradora de textos
jornalísticos, escreve também para Revistas e mantêm textos semanais em jornais
impressos, como o JORNAL ZERO HORA, de Porto Alegre e o jornal O GLOBO, no Rio
de Janeiro. As crônicas analisadas neste estudo, foram publicadas na Revista O
GLOBO, mas suas crônicas podem ser encontradas em mais de 10 (dez) livros
publicados ao longo da carreira de 20 anos como cronista.
Recentemente, por ocasião da comemoração desses 20 anos como
cronista, publicou três coletâneas que representam a revitação de sua trajetória.
Em entrevistas a cronista declarou que se encontrou na crônica e que não
imaginava que pudesse dar certo nessa escrita. Em todas as suas crônicas ela usa
um tom de diálogo com o leitor, como se o narrador fosse um amigo, uma pessoa
próxima, contando uma história e refletindo sobre ela. A autora expõe suas
opiniões acerca de várias situações, na maioria das vezes, embasada em histórias
reais, de temas sobre as relações humanas, envolvendo amor, sexo, família, entre
outros, sem medo de demonstrar seus medos e suas experiências pessoais.
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Martha Medeiros tem um traço de pessoalidade tão forte em suas
crônicas, que a observação de sua escrita se presta bem a análise desse texto. Há
uma presença efetiva de trânsitos e deslocamentos produzidos no interior de sua
narrativa; há uma transposição que vai do real ao ficcional, conduzindo o leitor a
uma viagem (metafórica) de conhecimentos.
Na primeira crônica analisada, intitulada “Sem alívio”, é possível
observar que a tematização uma vez mais se volta para a pessoalidade. Nesse texto
Martha Medeiros conta para o seu leitor a experiência de ler o seu horóscopo em
um jornal, e se sentir com cinco anos, “recebendo um puxão de orelhas”. Ela diz:
Me senti uma garotinha de cinco anos ao ler esse puxão de
orelhas que havia sido direcionado a mim. Em três linhas eu
havia sido chamada de birrenta e burra. Tranquei o choro.
Mas logo me dei conta de que eu não tinha mais cinco anos e
eu não deveria levar a reprimida tão a sério, afinal, foi
direcionada mim, mas também a outros tantos, e por alguém
que nem me conhece direito. Resolvi achar graça e tocar minha
vida sem me perturbar com questões menores. (MEDEIROS,
2014, Revista O GLOBO, p. 14)
É interessante observar que a escrita de Martha Medeiros arrebata o
leitor de uma maneira fascinante, sem deixar possibilidade de ele se sentir de fora
do contexto. É muito pessoal. É muito introspectivo. A ideia é fazer com que esse
leitor sorria com as alegrias e também chore com as tristezas desenhadas nas linhas
de sua crônica.
Em um outro momento, ainda nessa crônica, a cronista apresenta uma
certa indignação com relação a postura do sujeito que escreveu o horóscopo,
ressaltando que não obstante fosse um homem, usava um ponto de exclamação,
citando um trecho do tal horóscopo que ela estava lendo. “Nada que for feito
intempestivamente ajudará a resolver coisa alguma. Certamente, não será fácil
conter os impulsos, mas se você não se empenhar nesse sentido, sua alma não
merecerá ser chamada de humana. Contenha-se!” (p.14). Mas como seria possível
acreditar na veracidade deste horóscopo, levando em consideração que se trata de
uma crônica de jornal?
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Há uma fronteira muito discreta entre a realidade e a ficção no texto.
Essa fronteira não tem a intensão de dizer qual o lado é correto e nem mesmo
pretende identificar o que fica de que lado. Sua verdadeira intencionalidade é
mostrar que há um trânsito realizado no texto onde as duas possibilidades
coexistem simultaneamente. E, a medida em que o texto caminha, o leitor transita
por entre suas linhas, recriando as histórias e vivenciando-a, como se de fato fosse
capaz de dominá-la. De apreendê-la.
