UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS Um viés constitutivo do sujeito na terapia de linguagem com uma criança autista Dissertação apresentada à PósGraduação em Letras da UFPB, sob a orientação da profa. Dra. Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras. JOÃO PESSOA 2006 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS Um viés constitutivo do sujeito na terapia de linguagem com uma criança autista Juliana Costa Maia JOÃO PESSOA 2006 2 Este estudo é dedicado a minha tia, Norma Costa, exemplo de vida. 3 Agradecimentos especiais Agradeço à fonoaudióloga Andréa Coelho que, mesmo sem me conhecer, acreditou na minha idéia, aceitou o meu estudo e partilhou comigo momentos particulares de uma terapia muito bem sucedida que acontece já há alguns anos. Pela segurança que tem em seu trabalho e pelo ser humano maravilhoso que é, Andréa tornou possível que esta dissertação de Mestrado acontecesse fiel ao seu maior objetivo: o de retratar uma terapia de linguagem com uma criança autista. Andréa, a você meu profundo reconhecimento e agradecimento. Agradeço, também, à família de Hugo∗ por ter permitido que as sessões fonoaudiológicas fossem filmadas, acreditando que este estudo resultaria em algo positivo para o trabalho em linguagem com autismo. Em especial à mãe de Hugo, agradeço a compreensão e a sinceridade, por ter partilhado comigo e neste estudo momentos particulares de sua vida. Sem a compreensão de vocês, este estudo não teria sido realizado. Muito obrigada! ∗ Nome fictício 4 Agradecimentos A Deus, pelo dom da vida e pelas tantas bênçãos alcançadas. Força a que recorro nos momentos mais difíceis e, tenho a certeza, responsável pelas minhas maiores alegrias. Agradeço aos meus pais, Fernando e Leonor, pela união familiar, pelo espaço e incentivo que sempre nos deram em relação aos estudos e por toda a força e carinho. À minha mãe, em particular, agradeço o exemplo de pesquisadora e profissional exemplar. Aos meus irmãos, Manuela e Tiago agradeço pela torcida, pelo apoio e pelo amor partilhados; é muito importante saber que posso sempre contar com vocês. A Tiago, em particular, agradeço, além do companheirismo, a paciência de ter organizado as tabelas e configurado esta dissertação, valeu! Agradeço ao Nuno, meu marido e confidente, por ter mais que me “empurrado” para fazer este Mestrado, ter me ouvido e apoiado em todos os momentos e por acreditar que sou capaz de tudo. Agradeço, acima de tudo, pela família linda que estamos construindo juntos, base para que eu consiga caminhar serenamente. À minha filha Joana, pelo tempo que foi “roubado” das histórias e das brincadeiras, da convivência e das idas ao parque. Você é o grande motivo disto tudo. A minha filha Inês, que está chegando, agradeço por nos ter proporcionado mais uma alegria e benção em nossas vidas. Agradeço a minha tia, Tania Chaves, que me acompanhou no dia da entrevista, me tranqüilizando e proporcionando a calma necessária, e por ter lido, cuidadosa e carinhosamente esta dissertação, fazendo as correções gramaticais necessárias. Tia, obrigada por tudo. Agradeço a Anna Carvalheira, amiga e psicóloga, pela leitura cuidadosa e pela ajuda na estruturação do projeto de Mestrado. A sua ajuda foi o início desse trabalho final, muito obrigada! Durante a minha especialização, uma professora da UNICAP me disse que deveria fazer o mestrado, independente dos obstáculos, e a sua paixão pela fonoaudiologia e dedicação aos estudos e aos alunos são exemplos eternos para mim. Obrigada, Nadia Azevedo. Agradeço aos professores do Mestrado, cujos ensinamentos foram de grande valia para o meu estudo. Em especial agradeço às professoras Evangelina Faria e Fátima Melo, que fizeram parte da minha banca de qualificação, pelas contribuições enriquecedoras e pelo incentivo que me deram. À Marianne Cavalcante, minha orientadora, que leu o meu projeto numa fase muito inicial e aceitou me orientar. O apoio que me foi dado desde antes do processo de seleção foi fundamental para que este sonho se tornasse numa dissertação. Pela sua acolhida, pela sua leitura cuidadosa, pelos momentos produtivos de orientação, pelo convívio prazeroso, muito obrigada Marianne. Às amigas e amigos que conheci durante o Mestrado, agradeço a convivência harmoniosa. Às amigas e fonoaudiólogas, Janaina Sampaio e Iana Carvalho, pela convivência próxima durante estes dois anos, pela amizade partilhada durante as disciplinas de mestrado e durante as tantas viagens Recife – João Pessoa, trocando uma conversa boa e partilhando força e alegria que tornaram o tempo de mestrado tão mais rápido e fácil. A Jana, em particular, 5 agradeço pela força e pela ajuda dadas durante as diversas disciplinas que cursamos juntas, por sempre me lembrar das datas importantes e dos prazos a serem cumpridos. A essas duas grandes amigas agradeço, mais que tudo, por uma amizade que, espero, nos acompanhe por toda a vida. Às amigas e fonoaudiólogas Wilma Pastor e Renata Lima, agradeço os momentos que partilhamos juntas, as trocas importantes durante as disciplinas de mestrado e pela amizade. À amiga e fonoaudióloga Eliza Nóbrega, pela força dada desde o momento da seleção, pelo carinho com que sempre nos recebeu em sua casa, pelo sorriso franco, alegria e otimismo que tanto ajudam nos momentos mais necessários. À amiga Sandra Roque, pela experiência de vida partilhada, exemplo de força e garra, pela amizade sincera e pela acolhida calorosa em João Pessoa. 6 “O autismo não é algo que uma pessoa tenha, ou uma concha na qual ela esteja presa. Não há nenhuma criança normal escondida por trás do autismo. O Autismo é um jeito de ser, é pervasivo; colore toda a experiência, toda sensação, percepção, pensamento, emoção e encontro, todos os aspectos da existência.Não é possível separar o autismo da pessoa. E se o fosse, a pessoa que você deixaria não seria a mesma com a qual você começou. Os autistas são estrangeiros em quaisquer sociedades.” (Jim Sinclair, 1993) 7 SUMÁRIO Introdução I. Fundamentação Teórica 1.1. Teoria Psicolingüística e Aquisição de Linguagem 1.2. O lugar dos Estudos em Aquisição de Linguagem na Linguística 1.3. O quadro autístico: da patologia ao sujeito 1.3.1. A linguagem do autista: lugar de falta? 1.3.2. A linguagem do autista: o que apresenta? 1.3.2.1. Gesto e Fala II. Método III. Apresentação e análise dos dados IV. Considerações Finais V. Referências Bibliográficas Anexos: Termo de Consentimento e Livre Esclarecido e Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa da UFPB. 8 EXAMINADORES _______________________________________________ Profª Drª Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante (Orientadora) __________________________________________________ Profª Drª Evangelina Maria Brito de Faria __________________________________________________ Profª Drª Severina Sílvia Ma. O. Ferreira 9 Resumo Abandonando rótulos e noções pré-estabelecidas sobre características marcantes do quadro autístico, particularmente no que diz respeito à linguagem, esta dissertação tem como objetivo destacar uma criança autista como sujeito da fala. Como fundamentação teórica foram utilizados os estudos da lingüista De Lemos e colaboradoras, a fim de mostrar a linguagem como constituinte do sujeito, bem como autores tradicionais da área do autismo, como Kanner, Leboyer, entre outros. É um estudo de caráter qualitativo, observacional, e tem como participantes um menino de 07 anos de idade, com o diagnóstico fechado de autismo, e uma fonoaudióloga. As sessões filmadas ocorreram entre agosto de 2005 e maio de 2006 em um consultório particular da cidade do Recife / PE; o corpus da dissertação são recortes das transcrições destas sessões. É defendida a idéia de língua como constituinte do sujeito, com estrutura que envolve o sujeito que fala, as normas e o outro/interlocutor; sendo esses 3 constituintes indissociáveis e ocupando, na estrutura da linguagem, lugar de igual importância. Partindo das análises das transcrições das sessões fonoaudiológicas, a linguagem da criança autista é destacada como funcional e comunicativa e através da qual o sujeito se mostra e ocupa o seu lugar de falante. Assim concluíse que uma terapia de linguagem que aceite e interprete a fala tantas vezes enigmática da criança autista pode ser a porta da entrada para este sujeito na linguagem. 10 Abstract Leaving labels and pre-established knowledge about the main autistic characteristics, specially in what concerns language, this dissertation aims to show na autistic child as a language individual. As theorethical fundamentation, the studies of the linguist De Lemos and colaborators were used, in order to show the language as constituent of the individual, as well as tradicional authors from the autism area, such as Kanner, Leboyer, among others. This study has a qualitative and observational character and as participants a seven-year old boy diagnosed as autistic and a speech-therapist. The therapies sessions were filmed from August / 2005 to May / 2006 in a private clinic in the city of Recife. The “corpus” of this work are transcripted parts of these sessions. It is defended the idea of language as constituent of the individual with a structure composed by the person that speaks, the rules and the other/interlocutor; being these 3 components indissociated and occupying, in the structure of language, the same importance. Using the transcriptions from the speech therapy sessions, the autistic child´s language is pointed out as being functional and communicative. On that, the individual shows itself and ocuppies his place as a speaker. Thus, it is concluded that a language therapy that accepts and interpretates the autistic child´s talk, so many times considered an enigma, may be the entry door for this individual into language. 