Revista Adusp Outubro 2004 NA CRIAÇÃO DO DCE LIVRE, UMA DERROTA DA DITADURA José Chrispiniano Jornalista Acervo Iconographia Passeata na USP, em 1977: o movimento estudantil em ação Em maio de 1976, o movimento estudantil da USP supera inúmeros obstáculos, cria o Diretório Central dos EstudantesLivre Alexandre Vannuchi Leme e elege os membros da sua gestão inaugural, conquistando o que um agente da repressão classificou como “sua primeira vitória neste ano”. Mais de 12 mil alunos votaram, legitimando assim o surgimento do DCE-Livre 69 E Outubro 2004 Revista Adusp m 31 de maio de 1976 cessidade de uma entidade central Diretório Central dos Estudantes a Aesi-USP comentou era cada vez maior. (...) primeiro passo concreto do da seguinte forma o Na escalada da reorganização Movimento Estudantil em sua surgimento do Di- estudantil, o Dops registra também reorganização política, cujas etaretório Central dos os movimentos de várias escolas pas seguintes serão o Diretório Estudantes: “O DCE em 1975, como nas Ciências So- Metropolitano Estudantil, União é uma entidade espúria, que ora ciais e na Faculdade de Arquitetu- Estadual dos Estudantes e finalsurge como órgão que reivindica a ra e Urbanismo (FAU), para a re- mente, União Nacional dos Esturepresentação de toda a classe dis- tomada dos bares pelos estudantes dantes, entidade de tão triste mecente da USP”. Nome, RG e ende- e controle dos preços no campus mória”. E conclui: “Eis portanto, reço dos membros do DCE foram pela Coordenadoria de Assistência Sr. Diretor Geral de Polícia, mais repassados a todos os órgãos de Social (Coseas). um passo na escalada da subversegurança pela Aesi, tão logo a Com a palavra um agente anô- são no meio estudantil.” entidade foi criada e realizada sua nimo do Dops, no dia 28 de março O passo não foi desprovido de primeira eleição. de 1976: “O movimento estudan- dificuldades. Uma assembléia na O processo de organização til, dirigido pelo Partido Comunis- FAU no dia 26 de março deterda “entidade espúria” é alvo de ta do Brasil e apoiado por outros minou a eleição para os dias 11 e atenção da Polícia Fede12 de maio, em proposta ral, que reúne extenso do então estudante Júlio O maior golpe contra a criação material, e do Dops, que Turra Filho, da FEA. aponta a entidade como Havia discussões sobre do DCE foi o roubo de 40 urnas ilegal, por contrariar o o formato da entidade, (quase 8 mil votos) após a eleição, Decreto 228, que definia como deveriam ser as as regras da representaem 12 de maio. Imputado ao Dops, eleições e se ela interção estudantil. Por essa feria na autonomia dos o roubo forçou a realização razão o DCE declara-se centros acadêmicos. O “livre”: por não estar suXI de Agosto, da Faculde nova eleição, em 18 de maio bordinado à universidade dade de Direito, foi concomo as entidades “letra a criação do DCE, gais” da época. setores de esquerda, caminha e se expressou na imprensa em A recepção aos calouros em para sua primeira vitória neste artigo de Marco Antonio Tigrão, 1976 já fora organizada como ano de 1976, com a efetivação de presidente daquele CA. Vários calourada unificada pela Comis- assembléias visando a formação CAs responderam apoiando a sua são Universitária, com o tema da do Diretório Central Estudantil formação, entre os quais os da reorganização de uma entidade da Universidade de São Paulo. História, da Física, da FEA, da central que articulasse as lutas Apontada como entidade transi- Medicina, da Filosofia e o Grêestudantis. Após a greve da ECA, tória pelo seus próprios organiza- mio Politécnico. a mobilização em protesto contra dores, a Comissão Universitária Mas o maior golpe contra a o assassinato de Vladimir Herzog foi a responsável pela exploração formação do DCE foi o roubo das e a greve ocorrida no campus de da morte de Vladimir Herzog em urnas que guardavam os votos da Ribeirão Preto — contra sua se- fins do ano passado.” eleição, numa madrugada, quando paração da USP e transformação Mais adiante, o agente escla- estavam dentro da FEA. Segundo em uma nova universidade, defen- rece que a Comissão Universi- o jornal O Estado de S. Paulo (14 dida, segundo os estudantes, por tária é “apresentada, em toda a de maio), foram roubadas 40 ursegmentos da elite local —, a ne- propaganda, como antecessora do nas, com 7.910 votos. 