Entrevista – 14ª Conferência Nacional de Saúde
Carlos Duarte
Rev. Eletrônica Portas, v.4, n.4, p.69-85, jun.2011
14ª Conferência Nacional de Saúde
A Revista Eletrônica Portas entrevistou Carlos Duarte, ativista no movimento
social de luta contra HIV/Aids, ex-Conselheiro Nacional de Saúde e, atualmente,
Conselheiro no Conselho Estadual de Saúde de Porto Alegre
Rev. Elet. Portas: Inicialmente, gostaria que você se apresentasse.
Carlos Duarte: Bem! De formação, sou arquiteto. Nunca lidei muito com a área da saúde, mas em
96 entrei para o Gapa Rio Grande do Sul, em seguida me pediram para acompanhar o Conselho de
Saúde. Isso em 97. Comecei e nunca mais parei, até hoje. Fui do Conselho Estadual de Saúde
(CES), de 97 até 2001. Em 2001 saí do CES. Fui para o Conselho Nacional de Saúde, para
substituir o Mário Scheffer do Grupo Pela Vidda de São Paulo, que era o conselheiro nacional.
Primeiro fiquei um ano na suplência, depois passei para a titularidade.
Rev. Elet. Portas: Pelo Movimento de Aids, sendo uma vaga dos usuários?
Carlos Duarte: Dos usuários portadores de patologias, que é onde o Movimento Aids se enquadra.
Fiquei até final de 2005, ano em que fui para o Programa Nacional de DST/Aids. Fiquei um ano no
Programa Nacional, até novembro de 2006. Voltei para Porto Alegre, daí me convidaram para
voltar para o CES. Voltei para o Gapa e para o CES. Fiz especialização em saúde pública, na Escola
de Saúde Pública da Faculdade de Medicina da UFRGS. Quando terminei a especialização, fui
convidado para concorrer à Presidência do CES. Entre 2008 e 2010, fiquei na Presidência. Hoje
estou na Mesa Diretora do CES do Rio Grande do Sul.
Rev. Elet. Portas: O que faz a Mesa Diretora?
Carlos Duarte: A Mesa Diretora coordena o Conselho. É uma mesa paritária com quatro usuários,
dois trabalhadores e dois gestores, que coordena as atividades do Conselho, discute as pautas,
organiza as Comissões... Por exemplo, os assuntos que vêm para o Conselho muitas vezes não
chegam com tempo de irem para a plenária, que é de 15 em 15 dias, então a gente discute ali, faz
alguns encaminhamentos, se tem alguma coisa que tem de ser feita rapidamente a gente faz ad
referendum e leva para a plenária seguinte. A Mesa se reúne uma vez por semana, mas está quase
que a semana inteira ‘reunida’, qualquer coisa telefonam e a gente corre para lá. Entre os oito
integrantes, o Presidente e o Vice-Presidente fazem parte da Mesa e os outros são Coordenadores do
Conselho e participam junto de toda a estrutura do Conselho.
Rev. Elet. Portas: Qual é a estrutura do Conselho?
Carlos Duarte: Há a plenária do Conselho, que é o órgão máximo. O lugar deliberativo do
Conselho é a plenária, que se reúne a cada quinze dias. São 52 conselheiros, sendo 26 usuários. Ele
não cumpre com a Resolução 333 do Conselho Nacional de Saúde.
Rev. Elet. Portas: Por quê?
Carlos Duarte: Porque o CES foi formado em 94 e na Lei do Conselho constam todas as entidades
que o compõem. Para mudar as entidades, recompor e tudo mais, nós temos de mudar a Lei. Não é
o regimento, é mudar a Lei, porque as entidades estão nominadas na Lei. Na época, era o que se
achava mais correto, porque aí o gestor não poderia mudar o Conselho a cada gestão.
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Carlos Duarte
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Rev. Elet. Portas: Então, era a maneira de garantir que o gestor não iria intervir?
Carlos Duarte: Intervir... Só que agora, com outro entendimento, se vê que as entidades não
podem estar nominadas em uma lei, porque engessa o Conselho. Então, se há entidades que não
querem participar do Conselho ou se tu quer alterar alguma coisa, até fazer eleição para o Conselho,
tu não consegue porque elas estão nominadas na Lei. Mudar a Lei do Conselho é uma coisa que nós
estamos tentando há muitos anos, só que a Assembleia Legislativa nem sempre é favorável a esse
tipo de ação. Então, a gente tem medo e muitas vezes já foi aconselhado pelos próprios deputados a
não mexer na Lei, porque ela pode sair muito pior do que está hoje.
Rev. Elet. Portas: Não é possível tentar revogar a Lei e aí ficaria valendo a Resolução 333?
Carlos Duarte: Não porque a 333 não determina coisas da lei, ela só determina a composição [dos
Conselhos]. Agora, aquelas coisas assim ligadas ao funcionamento do Conselho, diárias, recursos
próprios, estrutura, isso tudo está na Lei de cada Conselho. Nesse último ano, a gente está
conversando mais efetivamente com o Presidente da Assembleia e com os deputados e eles acham
que agora dá para a gente mudar o Conselho sem correr muitos riscos. Na verdade, a gente vai ter
que correr os riscos e tentar mudar a Lei.
Rev. Elet. Portas: O diálogo com os parlamentares lhes propicia perceber qual o melhor momento
para poder intervir e de fato tentar alterar...
Carlos Duarte: Sim! Mas, a gente vem há uns três ou quatro anos, pelo menos, tentando negociar
isso. Todo Conselho tem uma lei de criação. O Conselho Nacional é o único que não tem. Para
repassar recursos Fundo a Fundo, do Fundo Nacional para os Fundos Municipais de Saúde, por
exemplo, a lei diz que tem de ter a Lei de criação dos Conselhos. Então, tu tem de apresentar a Lei.
Rev. Elet. Portas: Então, não seria uma Portaria, é preciso uma Lei?
Carlos Duarte: Não! Tem de ser uma Lei. O único que tem Portaria é o Conselho Nacional de
Saúde. E a gente já tentou mudar isso muitas vezes e não conseguiu.
Rev. Elet. Portas: A diferença aqui no Rio Grande do Sul é que quando fizeram essa Lei fixaram
toda a composição do CES?
Carlos Duarte: Fixaram. O que é horrível!
Rev. Elet. Portas: É horrível porque fica cargo vitalício.
Carlos Duarte: Fica cargo vitalício e tem entidades que não querem participar do Conselho e estão
nominadas e as que querem entrar, não podem. Está contra a Lei que temos. Também não posso
pagar diária para quem vem do interior, não posso botar as pessoas para viajar. Isso acaba
complicando o funcionamento.
Rev. Elet. Portas: Que coisa! Bom, nessa sua experiência, antes mesmo de ser Presidente, mas
Conselheiro no CES e no Conselho Nacional, o que você diria que diferencia a atuação dos
Conselhos nesse âmbito?
Carlos Duarte: O Conselho Nacional de Saúde determina políticas de saúde para o Brasil inteiro.
Como é que essas políticas vão ser aplicadas em cada estado? De acordo com suas peculiaridades e
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características e o CES deveria fazer isso. Que é a mesma coisa para os CMS. É uma questão
crescente. Na verdade, pela Lei do SUS deveria ser crescente, mas a gente acaba trabalhando de
uma forma decrescente. O Conselho Nacional trata de uma coisa muito mais ampla e conforme tu
vai baixando de gestão, tu vai chegando mais perto daquilo que é propriamente a política de saúde.
A execução dessa política, porque enquanto está no nível nacional, tu está no nível teórico. A esfera
federal praticamente não executa nada.
Rev. Elet. Portas: Ela elabora diretrizes.
Carlos Duarte: Exatamente. Ela determina diretrizes, diz mais ou menos como as coisas devem se
comportar. O estado determina como vai poder gerir aquilo e como vai fazer para que os municípios
não sejam isolados, senão nós teríamos cada município fazendo aquela política independente do
outro e vários sistemas de saúde municipais e não um intercalado. Então, na verdade, o que a gestão
estadual deveria fazer era regular a regionalização, as referências e toda essa estrutura do estado. O
estado hoje está meio perdido nisso. O Conselho tenta cobrar e não consegue, porque o próprio
estado não sabe bem qual a sua função. Então, hoje se teria de redefinir as funções de cada um dos
entes, porque no SUS se diz que a gestão é...