11 Introdução A expressão ‘autismo infantil precoce’ foi utilizada, inicialmente, em 1943 por Leo Kanner, um psiquiatra austríaco que descreveu um grupo de onze crianças com um padrão de comportamento que incluía: ausência de contato social, de fala ou fala sem função comunicativa, interesse e habilidade no manuseio de objetos e boa memória (ELLIS, 1996). Desde então, o tema tem sido estudado por diferentes disciplinas e desperta o interesse de diversos profissionais (CAVALCANTI & ROCHA, 2001). A descrição do autismo, com suas características, prevalência, incidência, e demais particularidades se dá, sobretudo, na literatura da área médica. De tal forma que o autismo tende a ser relatado como um quadro patológico com implicações severas nas áreas da interação social, linguagem e comportamento. Com o intuito de descrever o autismo de modo mais amplo, este estudo trará descrições das diversas áreas que contemplam o tema, independente de haver, ou não, concordância teórica, partindo da literatura tradicional na área – a literatura médica – até chegar a discussões recentes no campo de linguagem. Uma das características mais notáveis do autismo é a limitação na interação social. Em geral, as crianças autistas não respondem quando são chamadas, evitam o contato visual e não demonstram reação às emoções de outras pessoas, como se fossem “indiferentes” a tais manifestações (BERNARDOPTIZ, 1982). Crianças com autismo em geral mantêm-se, durante muito tempo, envolvidas em comportamentos repetitivos ou em comportamentos autoagressivos. A reação aos sons e aos estímulos táteis também foge ao padrão, podendo a criança autista reagir negativamente a um abraço, a uma tentativa de 12 aproximação física, mesmo que seja por parte de pessoas próximas a ela, como o seu pai ou a sua mãe (LEBOYER,2003). Comumente, a linguagem da criança autista é tida como descontextualizada e sem intuito comunicativo, de modo que tem a sua fala como mera repetição da fala do outro e é excluída do processo de interação pelo discurso. Ellis (1996) caracteriza a linguagem dessas crianças como sendo inadequada para a comunicação, podendo haver ecolalia1, gramática imatura, dificuldade na compreensão e atraso no seu desenvolvimento. Gauderer (1987) refere, para a criança autista, atraso ou ausência de linguagem, ritmo imaturo da fala e uso de palavras descontextualizadas. De acordo com Leboyer (2003), a comunicação verbal e não verbal do autista é comprometida. Segundo o autor, grande parte dos autistas não desenvolve a linguagem e quando o fazem é uma linguagem marcada pela ecolalia, inversão pronominal, ritmo “patológico” e ausência de intenção comunicativa. Ainda segundo Leboyer (op.cit), o autista é incapaz de compreender o uso de gestos no processo de comunicação e, por isso, sua comunicação gestual é inexistente. Como se vê, o autismo é retratado como um quadro limitador e de sérias implicações e o autista, consequentemente, como um sujeito à margem das relações sociais, que não percebe nem interage com o outro e que vive em um “mundo próprio”. Diante do quadro limitador a que está associado o termo autismo e considerando a importância que as alterações de linguagem têm para o 1 Repetição de palavras ou frases 13 diagnóstico e prognóstico deste quadro, um estudo que associe a linguagem do autista a um sujeito da fala (e não a um sujeito “vazio”) pode contribuir para que o autista perca o lugar de “não falante”, “concha vazia” ou “buraco negro”, e assuma o seu papel de autor do discurso. Assim, este estudo tem como objetivo mostrar uma linguagem diferente da que é tradicionalmente atribuída ao autista. Defendendo a hipótese de que se o fonoaudiólogo se utilizar da perspectiva de linguagem proposta por De Lemos: uma linguagem que tem como marco seu caráter constitutivo, uma linguagem constituída por três pólos igualmente “importantes” para a formação da estrutura lingüística: o pólo do sujeito (da fala), do outro (daquele que ouve) e o pólo da língua (estrutura), favorecerá a entrada do sujeito no diálogo. O terapeuta de linguagem passará a trabalhar então numa estrutura de língua que faz dele um participante que está imbricado numa noção maior de língua, não podendo dela ser dissociado, ao mesmo tempo em que é co-adjuvante para que o sujeito (paciente) se estruture e se coloque como autor da sua fala. Desta forma, não temos mais o terapeuta de linguagem que “ensina” o seu paciente a falar, mas, sim, um terapeuta que está, juntamente com o seu paciente, em uma estrutura de língua na qual deve surgir o sujeito da fala e ao mesmo tempo, deve acontecer a movimentação deste sujeito na língua enquanto se constitui como tal. Assim, o terapeuta assume a posição de “intérprete” da língua, e aqui se usa o termo intérprete no sentido proposto por Surreaux (2005: 171): “a interpretação tem o objetivo de alinhavar uma possibilidade de sentido no movimento dos dizeres entre paciente e terapeuta”, dando significado aos 14 enunciados da criança, e, provavelmente, permitindo que a criança se coloque no e pelo discurso, sendo parte efetiva do processo dialógico. Este estudo surge da necessidade e inquietação profissional de se colocar o autista enquanto sujeito ativo e inserido no mundo da linguagem; surge da necessidade de se estudar a díade atribuindo a ambos (terapeuta e criança) a mesma importância constitutiva para a situação de interação. Ao invés de apenas descrever as singularidades lingüísticas apresentadas pelo autista, sem negar que existem, nosso objetivo é mostrar uma linguagem que é funcional e que, como em qualquer processo de aquisição de linguagem, precisa do outro / interlocutor para acontecer. Este trabalho apresenta seu primeiro capítulo de fundamentação teórica dividido em três partes: na primeira é abordada a Psicolingüística e os estudos em Aquisição de Linguagem, situando o surgimento da psicolingüística e as correntes que dominaram o campo; na segunda discute-se a relação da Aquisição de Linguagem e o interacionismo na Lingüística, apresentando os estudos da lingüista brasileira Cláudia de Lemos e colaboradoras e a noção de linguagem enquanto constituinte do sujeito; na terceira e última, é abordado o quadro autístico, com um breve histórico dos estudos sobre o tema, bem como suas características, sinais e sintomas, seguido de dois sub-tópicos onde são apresentadas concepções da literatura sobre a falta de linguagem do autista e num outro, o que esta linguagem autística apresenta. Também será brevemente abordado o tema da gestualidade do autista, contemplando a idéia defendida aqui de gesto enquanto linguagem, fazendo uso de recortes de sessões terapêuticas transcritas com esta finalidade. 15 O segundo capítulo, o da Metodologia, apresentará os procedimentos metodológicos adotados para a execução deste estudo. Num terceiro capítulo, apresentação e análise dos dados, de cunho analítico, serão mostrados recortes de transcrições de sessões fonoaudiológicas envolvendo uma terapeuta e uma criança autista de 07 anos de idade, ambos da cidade do Recife. As filmagens foram feitas em um consultório particular e ocorreram durante 09 meses, num intervalo de, aproximadamente, 20 dias entre as filmagens, totalizando 12 sessões filmadas e transcritas na íntegra, das quais serão utilizados alguns recortes para ilustração e posterior análise dos dados. 16 I. Fundamentação Teórica 1.1. Teoria psicolingüística e aquisição de linguagem A literatura mostra que o processo de aquisição de linguagem pelo qual a criança passa desperta o interesse de estudiosos há muito tempo, embora estudos sistemáticos na área sejam relativamente recentes (ALBANO,1999; SCARPA,2001). Nos séculos XVIII e XIX passa a haver, na Europa, um interesse crescente pela criança no sentido de que esta deixa de ser vista como um “adulto em miniatura” e passa a ser vista como um sujeito em desenvolvimento. Em conseqüência deste despertar para o desenvolvimento infantil, a Psicologia do Desenvolvimento ganha lugar de destaque e respeito e a linguagem infantil passa também a ser observada (ALBANO, 1999). No início do século XIX, os estudos referentes à aquisição de linguagem eram feitos, majoritariamente, pelos pesquisadores chamados “diaristas”, ou seja, pais que acompanhavam e descreviam o processo de desenvolvimento da linguagem de seus filhos em um contexto espontâneo, e ao longo dos anos. (SCARPA, 2001). Os estudos em aquisição encaixam-se no campo da psicolingüística, uma ciência que surge de forma muito particular, em 1954, num seminário elaborado por psicólogos e lingüistas pela necessidade de uma disciplina que englobasse a lingüística estrutural, a teoria da aprendizagem e a teoria da comunicação. Pela primeira vez surge uma disciplina com o intuito de responder às necessidades dos pesquisadores, mais especificamente, dos da área da psicologia da 17 aprendizagem, sendo, por isso, considerada como uma subárea da psicologia durante algum tempo (GUIMARÃES LEMOS, 2002). A demanda vinha da psicologia, como coloca Guimarães Lemos: “(...) parece que o esforço de criar a psicolingüística teve origem num ponto de ruptura do discurso da psicologia, à medida que ele parecia não poder mais fazer frente às exigências de cientificidade sem modificar uma posição empirista.” (GUIMARÃES LEMOS, 2002, p:67). Até o fim da década de 50, a teoria que prevalecia nos estudos em aquisição de linguagem era a behaviorista, que tomava a língua como comportamento aprendido através do estímulo recebido do meio. Skinner, psicólogo e representante do behaviorismo, enquadra o comportamento verbal nos mecanismos estímulo – resposta – reforço, que seriam a base do comportamento. (SCARPA, 2001). Nesta concepção, a criança não tem um lugar de destaque, é vista apenas como “menos preparada” para a linguagem do que um adulto. (FARIA, 2002). Segundo Guimarães Lemos (2002), o objeto da psicolingüística é o “language behaviour” que seria “produzido pelo apagamento da ordem lingüística cuja alteridade se reconheceu num momento imediatamente anterior, para fazer então da linguagem um comportamento entre outros” (GUIMARÃES LEMOS, 2002, p.70). Ainda segundo a autora, a psicolingüística, neste momento, não se detinha nos problemas da aquisição, mas sim em “questões como a realidade psicológica da gramática, comportamento gramatical, repertório lingüístico, etc. Na verdade, parece que os estudos em aquisição de linguagem não sofreram uma modificação essencial e seguiram na orientação que já existia anteriormente – que consistia numa espécie de quadro de desenvolvimento, em que o principal era registrar uma séria de marcos no desenvolvimento lingüístico (...).” (GUIMARÃES LEMOS, 2002, pp. 71,72). 