70 Revista Adusp AS Outubro 2004 LEIS DA REPRESSÃO AOS ESTUDANTES Estado do Paraná/Agência Estado Durante os vinte anos da Ditadura, uma série de leis regulou as atividades estudantis. Elas eram combatidas e, na medida do possível, descumpridas pelos estudantes. As principais: Lei 4.464 (9/11/64) - Conhecida como lei Suplicy de Lacerda, nome do ministro da Educação da época. Definia as entidades permitidas, suas atribuições e até como se daria a eleição. Autorizava a existência do Diretório Acadêmico (DA), do Diretório Central de Estudantes (DCE), do Diretório Estadual de Estudantes (DEE) e do Diretório Nacional de Estudantes (DNE). Os DAs e DCEs não podiam ter atuação político-partidária e deveriam indicar os representantes discentes dos órgãos colegiados. Pela lei, o voto nos DAs era obrigatório, sob pena de proibição de fazer exames parciais ou finais. Na USP, a maioria dos CAs não se enquadrou na lei Suplicy. Em alguns casos, como na Faculdade de Direito, o CA e o DA coexistiam, mas o CA tinha mais importância política e era reconhecido, na prática, pelos diretores da escola. Em outras uni- dades, os estudantes driblavam a proibição de montar CAs, criando os “centros de estudos”, como o Centro de Estudos de Física e Matemática (Cefisma). Decreto-lei 477 (26/2/69) - O chamado “AI-5 da educação”. Tratava das infrações cometidas por professores, alunos ou funcionários de estabelecimentos de ensino públicos ou privados. O decreto considerava infração apoiar qualquer movimento que paralisasse atividades escolares; participar de qualquer movimento “subversivo”, como passeatas não autorizadas; produzir ou distribuir material “subversivo”; usar dependência da escola para “fins de subversão”. As punições previstas pelo 477 eram demissão para professores e funcionários e expulsão para estudantes. Decreto-lei 228 (28/2/67) - Revogou a lei 4.464 e reformulou a representação estudantil. Extinguiu os DEEs e o DNE, que nunca existiram na prática. Manteve a interferência nas entidades, definindo até como seria a sua manutenção financeira. Os Decretos 477 e 228 foram revogados em 1979, pela lei 6.680. Esta lei previa menor grau de interferência: não determinava, por exemplo, as regras da eleição. Entretanto, deixava de reconhecer os CAs, as uniões estaduais de estudantes (UEEs) e a UNE. Editada no ano do congresso de reconstrução da UNE, definia a extinção dos DCEs que se ligassem a entidades estudantis fora da universidade. Apenas em 31/10/85 foi sancionada a lei 7.395, que legalizou os CAs e reconheceu a UNE como entidade representativa do conjunto dos estudantes. Ela permite que as entidades estudantis definam seu funcionamento. O roubo forçou a realização de novas eleições, no dia 18 de maio. Dessa vez, para evitar nova subtração de urnas, realizou-se uma noite de vigília, que mesclou festa, debates e eventos culturais. Estudantes de Ciências Sociais apresentaram a peça “Eu sei quem roubou as urnas”, que sugeria que haviam sido as forças do Dops. Foram exibidos os filmes “Zezéro”, de Ozualdo Candeias, sobre a história de um operário, e “Brancaleone nas Cruzadas”, de Mário Monicelli. Na primeira eleição, de acordo com relatório do Dops, votaram 12.253 alunos, número que a imprensa da época considerou “baixo”, diante do total de alunos da universidade. Na verdade, foi um comparecimento extraordinário Suplicy de Lacerda, ministro da Educação que “batizou” a Lei 4.464 71 Revista Adusp Outubro 2004 numa eleição estudantil (muito superior, por exemplo, ao número de votantes nas eleições do DCE realizadas a partir de 1990, apesar do crescimento do corpo discente da USP). A disputa eleitoral foi acirrada. Os primeiros lugares ficariam entre as três tendências que dominariam o movimento estudantil nos anos seguintes: Refazendo, com 4.362 votos, e que comandou o DCE nas suas duas primeiras gestões; Liberdade e Luta (Libelu), que obteve 2.955 votos, e que venceria a terceira eleição para o DCE, em 1978; e Caminhando, que conseguiu 1.497 votos. Os primeiros anos do DCE não foram fáceis. Todas as diretorias até 1979 tiveram o nome, endereço e RG de todos os seus membros registrados pela polícia, fornecidos pela Aesi. O movimento estudantil foi monitorado pelo Dops até 1982. Procurado pela Revista Adusp, o hoje senador Romeu Tuma (PFL), que dirigia esse órgão policial, não quis se pronunciar sobre o assunto. O II Exército investigou gráficas nas quais o DCE imprimia panfletos. O SNI pediu, em 1978, vigilância sobre um curso de férias oferecido pela entidade, cujo tema era o golpe de 1964. Um auto de investigação foi aberto devido à distribuição de panfletos para vestibulandos, contrários à divisão do vestibular da Fuvest em duas fases e favoráveis ao aumento do número de vagas na USP — e conseqüentemente cinco estudantes foram interrogados. Dois alunos do campus de Bauru foram detidos, interrogados e REFORMA DE 1968 NA USP CONSOLIDOU LÓGICA DA SEPARAÇÃO Marcy Picanço Jornalista A reforma ocorrida na USP em 1968 dissolveu a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências (FFLC) e criou os institutos de ciência