Rev. Elet. Portas: Compartilhada.
Carlos Duarte: Compartilhada, mas tem um termo... Ela é única em cada esfera de gestão. Quer
dizer que quem manda no município é o gestor municipal. Então, isso dificulta tu ter uma
articulação com o gestor vizinho e, principalmente, com o gestor estadual, porque cada um diz
assim: ‘Eu mando na saúde do meu local!’ Ok, tu manda, mas naquilo que lhe compete. Na atenção
básica, digamos. Onde tu precisa de uma atenção de média complexidade, de alta complexidade e tu
não consegue ter no município, tu vai ter de te coordenar com os outros municípios ou com o estado
para isso. E aí entra a ação dos Conselhos, em diferentes níveis. Não sei se ficou claro.
Rev. Elet. Portas: Ficou! Eu gostaria que você falasse um pouco mais desse movimento que é
descendente quando deveria ser ao contrário, pensando mais na relação do Nacional com o
Estadual, primeiro.
Carlos Duarte: Por exemplo, a Lei do SUS fala que as políticas são ascendentes. Por exemplo, a
Conferência de Saúde. Ela vai determinar, teoricamente, as diretrizes que vão compor o Plano
Nacional de Saúde, que vai vir com base nas decisões das Conferências Municipais. Então, o
município vai dizer assim: ‘Bem, aqui no nosso município a atenção...’. Por exemplo, o município
de Veranópolis tem muito idoso, tem uma faixa etária muito alta, então tem de ter uma política,
porque a maior faixa de idade da população brasileira está concentrada em Veranópolis. Então tu
tem de ter uma política de atenção ao idoso diferenciada. Só que vem lá de cima a determinação de
que a política é para crianças e adolescentes. O município para receber recursos acaba investindo
mais em crianças e adolescentes. A política passa a ser descendente. Ela estimula de cima para
baixo.
Rev. Elet. Portas: O movimento de baixo para cima quando chega no Nacional já foi pactuado em
todos os níveis – do município para o estado, do estado para o nacional – e você perde o que quer
garantir, que é a diferença entre os municípios.
Carlos Duarte: Exatamente. Há uma questão muito interessante que está se discutindo agora que é
implantar mais a regionalização, mas ainda se fica naquela coisa da fronteira geográfica. De repente
o município de maior longevidade é Veranópolis e o segundo, vou chutar porque não sei, digamos
que seja Pelotas. Um fica completamente distante do outro, mas a regionalização entre esses dois
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pode ser feita, porque ela não tem de ser necessariamente geográfica, ela pode ser...
Rev. Elet. Portas: Temática.
Carlos Duarte: Temática. Então, aqui nós temos dois problemas que são iguais: A longevidade da
população. Só que isso tem de vir de baixo para quando chegar no Nacional tu discutir: ‘Bem, qual
é a política que nós vamos ter para o idoso no Brasil? Sendo que os municípios tais, tais e tais vão
ter prioridade, porque têm uma população maior de idosos.’ Só que isso não acontece. O que
acontece é que lá decidem e é igual para todo mundo. Então, é o PAB Fixo ou o PAB Variado, é
aquele recurso que é por população, por cabeças e não por interesses, por necessidades. Acaba que a
política é imposta por cima e o gestor para não perder o recurso, digamos do PAB Variado, ele
acaba incorporando uma política que não é necessariamente uma política que lhe caberia.
Rev. Elet. Portas: E dependendo do município, ele não tem outro recurso.
Carlos Duarte: A não ser esse!
Rev. Elet. Portas: Apesar de que se diz que depois da EC-29, quem investe mais em saúde hoje são
os municípios.
Carlos Duarte: Sim. Quem investe mais são os municípios. Aqui no estado, a média dos
municípios é em torno de 25% de investimento em saúde, quando o mínimo seria 15%.
Rev. Elet. Portas: Exato.
Carlos Duarte: Eles investem 25%, mas por que eles investem 25%? O estado deveria investir
12%, o estado aqui investe 4%. Então, se tu não botar mais no teu município, para quem o habitante
vai reclamar? Para ti que é do município. Dificilmente ele vai reclamar do estado, que é um ente
que já não é palpável. O município você encontra na rua, sabe onde o Secretário de Saúde mora e tu
bate na casa dele. Federal então, muito menos. Então, fica difícil. Agora, o município investe mais,
mas ele investe mais de suas receitas próprias, entretanto há municípios que não têm receita própria.
Daí ele recebe do fundo de participação dos outros municípios. Ele recebe do PAB Fixo, que é
aquele valor dividido pela população. Mil habitantes recebe 12 reais por habitante, ou seja, recebe
12 mil reais por mês. Então, isso ajuda a população? Ajuda, mas não resolve o problema. Um
município desses, ele tem uma renda pequena e vai investir às vezes 30% de tudo apenas na atenção
básica.
Rev. Elet. Portas: Isso era o que eu ia perguntar: O que cada município considera investir em
saúde? Para que lado ele está olhando?
Carlos Duarte: Exatamente. Daí tem várias outras coisas. O que um município com mil habitantes
consegue fazer pela saúde de sua população? Pouco, ou quase nada. Ele não tem recursos para isso.
Saúde é muito cara. Ele vai ter um médico... Ele não pode ter um médico, porque o médico vai
ganhar mais do que o salário do Prefeito. E o Prefeito não pode ter um salário menor do que o
salário de um médico. O salário do Prefeito é o teto do município.
Rev. Elet. Portas: E os Conselhos de Saúde, até que ponto eles intervêm ou acompanham isso?
Carlos Duarte: Num município muito pequeno o Conselho de Saúde não tem muito poder. Ele não
tem força política.
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Rev. Elet. Portas: Mesmo na capital?
Carlos Duarte: Na capital é diferente. Mas, qualquer Conselho já consegue trabalhar em cima de
uma estrutura mínima. Então, por exemplo, tem esse programa de inclusão digital do Ministério da
Saúde. Distribuíram computadores para todos os CMS do Brasil. Computadores, impressoras,
Internet, modem, televisão e antena parabólica. Este é o kit completo. Todos os municípios têm
direito. Só que tu ganha o computador, mas para ganhar a impressora tem de comprovar que o
computador está instalado na sala do Conselho. Daí num município com dois mil habitantes, a sala
do Conselho é a sala do Secretário de Saúde, até porque o Secretário de Saúde não tem outra sala.
Ele não tem secretária executiva, porque ela é a mesma do Secretário de Saúde e começam as
dificuldades. Então, a gente ia procurar onde estava o computador e não estava no Conselho, porque
o único computador da Secretaria era o computador que veio do Ministério para o Conselho. Estava
na sala do Prefeito, na Sala do Secretário, na farmácia do município... Aí você diz: ‘Mas cadê a
estrutura do Conselho?’, ‘O Conselho tem de ter uma sala, uma secretaria executiva, uma equipe
técnica que dê apoio aos conselheiros, porque o usuário não tem de entender de gestão. O usuário
apenas tem de dizer como ele está sendo atendido, bem ou mal. Quem tem de entender de gestão é o
gestor’. Então, se tu pega um relatório de gestão, o conselheiro municipal de um Conselho pequeno,
que na verdade é o agricultor que está representando os agricultores do município, ele não entende
nada disso, mas ele entende se as pessoas estão sendo ou não atendidas. Esse é o papel dele. Só que
ele tem de avaliar um relatório de gestão. Para ele avaliar um relatório de gestão, ele tem de ter uma
pessoa que o oriente a como fazer isso. Só que o gestor vai dar um técnico a ele para isso? Se o
gestor não tem técnico para auxiliar a si próprio. Sabe? Então, é difícil tu pensar nessa estrutura de
municipalização que foi feita no Brasil. O que foi feito, na verdade, foi uma desconcentração
política. Todo mundo queria ser dono politicamente de seu território, mas ninguém pensou nos
recursos ou no que teria de vir com isso. O estado do Rio Grande do Sul tinha 270 municípios na
década de 90, hoje tem 496 e 200 municípios estão pedindo emancipação. Municípios com mil
habitantes, mas eles vão conseguir fazer o quê? Em termos de saúde, muito pouco.