18 A linguagem, tal como qualquer outra atividade mental, era tomada como uma cadeia de estímulos e respostas e os estudos nesta área buscavam apenas confirmar a existência de seqüências de estímulo-resposta no processo de aprendizagem de uma língua (ALBANO, 1999). Ou seja, cabia aos pesquisadores em aquisição mostrar a língua como um comportamento aprendido em conseqüência de estímulos repetidos. Todo o processo de aquisição poderia ser observável como mais um aprendizado de comportamento. Em 1959, ocorre uma modificação do viés que norteia os estudos em aquisição. O lingüista Noam Chomsky escreve uma resenha sobre o livro Comportamento Verbal, de autoria do psicólogo Skinner, na qual lança a idéia de língua como capacidade inata e comum aos seres humanos. Para Chomsky, o ser humano nasce dotado de um mecanismo próprio para a linguagem que será deflagrado pelo input. Há, segundo Faria (2002), uma conversão imediata ao discurso de Chomsky, e o behaviorismo perde espaço para o inatismo. Aqui, já não é mais a psicologia que domina a psicolingüística, mas sim a lingüística que domina a área. “Com a adesão a Chomsky, a linguagem vai passar de comportamento a saber e essa substituição torna obsoleta e demanda de um instrumental analítico descritivo capaz de fundamentar a análise do comportamento verbal, pois este passa a ser apenas a manifestação desse saber.” (LIER - DE VITTO, 1995, p. 23). O argumento de Chomsky contra a teoria behaviorista de Skinner era que a criança aprende, num curto espaço de tempo, uma língua que é mais complexa e completa do que aquela que ouve; portanto, teria de haver um mecanismo inato da linguagem que permitisse à criança desenvolver a linguagem da forma que a faz. (SCARPA, 2001). 19 Ficou conhecida como “Problema de Platão” a impossibilidade que Chomsky vê na linguagem como comportamento aprendido devido à pobreza e limitação de input que é recebido pela criança (FARIA, 2002). Chomsky afirma que usamos estruturas complexas para falar e isso só é possível por já nascermos dotados de tais estruturas. Segundo ele, a teoria Skinneriana, ou qualquer outra teoria da aprendizagem, não é capaz de explicar o processo pelo qual a criança passa nesta suposta aprendizagem da língua (ALBANO, 1999). Chomsky refere-se mesmo a um mecanismo LAD (Language Acquisition Device) que seria inato e que permitiria à criança o domínio de sua língua materna, de forma rápida e fácil. Com Chomsky, a língua perde o seu caráter de comportamento aprendido e passa a ser algo inato, natural à espécie humana. Para ele, toda criança já nasce dotada de uma Gramática Universal (GU) que tem princípios universais referentes à linguagem e parâmetros que irão assumir seu valor quando em contato com a língua materna (SCARPA, 2001). Neste momento, com a teoria inatista, os psicolingüistas se ocupam em escrever uma gramática da criança e de dar conta da temporalidade implicada no trajeto que a criança percorre entre o não falar e o domínio da língua, partindo da noção de universais lingüísticos presentes na capacidade de linguagem e considerando a aquisição de linguagem como instantânea. (FARIA, 2002). A linguagem infantil seria a prova de que a língua é um mecanismo inato, uma vez que existem estruturas lingüísticas muito complexas em uma fase inicial do desenvolvimento (ALBANO, 1999). 20 Por ser algo inato e ter um mecanismo próprio, a aquisição de linguagem, segundo a teoria Chomskyana, ocorre independentemente do desenvolvimento cognitivo e padrões comportamentais. Assim, a interação social não tem qualquer influência na aquisição de linguagem (SCARPA, 2001). De acordo com a teoria Chomskyana, os indivíduos nascem portadores de uma Língua Interna (doravante L.I.). Desse modo, a linguagem não seria adquirida ou desenvolvida, mas ela está no indivíduo graças à capacidade inata que ele tem de “deflagrar” a L.I. ao entrar em contato com a Língua Externa (doravante L.E.). A grande questão e justificativa para os argumentos de Chomsky era que a criança estava exposta a uma fração distorcida da língua e, no entanto, conseguia ter um output lingüístico além do input recebido. Logo, as crianças só poderiam compreender e criar novos enunciados porque nascem dotadas da L.I. que permite o surgimento da L.E. (FARIA, 2002). Nos estudos Chomskyanos sobre linguagem, não é dado espaço para a subjetividade, uma vez que este não é o objetivo de Chomsky. Segundo ele, o indivíduo nasce apto para falar, exceto em caso de alterações biológicas limitantes, e o fará independente do seu desenvolvimento emocional e cognitivo. Em seus estudos, o interesse é pela compreensão da L.I., ou seja, da competência que o indivíduo tem para a fala, de modo que a L.E. não é enfocada. Este fato implicou mudanças metodológicas nos estudos aquisicionais uma vez que a capacidade lingüística do indivíduo deixa de ser mensurada pelos seus enunciados e passa a ser considerado o raciocínio do sujeito falante. Os estudos Chomskyanos tentam determinar o conteúdo do sistema de conhecimento do falante, tido como sistema computacional da capacidade da linguagem. 21 O funcionamento da linguagem nesta teoria, baseado em cálculos matemáticos 2 implica uma idéia clara, homogênea (FARIA, 2002). Assim, há a exclusão da subjetividade e se pode idealizar conceitos utópicos, tais como: nível zero de linguagem e nível completo de linguagem e falante ideal. A criança, na teoria Chomskyana, assume o lugar de um mero portador da LI e o outro/interlocutor não é sequer considerado, tendo apenas relevância o input lingüístico para os estudos Chomskyanos. A teoria de Chomsky, através de cálculos matemáticos, permite a idéia utópica do falante perfeito, do indivíduo que já nasce portador da L.I., dotado de uma Gramática Universal (comum a todos os indivíduos) e que, ao entrar em contato com a L.E., irá, naturalmente, ter linguagem. No fim da década de 70, estudos surgem em oposição à corrente inatista da aquisição da linguagem. A partir dos estudos de Jean Piaget, um epistemólogo suíço, surgiu a idéia de que a linguagem seria um processo cognitivo (SCARPA, 2001). Piaget, em seus estudos observacionais, chegou à conclusão de que a inteligência não aumenta em quantidade conforme a idade do indivíduo, mas sim em qualidade. Para ele, a inteligência de uma criança mais velha seria mais evoluída do que a de uma criança menor e, assim, seu objeto de estudo passou a ser as diferenças existentes entre os diversos modos de pensamento (ENDERLE, 1990). Para as suas pesquisas, Piaget fez uso do método clínico, observando as crianças de forma sistemática e em situação natural. De acordo com Piaget, o indivíduo nasce dotado da capacidade de aprendizagem, passando a assimilar os 2 Para maiores informações sobre a teoria matemática de linguagem, proposta por Chomsky, ver Faria, 2002. 22 estímulos que recebe do meio, denominados estruturas. Assim, a cada nova estrutura, há uma nova assimilação, uma reorganização mental das estruturas já assimiladas junto com a estrutura nova e um conseqüente aumento qualitativo do conhecimento. Esse processo pode ser chamado de “assimilação, reorganização e acomodação” e seria ele o responsável pelo desenvolvimento cognitivo e lingüístico do indivíduo (FERNANDES, 1996). De acordo com a teoria Piagetiana, a organização cognitiva se dá através da ação individual porque a ação tem função estruturante (LIER- DE VITTO, 1997). Para Piaget, a linguagem e o desenvolvimento cognitivo estão relacionados, sendo o cognitivo fundamental para que se dê o desenvolvimento da linguagem. Assim, tem-se primeiro o desenvolvimento cognitivo que, posteriormente, permitirá o desenvolvimento / aprendizado da linguagem. Se a ação tem função estruturante, ou seja, é a responsável pelo desenvolvimento cognitivo e isto acontece previamente ao surgimento da linguagem, então o raciocínio estaria, para os estudos Piagetianos, fora da linguagem (LIER-DE VITTO, 1997). Segundo esta teoria, o desenvolvimento estaria dividido em estágios que, obrigatoriamente, obedecem a uma ordem de acontecimento, indo do mais primitivo ao mais avançado. O primeiro e, portanto, mais primitivo dos estágios, é o estágio sensóriomotor, que tem início no nascimento e persiste até o surgimento da linguagem, aos 02 anos de idade, aproximadamente. Neste estágio, surge a inteligência reflexiva e a preocupação da criança seria em agir sobre o ambiente, tentando 23 executar determinadas ações. Este estágio é fundamental para o surgimento da atividade simbólica futura. Para Piaget, é por volta dos 18 meses de idade que a criança supera o estágio sensório-motor e desenvolve a função simbólica, ou seja, é capaz de associar um significante a um significado e aí desenvolve a linguagem (SCARPA, 2001). Por volta dos dois anos de idade, tem início o estágio pré-operacional, que vai até, aproximadamente, os seis anos de idade e tem como característica marcante o desenvolvimento da linguagem e da função simbólica. A linguagem surgiria em conseqüência da função simbólica. Tendo a linguagem como um sistema simbólico de representações, Piaget considera a aquisição da linguagem como decorrente da interação que se dá entre o meio e o organismo. Essa interação também seria responsável pelo desenvolvimento da inteligência em geral. A criança, com base em suas próprias experiências, vai desenvolvendo suas faculdades cognitivas e, consequentemente, a linguagem (SCARPA, 2001). O estágio das operações concretas, que vai dos seis aos doze anos de idade, tem como marco mais significativo o surgimento da noção de conservação. Nesta fase, a criança passa a assimilar e a realizar operações, i.e., age conscientemente sobre o ambiente. Após o estágio das operações concretas, é iniciado o estágio das operações formais, quando o indivíduo passa a refletir sobre as suas ações. Surge, então, o pensamento que independe da ação, o pensamento abstrato e a formulação de hipóteses. Assim, pela teoria Piagetiana, o pensamento seria um processo cognitivo que permite a interação do homem com o ambiente. 