Jaime Milheiro 1 UMA CRIANÇA A CRESCER HIPERACTIVIDADE Sintomas Hiperactivos são crianças irrequietas de forma compulsiva, com défices de atenção e dificuldades de concentração (embora esses défices possam existir sem hiperactividade), com excitação pouco motivada e agitação à vista. Fala-se nesta altura duma prevalência de 6 a 8% em Portugal, com 60% de rapazes. 60% têm problemas de leitura e de escrita 40% têm condutas de oposição e desafio 10% têm tiques e envolvem-se facilmente em acidentes, com urgências hospitalares repetidas. Todas sofrem e provocam sofrimento pela impaciência, desadaptação e intolerância que accionam e pelas dificuldades de relacionamento que propiciam. Todas apresentam ansiedade à flor da pele, curiosidade, inteligência e criatividade, muitas vezes acima da média, numa constante procura de novidade e aventura. O seu número tem aumentado de forma manifesta, sobretudo em crianças nascidas por cesariana, segundo estudos americanos que falam de prejuízos na construção do sistema imunitário. Cerca de um terço transita para a idade adulta. Compreender uma criança hiperactiva será ajudá-la a organizar-se por dentro e por fora, sobretudo através de palavras, afectos e orientações. Será tentar pensar causas e soluções, na interacção com elas. Gritar, exaltar, bater, apenas momentaneamente encobre. Lembraria que os fármacos que nas situações mais graves também se usam, não são sedativos: são estimulantes do sistema nervoso central. Analisando Logo numa primeira observação se percebe que défice de atenção e hiperactividade não são situações originárias. São consequências. Algo funciona mal naquela criança, expresso daquela forma, na relação com os outros. A sua história natural do desenvolvimento encontra-se perturbada, sem vacinas nem brinquedos suficientemente recuperadores. (Lembraria que as arvores crescem sem que ninguém as puxe… não é preciso… crescem para cima, contra a força da gravidade, apenas Jaime Milheiro 2 necessitando que lhes respeitem as raízes e que não as envolvam de ervas daninhas. Lembraria também que não há ciência nenhuma no crescimento, seja conhecimento físico, psicológico, neurológico, emocional ou outro… há apenas a natureza a funcionar, num registo de satisfação/insatisfação e numa capacitação de resiliência/vulnerabilidade, inserido num clima ambiental… onde muita ciência até pode prejudicar). O ser humano transporta no ADN as suas condições essenciais de crescimento, tal como as outras espécies. Modela-as e confere-lhe identidade na relação com os outros. Cada pessoa organiza o seu próprio aparelho de sentir, pensar e emocionar desde o primeiro dia, desenrolando bem ou mal as suas fundamentações evolutivas nas situações em que vive. Nos hiperactivos, há parcelas desse processo de organização e crescimento que aparecem desfocadas. A capacidade de representar mentalmente um objecto externo, a capacidade de simbolizar objectos e sons, a capacidade de adiar o desejo, parecem insuficientemente desenvolvidas, desajustadas ou descoordenadas. Eles mexem, remexem, repetem, atrofiados por bloqueios. Parecem incapazes de representar de novo, de simbolizar adequadamente, de adiar pacificamente, como quem não teve tempo para aprender ou não recebeu as palavras necessárias. À maneira dum coxo nessa matéria do tempo e das palavras, fragilizados em tais funcionalidades, resta-lhes agir a sua própria impossibilidade na comparação com os outros, movendo-se para não pensar ou por não poder falar sobre o seu próprio pensamento. Transmitem a ideia de que se encontram avassalados por ruídos permanentes. Incapacitados de silenciar ou interromper esses ruídos internos, com dificuldade em prestar atenção aos demais, será nessa área da formação do tempo e das palavras que terão de ser restabelecidos, por quem com eles possa estar, falar e temporizar. Como se atrofiaram tais funções? Donde virão esses ruídos e como se instalaram dentro de si? Podem ter havido estimulações excessivas ou passividades demasiadas, com indefinições de papéis e repercussões expressivas. Podem ter havido heroísmos projectivos dos pais e accionamentos desmedidos em vez de afectos e palavras, num prejuízo que lhes afecta as potencialidades elaborativas e lhes fomenta fugas para o movimento. Podem ter havido regressos deliberados ao grunhido anterior às palavras e à satisfação imediata do desejo, sobretudo em pais de aluguer, à maneira de transmissões pessoais apenas tecnológicas. Podem ter havido influências, ou até causas como muitos hoje pretendem, de problemáticas relativas ao cérebro e às neurociências, ou a situações inflamatórias crónicas dos intestinos provindas de alimentações desapropriadas (glúten). Cientistas de Harvard afincadamente defendem estas últimas. Jaime Milheiro 3 A mim parecem-me haver, sobretudo, problemas de relação. As crianças hiperactivas serão um produto da forma como se relacionaram com as figuras significativas. Nesse registo terão de analisar-se e tratar-se. O seu aumento de frequência reflete os actuais modos de relação. Serão, provavelmente, um preço daquilo a que chamamos civilização, embora os factores psicossociais não possam totalmente omitir outras razões, genéticas incluídas. Escala das necessidades humanas (A. Maslon) Necessidades fisiológicas: comer, beber, respirar Necessidades de segurança: corpo, saúde, bens, propriedade Necessidade de afecto e identidade: amor, amizade, família, grupo Necessidade de estima: dos outros e de si mesmo, confiança pessoal Necessidade de realização: trabalho, criativade interna e externa. Saúde Mental Numa criança a crescer, a Saúde Mental não é apenas um conjunto de