Rev. Elet. Portas: Emancipação...
Carlos Duarte: Emancipação do município maior. Um município que tem 10 mil habitantes perde
três municípios com mil habitantes cada um, então diminui a população, diminuem os recursos que
ele recebe do governo federal, mas ele tem de manter a mesma estrutura. Até porque aqueles que
vão ser formados não vão dar conta da saúde daquelas pessoas e vão recorrer a esse município.
Duzentos e poucos estão pedindo a emancipação.
Rev. Elet. Portas: O que significa que há problema na gestão compartilhada, não é?
Carlos Duarte: Com certeza! Porque se todo mundo achasse que a gestão estava bem, ninguém ia
pedir para se emancipar. As pessoas acham que ao se separar elas vão ter uma qualidade de vida
melhor. Tudo... saneamento básico...
Rev. Elet. Portas: E onde entra a pressão dos grupos organizados, dos movimentos sociais? Porque
a gente está falando sobre a relação entre os gestores, das dificuldades – que a gente entende – mas,
onde é que fica a demanda da população?
Carlos Duarte: Hoje os movimentos sociais estão fragilizados. Bem fragilizados, porque um
movimento social num município pequeno, de uma forma ou de outra, ele é direcionado pela
política local. É difícil tu ter um movimento organizado num município muito pequeno, onde as
pessoas são facilmente identificáveis. Elas acabam sendo excluídas, ficam marcadas. Quem deveria
tomar partido nessas questões da saúde, que seriam os grandes movimentos, como Contag, CUT e
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tudo mais, não abraçam essas políticas. Fica como uma questão deles, da CUT. A gente sabe que
em qualquer discussão entre trabalhador e empresário, a primeira questão é o plano privado de
saúde. Então, tu não negocia o SUS, tu negocia planos privados. Isso enfraquece o SUS e
enfraquece o município como um todo.
Rev. Elet. Portas: Eles estão pensando na relação de trabalho stricto sensu.
Carlos Duarte: Exatamente!
Rev. Elet. Portas: Vamos tentar diferenciar quando a gente vem para a capital. Estou pensando em
Brasil, porque acho que isso se repete, seja no Rio Grande do Sul, seja na Bahia. A deficiência das
respostas dos municípios se repete, mas a gente percebe que há uma diferença quando vai para a
capital. Então, o que você diria sobre isso? Que fatores favorecem ou melhoram a atuação, no caso,
do Conselho Municipal de Saúde (CMS), nas capitais?
Carlos Duarte: Nas capitais, de certa forma, o CMS é mais forte, porque tu consegue outras formas
de enfrentamento e de coalizão de forças. Nas capitais não são tão identificáveis determinados... Os
grupos são maiores. Em um município como Porto Alegre, o CMS consegue ter uma estrutura,
porque a Secretaria de Saúde tem uma estrutura. Então, ela fornecer uma estrutura para o CMS é
uma questão de embate político. ‘Tu pode fornecer, então nós vamos forçar até conseguir’.
Rev. Elet. Portas: Quer dizer, facilita o fato das estruturas de saúde das capitais terem mais
recursos.
Carlos Duarte: Exatamente, porque as capitais, apesar da descentralização como um todo,
mantiveram toda a estrutura de saúde que veio do Inamps. Então aquela coisa de descentralização
da saúde não aconteceu com relação às capitais. As capitais mantiveram seus hospitais
universitários, seus hospitais filantrópicos... A média e a alta complexidades. A alta complexidade
quase toda está nas capitais, então as pessoas ainda aportam às capitais para fazerem determinados
exames e tudo mais. Cirurgias de alto nível, coisas assim, acabam acontecendo nas capitais. Então,
as Secretarias Municipais de Saúde têm esses hospitais sob seu comando. Se a gestão for plena no
município, a de quase todas as capitais é gestão plena, então eles mandam em todos os hospitais,
teoricamente. Bem na teoria mesmo. Eles têm as reservas dos hospitais nas mãos. Com isso, o CMS
acaba tendo forças na negociação de algumas coisas junto ao Município. Então os CMS nas capitais
sempre têm uma estrutura, um corpo técnico, salas, computadores, enfim, têm facilidades que os
CMS de cidades pequenas não têm. Outras cidades, citando o caso do Rio Grande do Sul, Caxias,
Pelotas, Passo Fundo são cidades que têm mais de 300, 400 mil habitantes, elas já têm uma
estrutura de grandes municípios. Não chegam a ser a capital, mas elas fazem transplantes, cirurgias
cardíacas...
Rev. Elet. Portas: E às vezes podem responder melhor do que a capital?
Carlos Duarte: Podem e são pólos regionais. Pelotas pega uma região, Passo Fundo pega outra
região, Santa Maria outra, Caxias pega outra. Mesmo assim, Porto Alegre ainda é a referência para
esses Centros de Referência, por exemplo, oncologia ou transplante vêm para Porto Alegre.
Algumas exceções vêm para a capital, que é onde está o maior recurso. Então os CMS têm uma
força maior de negociação com o gestor e conseguem com ele, ou quando não é com o gestor, via o
Ministério Público.
Rev. Elet. Portas: Pelo fato desses CMS estarem nas capitais, eles têm um diálogo diferenciado
com os Conselhos Estaduais?
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Carlos Duarte: Os CES estão sempre nas capitais, porque estão ligados à gestão estadual. As
relações dos CMS com o CES são um pouco críticas, porque existe uma disputa muito grande entre
os Conselhos, principalmente dos CMS em relação ao CES. Os CMS acham que o CES não
consegue dar conta de suas questões locais. Realmente, não consegue. É tanto que, no caso do Rio
Grande do Sul, a gente começou a fazer reuniões descentralizadas. A cada 30 dias, 45 dias, uma das
reuniões do Conselho é em uma região do Rio Grande do Sul para a gente conseguir ficar mais
perto do CMS daquela região e saber quais os problemas que têm, porque senão ficamos sabendo
daqueles problemas por entidades que deveriam ser estaduais, mas que por terem sede na capital
acabam não trazendo os problemas do interior. Um sindicato médico do Rio Grande do Sul,
normalmente, acaba trazendo para o Conselho as questões dos grandes hospitais de Porto Alegre,
mas não dos hospitais do interior.
Rev. Elet. Portas: Talvez não tenha capilaridade em todo o estado.
Carlos Duarte: Até tem. Tem sindicato em todos os municípios, mas eles não escutam o
município, entende? Nós estamos tentando quebrar isso. Já fomos a umas 14 regiões. São 19 e no
final do ano a gente pretende encerrar todas. Nos municípios, convidamos todos os CMS para
participar de uma reunião do CES naquela região. A gente faz através da Coordenadoria Estadual,
que é uma descentralização da Secretaria Estadual de Saúde. Então, a gente vê as grandes
dificuldades no interior do estado, até porque eles precisam de deslocamento para ir para a sede.
Muitas vezes, a gente não consegue, porque o gestor municipal não permite. Não dá ônibus, não dá
carro, não dá diária, não dá nada, então eles não vão. No Rio Grande do Sul, a maioria dos CMS é
presidida por um usuário, ou um trabalhador, não pelo gestor, mas os recursos continuam estando
na mão do gestor. Os Conselhos não são ordenadores de despesas. Então, tu não consegue fazer.
Não têm CNPJ, não têm nada. Estão ligados às Secretarias Municipais.
Rev. Elet. Portas: E quando há uma reunião, vocês mandam um comunicado para o gestor
avisando que vão chamar os CMS, criando uma sensibilização?
Carlos Duarte: Sim. Quando a gente faz reuniões descentralizadas, a gente faz assim: A gente
marca, por exemplo, no final do ano a gente avisa a todos os lugares nos quais a gente vai. Há
reuniões marcadas com até um ano de antecedência. Já estão sabendo que a gente vai lá. Então, um
mês antes, a gente entra em contado com as Coordenadorias de Saúde, os Conselhos e as entidades.