24 Como pode ser deduzido, o sujeito Piagetiano aparece como o sujeito da plenitude, embora não nasça “pronto” cognitivamente, consegue o seu desenvolvimento pleno através de suas ações com o meio. O meio social surge, para tal sujeito, apenas como o lugar onde ocorrem as experiências. O outro, assim como o social, não tem grande destaque na teoria Piagetiana uma vez que, sozinho, o indivíduo é capaz de assimilar uma nova experiência e reestruturar-se. Sobre a linguagem, estritamente, o que pode ser observado é que a teoria Piagetiana dissocia-a da subjetividade quando trata da ecolalia e do monólogo. Piaget (1993) afirma que a fala ecolálica é mera repetição de uma fala ouvida e que tal repetição serve apenas para o deleite pessoal da criança. Ele diz que as repetições acontecem independentemente das ações que a criança esteja realizando, sendo totalmente externa para a mesma, no sentido de não provocar qualquer reflexão ou mudança de atitude. A palavra é tomada, ainda segundo este autor (op.cit.), como auxiliar da ação que a criança está realizando. Para Piaget, a palavra está associada ao movimento da criança, como uma espécie de suporte para que ela consiga desempenhar uma ação motora. E a linguagem seria aprendida por repetição. Como nos mostra a literatura, estudos posteriores ao de Piaget criticaram a pouca ênfase dada por ele às interações sociais no processo de desenvolvimento. Vygotsky surge como um estudioso que incorpora às idéias centrais de Piaget a importância do social e do outro no processo de desenvolvimento cognitivo da criança. Para ele, o desenvolvimento cognitivo e da linguagem está diretamente associado às experiências sociais que a criança vivencia (SCARPA, 2001). 25 Desse modo, ao contrário do que propõe Piaget, a criança não é um ser individual, que sozinho se estrutura e se desenvolve, mas sim um ser social, que desde o seu nascimento está exposto e sujeito ao meio social, sendo por ele influenciado (LIER-DE VITTO,1997). Os estudos de Vygotsky tinham como objetivo traçar um paralelo entre a fala e o pensamento no início do desenvolvimento filo e ontogenético. E, segundo o próprio autor (1987-2005), foi constatado em seus estudos não haver uma interdependência entre as origens do pensamento e da palavra e, mesmo sem tal interdependência, se dá o desenvolvimento da consciência humana. Segundo Vygotsky (1987-2005), não há uma ligação primária entre o pensamento e a palavra, existindo, assim, um período pré-linguistico do pensamento e um período pré-intelectual da fala. Na medida em que a fala e o pensamento evoluem, ocorre uma conexão que se modifica e também se desenvolve. Porém, como ressalta o autor (op.cit.), não se deve supor fala e pensamento como processos independentes e isolados que apenas se influenciam em determinados momentos. Não se pode tomar a fala e o pensamento como elementos independentes que, quando exteriorizados, formam o pensamento verbal porque as partes independentes não dão conta do todo que as constituem. Assim, para o autor, o pensamento verbal poderia ser analisado por determinadas unidades que comportam o todo, e tais unidades seriam o significado das palavras. Como explicado pelo autor: “o significado de uma palavra representa um amálgama tão estreito do pensamento e da linguagem, que fica difícil dizer se se trata de um fenômeno da fala ou de um fenômeno do pensamento. Uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da “palavra”, seu componente indispensável. Pareceria, então, que o significado poderia ser visto como um fenômeno da fala. Mas, do ponto de vista da 26 psicologia, o significado de cada palavra é uma generalização ou um conceito. E como as generalizações e os conceitos são inegavelmente atos de pensamento, podemos considerar o significado como um fenômeno do pensamento. (...) O significado das palavras é um fenômeno do pensamento apenas na medida em que o pensamento ganha o corpo por meio da fala, e só é um fenômeno da fala na medida em que esta é ligada ao pensamento, sendo iluminada por ele. É um fenômeno do pensamento verbal, ou da fala significativa – uma união da palavra e do pensamento.” (Vygotsky, 1987-2005, pp.150,151) Os estudos realizados por Vygotsky mostraram que, usando o significado das palavras como unidade de análise, é possível um estudo do desenvolvimento do pensamento verbal. E desta afirmação surge uma outra, a de que o significado das palavras evolui; deste modo, uma palavra não está presa nem limitada a um mesmo significado. Ainda segundo o autor (op.cit.), da mesma forma que os significados das palavras mudam, também ocorrem mudanças na relação existente entre o pensamento e a palavra. Esta relação é considerada como “um processo, um movimento contínuo de vaivém do pensamento para a palavra e vice-versa”. Vygotsky afirma, ainda, que o pensamento tem origem nas palavras. Em relação especificamente à fala, Vygotsky (1987-2005) faz uma distinção entre a fala interna, com seus aspectos semânticos, e a fala externa, ou oralizada, com seus aspectos fonéticos. Assim, não há, necessariamente, uma equivalência entre os aspectos internos e externos da fala, podendo mesmo haver movimentos diferentes ou opostos entre estes aspectos. A fala da criança, segundo o autor, é um bom exemplo disto. Quando do processo de aquisição de linguagem, o que se observa na fala externa é que a criança começa com uma palavra e daí aumenta o seu vocabulário progressivamente até formar frases e enunciados completos; contudo, 27 semanticamente, aquela palavra inicial emitida pela criança tem, para ela, um significado completo, carrega em si todo o enunciado desejado pela criança. “(...) semanticamente a criança parte do todo, de um complexo significativo, e só mais tarde começa a dominar as unidades semânticas separadas, os significados das palavras, e a dividir o seu pensamento, anteriormente indiferenciado, nessas unidades. Os aspectos semântico e externo da fala seguem direções opostas em seu desenvolvimento – um vai do particular para o geral, da palavra para a frase, e o outro vai do geral para o particular, da frase para a palavra.” (Vygotsky, 1987-2005 p.157). Em relação à fala egocêntrica, Vygotsky diz que esta fala seria um preparo ou uma etapa do desenvolvimento da fala interior, a fala egocêntrica apresentada pela criança desapareceria na idade escolar quando a fala interior começa, então, a se desenvolver. Assim, a fala individual seria um aprimoramento ou um desenvolvimento da fala egocêntrica. A criança vai passando de uma atividade de fala coletiva – fala egocêntrica – para a de uma fala individualizada. Para Vygotsky (1987-2005), a fala interior não só auxilia no desempenho das atividades exercidas pela criança, como ajuda na organização e orientação mental e, conseqüentemente, na superação de obstáculos. Como vimos pelo exposto, as teorias psicolingüísticas foram, num primeiro momento, de caráter comportamental, tomando a língua como comportamento aprendido e a criança como alguém que aprende por repetição, via estímulo – resposta. Esta fase teve início com Skinner e foi de curta duração, tendo sido logo substituída pela teoria inatista de Noam Chomsky, que atribuía à linguagem um caráter inato, biológico e, à criança, o papel de “executor” de uma gramática que já lhe pertencia. Num momento posterior à fase inatista, surgem os estudos baseados na teoria Piagetiana, que tinham como ponto central a idéia de que a capacidade de 28 aprendizagem era inata ao indivíduo e que se dava através da assimilação de novos conhecimentos. Vygotsky surge em seguida, diferindo de Piaget, ao considerar o outro como importante para o processo de aprendizagem e desenvolvimento do ser humano. Temos não mais um sujeito autônomo e quase autodidata, mas sim um sujeito social, que aprende e interage com o meio e com o outro. 1.2. O lugar dos estudos em aquisição de linguagem na lingüística Os estudos aquisicionais tendiam a ser de uma das duas ordens: comportamentalista ou inatista, isto é: a linguagem ou era vista como um comportamento aprendido ou como uma dotação biológica, com maior ou menor ênfase dada ao meio social e ao outro. Segundo Goldgrub (2001), os estudos aquisicionais começam a fugir dos prismas comportamentalista e inatista com Bruner, cujo grande interesse é a descrição da passagem do pré-lingüístico ao lingüístico. “Por mais questionável que a suposição de tal processo possa parecer a seus críticos, ela indica não obstante um reconhecimento da especificidade da linguagem, pelo menos suficiente tanto para desautorizar a definição que a apresenta enquanto “comportamento igual a qualquer outro”, como para colocar sob suspeita a idéia de uma atualização automática da dotação biológica comum aos indivíduos da espécie” (GOLDGRUB 2001, p.131). De Lemos (1986) atribuiu a Bruner o mérito de ter sido o primeiro pesquisador, na área de aquisição de linguagem, a ter a interação como unidade de análise: “Bruner foi o pioneiro a usar esquemas de interação como unidade de análise no estudo da aquisição da linguagem. Sua motivação teórica era a crença de que as estruturas lingüísticas refletem as estruturas da ação e atenção humana.” (DE LEMOS, op. cit. p.240) 29 Bruner acreditava haver, entre o pré-lingüístico e a linguagem, uma continuidade estrutural. Assim, primeiro a criança vivencia situações interacionais em que há a troca de turnos, a atenção conjunta, a troca de objetos, para, só então, adquirir a linguagem. A linguagem e a interação são tratados como fenômenos dissociados em que a aquisição da linguagem está sujeita à interação: “linguagem e interação são representados como domínios separados de conhecimento para a criança e a construção do conhecimento lingüístico é concebida como dependente da construção no outro domínio.” (DE LEMOS, 1986, p. 241) Assim, as situações interacionais passam a ser o lugar de análise dos estudos aquisicionais e surgem os estudos interacionistas. Por ser a base para a observação dos dados desta dissertação, os estudos de De Lemos terão maior destaque e tentaremos situar suas idéias e as de suas colaboradoras tanto do ponto de vista temporal quanto das mudanças que implicaram nos estudos em aquisição de linguagem. De Lemos desenvolveu no Brasil estudos em aquisição de linguagem, em paralelo às pesquisas interacionistas que ocorriam na Europa e nos Estados Unidos da América, livre de tais influências. O “projeto em aquisição da linguagem” foi criado em 1976 no Departamento de Lingüística da UNICAMP, por pesquisadores com o objetivo de compreender o processo de aquisição da linguagem partindo da individualidade da fala da criança (GUIMARÃES LEMOS, 2002). As pesquisas deste grupo partiram de um levantamento sobre as teorias em aquisição da linguagem existentes, a fim de elaborar novas hipóteses. Assim, foi possível detectar - e isso representou uma ruptura com os estudos que vinham sendo realizados - que as unidades de análise de tais estudos faziam da fala da criança um objeto lingüístico, colocando na fala isolada as categorias da língua. 