SABEDORIA SALOMÔNICA Salomão ‘sub judice’ Dúvidas não respondidas ou mal respondidas sobre estudar Salomão e seus escritos. Faz necessário tomar posição a respeito de alguns pontos controversos que devem ser enfrentados ao se decidir pelo estudo dos escritos de Salomão. O entendimento adotado condicionará não apenas como vemos estes escritos, mas, sobretudo, as conclusões que deles podemos tirar. Algumas dessas dúvidas são antigas e todas irresolutas, com sua discussão sem previsão de término. São como causas debatidas em juízo cujo veredito só pode ser promulgado após encerrarem-se os debates. As causas envolvendo a Sabedoria Salomônica estão em um tribunal onde a cada um de nós compete sentar-se na cadeira do juiz. Promotores e Defensores têm eficientemente apresentado seus argumentos, fundamentos, retóricas e ritualísticas. Qualquer dos lados da questão (por vezes mais de dois!) tem argumentos para nos convencer e não poucas vezes a discussão enreda por detalhes e conhecimentos muito além do que conseguimos acompanhar. No entanto, não há como: precisamos tomar uma posição nas causas em discussão, e tais pressuposições são necessárias antes de mergulhar nos escritos. A causa do autor Provérbios de Salomão, filho de Davi, o rei de Israel (Prov 1.1) Palavras do pregador, filho de Davi, rei de Jerusalém (Ecl 1.1) Cântico dos cânticos de Salomão (Cant 1.1) Os versículos introdutórios de cada um dos livros que aqui serão abordados conduzem ao personagem bíblico Salomão. Eclesiastes não o nomina, mas não há outro alguém que caiba na descrição apresentada. Com naturalidade este posicionamento inicial não deveria deixar dúvidas, e tal tem sido o entendimento tradicional de todas as religiões que aceitam o Velho Testamento como sagrado, judeus e cristãos de todos os matizes (católicos, evangélicos, ortodoxos...): o autor é Salomão, o ultimo rei de Israel unificado que governou entre os anos 971 e 931 antes de Cristo. Foi a época do apogeu do reino de Israel que chegou a ser uma potência de certa influência regional, dominando muitos territórios ao seu redor. O registro bíblico de Salomão e de seu governo encontra-se no Primeiro livro dos Reis capítulos 1 a 11. A fama atribuída a Salomão, de homem de muita sabedoria e muitos escritos, apenas o confirmaria como o autor destes três textos. Desde muito, essas informações introdutórias têm sido questionadas, não apenas quanto à sua veracidade como quanto ao o que de fato querem 1 SABEDORIA SALOMÔNICA dizer. Ao afirmar „de Salomão‟ („do pregador‟), o texto poderia ter tido a intenção de informar diversas coisas diferentes (1): Salomão é o autor. Salomão é o assunto Salomão é a quem o escrito foi dedicado Salomão é o designativo de uma tradição literária e de sabedoria que se inspirou na atividade intelectual do personagem histórico e a continuou. O questionamento da autoria de Salomão como a tradição entende é baseada, entre muitos outros, nos seguintes pontos: A própria informação bíblica (Pv 25.1) que menciona os escribas do rei Ezequias, que viveu 200 anos depois de Salomão. A dificuldade prática de entender que alguém com os afazeres de um rei poderoso, afamado (e mulherengo) teria tempo para toda a produção literária que lhe é atribuída. Preocupações, filosofias, pensamentos e estilo que os escritos exalam seriam característicos de uma época posterior. A postura comum da visão crítica é que Salomão não foi o autor de nenhum dos três livros, mas apenas o seu nome foi utilizado para dar visibilidade à obra, conforme explanação de um conceituado comentarista: Foi convenientemente apropriado para os sábios de Israel atribuir todo o cabedal de sabedoria judaica a Salomão, pois, como observado, seu reino foi caracterizado por uma visão cosmopolita. (....) Devido ao seu temperamento e ao seu interesse, Salomão era esplendidamente qualificado para ser o patrono da sabedoria. Embora a literatura sapiencial de Israel viesse a florescer em forma escrita somente após a queda da nação, há boas razões para acreditar que essa tradição de sabedoria recebeu seu grande impulso durante o reinado de Salomão. (2) Os argumentos utilizados nesse questionamento têm sido rebatidos pelos estudiosos que defendem a autoria tradicionalmente aceita. A causa da época Diretamente associado à causa do autor está a época de sua produção. Não existe nenhuma evidência concreta para substanciar qualquer data de produção dos livros aqui abordados. Buscam-se sim indicações indiretas, como o desenvolvimento da literatura nas culturas circunvizinhas de Israel, e preocupações e visões