Por exemplo, Fetag, que faz parte do CES, ela faz parte de vários CMS, então a gente tenta articular
com eles para que se articulem nos CMS. A gente fala com as Câmaras de Vereadores de todos os
municípios, com os Tribunais de Contas... Famurs e Sedisa, que são, respectivamente, a Federação
dos Municípios do Rio Grande do Sul e a Associação dos Secretários e Dirigentes de Saúde, não
nos dão a menor bola. Não é preciso mexer nos Conselhos, porque estão bons para eles.
Rev. Elet. Portas: Talvez crie uma tensão local, não é? Eles podem ter medo disso.
Carlos Duarte: Exatamente.
Rev. Elet. Portas: Bom, a gente está falando muito sobre os Conselhos, porque realmente estão
imbricados, mas eu queria que a gente falasse sobre as Conferências de Saúde. Como este ano é o
ano da 14ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), para a gente entrar nesse tema: Qual é o papel
dos Conselhos na coordenação e na organização da 14ª. CNS?
Carlos Duarte: A gente tem de pensar a 14ª e as Conferências que estão acontecendo em conjunto.
Essas são etapas da Conferência Nacional, então é como se fossem pré-Conferências. Elas têm um
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tema que é imposto de cima para baixo, que é o Conselho Nacional de Saúde que decide. O tema é
“Todos usam o SUS: O SUS na seguridade social. Políticas públicas. Patrimônio do povo brasileiro
– Acesso e acolhimento com qualidade.” Daí tem financiamento, serviço social, gestão do SUS,
gestão de trabalho, sistema e educação, há vários subtemas. O que tem acontecido? As Conferências
são chamadas pelo gestor. Por lei, se o gestor não chamar, o CMS pode chamar a Conferência. Se o
gestor não chamar, normalmente a Conferência é presidida ou pelo gestor ou pelo Presidente do
Conselho e coordenada ao contrário, por um dos dois. Daí há as comissões que compõem as
Conferências.
A CNS é de quatro em quatro anos, as municipais deveriam acontecer de dois em dois anos. A lei
fala de quatro em quatro anos, mas a 9ª CNS determinou que fosse de dois em dois para que as
Conferências Municipais discutissem os problemas locais e servissem de etapa da Nacional. O que
acontece é que quando vem um tema desses, tu vai para as Conferências Municipais e eles discutem
aquilo que querem discutir. Vem aquele monte de propostas, que para eles são importantíssimas, e
são mesmo, que é sobre o posto de saúde, sobre o guarda do posto, sobre o acesso. Tudo está ligado
ao acesso e acolhimento, com certeza.
Rev. Elet. Portas: Exato! Tudo diz respeito ao acesso e acolhimento.
Carlos Duarte: Tudo é acesso e acolhimento. Só que daí na hora de mandar as propostas para
formar as propostas estaduais e nacionais, eles não sabem o que mandar, porque as propostas são
todas municipais. Eles não se vêem como etapa de uma Conferência maior. Vão discutir os
problemas deles, são raros os que são mais abrangentes.
Rev. Elet. Portas: Acho que a relatoria este ano mudou o formato para fechar isso. Para que se
trabalhe de uma maneira dirigida, já pensando na Nacional.
Carlos Duarte: Exatamente, mas eles não sabem o que é diretriz e ações de uma diretriz. Então,
quando tu fala isso, eles ficam mais perdidos ainda do que a gente, porque não dá prá negar que nós
também estamos perdidos com esse tema, porque ele é muito amplo. Eu acho perfeito o tema, mas
ele é muito amplo. Cabe tudo dentro. Um desses dias eu estava até discutindo com umas pessoas do
Conselho Nacional, lá em Brasília, sobre o que eles queriam com esse tema. Eu tenho uma visão do
que eles querem, mas é a minha visão, se é a deles eu não sei.
Rev. Elet. Portas: Você pode dizer?
Carlos Duarte: Sim. Eu entendo que é assim, acesso com qualidade. Acesso e acolhimento com
qualidade. Esse para mim é o verdadeiro tema da Conferência. Os outros são: Como é que você
trabalha acesso e qualidade dentro da ‘Seguridade social’, dentro do ‘SUS é para todos, todos usam
o SUS’ e ‘Política públicas e patrimônio do povo brasileiro’. E os temas – financiamento, gestão do
trabalho, etc. – são transversais ao acesso e ao acolhimento com qualidade. Então, tu tem que
discutir financiamento, não pensando na EC 29. ‘Ah! Vamos lá regulamentar a EC 29.’ Acho que
não é mais este o tema. O tema é: Em que se pode trabalhar financiamento com recursos para
melhorar o acesso e o acolhimento das pessoas com qualidade dentro do SUS? No que tu pode
trabalhar em gestão do trabalho para que o acesso seja com qualidade? Onde é que tu pode trabalhar
público e privado para que o acesso seja com qualidade? Entende? Então, tu não vai discutir gestão
do trabalho sem pensar em como é que eu vou casar isso com acesso e qualidade. Vai ter sempre
que estar casando com aquele tema. No final é dizer: ‘Bem, prá gente ter um acesso e um
acolhimento com qualidade, temos de ter uma gestão de trabalho que seja, sei lá, com uma estrutura
de profissionais com cargos e salários estabelecidos no Brasil inteiro, com participação das três
esferas, público e não privado...’. Entendeu? Então, daí tu vai trabalhar o público e o privado, mas
dizendo qual é o acesso com qualidade. As pessoas não estão discutindo isso, estão discutindo
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financiamento. A gestão é tão importante quanto.
Rev. Elet. Portas: E esse mote ‘patrimônio do povo brasileiro’? Isso não é uma aura da Reforma
Sanitária, uma tentativa de resgate? O que você acha disso?
Carlos Duarte: Olha, como é que a gente está tentando fazer no CES para discutir esse tema?
Concretamente. A gente vai e trabalha assim: ‘participação da comunidade’. O que isto tem a ver
com a seguridade social? O que é seguridade social? Então, seguridade social é um tema que
engloba três políticas, digamos, de assistência social, de previdência e de saúde. Como é que essas
três se intercalam? Uma consegue viver sem a outra? Então, como é que tu trabalha isso e como é
que a participação da comunidade consegue garantir que o Estado seja de seguridade social e não
um Estado de seguro social?
Rev. Elet. Portas: E o que os diferencia?
Carlos Duarte: A seguridade social é uma relação de governo. Do Estado de Bem Estar Social,
onde o Estado toma conta da saúde, da previdência e da assistência. Um Estado de seguro social é
um Estado no qual a previdência, a saúde e a assistência têm quem pode pagar por elas. Esta é a
principal diferença. Claro que as diferenças são muito maiores do que essa maneira tão simplista
como eu estou dizendo, mas isso faz com que as pessoas lá na base entendam.
‘Todos usam o SUS’. Bem, que ‘Todos’? Daí tu começa a dizer assim ‘Bem... Tu não toma água?
Tu não toma remédio? Quem é que faz a vigilância do teu remédio, não é a Anvisa? O que é a
Anvisa? É SUS!’ E não estou nem entrando na assistência. Então, tu começa a deixar claro para as
pessoas e daí tu diz assim: ‘O que é que a participação da comunidade pode fazer para que as
pessoas entendam que elas usam o SUS?’ Então, tu começa a trazer a participação da comunidade
para além daquela coisa de fiscalização de Conselho, porque eu acho que o tema é mais amplo.
‘Patrimônio do povo brasileiro’. É que sem o SUS tu vai regredir a um sistema Inamps. E o SUS,
por mais deficiências, por mais que ele tenha de avançar, de melhorar, ele avançou muito. Ele deu
muita qualidade à saúde das pessoas nesses mais de 20 anos.
Rev. Elet. Portas: Cite alguns exemplos positivos de avanços ao longo da história do SUS.
Carlos Duarte: Vacinação, pré-natal, por mais que a gente tenha de avançar, hoje as mulheres que
quiserem... quiserem não, porque às vezes querem e não conseguem acesso, mas tu tem onde
procurar.