30 Desta forma, ao perceber que essa unidade de análise não era suficientemente adequada para os estudos em aquisição de linguagem, De Lemos propôs o diálogo como lugar de análise (FARIA, 2002). De Lemos buscou, em teorias já existentes, base para os seus próprios estudos. Foi buscar em Saussure e Jakobson fundamentos lingüísticos, e em Lacan aproximações com a psicanálise. Numa releitura de Saussure feita por Lacan a respeito da Teoria do Valor, De Lemos encontrou um suporte e uma justificativa para a relação sujeito – língua, no que se refere à não positividade. Como os teóricos lingüistas Chomsky e Saussure, De Lemos reconheceu a ordem própria da língua. Contudo, não dissociou da língua o sujeito, fazendo dele fator crucial no processo de aquisição (FARIA, 2002). De acordo com Nóbrega (2002), Saussure estabelece e delimita a diferenciação língua / fala, sendo a primeira um ato social, de natureza concreta e homogênea e que não pode ser modificada pelo indivíduo, enquanto a fala seria um ato individual de vontade e inteligência, objeto concreto. O mesmo lingüista vai além, ao instaurar o que seria a “faculdade da linguagem”, estando a fala atrelada àquele que executa a faculdade da linguagem. A teoria do valor, também proposta por Saussure, implica a idéia de que um significado pode referir-se a diferentes significantes, dependendo do contexto em que seja usado e este contexto seria: “um conjunto de outros signos. A realidade do signo lingüístico só existe, pois, em função de todos os outros signos (...) o “valor” é o que faz com que um fragmento acústico torne-se real e concreto, que seja delimitado, fazendo sentido, que se torne, portanto, signo lingüístico.” (DOR, 1992, p.37) A noção de valor permite inferir que a linguagem é, também, um sistema estrutural em que “os signos lingüísticos não são somente significativos por seu 31 conteúdo, mas também, e sobretudo, pelas relações de oposição que mantêm entre si na cadeia falada.” (DOR, 1992, p.38) Os estudos saussureanos mostram a arbitrariedade do signo e a língua como um “sistema de valores constituído não por conteúdos ou produtos de uma vivência mas por diferenças puras.” (DOSSE, 1993, p. 65). Saussure permite uma reflexão sobre signo e significante. Para ele, o signo lingüístico une um conceito (significado) a uma imagem acústica (significante), sem se considerar o seu referente. Ou seja, a língua fechada em si mesma. Para ele, o significado e o significante são indissociáveis e com igual importância. Contudo, o significante tem um caráter de presença, enquanto que o significado tem um caráter de ausência. Limitando a apenas dois os componentes do signo (significado e significante), o signo segue dois princípios: a arbitrariedade do signo e o caráter linear do significante (ARRIVÉ, 1999). Saussure estabelece, também, uma distinção entre língua e fala. Para ele, a língua seria o concreto e a fala, o abstrato. Desta forma, a lingüística deveria ter como objeto de estudo a língua, dissociando-a da fala e do sujeito da fala (DOSSE, 1993). De acordo com Saussure (1975), o fundamental da língua é baseado em relações que se dão no discurso ou fora dele. No discurso, as palavras ditas são encadeadas de forma linear e para cada palavra escolhida há pelo menos outra que não foi dita, porque não se pode ter duas palavras num mesmo tempo, num mesmo lugar do discurso. O encadeamento de, no mínimo, duas palavras, forma o sintagma: “(...) Estes se alinham um após outro na cadeia da fala. Tais combinações, que se apóiam na extensão, podem ser chamadas 32 de sintagmas (...) colocado num sintagma, um termo só adquire seu valor porque se opõe ao que o precede ou ao que o segue, ou a ambos.” (SAUSSURE, 1975, p. 142). A outra forma de relações da língua ocorre fora do discurso e são as relações associativas. Essas associações se dão no cérebro e constituem, segundo Saussure (op.cit.), a língua de cada indivíduo. Trata-se da organização, na memória, de determinada palavra junto a outras com as quais tem algum tipo de relação. “A relação sintagmática existe in praesentia; repousa em dois ou mais termos igualmente presentes numa série efetiva. Ao contrário, a relação associativa une termos in absentia numa série mnemônica virtual.” (SAUSSURE, op.cit. p, 143). De Lemos verificou que Chomsky propõe um mecanismo inato responsável pela linguagem que justifica o aprendizado pela criança de sua língua materna, mesmo que o input por ela recebido não seja suficiente para justificar as suas capacidades lingüísticas. Ao atribuir à linguagem um mecanismo próprio, Chomsky colocou a língua como algo particular, com uma ordem própria, que não mais se encaixa no perfil de língua igual a comportamento, mas, sim, de língua enquanto língua por si só. E é este aspecto do estudo de Chomsky que foi aproveitado pelo interacionismo no que diz respeito à ordem própria da língua (GUIMARÃES LEMOS, 2002). De Lemos (1986) afirma que quando se fala em interacionismo, no campo da psicologia, está se tratando de “uma posição epistemológica distinta quer do racionalismo, quer do empirismo, na medida em que assume a interação entre o organismo humano e o ambiente, (...), como matriz de transformações qualitativas desse organismo, capaz, por isso, de explicar a gênese das atividades mentais superiores e do conhecimento.” (DE LEMOS, 1986, p. 231). 33 De acordo com De Lemos (1986), é esta mesma vertente do interacionismo da psicologia que privilegia a interação criança – adulto que responde pelo título de interacionismo também nos estudos em aquisição de linguagem. Ainda segundo a autora, estudos dos mais variados e com posturas igualmente distintas recebem o título de interacionistas, tendo em comum, essencialmente, “a ênfase na situação comunicativa “natural” em que a linguagem se apresenta para a criança.” Guimarães de Lemos (2002) sugeriu que o interacionismo seria voltado para a produção metódica da fala da criança, tomando esta fala como objeto empírico, sem desprezar qualquer dos aspectos desse fenômeno, pois, até então, características ou particularidades da fala da criança que não pudessem ser explicadas gramaticalmente eram deixadas de fora dos estudos em aquisição de linguagem, tomadas mesmo com “horror” ou como provocação às normas da língua. De acordo com a autora (op.cit.), o fato de o interacionismo não aceitar a fala da criança como lugar de análise representou uma decisão metodológica inédita que rompeu com os estudos tradicionais em aquisição de linguagem. A fala da criança teria de estar sempre atrelada ao discurso do outro e nunca tomada como lugar de análise em si mesma. Eis o princípio básico do interacionismo. De Lemos, 1995, nos mostra a impossibilidade de dissociar língua, discurso e falante ao afirmar que: “a possibilidade de pensar o texto não mais como um nível de estratificação da sentença, mas como domínio em que a língua e o discurso não são mais indissociáveis, do qual, (...) não se pode excluir o falante, cuja relação com a língua está literalmente em jogo em qualquer nível de estratificação.” (DE LEMOS, 1995, p.5) 34 De Lemos (1995) mostra que a concepção de língua trazida pela linguística é a que contempla a “sentença”3, excluindo da língua o discurso e colocando-o como algo equivalente ao texto. A autora ressalta, ainda, que teorias que se propõem a discutir o processo de desenvolvimento de linguagem tendo como base as noções de língua e desenvolvimento propostas pela linguística e pela psicologia, respectivamente, estão fadadas a organizar cronologicamente ou por graus de dificuldade o processo de aquisição de linguagem, dividindo em etapas ou em ordem hierárquica uma estrutura única. Segundo a autora (op.cit.): “ (...) o modo como se articulam nos estudos de aquisição de linguagem uma teoria sobre a língua, tomada à Linguística, e uma noção de desenvolvimento e/ou aprendizagem ancorada na Psicologia. É essa noção de desenvolvimento/ aprendizagem que acaba impondo à descrição linguística uma ordenação do adquirido/ aprendido com base em seu estatuto (primitivo ou derivado) na teoria linguística.” (DE LEMOS, 1995, p.2) De Lemos (2000) questiona a noção de desenvolvimento trazida da psicologia, que dá a idéia de um desenvolvimento de linguagem hierárquico, como se fosse possível descrever em categorias ou etapas a fala da criança. Segundo a autora, a aquisição de linguagem deveria ser encarada como um processo de subjetivação, ao invés de obedecer à noção de desenvolvimento: “(...) a busca de uma alternativa à noção de desenvolvimento na interpretação do processo de aquisição da linguagem. Busca essa motivada pelo reconhecimento de que as mudanças que a fala da criança dá a ver não se qualificam nem como acúmulo nem como construção de conhecimento.” (DE LEMOS, 2000, p. 4). A autora afirma que o conceito de estágio, trazido da Psicologia, é controverso quando associado ao processo de desenvolvimento da linguagem: 3 Aspas da autora 35 “do ponto de vista teórico, há que se levar em conta que, se a língua é um sistema ou se caracteriza minimamente por sua sistematicidade, não é possível pensar nem em sua apropriação parcial nem em uma apreensão dessa sistematicidade em graus sucessivamente menos concretos ou mais abstratos. Do ponto de vista empírico, a noção de estágio de desenvolvimento da linguagem como conhecimento só ganharia evidência empírica se, em um tempo t, esse conhecimento se manifestasse na fala de uma criança e na fala de crianças em processo de aquisição da mesma língua, pelo menos na maioria das vezes em que ele fosse requerido.” (DE LEMOS, 1995, p.7) A autora continua o texto dizendo não ser possível garantir essa homogeneidade na fala da criança, de forma que não se pode estabelecer estágios de desenvolvimento de linguagem. Ainda segundo a autora, a linguagem da criança se coloca como um enigma para aqueles que a estudam. De acordo com De Lemos (1995), a criança é “capturada” pelo funcionamento da língua e inserida numa estrutura composta por ela (a criança), a língua em funcionamento e pelo outro, que é também “instância de interpretação”. Assim, falamos de uma estrutura lingüística que tem 03 instâncias: a língua, o sujeito e o outro. Esta estrutura é a mesma tanto para uma criança em processo de aquisição quanto para um adulto. Porém, embora também reaja à fala da criança e à ordem da língua, movendo-se pela linguagem, o adulto detém um lugar de “saber”, sendo a ele atribuído um papel de “intérprete” desta linguagem enigmática apresentada pela criança. E desta idéia surge o conceito central que constitui a sua visão atual sobre o processo de aquisição da língua pela criança. Segundo De Lemos (2000), é neste processo de mudanças de posição na estrutura lingüística que se dá a aquisição de linguagem pela criança. “as mudanças que qualificam a trajetória da criança de infans a sujeito falante são mudanças de posição nessa estrutura, antinômicas à noção de desenvolvimento.” (DE LEMOS, op.cit.,p.5). 