manifestações movidas por circunstâncias médicas ou outras. É uma capacidade que se vai normalmente adquirindo. Uma tríplice capacidade de se relacionar consigo mesma, com os outros e com a vida circundante, num processo em que basta faltar uma parcela para dúvidas surgirem, ansiedades se avolumarem e descompensações acontecerem. Ninguém nasce com Saúde Mental, tal como ninguém nasce com doença mental. À nascença, apenas se transportam elementos informes. Nascidos prematuros, por completo dependentes de quem os agasalhe, os seres humanos obrigam-se desde bebé a interiorizar as vicissitudes da sua relação com pais, professores, ídolos e outros adultos significativos, disso fazendo os seus grandes pontos de identificação. Nesse movimento instalam as suas faces boas e más, os seus modelos e princípios, as suas gratificações e frustrações, absorvendo-as numa complexidade que os vai orientar toda a vida. É nesse ambiente relacional que a Saúde Mental se vive e muitas vezes se atrofia e derrama as respectivas ansiedades para comportamentos ou para doenças do corpo. Num trajecto normal, a criança tendencialmente sedimenta três condições psicológicas fundamentais: sentimentos de autonomia, sentimentos de responsabilidade e consciência de si. Outras aquisições, como capacidade de decisões e de escolha, por exemplo, sentidos de justeza e de justiça, respeito pelos outros, tolerância à frustração, aceitação da diferença, ausência de vitimização, possibilidade de estar só, nesses pilares se enraízam, formatando o conjunto que presidirá a todas as suas sensibilidades e julgamentos, a todos os seu equilíbrios e desequilíbrios. Sempre instável, mais frágil ou resiliente conforme a coesão e a coerência, esse equilíbrio também dependerá da dimensão invasiva das circunstâncias e da sua eventual ressonância, pelo que a Saúde Mental nunca será um edifício cujas virtudes e defeitos possam ser apresentadas Jaime Milheiro 4 em geometrias ou números. É na pessoa, no caminho que ela vai construindo, que o futuro duma criança a crescer terá de mirar-se, observar-se e dialogar-se, não através de injecção de medicamentos ou de artifícios ocasionais. Quanto mais mascarado for processo, quanto maior for o grau de mentira em que a criança se construa, mais vulnerável será. Máscaras e ausências arquitectam cenários em que as palavras e conceitos perdem sentido e finalidade, agravando a situação. O mesmo de passa se forem falseadas as chamadas relações de poder. Lembraria, por exemplo, que muitos adultos utilizam palavras como afecto, dignidade, confiança, segurança, solidariedade e outras, sem dizerem coisa nenhuma e sem sequer lhe cuidarem do significado. Ou como exigem sacrifícios apenas aos outros disso fazendo esplendorosa escola, nos sistemas informativos que temos. Ensino: em casa: na escola Em minha opinião, da mesma maneira que se ensinam suportes básico de saúde (socorrismo, respiração assistida, postura nos acidentes, caminhos de sobrevivência) deveriam ensinar-se suportes básicos de Saúde Mental, na escola e em casa. Deveria ensinar-se aquilo que se calhar toda a gente sabe mas esquece, no sentido de prevenir ou contrariar inúmeros malefícios, assepsias e ostentações que recaiem sobre quem não tem culpa nenhuma e que apenas servem para compensar fragilidades dos adultos. Nas actuais vivências relacionais, diminuídas muitas das antigas diferenças económicas, sociais e culturais, alterados muitos dos valores religiosos, éticos e morais, desmoronadas muitas hierarquias, por entre enormes colheitas e indesmentíveis benefícios proporcionaram-se graves desmesuras. No imediatismo expansivo que tudo tornou normal e normalizado, projectos, compras, dívidas, viagens, acessos, romarias, deixaram-se embalar por uma total incapacidade de distinguir o essencial do secundário, transformando muitos cidadãos em quase “sem abrigo” mentais. Excluíram-se condições mínimas da Saúde Mental, confundiram-se democracias exteriores com organizações interiores, impuseram-se às segundas as regras da primeira, num absoluto sem sentido. Simulam-se aproximações que afastam as pessoas mais ainda, confiscando-lhes muitas vezes as próprias identidades. È nesse clima que a hiperactividade se cultiva. O não cumprimento do tempo necessário para “digerir” um estímulo, antes que outro se considere, promove acumulações tensionais e sofrimentos a que depois chamamos hiperactividade, falta de atenção, stress, cansaço, depressão e afins. Mas a cultura parece interessada em demonstrar que a relação entre as pessoas não passa duma descarga química ou medicamentosa (uma Jaime Milheiro 5 descarga “neurocientífica”), apenas sujeita a ponteiros e clicagens como se fossemos automóveis ou computadores. Em todos esses imediatismos há uma acentuada discrepância entre o que se promete e o que se dá, numa pavorosa falência da possibilidade de sonho e numa enorme surdez sobre as perturbações geradas na criança. Perante uma criança hiperactiva cada um terá de observar, observandose. Terá de procurar ler e decifrar, lendo-se e decifrando-se. Terá de cuidar das suas próprias capacidades de simbolização e de adiamento, das suas palavras e afectos, das relações e das trocas, da parte que lhe falta cumprir. Antes de procurar silenciá-la em medicamentos, deverá pensar onde ela está e onde mora, cogitando o seu próprio contributo para o que verdadeiramente acontece. Pensar na pegagia e na auto-pedagogia, mesmo sabendo que, lá fora, a grande maioria está pouco interessada em mudar seja o que fôr. COLÓQUIO: “O PROBLEMA DAS CRIANÇAS HIPERACTIVAS” CONVENTO CORPUS CHRISTI em GAIA 18/4/2015 Jaime Milheiro (Psiquiatra-Psicanalista)