Rev. Elet. Portas: Há a garantia, mas você tem de estar informado.
Carlos Duarte: Tu tem a garantia disso. Isso fez com que se tivesse uma diminuição da taxa de
mortalidade infantil no Brasil nos últimos 20 anos, que é imensa se comparada com outros países do
mundo, que não têm um sistema público universal e que não estão tendo efetivamente uma
diminuição da forma como a gente teve. O Programa de Aids é um exemplo que já foi mais
palpável, hoje ele já não é tanto, porque está faltando a seguridade social para ajudar as pessoas que
têm aids. Está faltando a questão da previdência, que não é a aposentadoria. É aquele hiato em que
as pessoas ficam quando saem do seguro saúde e voltam para o mercado e não têm emprego, porque
elas são liberadas pela previdência, mas o serviço médico da Saúde do Trabalhador da empresa não
as aceita de volta, porque ainda não estão aptas. Então esse hiato tu tem que resolver. Isso em Saúde
Mental, em Aids, em várias outras patologias, Diabetes, enfim. Então, tu tem que melhorar isso. Daí
as pessoas começam a entender onde é que entra a seguridade social na saúde. Eu acho que essa
questão do ‘patrimônio do povo brasileiro’, na verdade, é uma coisa um pouco política.
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Entrevista – 14ª Conferência Nacional de Saúde
Carlos Duarte
Rev. Eletrônica Portas, v.4, n.4, p.69-85, jun.2011
Rev. Elet. Portas: Isso que eu quis dizer. Uma coisa ideológica, no sentido de manipular o
imaginário da Reforma Sanitária, o que vem de positivo e de algo que sensibiliza a gente. É a ideia
de ter um ‘cimento coletivo’.
Carlos Duarte: É! E tem aquela ideia inicial de que o patrimônio da humanidade é aquela coisa
que você não pode mudar o arcabouço político ou jurídico. E o que a gente vê é que a
universalidade e a integralidade são questões que estão sempre...
Rev. Elet. Portas: ... à margem.
Carlos Duarte: À margem e na berlinda. Não, nós vamos continuar com a universalidade, vamos
continuar com a integralidade até onde e como? Sabe? Nós temos recursos para isso? Então, se tu
quebrar a universalidade do sistema, tu quebra a universalidade não só para transplante, mas
também para a atenção básica. É o que São Paulo está fazendo ao entregar os postos de saúde para a
iniciativa privada dizendo que 20% da assistência nos postos de saúde pode ser privada.
Rev. Elet. Portas: Parece que isso está em discussão. Tem gente recorrendo, não é?
Carlos Duarte: Tem gente recorrendo, mas foi aprovado na Assembleia, não é? Daí tu tem aquela
questão assim, esses 20% que chegam ao posto de saúde e vão ser atendidos privadamente, eles vão
ser atingidos na mesma lógica dos outros 80%? Não! A porta de entrada vai ser outra. Vai ser o
consultório privado, daí eles têm um privilégio e se quebra a universalidade. Então quando tu
discute o público e o privado, tu tem que trabalhar nessa lógica, porque é aquela coisa assim, as
pessoas dizendo: ‘Ah! Porque o público e o privado têm de ser discutido. É melhor Fundação, é
melhor OSCIP, é melhor OS do que serviço público’. Acho que a discussão não é essa. Acho que a
discussão é onde está a qualidade do acesso e do acolhimento no público e no privado? Se eu tenho
um acesso de qualidade no privado igual ao do público, ou no público igual ao do privado, tanto faz
se é público ou se é privado. O que eu quero é acesso com qualidade. Agora, o que acontece é que a
gente sabe que no privado, quem paga tem um acesso melhor.
Rev. Elet. Portas: A tua lógica é coerente, mas ela implica em uma grande mudança de
paradigmas, porque não podemos botar em caixinhas quem é público ou privado, quando a gente vê
serviços de excelência sendo prestados até mesmo pela ausência do público.
Carlos Duarte: Sim, mas ao mesmo tempo, tu vê serviços privados usurpando o público...,
principalmente nas capitais.
Rev. Elet. Portas: Onde a população é maior, onde mais gente tem plano de saúde.
Carlos Duarte: Claro. Então, tu vê assim, por exemplo, o Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Ele
é 80% público e 20% privado. Então dizem assim: ‘O privado é 14% da nossa renda, que vem do
privado’. Ótimo! É só 14%, só que esses 14% do privado ocupam todos os funcionários que são
públicos, todo o prédio, que é público, e todos os equipamentos, que são públicos. Então, na
verdade, o privado usufrui do público muito mais do que os 14%, porque o equipamento de
tomografia que foi comprado pelo SUS é usado pelo plano de saúde privado. O médico que faz a
tomografia lá é pago pelo SUS para fazer a tomografia, porque ele recebe um salário do MEC mais
o do Ministério da Saúde para estar lá dentro.
Rev. Elet. Portas: Do MEC?
Carlos Duarte: Sim, porque é um hospital universitário. Quem paga o salário é o MEC e ele recebe
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Entrevista – 14ª Conferência Nacional de Saúde
Carlos Duarte
Rev. Eletrônica Portas, v.4, n.4, p.69-85, jun.2011
mais o procedimento pelo SUS. O plano privado acaba não o pagando, mas cobra. É o tal negócio,
não ressarce o SUS e utiliza toda essa estrutura.
Rev. Elet. Portas: No final, o que a gente vê é a briga por melhores salários, profissionais mal
remunerados, quando na verdade, esse conflito de onde vem a fonte não aparece.
Carlos Duarte: Não aparece. E o que acontece? Se eu e tu estivermos na clínica esperando para
fazer uma tomografia, se tu entrar pelo consultório particular do teu médico com seu plano de
saúde, tu vai ser passada na frente de quem entrou pela atenção básica ou outro, que fez o caminho
natural do SUS. Inclusive, há uma ação no Supremo Tribunal Federal que deu ganho de causa para
o Cremers, que o médico pode inclusive atender e encaminhar pelo SUS pelo seu consultório
particular. Então, se tu tem recursos para pagar uma consulta no consultório particular, ele te
encaminha do consultório para o hospital público do SUS para fazer aquele atendimento. E quem
entrou pela atenção básica não consegue. Então, na verdade, o privado está usando o público para
ganhar mais dinheiro.
Rev. Elet. Portas: E onde entram os hospitais filantrópicos e as Santas Casas? Inclusive, foi criada,
recentemente, uma Frente Parlamentar das Santas Casas, não é?
Carlos Duarte: Sim. As Frentes se articulam entre si. Há um fortalecimento do privado no Brasil.
Na verdade, os hospitais filantrópicos e as Santas Casas são prestadores de serviços do SUS e são
todos privados. Deveriam atender a 70% de SUS, mas eles não atendem. O que eles fazem? Eles
concentram todos os atendimentos SUS em um único hospital, então se tu somar tudo tem 70% do
SUS. Só que na alta complexidade, que é só nos outros hospitais, eles não têm atendimento do SUS,
porque eles só têm naquela média complexidade ou naquele atendimento que para eles o SUS ainda
dá lucro. Entende? Ou, por exemplo, um transplante quem paga é o SUS, então usam o SUS para
isso, porque os planos privados não vão pagar. Por exemplo, uma coisa que tem acontecido aqui no
estado, que é um absurdo. Se tu entra num hospital pela emergência com o plano privado, tu fica lá
até decidirem se tu precisa ou não de uma UTI. Se tu precisar de uma UTI, tu ganha alta da
emergência e baixa pelo SUS para entrar na UTI, para o plano privado não pagá-la. Isso está em
investigação aqui no estado, porque o que é que eles fazem? Eles teriam de pagar R$ 700. O SUS
paga R$ 100 para o hospital, o plano privado teria de pagar R$ 700. Então, eles fazem um acordo
com o hospital, entram pelo SUS, que paga R$ 100, o plano privado paga mais R$ 200. O hospital
recebe R$ 200 a mais do que receberia pelo SUS e o plano privado paga R$ 500 a menos. É tido por
SUS. Isso só pode acontecer se o hospital tem duas formas de entrada: uma privada e uma pública.