36 Assim, são três as posições que a criança ocupa no percurso de aquisição de uma língua, posições essas que não são fixas nem hierárquicas, podendo a criança transitar entre uma e outra (s) numa mesma fala. Ao assumir a segunda posição, por exemplo, a criança não terá, necessariamente, abandonado a primeira, e assim sucessivamente (DE LEMOS, 2000). Além de uma explanação sobre as três posições, traremos exemplos utilizados pela própria autora (op.cit.) para ilustrar e exemplificar as posições estudadas. A primeira posição propõe que a criança não é considerada autora do seu discurso. A sua fala é uma colagem ou um recorte da fala do outro. E aí, embora seja correto o seu enunciado, o seu dito é uma colagem da fala alheia. É uma posição de acerto. Logo, nesta posição há uma dominância do pólo do outro. Os enunciados da criança são compostos por fragmentos da fala do outro, que podem aparecer na fala da criança como uma repetição completa, ou de trechos e recortes, da fala do adulto. No momento inicial do processo de aquisição, a fala da criança estaria atrelada como efeito à fala do outro: “é do lugar do outro que ela recebe sua determinação”, diz Lemos (2002). Exemplo 1 Contexto: A criança (C) traz para a mãe (M) uma revista semanal C: é nenê/ o auau M: Auau? Vamos achar o auau? Ó a moça tomando banho. C: ava? eva? M: É, tá lavando o cabelo. Acho que esta revista não tem auau nenhum. C: auau M: Só tem moça, carro, telefone. C: Alô? M: Alô, quem fala, é a Mariana? 37 Ao perguntar à mãe sobre o nenê, a criança não se refere a nenhuma ilustração da revista, visto que a mãe não conseguiu encontrar nenhum nenê na revista, mas à situação de olhar a revista com a mãe. Vemos a dominância do pólo do outro quando a criança evoca, em sua fala, a presença do outro. Ao dizer a palavra “telefone”, a mãe evoca na criança uma lembrança de algo que não está ali explícito e a criança responde com o “alô?”, imaginando um outro que fala ao telefone. Já na segunda posição, há uma dominância do pólo da língua; o erro não é mais uma coincidência entre os significantes do outro e os da criança. A criança mostra-se impermeável nesta posição, não percebendo a sua fala como diferente da fala do outro, sendo indiferente a possíveis tentativas de correção por parte do adulto. (DE LEMOS, 1995). A criança está assujeitada à língua e tenta a ela obedecer, modificando a sua fala de acordo com o que acredita estar correto na língua, fazendo generalizações de normas, regras e conceitos adquiridos. Apesar de produzir enunciados “incorretos”, a criança mostra estar atenta e consciente da língua existente. A seguir, um exemplo de um monólogo no berço que ilustra bem o efeito que a língua provoca na narrativa da criança: Exemplo 2 (monólogo no berço) Num fala no meu nome Num fala no teu nome Num fala midanoni Num fala mianomi Num fala midanomi Num fala no...nomi 38 Na terceira posição, o pólo dominante é o subjetivo, o outro passa a exercer uma função de alteridade. A criança passa a perceber a sua fala como diferente da do outro e tenta moldá-la de modo a agradar ao outro e às normas. Assim, a fala da criança passa a ser constituída também de pausas, hesitações, reformulações e auto-correções. É quando a criança se apresenta como enunciador. Embora possa, ainda, “errar” o enunciado, a criança se corrige e reestrutura a sua fala, consciente de um possível distanciamento entre a sua fala e a forma “desejável” de enunciado. (De Lemos, 1995). Exemplo 3 (criança (C) narrando uma história) C: Eu e a Aninha quando crescerem que nem (pausa longa) João falou assim: eu e a Aninha quando cresce, crescerem...crescererem...querem sê almirante de navio. Ao perceber a aquisição da linguagem não como fases ou etapas do desenvolvimento, mas, sim, como uma posição ocupada pela criança numa estrutura maior (estrutura esta constituída pelos pólos: sujeito, língua e outro), pode-se redefinir o conceito de “erro” em linguagem e, consequentemente, repensar o conceito de “patologia” de linguagem. Assim, a fala isolada da criança perdeu o seu sentido e não pôde compreender todo o movimento pelo qual a criança estaria passando. No processo de aquisição da linguagem, o outro, ou seja, o interlocutor, passaria a ser sujeito ativo, sendo peça fundamental no processo. Foi constatado, nos estudos de De Lemos (GUIMARÃES LEMOS, 2002), que a fala da criança, em seu início de construção, não lhe é original, mas, sim, 39 indissociável da fala do outro, mais especificamente, do outro materno. Esses estudos resultam na idéia de que, em sua fala, a criança cita o outro. Ao analisar a fala da criança em um espaço dialógico, sempre atrelada à fala do outro, De Lemos apontou para a significação feita por este sobre a fala da criança. Não se trata de ter no outro o papel de “professor” da língua, mas, sim, daquele que irá falar com e pela criança, dando sentido ao seu dito, colocando-o para circular no discurso, imbuído de um significado. “(...) é possível tanto reafirmar quanto reconsiderar minha proposta sobre o diálogo como uma unidade de análise do processo de aquisição de linguagem. Reconsiderar (...) a individualidade desse processo, já que dele é parte integrante o outro enquanto instância de funcionamento linguístico-discursivo. Assim definido, o outro não é mais tomado enquanto individualidade (...), passando a ser visto a partir da posição subjetiva, efeito de funcionamento linguístico-discursivo, que lhe permite interpretar a criança. A saber, colocar a criança - sua fala, gesto, olhar, movimento – num texto, ainda que o efeito dessa interpretação não seja previsível e se dê a ver apenas a posteriori – na fala, no gesto, na relação da criança com o “mundo dos objetos”4.” (DE LEMOS, 1995,p.8) Abandonando a concepção que apresenta a linguagem como simples forma de expressão, que implica a noção de língua enquanto código que é transmitido de um locutor para um receptor, sem interferências, com uma mensagem clara e objetiva que é recebida pelo receptor exatamente da forma desejada pelo locutor, assume-se aqui uma nova postura e um novo direcionamento. Para o pesquisador que estuda a aquisição de linguagem e para o profissional que atua nesta área clínica e que tem a sua prática influenciada pelos estudos de De Lemos, o conceito de linguagem envolve, obrigatoriamente, a noção de outro e de linguagem enquanto constituintes do sujeito. A noção que se 4 Aspas da autora 40 tem de linguagem é de algo que existe antes do sujeito, onde o sujeito está inserido. Assim, a linguagem da criança é, num primeiro momento, uma colagem do discurso no qual está inserida, que reflete o outro e sua história de vida. Tomando para si o que não lhe pertence, e aliás, a ninguém pertence, a criança se utiliza de algo que já existe para exprimir o que é só dela: os seus desejos e necessidades. É pela linguagem que o sujeito se coloca e se conhece. Não se pode esquecer que a criança já é falada mesmo antes de existir, e continua sendo pela fala tanto dela quanto do outro. Estando necessariamente atrelada ao conceito de outro, a linguagem surge e se mostra nunca sozinha, isoladamente, de forma estática, mas sempre acompanhada do outro, ou como interlocutor presente ou refletido na fala do sujeito. Nenhuma fala surge do nada, o dito não é novo, já tendo sido falado pelo outro e ouvido pelo sujeito. Ainda que modificada, há muitos “outros” numa fala. Esta perspectiva na clínica fonoaudiológica implica que se aceite a fala da criança como expressão de si mesma e reflexo de toda a sua história e vivência, de tal ordem que não se considere a fala da criança autista como descontextualizada, visto que reflete um lugar de enunciação que passa pela intromissão do outro e, assim, haveria um sentido por trás dessa fala que carece de interpretação/ significação. O dito precisa ser acolhido, aceito e ressignificado no espaço discursivo, para que a criança perceba que é dela a autoria de sua fala e que ela é sujeito do discurso. Esta idéia de que a língua constitui o sujeito e de que o outro é intérprete / co-autor da fala, permite um enfoque diferenciado no fazer clínico com linguagem e isso justifica o nosso interesse em aliar a abordagem estrutural de De Lemos ao trabalho em linguagem com a criança autista. 