básica. Os cursos abrigados na rua Maria Antonia foram transferidos para a Cidade Universitária. O professor Franklin Leopoldo da Silva, da FFLCH, então estudante, estava na metade do curso na FFLC quando isto ocorreu Por que os institutos de ciência básica se separaram da FFLC? A separação ocorreu num contexto internacional de desenvolvimento das ciências básicas após a Segunda Guerra Mundial. Esse crescimento levou as áreas a se tornarem independentes como campos de saber universitário. Isso repercutiu no Brasil e resultou na formação dos institutos durante a reforma univer- 72 sitária. Além disso, a FFLC estava grande demais, com muitos alunos e uma administração muito complexa. Mas também havia um motivo político. Na época, já se percebia com clareza que as humanidades, pela situação política do país, não teriam um futuro tranqüilo. As outras ciências não queriam compartilhar desse destino que seria meio tumultuado. O motivo político era explicitado nas discussões da reforma? Não, mas as discussões levavam a esse tipo de divisão. Alguns achavam importante permanecer junto, por causa da relação interdisciplinar entre as ciências humanas, exatas e naturais. Outros, mais pragmáticos, achavam que o desenvolvimento das ciências demandava uma organização au- Revista Adusp Outubro 2004 Reprodução: Daniel Garcia Turra, líder estudantil: fichado fichados pelo “crime” de carregar panfletos da campanha da Libelu. Por outro lado, os arquivos do Dops registram que um certo Movimento Acadêmico Renovado (M.A.R.) armou “fogueiras de material eleitoral” no pátio da Faculdade São Francisco. Pode-se vislumbrar um pouco da mentalidade policial no seguinte trecho de documento de 1976, de autoria de Sílvio Pereira Machado, um dos delegados do Dops: “os dirigentes do DCE voltarão a encontrar motivos para a agitação, contestação e até mes- tônoma, ágil e politicamente desvinculada dos problemas que se colocavam para as humanidades. Os argumentos que apareciam eram administrativos e ligados à questão de verba. Os institutos que necessitavam de grandes investimentos em laboratórios e equipamentos viam, na formação de institutos separados, a possibilidade de contemplar essa demanda. Qual era a opinião dos estudantes sobre a separação? Em geral, não concordavam, pois a separação representava um enfraquecimento político. Na época, eu também era contra. Via na separação uma perda para o ideal formativo da USP e um passo para o retorno tecnicista. Como foi a mudança para o campus? Mudamos em regime de urgência depois da invasão. Mas foi quase simbólico, não havia condições de estudar. Cederam algumas salas do prédio da História, que já estava pronto, mas era muita gente. Os barracões foram construídos nas férias. Foram para lá os cursos que sobraram: Letras, Filosofia, Psicologia e Sociais. Como a separação em institutos e a mudança para a Cidade Universitária afetou o movimento estudantil? O primeiro prejuízo foi a perda da visibilidade urbana. A Maria Antonia era no centro e a Cidade Universitária era quase na zona rural. Mas a distância não diminuiu a vigilância e a repressão. A separação em vários prédios também foi problemática. Nesse caso, o problema não é a separação física, e sim a assimilação de uma mentalidade de separação. Na minha geração, a separação não foi assimilada, buscávamos o convívio, mas nas gerações seguintes isso aconteceu. A separação também afetou a organização. Na FFLC, o Grêmio mo subversão, como a ocupação violenta e arbitrária do Centro de Vivência para a instalação da sede desta entidade espúria, que representa não o corpo discente da Universidade de São Paulo, mas uma insignificante minoria de estudantes, adeptos e inocentes úteis dos interesses marxistas em nossa terra.” O Dops foi extinto em 1983. O DCE-Livre Alexandre Vannuchi Leme da USP, instalado no Centro de Vivência e independente da opinião do delegado Machado, existe até hoje. agregava todos os centros acadêmicos e era muito poderoso politicamente. A direção do Grêmio significava, praticamente, a direção do movimento em São Paulo. No campus, cada Instituto tinha seu CA e as alianças dependiam de ligações pessoais. Com isso, ficou mais difícil dar direção ao movimento. Como o movimento estudantil lidou com a separação? Em 1968, por causa do AI-5, as lideranças foram dizimadas, então houve um refluxo. Nos dois anos que vivi, como aluno, no campus, toda a energia era canalizada para a reorganização. Hoje, como você avalia a formação dos institutos? Era algo inevitável. Do ponto de vista histórico, econômico e político, o antigo formato não poderia ser mantido. As ciências tinham que se separar para cumprir as tarefas políticas e da pesquisa científica. 73