Isso é muito sério! E daí o que acontece é que quem entra pelo SUS para chegar na alta
complexidade, que é o gargalo do SUS, não consegue acessar, porque os planos privados é que
acessam, porque entra pelo consultório, entra por outras formas. Então, onde está a traumatologia, a
oftalmologia, que são os gargalos do SUS?
Rev. Elet. Portas: E quem está fazendo o caminho, já morreu no caminho, não é?
Carlos Duarte: Já morreu no caminho, porque não consegue acessar. Quando chega lá está lotado.
Por quê? Porque todos os leitos do SUS estão sendo utilizados pela iniciativa privada, como SUS. E
todos têm direito! Mesmo quem paga um plano privado tem direito pelo SUS. Só que ele tem
direito se ele entrar pelo mesmo caminho, entendeu?
Rev. Elet. Portas: Mas, aí cria outra confusão, porque se você tem o seu médico particular, como é
que você vai voltar para entrar pela atenção básica?
Carlos Duarte: Mas, para entrar pelo SUS teria de ser dessa forma. Se tu não tem recursos para
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Carlos Duarte
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pagar, tu não tem, como eu ou como qualquer outro. Não importa se tu tem um recurso a mais. Por
isso o SUS é universal. É igual para todo mundo. Não é porque tu tem um recurso a mais que tu vai
entrar na frente.
Rev. Elet. Portas: E se você vai pelo seu recurso a mais, então que continue na sua linha.
Carlos Duarte: Que continue na sua linha até o fim.
Rev. Elet. Portas: Se não, você não só fura a fila como está passando na frente de pessoas que não
têm outra opção. Que dependem exclusivamente do SUS.
Carlos Duarte: Exatamente. Então, voltando para as Conferências, quando tu consegue chegar em
uma Conferência e explicar que o tema da Conferência é isso e que isso está ligado ao ‘público e
privado’, que isso está ligado a financiamento, você consegue fazer com que as pessoas estejam
discutindo o tema da Conferência. Só que para tu explicar isso em uma Conferência, tu precisa de
pelo menos meia hora para chegar nesse ponto.
Rev. Elet. Portas: Ou então deveria haver alguma informação no documento-base, que o Conselho
Nacional de Saúde divulgou. Há coisas muito interessantes, mas outras que são muito abstratas. O
discurso é para quem está acompanhando o SUS e o que a gente vê é que, quando você fala, as
pessoas não conhecem, não sabem da história, no máximo têm uma aura que emocionalmente lhes
parece muito positiva, muito boa, ou muito ruim, porque também tem gente que não conhece e já
não gosta, não é?
Carlos Duarte: Hum, hum. Exato. O que não gosta do SUS é justamente esse. As pesquisas já
mostraram que quem tem a pior visão do SUS é aquele que nunca usou. Quem usou o SUS avaliou
o SUS lá em cima, com nove, nove e pouco... porque ele teve acesso. Depois que tu tem acesso...
Havia respostas assim: ‘Você já utilizou o SUS?’, ‘Não’. ‘Qual é tua visão do SUS?’, ‘Péssima’.
Rev. Elet. Portas: Então, a referência do SUS é ideologicamente tão forte, e eu não digo ideológica
de uma maneira negativa, mas ela cria polaridades. Quando você vê um documento daquele, que é
extremamente importante, na verdade, ele não está dialogando com todos, mas com pessoas que
conhecem e sabem o que está sendo dito. Acaba sendo um diálogo restrito e é paradoxal com a
tentativa de inclusão. Com aquela tentativa, do que a gente estava falando, do movimento
ascendente...
Carlos Duarte: Claro! Tanto que tem... quando eu fiz a minha Especialização, o tema era o
paradoxo da descentralização. Eu vou pela visão da sociedade civil. Então, num país onde não
existe uma tradição de negociação entre gestores, tu não consegue trabalhar a descentralização,
porque, necessariamente, é preciso que exista uma relação entre os gestores. Eu cedo aqui, tu cede
aí e vamos ter... no meu município vai ter só atenção básica, mas eu vou precisar da atenção de
média que tem no teu município e tu vai precisar da alta, que tem no outro. Então, nós vamos ter de
negociar isso. Só que não existe essa articulação entre os gestores. A saúde não é vista como uma
questão de Estado. E no meu trabalho, eu vi uma coisa assim, quando a sociedade civil vai negociar
com a gestão em cima de alguma coisa, muitas vezes o gestor até aceita. Entende? Para ficar todo
mundo bem, depois ele simplesmente não executa, porque ele não concorda com aquilo. Então, a
gente vê isso muito claramente em Aids, com populações com histórico de exclusão.
Rev. Elet. Portas: Antes de falarmos sobre a Conferência Estadual, eu gostaria de te perguntar
sobre como é o acompanhamento das Conferências Municipais, que você mencionou antes? Qual é
o objetivo?
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Entrevista – 14ª Conferência Nacional de Saúde
Carlos Duarte
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Carlos Duarte: Nós temos 496 municípios no estado e temos, mais ou menos, 180 Conferências
marcadas. Menos de 50% dos municípios. Isso é um problema sério! E o que acontece? Por
exemplo, agora nos convidaram para ir a uma região que reúne vários municípios que ficam a 30,
40, 50 km da sede da região. Convidaram o CES. Então: ‘Tá, vocês querem que a gente vá até aí
falar sobre o quê?’, ‘O que vocês quiserem’, ‘Não, mas dentro do tema da Conferência, o que vocês
querem?’, ‘O tema da Conferência’. Eles não sabem o quê.
Rev. Elet. Portas: Estão precisando de orientação.
Carlos Duarte: Estão precisando de orientação. Ainda bem que tem pelo menos 180 que nos ligam
para perguntar ‘O que eu faço com isso que tenho na mão?’ O que nós fizemos? Em fevereiro,
resolvemos que iríamos começar a Conferência Estadual. Saiu o decreto do Nacional, então vamos
fazer a Conferência. Mandamos o decreto para todos os CMS, ligamos para todos, chamamos uma
reunião com a Famurs, com a Sedisa, com todos os Coordenadores regionais, para dizer: ‘A
Conferência tem de ser assim, o tema é esse, vamos discutir isso, cada um de vocês é responsável
enquanto gestão para organizar a Conferência na sua região’. Tudo bem. Só que, o que foi que
aconteceu? O telefone não funciona, a Internet não funciona, o computador está instalado, mas não
está em rede, nós não temos funcionários... A gente não consegue ligar para cada Conselho e dizer
assim: ‘Vem cá, onde é que está a tua Conferência?’ Que este é um papel que a gente tem que fazer.
Faz parte, saber por que não foi agendada, qual é o problema que está tendo com o gestor, também
ligar para a Sedisa, Famurs, Secretaria Estadual e tentar negociar. Só que não temos os meios para
isso. Por exemplo, precisamos ir para lá, chegou hoje o convite para daqui a quatro dias ir à
Conferência tal. ‘Ah! Lamento, mas a gente não tem carro’. ‘Então eu vou comprar a passagem’.
‘Ah! Mas nós não temos dinheiro para vocês comprarem as passagens’. Passagens de ônibus... ‘e
nem te reembolsar’. Daí como é que tu faz? Sabe? Agora mesmo foi um pessoal para uma
Conferência e os Conselheiros disseram que o motorista chegou a chorar na cidade, porque não
tinha onde dormir. Ele não tinha dinheiro para comer, não tinha nada. Daí tiveram que fazer uma
vaquinha com quem estava lá e pagaram para ele. Mas, ele é funcionário público e estava
trabalhando, sabe? Daí tu vai dizer para eles: ‘Olha a gente não foi no teu município, porque a gente
não tem carro, não tem diária, não podemos nos deslocar’. Só que a gente não vai, eles não fazem,
porque não sabem o que fazer. Entende? O Conselho Nacional fica em uma ilha. Lá de cima ele diz
‘Ah! Nós temos de fazer isso’. Eu fui Conselheiro Nacional e tem aquela coisa: ‘Bem, a
Conferência tem de acontecer’. E nós aqui no CES também dizemos: ‘As Conferências têm de
acontecer’. Mas, nós não conseguimos ir, nem eles conseguem vir. Então, na verdade, tu tem uma
estrutura montada só que sem condições de fazer funcionar.