novas de mundo que vão surgindo, como o caso da aurora da filosofia grega. De um modo geral, os que renegam a autoria do Salomão histórico, que teria ocorrida do século X AC, situam a produção desses escritos após a volta de Israel do exílio, isto é no século VI AC ou mesmo mais recente. Quanto a Eclesiastes, muito comentarista não o vem como possível antes dos anos 250 a 200 AC. 2 SABEDORIA SALOMÔNICA Esta discussão da autoria e época não é algo inofensivo ou de interesse acadêmico restrito. A autoridade e a finalidade que atribuímos ao texto dependem do resultado dessa discussão. Quanto ao presente trabalho, por ideologia, preferência pessoal e força de argumentos fica aceito que estes três livros (Provérbios, Eclesiastes e Cântico dos cânticos) se originaram muito próximo, física e temporalmente, de Salomão, filho de Davi e rei em Jerusalém. A causa da intenção do texto O entendimento do texto sagrado da Bíblia tem seguido, desde muito tempo, duas escolas de interpretação. Interpretação alegórica Defende que há um sentido „oculto‟ nos textos bíblicos, que precisa ser revelado, para conseguirmos entender a sua mensagem. Não é possível apenas aceitar o que está escrito, mas é preciso ir adiante buscando interpretar seu significado para além do que está nas letras. Este „segundo sentido‟ presente em muitos textos poderia ter um significado espiritual ou moral. A alegorização mais comumente usada é entender que a Bíblia em essência fala de coisas acima e além dos limites dessa vida: se um texto fala que quem teme ao Senhor será rico (Sl 112.3), estaria se referindo tão somente a riquezas espirituais na vida eterna. E assim, para muitas correntes de estudo da Bíblia, todos os escritos de Salomão devem ser interpretados apenas alegoricamente, em um sentido espiritual. Por exemplo, a Bíblia Hebraica em português (Editora Sefer) identifica os dialogantes de Cântico dos cânticos como Deus e Israel, ainda que o texto faça referências a „beijos de boca‟ e „leito frutífero‟. Interpretação literal Por outro lado, há aqueles para quem vale o que está escrito. As palavras significam o que dizem e não há nelas segundos sentidos que precisariam ser decifrados; as metáforas e alegorias empregadas devem ser entendidas como ilustrações para clarificar o entendimento do que se diz. Obviamente, todo o texto sagrado (e todo o texto) precisa ser questionado com: o que realmente o autor quis dizer? As palavras podem mudar de sentido de uma pessoa para outra, e muito mais entre épocas. Os pensamentos podem ser expressos e entendidos seguindo raciocínios diferentes. Tudo contribui para que não possa existir uma interpretação literal pura, mas a preocupação é que seja desnecessário buscar segundos sentidos que estariam ocultos por baixo do escrito, em avaliações que demandariam análises do tipo: o autor escreveu x, mas o que ele de fato queria dizer é y. Felizmente, no estudo moderno da Bíblia resta pouco espaço para a interpretação alegórica, por duas razões principais: Ela conduz a um entendimento que a Bíblia não é acessível a todos. Seria necessária uma iniciação para os segredos contidos e sua compreensão. Esta pressuposição é anti-bíblica. Ela deixa aberto um espaço ilimitado para criatividade. Cada um pode desenvolver uma nova interpretação do que os elementos do texto significam e não há limite para a quantidade de interpretações diferentes (e conflitantes). 3 SABEDORIA SALOMÔNICA Não é possível, porém, entender e defender a interpretação literal sem considerar a ferramenta da exegese, o estudo do significado do texto bíblico: “A palavra exegese é oriunda do grego exegeomai, exegesis: “ex” tem o sentido de retirar, derivar, ex-trair, ex-ternar, exteriorizar, ex-por e "hegeisthai" o de conduzir, guiar. Por isso, o termo exegese significa, como interpretação, revelar o sentido de algo ligado ao mundo do humano, mas a prática se orientou no sentido de reservar a palavra para a interpretação dos textos bíblicos”. (Wikipedia) A interpretação dos livros de Salomão deve ser totalmente literal, o que significa que o objetivo desses escritos NÃO É DE NATUREZA ESPIRITUAL, embora tragam consigo a preocupação pelo espiritual que deve estar presente no cotidiano de qualquer pessoa. A causa da canonização Há evidências no que sabemos sobre o processo de formação da Bíblia que os escritos de Salomão foram objeto de muita discussão sobre se deviam ou não integrar a Bíblia. O processo de formação da Bíblia, também chamado de cânon bíblico, e por extensão de canonização, ainda não é totalmente claro quanto às suas