41 De Lemos (1999) explora a relação intrínseca entre a língua, o sujeito e o outro. Para ela, a fala da criança não é inata e deflagrada pelo input, nem é construída por um sujeito epistêmico que tem a língua como objeto, e tampouco construída através da interação com o outro, um outro apenas mediador da língua enquanto objeto. Língua, sujeito e outro não são componentes independentes da língua. São, ao contrário, indissociáveis estruturalmente. Por isso se pode inferir a idéia de língua enquanto constituinte do sujeito. Ou seja, é no momento do diálogo que a linguagem acontece. A reação que o outro demonstra em relação à fala do sujeito faz com que este se aperceba do seu lugar de falante. Este lugar pode ser o de um falante que fala e é ouvido ou de um sujeito que fala e que não é ouvido, compreendido. Ao mesmo tempo em que a fala do sujeito sofre interferência do outro / interlocutor, ela obedece às normas lingüísticas existentes. Assim, a afirmação de De Lemos (1995) de que uma fala que não é interpretada e devolvida em um contexto, fica perdida, sem sentido, como que “calada” reforça a idéia de língua constituinte do sujeito. Se o sujeito que fala não é ouvido nem percebido como falante, então a sua fala não se mostrou “eficaz”, o sujeito que fala não é um sujeito da fala. Essa reflexão pode ser trazida para tantas falas da criança autista que são deixadas no vazio, no silêncio, por carecer de significação. De acordo com Guimarães Lemos (1995), a criança é falada e interpretada pelo adulto, estabelecendo-se, assim, uma interação que se dá pelo vaivém de linguagem (mesmo que fragmentos) quando o adulto significa e devolve o enunciado da criança e esta ressignifica e coloca novamente no discurso o seu enunciado, que é, ao mesmo tempo, fala do outro e a sua própria fala. 42 Pelo exposto sobre os estudos de De Lemos, é possível observar que o seu objeto de estudo é a linguagem em processo de aquisição a partir de relações com teorizações da lingüística e da psicanálise. E embora ela não se proponha a estudar a linguagem trabalhada na clínica, ou seja, a linguagem “patológica”, é importante que se tente fazer uma ponte entre esta perspectiva e a terapia fonoaudiológica em linguagem. Ao trazer para os estudos em aquisição as visões da lingüística e da psicanálise, De Lemos permite um enfoque diferenciado da linguagem: a constituição do sujeito (nas três posições) e sua movimentação pela linguagem enquanto nela se constitui. Talvez seja este o elo que faltava para aproximar a linguagem do autista do fazer clínico. Em seguida, será feita uma revisão literária a cerca do autismo, traçando um quadro geral sobre o tema desde que primeiro abordado, em 1943, até estudos recentes. 1.3. O quadro autístico: da patologia ao sujeito O autismo vem sendo estudado há mais de 60 anos e ainda hoje é assunto ignorado e muitas vezes pouco conhecido. Não há um consenso, na literatura, sobre a prevalência do autismo, havendo estimativas que variam de 4 : 10.000 e 4 a 15 para 10.000 (PERISSINOTO, 2003). Presente em todas as raças e classes sociais, o autismo atinge mais meninos que meninas e manifesta-se até os 30 meses de idade e em graus variados. (GAUDERER, 1997). A Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - 10ª Revisão, (CID.10), proposta pela Organização 43 Mundial de Saúde, conceitua o autismo como um transtorno global do desenvolvimento, pertencente a um: “Grupo de transtornos caracterizados por alterações qualitativas das interações sociais recíprocas e modalidades de comunicação e por um repertório de interesses e atividades restrito, estereotipado e repetitivo. Estas anomalias qualitativas constituem uma característica global do funcionamento do sujeito, em todas as ocasiões.” Em específico sobre o autismo, é colocado como: “Transtorno global do desenvolvimento caracterizado por a) um desenvolvimento anormal ou alterado, manifestado antes da idade de três anos, e b) apresentando uma perturbação característica do funcionamento em cada um dos três domínios seguintes: interações sociais, comunicação, comportamento focalizado e repetitivo. Além disso, o transtorno se acompanha comumente de numerosas outras manifestações inespecíficas, por exemplo fobias, perturbações de sono ou da alimentação, crises de birra ou agressividade (auto-agressividade).” (www.datasus.gov.br/cid10) Segundo Cavalcanti e Rocha (2001), o termo Autismo Infantil Precoce foi utilizado por Leo Kanner, um psiquiatra infantil, em 1943, quando descreveu um grupo de 11 crianças que partilhavam comportamentos fora do padrão de normalidade. Kanner descreveu essas crianças como tendo dificuldades de relacionamento interpessoal, alterações na linguagem oral pela ausência ou padrão anormal de fala, grande interesse e habilidade no manuseio de objetos, comportamentos repetitivos e relutância em aceitar alterações na rotina diária. Para ele, o distúrbio fundamental mais surpreendente seria a incapacidade das crianças autistas em estabelecer relações normais5 com as pessoas e situações. Em seu artigo, datado de 1943, Kanner observa e descreve um grupo de crianças autistas e relata que, de modo geral, os pais referem que a alteração no 5 Grifo nosso 44 comportamento e nas relações apresentadas pela criança ocorre desde tenra idade. Neste estudo, Kanner afirma que elas são comumente classificadas como crianças retraídas, auto-suficientes e que não exigiam ou solicitavam a presença do outro, como se bastassem a si mesmas. Tais relatos, feitos há mais de 50 anos, ainda hoje constituem a maior parte dos relatos de pais de autistas: via de regra, estas crianças são descritas como “calmas”, quietas, que choram pouco e não antecipam o comportamento de serem pegas ao colo (PERISSINOTO, 2003). Segundo Kanner, há dificuldades em relação à alimentação, em conseqüência de um possível desejo de exclusão do mundo e da sociedade. O autor considera que a alimentação seria a primeira intrusão oriunda do exterior e, por se tratar de algo que vem de fora, seria tão difícil de aceitar por parte do autista. Outra dificuldade mencionada é em relação a sons altos e a objetos em movimentos, que desencadeiam reações de horror. Kanner afirma que a criança não tem medo do barulho ou dos objetos em movimento, mas sim da interferência que tais coisas podem representar em seu mundo, como se o ruído forte ou o objeto em movimento fossem, necessariamente, interferir em suas vidas. Ele ressalta que a criança autista pode produzir um ruído forte ou movimentar objetos, repetidamente, e conforme sua vontade, sem que isso lhe cause qualquer transtorno (KANNER, 1943). O autor trata ainda dos movimentos repetitivos e salienta que tais movimentos, sons emitidos ou ruídos produzidos, são em geral monótonos, bem como suas falas. E que isso se deve à necessidade que a criança tem de permanência. Estas características referem-se à mania de repetição e aversão que a criança autista tem às mudanças. Qualquer alteração na rotina familiar, ou 45 na disposição dos móveis, ou qualquer outra quebra de linearidade é encarada de forma traumática pelo autista. Segundo Kanner, o medo de mudança e de incompletude explicariam a repetição monótona e a limitação na variedade da atividade espontânea. A criança autista também mantém um distanciamento em relação a outras pessoas: desde que não interfira diretamente em sua vida, ela não parece perceber a presença de outra pessoa. Se um adulto tocar na criança ou em seus brinquedos, a reação é de raiva contra aquela mão que a tocou ou que alterou, de alguma forma, a sua rotina. Nesse contexto, ela não costuma expressar sua raiva contra o adulto, como se a mão deste fosse um membro à parte, dissociado do adulto (KANNER, 1943). Esta dinâmica é tão marcadamente operante que, na situação em que precisa do adulto para conseguir alguma coisa, ela age mecanicamente, como se manipulasse uma ferramenta: pega na mão de um adulto e utiliza-se dela para alcançar um objeto muito alto, por exemplo. Em relação à inteligência, Kanner afirma que essas crianças têm boa capacidade cognitiva e fisionomia “notavelmente inteligente”. Para corroborar essa opinião, o autor menciona a boa capacidade de memorização, um vocabulário vasto para aqueles que adquiriram a linguagem, memória boa para fatos ocorridos há vários anos, capacidade para decorar poemas e nomes, bem como para lembrar-se de seqüências complexas. Para Kanner, a origem de tal síndrome estaria no fato de as crianças serem filhos de “mães geladeiras” e “pais intelectuais”, sem o devido desejo ou receptividade em relação aos filhos, o que faria com que a própria criança autista fosse “vazia” de sentimentos. Essa linha de raciocínio foi, durante muito tempo, 46 defendida pela psicanálise, que colocava as crianças autistas como não tendo sido idealizadas pelos pais nem recebido, por parte deles, a devida atenção. Contudo, ainda no mesmo artigo, Kanner continua levantando indagações quanto à causa do autismo. Ele afirma que no estudo que realizou, raros eram os pais realmente afetuosos. Porém, devido ao fato de os sintomas autísticos aparecerem desde tenra idade ele questiona até que ponto as relações parentais afetam na causa do autismo. Mais adiante, advoga em favor da interferência do orgânico na causa do autismo. Em suas palavras: “devemos, portanto, supor que estas crianças vieram ao mundo com uma incapacidade inata de estabelecer o contato afetivo habitual com as pessoas, biologicamente previsto, exatamente como as outras pessoas vêm ao mundo com deficiências físicas ou intelectuais.” (Kanner, 1943, pp. 170). O relato minucioso feito por Kanner é ainda hoje usado como parâmetro para os estudos sobre o autismo. As características gerais do autismo e, especificamente, as características particulares das 11 crianças autistas descritas por ele, retratam um quadro fiel do autismo. A literatura, ao descrever o fenômeno do autismo (PERISSINOTO, 2003, LEBOYER,2003), em muito se assemelha à descrição feita por Kanner. E se, àquela época, a etiologia do autismo era incerta, tampouco isso foi mudado. Contudo, é preciso salientar que a forma como se vê o autista está sendo modificada à medida que há mais consciência das particularidades do ser humano e maior respeito à infância. Estudos sobre as causas do autismo também estão evoluindo e apontam, atualmente, para uma mistura entre fatores orgânicos e ambientais, conforme será visto mais adiante. Em um estudo feito por Rutter (1981 apud FERNANDES, 1996), as crianças autistas são consideradas portadoras de um déficit cognitivo específico 47 envolvendo a linguagem e os processos centrais de codificação. Mais tarde, em 1983, ele afirmou que ocorre uma alteração no desenvolvimento cerebral da criança autista que implica prejuízo global das funções cognitivas. Perissinoto (2003) afirma que a síndrome autística engloba uma série de sintomas que não aparecem ao mesmo tempo, nem com a mesma intensidade, embora todo autista tenha um comprometimento nas áreas de interação social e comunicação e apresente comportamentos, interesses e atividades estereotipadas. Ainda de acordo com a mesma autora, as crianças autistas apresentam, desde tenra idade, alterações no comportamento social que resultam em dificuldades para iniciar uma interação social: não dão atenção às pessoas, nem mantêm contato com outras pessoas, não sorriem, não estabelecem contato visual. Além disso, têm dificuldades em expressar e reconhecer sentimentos. Leboyer (2003) descreve uma tétrade clássica dos sintomas autísticos que se constitui pelas seguintes características: alteração no comportamento social (o isolamento autístico); distúrbios de comunicações verbais e não-verbais; necessidade de imutabilidade e idade do surgimento dos sintomas. A primeira característica mencionada (a alteração no comportamento social) diz respeito a um padrão de comportamento que isola e diferencia a criança autista dos demais. Segundo o autor: “A incapacidade muito acentuada de desenvolver relações interpessoais nos cinco primeiros anos caracteriza-se por uma falta de reação aos outros e de interesse por eles, sem comportamento de apego normal.” (LEBOYER, 2003, p.15). Os distúrbios de comunicações verbais e não-verbais dizem respeito a ausência de linguagem ou a uma linguagem marcadamente diferenciada da linguagem “padrão”, conforme visto na introdução desta dissertação. 