Rev. Elet. Portas: Das propostas elaboradas nas Conferências, o que fica no município e o que vai
adiante, para a Estadual e depois para a Nacional?
Carlos Duarte: No município tem de ficar tudo aquilo que for municipal. Forma o relatório
municipal e é base para fazer um Plano Municipal de Saúde, se cobrar as questões do gestor. Vou te
falar pela experiência das Conferências que eu já participei no estado, o que acontece é que as
propostas são todas municipais. Estas propostas não vêm para o estado.
Rev. Elet. Portas: E elas ficam onde? Isso é o que eu quero saber.
Carlos Duarte: Elas ficam no CMS, que vai ter de articular as propostas com o gestor municipal.
Rev. Elet. Portas: Então o relatório municipal acaba sendo uma demanda da população do
município para seu gestor.
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Carlos Duarte
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Carlos Duarte: Para seu gestor. Por isso que as Conferências deveriam ser independentes.
Rev. Elet. Portas: Agora, elas podem gerar questões estaduais e nacionais, porque serão
encaminhadas para o estado, aí a Conferência Estadual vai discutir e...
Carlos Duarte: Claro, mas aí começa aquela questão assim, vamos dar um exemplo. O município
de Hulha Negra, digamos que tenha cinco mil habitantes, ele precisa de sei lá quantas equipes de
saúde da família. Vamos dizer: três equipes de saúde da família. Estou chutando..., mas ele não
consegue contratar um médico, porque o médico para a saúde da família está querendo em torno de
25 mil. O prefeito ganha 10, então ele não pode contratar o médico. Então, para ele contratar um
médico de 25 mil, como ele vai fazer? Esta é uma questão que talvez ele tenha de discutir com o
estado, porque esse médico só vai conseguir ir para lá se ele tiver um plano de carreira do SUS,
onde o município pague cinco mil, o estado pague dez e a União pague dez. Isso fecha um salário
de 25 mil, cada um dando sua parte. Tudo chute tá? O que acontece? Daí entra no público e privado.
Tem um cara da Secretaria aqui que diz assim: ‘Isso é facilmente solucionável quando tu monta
uma Fundação de Saúde no município, porque aí você contrata o médico pela Fundação e não é
coordenado pela Lei de Responsabilidade Fiscal’. Daí vem um cara do Tribunal de Contas e diz
assim: ‘Mentira tua, porque todo recurso público tem de estar dentro da Lei de Responsabilidade
Fiscal’. Não importa se está passando por uma Fundação. O dinheiro é público. Então, essa
proposta do médico, pode ser uma proposta que venha para o nível estadual. Não do médico, mas
da equipe de saúde, porque o município não vai dar conta disso sozinho, então tem de vir uma
proposta para o estado ou para a União. Só que o cara que está lá em Hulha Negra, participando da
Conferência, não consegue perceber que isso tem de ser assim. A proposta acaba nem vindo para
cá, porque ele entende que é uma questão de responsabilidade única e exclusiva do município. Isso
é complicado. Pelas Conferências que a gente participou, os relatórios vão vir como têm vindo até
hoje: 20 propostas de financiamento; 30 propostas de controle social; não sei quantas de... E quando
chegar na Estadual, alguém vai levantar a mão e dizer: ‘Mas eu mandei uma proposta do meu
município que não está aí’.
Rev. Elet. Portas: Aí vão ficar frustrados, porque se não estão na Estadual, quanto mais na
Nacional.
Carlos Duarte: Não estão se vendo em lugar algum.
Rev. Elet. Portas: E como está a estrutura da Estadual?
Carlos Duarte: Nós estamos fazendo assim. Estamos tentando inovar em algumas coisas. Não sei o
que vai dar certo. A nossa inscrição de delegados é por cidade, não por delegado. Se a gestão
municipal manda o gestor para a Conferência, manda os trabalhadores, mas não paga os usuários,
nós não temos Conferências paritárias. Então, resolvemos colocar no nosso regimento que para se
credenciar na Conferência a delegação tem de estar completa. ‘Ah! Só tenho dois usuários no
município’, ‘Então, eu só posso credenciar um gestor e um trabalhador’. Aí gera um diferencial.
Nós queremos que ela seja paritária nesse ponto. Os outros não vão entrar, não tem nem observador.
Rev. Elet. Portas: Isso me chamou a atenção no regimento da 14ª CNS, porque antes acho que
eram quatro categorias: Delegado, observador, convidado e expositor. Agora são duas: Delegado e
convidado.
Carlos Duarte: O que é que acontece e acho que o Conselho Nacional está correto nisso. Nós aqui
não temos nem convidado, nem observador. Convidado é só aquele que vai palestrar. Por que o que
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Carlos Duarte
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acontecia? Tu tinha o delegado e tu tinha o observador participante e convidado com direito à fala,
só não podia votar. Esse cara manipulava o microfone. Ele não votava, mas ele mobilizava legal em
cima da proposta dele. Como ele era convidado, tinha recursos a mais, tinha não sei o quê, até para
influenciar, ele era formador de opinião, digamos assim, e o delegado se sentia inibido de falar e
botar sua proposta lá. Então, acho que a gente avançou nisso. Temos o credenciamento, que é feito
dessa maneira, dura praticamente o dia inteiro. Para dar chance daquela comitiva que chegou
incompleta, ainda tentar resgatar alguém. Ligar ‘Venha, manda’. Se não, ela volta. Isso começa ao
meio-dia e vai até o outro dia, ao meio-dia. Aí é interrompida às seis da tarde, quando vai ter a
Conferência Magna, que é o Gastão Wagner que vai falar sobre o tema da Conferência. Aquela
coisa bem ampla. Daí tem o regulamento para ser votado, mas o regulamento é regulamento
mesmo. As pessoas fazem confusão entre regimento e regulamento. Não. É o regulamento, o que
regulamenta o regimento. No outro dia de manhã, aí foi um problema, porque a gente queria dividir
os temas por dia, por grupos de trabalho. Só que como a gente não conseguiu local em Porto
Alegre, em Tramandaí nós não conseguimos suspender as aulas por dois dias, porque nós vamos
fazer nas escolas. Então, começa de manhã com o tema da seguridade social, depois o tema de
controle social com debate. É um expositor nacional, que a gente está convidando. Por exemplo,
controle social, é uma pessoa que vem de fora e fala sobre o tema e uma pessoa do estado para ser
debatedor. Para termos o tema amplo do controle social e depois voltado para o estado. Abre-se
para o debate. Vinte minutos para um, dez minutos para o debatedor e uma hora e meia para o
debate, senão todo mundo vai cansar de ficar ouvindo blábláblá lá na frente.
Rev. Elet. Portas: Nós falamos sobre a relação entre gestores, depois eu puxei para a participação
dos movimentos sociais, falamos também sobre outros aspectos como os hospitais, as Santas Casas,
a relação público-privado, mas, pela sua experiência, como acontece a articulação entre os
diferentes setores da saúde na Conferência? Cada um está defendendo os seus interesses, então
como é isso? Quem se aproxima mais de quem? Os movimentos sociais são sempre aliados, ou
não? Enfim...
Carlos Duarte: Eu me lembro que no teu roteiro tinha uma pergunta que falava que a 14ª retomava
a 8ª CNS, por que eu estou trazendo isso? Porque eu acho que na 8ª CNS existia uma articulação
entre trabalhadores e usuários que hoje não existe mais.
Rev. Elet. Portas: E isso era bom ou ruim?