datas e eventos mais relevantes. O que sabemos como certo é que: No tempo de Jesus, a escritura aceita como sagrada era composta da Lei (os livros de Moisés) dos Profetas (basicamente o que conhecemos como os livros históricos e os profetas maiores) e dos Salmos (Lc 24.44). Após os primeiros séculos do cristianismo (por volta do ano 400) as evidências são que o Velho Testamento já era aceito tal como é hoje, tanto pela religião judaica como pela Igreja Cristã (com as posições divergentes em relação aos ditos livros apócrifos). O restante do Velho Testamento da Bíblia, além de Lei-Profeta-Salmos foi sendo (gradativamente?) aceito como sacro nos séculos imediatamente antes ou depois do tempo de Jesus. Na discussão sobre o valor sacro desses últimos livros aceitos no Cânon, os livros de Salomão e de modo particular os dois últimos deles foram bastante questionados. Cântico dos cânticos seria apenas „literatura carnal‟ e Eclesiastes seria refutado pelo seu espírito contestatório à ortodoxia religiosa. Ainda hoje, a natureza desses escritos e mesmo uma falta de autoridade moral de Salomão para os assuntos tratados, por vezes desclassificam esta literatura, que chega a ser considerada menos inspirada e desmerecedora de atenção. A causa da tradução O nosso entendimento da mensagem bíblica está sujeita à sua tradução para a nossa língua corrente, e muito do que conseguimos compreender da mensagem depende de como o texto foi vertido. Esta é uma questão que ganha maior relevância, conforme mais traduções vão se tornando disponíveis. Sabemos por experiência que uma leitura bíblica em uníssono em uma reunião qualquer atualmente deve ser orientada por uma projeção 4 SABEDORIA SALOMÔNICA do texto em tela, pois do contrário só se obterá um murmurar incompreensível. Muitas vezes a multiplicidade de traduções vem nos ajudar, ao usarmos versões que lidas em contraste nos ajudam a ter uma ideia mais apurada do que se fala. Outras vezes, ficamos frente a textos tão dispares que não conseguimos conciliá-los e só nos resta a dúvida de saber quem está (mais) certo. Adotar uma tradução como referência passou a ser uma decisão relevante, e compete-nos, ao fazê-la, questionar suas credenciais. O texto padrão aqui adotado é a denominada “Edição Revisada e Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil”. A utilização de outras versões está sempre identificada após sua citação. A causa dos ajudadores Uma ultima questão, que na prática é um filhote da anterior, diz respeito a quem pedimos ajuda para a compreensão do texto que desejamos considerar. Vivemos presentemente o fenômeno da “Bíblia de Grife” – a apresentação personalizada do texto bíblico, ao qual se adicionam notas explicativas e comentários. Tais notas não são texto sagrado, são tão somente entendimentos particulares do texto, que muitas vezes buscam enfatizar um ponto de vista de interesse do patrocinador da edição. Como „grifes‟, estas Bíblias exibem etiquetas que as identificam e também identificam seus portadores como ligados ou simpáticos àquela marca. A quantidade de “novas” Bíblias publicadas é impressionante e muito além da capacidade de absorção do mais compenetrado estudioso. (Recentemente foram lançadas: Bíblia A Mensagem, Bíblia de Lutero, Bíblia Apostólica, Comentário Bíblico Africano, Bíblia Mac Arthur...). Já dizia o Pregador: “de fazer muitos livros não há fim...” Se devemos escolher com cuidado que versões da Bíblia fazer uso, muito mais critério devemos ter com o auxílio que usamos. Devemos conscientemente identificar qual é o propósito e as pressuposições do material de apoio e explicação que usamos. A causa nossa E ao fim as causas se tornam a nossa causa: o que fazer com tudo isso? Deixar de estudar a Bíblia porque só nos deparamos com confusão, conflitos e debates? Estudar tudo, absorver tudo, comparar tudo para aí poder, quem sabe, se situar? Quem tem tempo e habilidades para tal? Só há uma possibilidade: estudar a Bíblia, porque necessitamos disto. Devemos seguir um roteiro que nos propicie conforto e segurança, e então não esquecer o mais importante: com humildade e insistência suplicar a ajuda do Espírito Santo para nos guiar à verdade (João 16.13). Fiados nesta promessa podemos nos beneficiar do que a Bíblia tem a oferecer. Apenas devemos começar fazendo a nossa parte. (1) Tremper Longman III “Song of Songs” William B. Eerdmans, EUA, 2001 p.3. A discussão no livro é para a autoria de Cântico dos cânticos e aqui extendida. nd (2) Bernhard W. Anderson “Understanding the Old Testament” 2 ed., Prentice-Hall, EUA, 1966 p.495 5