A segunda crônica analisada intitula-se “Levantando voo”. Nesta, a
cronista compartilha com o leitor a despedida de sua filha que está viajando para o
exterior, em uma viagem que, segundo ela, será por tempo indeterminado. Além
de fazer a abordagem sobre como se dá essa despedida, ela ainda relata a
experiência, que também pertence a tantos outros pais que já vivenciaram essa
situação bem de perto. Ela escreve:
Ontem minha filha embarcou num avião para uma viagem ao
exterior sem data de retorno. Está realizando um sonho antigo,
mas que se tornou premente nos últimos meses. Formada,
inquieta, faminta por novas experiências de vida, acumulou
salários, vendeu alguns pertences, passou madrugadas
pesquisando as menores tarifas de passagem e hospedagem,
arrumou a mala e se foi. (REVISTA O GLOBO, 2015, p. 8)
Ao ler esse breve resumo da história que será contada nas linhas
seguintes da crônica, o leitor já tem uma identificação. Mantendo o mesmo tom
pessoal da crônica anterior, Martha Medeiros agora começa a trazer o leitor para
um momento de tristeza, misturado com doses homeopáticas de alegrias, que se
confundem entre o desejo de ver a filha realizar um sonho e ao mesmo tempo não
querer perde-la para o mundo. “Muitos pais tem vivido essa ruptura: ver seus filhos
partirem em busca de mais conhecimento e amadurecimento, jovens que precisam
abandonar o ninho para um voo solo [...]”.
O tom de realidade é importante na concepção dessa narrativa. É ele
que proporciona a falsa impressão do domínio do texto que já foi mencionado mais
acima. Essa concepção se realiza na linguagem rápida da crônica, pois é ela que
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desloca essa realidade do cotidiano, lançando-a para dentro do texto. E ainda,
tornando o texto criativo, irreverente e espontâneo. A crônica continua:
O mundo deu uma encolhida. Pelo WhatsApp ela poderá postar
o que está almoçando, pelo Skype verei seu novo corte de
cabelo, pelo Face irei acompanhar suas fotos e bateremos
papos digitais, coisa, aliás, que absurdamente já fizemos
estando ela no seu quarto e eu na sala. Então o que significa,
mesmo, distância? (ibidem)
Agora, o que se observa é uma série de elementos do mundo tido
como real, para dentro do texto. Elementos esses que estão presentes no cotidiano
do leitor e que fazem parte ativamente de suas vidas. Através dessa interferência,
Martha Medeiros se coloca em uma linha harmoniosa que liga o autor, o texto, o
narrador e as experiências ficcionalizadas nas crônicas. É quase uma autobiografia.
Com um passo atrevido, arrisca-se crônica autobiográfica, que pode ser definida
como uma estratégia contemporânea de flertar com a realidade do leitor, com o
objetivo de convencê-lo a buscar no texto, respostas para suas várias perguntas.
Com isso, a crônica de Martha Medeiros se presta bem a essa análise,
visto que ela carrega comprovações desse trânsito, discutido neste texto, bem
como, essa pessoalidade, possível a um texto de caráter autobiográfico; apresenta
ainda traços de identidade e de identificação, tanto no texto, quando nas
experiências do narrador-personagem. E ainda, as referencialidades que estão o
tempo inteiro presentes na contemporaneidade, fazendo com que haja a
comprovação da experiência ficcional e endossando a veracidade da crônica
“inventada.
Não posso ficar triste, mesmo com o coração apertado. É da
vida este chamado, que é atendido por aqueles que tem
coragem de partir e mais ainda de chegar. De chegar neles
mesmos, que é onde cada um, não importa a via escolhida,
confirma a razão da própria existência. (ibidem)
Sendo assim, há uma grande troca de experiências no caminho
percorrido pela crônica desde a sua elaboração até a sua realização como texto
literário. Os efeitos dessa troca são observados ao longo da narrativa e se confirma
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no leitor, que é o ponto final desse texto. Desse modo, todo trânsito realizado no
texto é também realizado na leitura e essa via de mão dupla confirma a legitimidade
desse trânsito e a sua eficácia diante de temáticas tão diretas, mas tão delicadas.
REFERÊNCIAS
BARBERO, Jesus Martin. Dislocaciones del tiempo y nuevas topografias de la
memória. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de; RESENDE, Beatriz (Orgs.). Artelatina:
cultura, globalização e identidades cosmopolitas. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000,
pp. 139-169.
BAUMAN, Zygmunt. Identidad. Buenos Aires: Losada, 2007.
BHABA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG Editora, 2005.
MEDEIROS, Martha. Sem alívio. REVISTA O GLOBO, 2014.
MEDEIROS, Martha. Levantando voo. REVISTA O GLOBO, 2015.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:
Companhia da Letras, 1996.
SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 1985.
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POR UMA LITERATURA DE TRÂNSITOS Débora Chaves (IFBA)