Carlos Duarte: Isso era bom! Trabalhadores da saúde e usuários. Tanto que eu acho que as maiores
conquistas dentro do SUS vieram da articulação entre estes dois setores, porque eles são muito
próximos um do outro. Um está sendo atendido pelo outro, que tem acolhimento. Só que até com a
questão da privatização e da precarização das relações de trabalho, os trabalhadores começaram a
focar muito na sua condição de trabalho, deixando um pouco de lado a questão do acolhimento e da
qualidade de acesso propriamente dito, para tentar salvar o seu lado profissional. Não é uma crítica,
mas uma constatação. Isso também acontece muito com os movimentos sociais, que lutam entre
eles para ver quem consegue mais coisas em relação aos outros e não em prol de uma conquista
coletiva. Por exemplo, a CUT está muito mais interessada na sua questão de saúde privada do que
da saúde do SUS. A Fetag, a Contag, no caso nacional, também está indo muito para o seu lado
pessoal, das conquistas dos trabalhadores rurais, e esquecendo um pouco o coletivo como um todo.
Eu acho que isto está enfraquecendo e isto se reflete na Conferência.
Na última Conferência Estadual de Saúde houve uma briga entre interior e capital. ‘Porque a capital
tem tudo e o interior não tem nada’. O que aconteceu foi que, do Rio Grande do Sul só foram
escolhidos os delegados do interior, não foi ninguém do CES e foi um ou dois do Conselho da
região metropolitana, não de Porto Alegre. E isso foi muito ruim para o Rio Grande do Sul. Até
hoje está correndo um processo de invalidação daquela delegação. Enfim... nós tentamos acabar
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com essa discussão nesses quatro anos, reaproximar o interior da capital, mas isso é muito forte. Daí
quando chega na Conferência a discussão passa a ser o interior ou o estado.
Rev. Elet. Portas: E quando chega na Nacional, passa a ser entre os estados e as regiões.
Carlos Duarte: Exatamente. Isso mesmo, o Sul contra o Nordeste, o Norte..., enfim.
Rev. Elet. Portas: É até engraçado, porque, por um lado, a gente vê coisas que avançam tanto, que
se complexificam e até geram dificuldades para algumas pessoas acompanharem e, por outro lado,
há uma ‘renovação velha’ – se é que se pode dizer assim – dentro dos movimentos, que reificam
coisas que só atrapalham, não é?
Carlos Duarte: É. E daí tem essas coisas, por exemplo, acontece dentro do movimento Aids, mas é
igual se tu for replicar em outro padrão.
Rev. Elet. Portas: Um retrato do Brasil naquele microcosmo.
Carlos Duarte: É complicado. Eu ouvia dizer ‘vamos fazer da 12ª uma 8ª’ e ‘da 13ª uma nova 8ª’,
agora ‘da 14ª...’. Nunca vai acontecer isso.
Rev. Elet. Portas: Claro, a 8ª foi a 8ª. Era outro cenário político.
Carlos Duarte: Principalmente, outro cenário político. No meio de uma ditadura militar, num
momento de exceção política, outra coisa e hoje é outro processo. Por exemplo, não acho que seja
uma questão de cooptação ou coisa assim, mas o movimento social se vê muito com o governo hoje
e não reivindica tanto, porque está reivindicando de si mesmo. Não é cooptação, é um momento
natural das coisas, sabe? Além de tudo, existe um retrocesso muito grande.
Rev. Elet. Portas: Por exemplo, em que aspectos?
Carlos Duarte: Existe um retrocesso hoje, tu vê as discussões são muito mais conservadoras.
Existe um retrocesso em coisas que se avançou e agora, por exemplo, uma coisa que é polêmica e
sempre vai ser, mas a questão do aborto o quanto regrediu. Essa questão dos movimentos
homossexuais é uma coisa que está regredindo do ponto de vista das políticas de saúde. Não é só
aquele folheto, se vai para a escola ou não, há todo um processo reacionário, de retrocesso imenso,
porque por mais dificuldade que tivesse naquele folheto, enfim, tem umas coisas que estão por trás
disso que são muito sérias. A gente vê isso nas discussões, por exemplo, ‘a assistência social é uma
questão de assistencialismo, uma coisa de caridade’, isto está surgindo muito de novo. A coisa das
drogas, a pessoa que usa drogas é responsável pela violência. Não é que ela seja fruto da violência
ou de um contexto social, enfim... Os moradores de rua, eles são o problema da violência, não são
fruto dela. Então, há muitas coisas acontecendo muito sérias e tu nunca vai igualar à 8ª. Não nesse
momento. Daqui a um tempo, quem sabe tu consiga avançar, mas bem a gente retrocede numas
coisas e avança em outros pontos. Vamos ver o que a gente consegue, mas esses conflitos dentro
das Conferências são muito grandes. O movimento religioso é muito forte, muito forte. Isso tudo se
reflete nessa política de saúde. Essa questão de como acontece a articulação política entre os
diferentes setores da saúde, ela está nisso.
Rev. Elet. Portas: Em resumo, quais são os grandes desafios?
Carlos Duarte: Eu acho que o grande desafio hoje, dessa Conferência e dos temas que serão
debatidos nela, é a questão do público e do privado. A utilização do público pelo privado. Se isso
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fosse qualidade de acesso e de acolhimento, iríamos para outro nível de discussão, então a gente
começaria outra conversa. Na verdade, isso está gerando uma diferenciação de acesso entre quem
tem e quem não tem. Está melhorando o acesso de quem tem recursos, porque paga para ingressar e
depois recebe tudo de graça, mas está dificultando o acesso de quem não tem, porque não tem como
pagar e não vai acessar. Quando ele chega onde tem de acessar, todos os serviços estão sendo
utilizados pelo privado. Então a grande discussão é essa: Acesso e acolhimento com qualidade
versus o público e o privado. Acho que esta deveria ser a discussão dessa Conferência, mas eu não
vejo que as pessoas estejam entendendo assim. Pode ser que eu esteja enganado, mas eu acho que o
grande desafio é este. E, o que eu estou vendo e o que levou à eleição do Presidente do Conselho, o
Ministro da Saúde, foi uma briga entre trabalhadores e usuários, porque os trabalhadores estão
focados no seu plano de carreira e na sua relação direta entre eles. E os usuários pensando em como
é que eles vão tirar melhor proveito de um governo do qual eles fazem parte, mas não pensando no
coletivo. Então, o movimento Aids pensando em si, o de Diabetes pensando em si, o movimento
negro pensando em si, sem conseguir fazer a junção disso tudo com os trabalhadores. Um fragiliza
o outro e daí o gestor vem. ‘Então se vocês não estão conseguindo fazer, eu vou fazer por vocês. Eu
vou dizer por onde é que vocês têm de ir’. Daí fica aquela coisa de que ‘a raposa está lá cuidando do
galinheiro’ e acho que a questão não é essa. É uma questão de respeito a decisões de Conselho. Eu
não vejo como um Presidente de Conselho sendo um gestor, ele vá defender qualquer decisão do
Conselho que seja contrária a ele. Por exemplo, o Conselho Nacional é contra e o Ministro é a favor
de uma determinada questão. O governo é a favor. Daí na CNS o Presidente do Conselho vai
apresentar o quê? O lado do governo ou o lado do Conselho? Se ele apresentar o lado do Conselho
dizendo que é contra, no outro dia ele não é mais Ministro. Agora se ele defender a favor, eu diria:
‘Sai fora do Conselho. Abre mão de uma das duas’. E ele só pode abrir mão de ser Presidente do
Conselho, porque ele só é seu Presidente porque é o Ministro.
Rev. Elet. Portas: Carlos, muito obrigada por compartilhar sua experiência e impressões conosco.
Carlos Duarte: De nada!
*
Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária
CES – Conselho Estadual de Saúde
CMS – Conselho Municipal de Saúde
CNS – Conferência Nacional de Saúde
Contag – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
Cremers – Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul
CUT – Central Única dos Trabalhadores
Famurs – Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul
Fetag – Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul
Gapa – Grupo de Apoio à Prevenção à Aids
Grupo Pela Vidda – Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids
Inamps – Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social
MEC – Ministério da Educação
OS – Organização Social
OSCIP – Organização Social de Interesse Público
PAB – Pacto da Atenção Básica
Sedisa – Associação dos Secretários e Dirigentes Municipais de Saúde, do Rio Grande do Sul
SUS – Sistema Único de Saúde
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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14ª Conferência Nacional de Saúde