48 A terceira característica da tétrade estabelecida por Leboyer (2003) é a necessidade de imutabilidade apresentada pelo autista, e isso se refere aos comportamentos que são repetitivos e estereotipados. Esta “mesmice”, segundo o autor, se manifesta nos movimentos estereotipados que as crianças apresentam, bem como na dificuldade que os autistas têm em aceitar mudanças mínimas na rotina (seja na rotina diária ou até mesmo na disposição de móveis e objetos); Os jogos que os autistas executam também tendem a ser repetitivos e “desprovidos de qualquer imaginação ou criatividade”. (LEBOYER, op.cit., p.18); há apego excessivo a determinados objetos, sem desejo de trocá-los por outros; Na fala, específicamente, a “mesmice” se manifesta nas repetições de enunciados, perguntas estereotipadas que devem obter sempre as mesmas respostas. Estudos recentes, como o de Ramanathan et al. (2004), apontam para a possibilidade de fatores genéticos estarem envolvidos no surgimento do autismo, sendo reforçados por fatores ambientais. Entretanto, tais estudos são recentes e carecem de maior aprofundamento científico, como salientam os próprios autores. Não se pode conceituar o autismo sem se considerar o impacto causado pelo termo. A idéia que se tem da criança autista é tão ou mais importante que a própria definição, haja vista que será a idéia que se tem do autismo que irá nortear a forma como as pessoas lidam com tais crianças. Cavalcanti e Rocha (2001) mencionam algumas metáforas que fazem parte do imaginário popular e clínico e que, ainda hoje, refletem nos pais, familiares e profissionais que lidam com essas crianças. As crianças autistas são tomadas como “ausentes”, “conchas”, “buracos negros”, são definidas pela falta de imaginação, de desejo, de interação e de relação com a vida. Tem-se a sensação de se tratar de uma criança composta apenas de corpo físico, sem sentimentos. 49 É de grande impacto a idéia que se tem sobre o autismo e não há como isso não interferir na vida dos familiares, das pessoas que lidam com a situação e dos próprios autistas. Se todo rótulo que se dá a uma criança implica conseqüências futuras importantes, o rótulo de autista traz em si uma carga muito forte, um estigma que vai além do conceito da doença, remetendo a uma idéia de um quadro limitado, impondo ao autista o lugar daquele que não tem o que oferecer e de quem, consequentemente, não se pode pedir muito. Pelo exposto, temos que o autismo representa um quadro sintomático heterogêneo em sua manifestação, embora com semelhança entre os sintomas, cuja origem permanece por ser descoberta. 1.3.1. A linguagem do autista: lugar de falta? A linguagem merece destaque especial no quadro clínico do autismo. Todos os relatos feitos sobre crianças autistas até agora mostram que há, inevitavelmente, um comprometimento na capacidade de comunicação. De acordo com Kanner (1943), não há diferença efetiva entre as crianças autistas que falam e as que não falam. O autor menciona como um fenômeno gramatical característico do autista a ausência de frases espontâneas e a repetição ecolálica. Kanner ressalta que a criança autista, após conseguir formular frases, repete-as incansavelmente e essa repetição pode ser imediata ou tardia. Salienta, ainda, que a criança autista tem grande dificuldade em aceitar a palavra “sim” como sinônimo de aquiescência e que, como ocorre com todas as palavras, pode atribuir a ela um sentido literal. O pesquisador destaca, ainda, que não há dificuldades com o plural e conjugações. Mas refere-se à presença de inversão pronominal na fala destas 50 crianças, salientando que esse erro nos pronomes persiste até os seis anos de idade, quando a criança consegue falar de si mesma na primeira pessoa e dirigirse aos outros na segunda. Kanner (op.cit.) afirma que as crianças autistas têm uma boa capacidade de memorização e que, em conseqüência disso, frequentemente eram treinadas pelos pais para repetir coisas sem nexo como, por exemplo, bulas de remédio ou salmos e passagens bíblicas. A respeito desta prática de memorização, ele questiona até que ponto esse “entulhamento” cerebral não interfere na capacidade de linguagem. Desde antes da idade esperada para o desenvolvimento da linguagem é possível observar em algumas crianças autistas comportamentos não habituais que dificultam o processo de comunicação, como ignorar a voz dos pais, não reagir a sorrisos e brincadeiras, não manter contato visual, não imitar sons nem usar gestos para a comunicação, como acenar adeus ou apontar, por exemplo (PERISSINOTO, 2003). A comunicação é uma das áreas de maior impacto no desenvolvimento do autista. As maiores dificuldades estariam nos aspectos pragmáticos da comunicação e na estruturação da narrativa (ibidem). De acordo com Schwartzman (1994), a linguagem do autista, quando presente, é freqüentemente descontextualizada: o autista pode repetir várias vezes um mesmo enunciado, uma pergunta ou mesmo monologar extensamente, sem qualquer relação com o assunto em pauta ou com o seu interlocutor. É como se estabelecesse um monólogo e não estivesse na companhia de outra pessoa. Há, freqüentemente, alterações na produção da fala em relação à altura, entonação e prosódia. 51 Ainda segundo Schwartzman (1994), de modo geral, a compreensão da linguagem está afetada pela dificuldade do autista em entender metáforas. Os autistas apresentam ainda dificuldades relativas aos significados, sendo difícil associar mais de um significado a uma mesma palavra. Assim, mesmo que desenvolvam a capacidade de leitura, o texto pode não ser compreendido. A comunicação não-verbal também está comprometida na criança autista. Não há presença de mímicas ou gestos, como também não há a capacidade de compreensão gestual. Quando deseja algo, a criança utiliza-se do adulto como um instrumento, levando a sua mão ao objeto, sem qualquer comando verbal ou gestual (LEBOYER, 2003). Como se vê, o prejuízo na linguagem aparece sempre diretamente associado ao autismo infantil, seja como fator para diagnóstico, seja ligada à sua etiologia ou, ainda, relacionada ao prognóstico. A propósito, Gauderer (1997), menciona que, para o prognóstico, faz-se uma associação entre o QI e o desenvolvimento da linguagem. Quanto mais cedo a criança desenvolver a linguagem e quanto maior o número de palavras em seu vocabulário, melhores as perspectivas de desenvolvimento. Embora seja apontada como lugar de falta, a linguagem do autista, provavelmente por suas particularidades marcantes, tem merecido a atenção dos pesquisadores e isto facilita o surgimento de diferentes olhares sobre a linguagem, talvez apontando aspectos outros que vão além do patológico. Como exemplo, temos o estudo de Perissinoto (2003), que mostra a importância do interlocutor no desenvolvimento da linguagem da criança autista, na medida em que pode ser um intérprete para contextualizar os sinais de comunicação, 52 assumindo o papel de facilitador que possibilitará à criança uma melhor compreensão do mundo que a rodeia. 1.3.2. A linguagem do autista: o que apresenta? “O que é que essas crianças têm? Vocês só falam o que elas não têm!” (CAMPELLO, T. In: Cavalcante e Rocha, 2001, p.03) Foi com esta indagação que Cavalcante e Rocha iniciaram o livro intitulado Autismo e a mesma indagação foi tomada como ponto de partida para o desenvolvimento deste tópico, que busca, como o próprio título enfatiza, mostrar o que há na linguagem do autista. Não é de nosso interesse ressaltar a linguagem atípica em seus aspectos semânticos, até porque isso já foi visto no tópico anterior, mas, sim, advogar em favor da idéia de que o discurso do autista tem caráter significativo, e que o sujeito do discurso é autor de sua fala. Rego (2006), em sua dissertação de Mestrado, se propõe a olhar a ecolalia – característica marcante da linguagem do autista – de forma diferenciada, indo além do diagnóstico de “patológico”. A autora nos mostra os movimentos que os dois sujeitos de sua pesquisa fazem na estrutura da língua, movimentando-se na e pela linguagem e surgindo como autores de sua fala. Rego também lança questionamentos sobre a interferência do outro (especificamente o terapeuta) na linguagem destes sujeitos. Ferreira (2004) em sua tese mostra como são desenvolvidas as relações de uma criança autista no dia-a-dia em casa, na clínica e na escola, e questiona se há, desde a fase inicial da vida desta criança, a troca de papéis na interação, se a esta criança é atribuído o lugar de falante e/ou de locutor. Em sua análise de 53 dados, a autora mostra que não há: “alternância sucessiva dos lugares de falante e ouvinte, troca fundamental para início e desenvolvimento de jogos de linguagem” (FERREIRA, 2004, p. 148). Em sua hipótese de estudo, Ferreira (op.cit.) levanta a possibilidade do interlocutor/outro da interação partir sempre do pressuposto de que não haverá resposta por parte da criança autista e, consequentemente, não se consegue estabelecer uma interação efetiva com esta criança. Tal hipótese corrobora com as metáforas existentes na sociedade, mencionadas por Cavalcanti e Rocha (2001) e que colocam o autista no lugar sempre de falta, de ausência, de “incapacidade para”. Assim, se já se espera que esta criança não fale e não compreenda, como permitir que isso aconteça? Ou melhor, se nada se espera da criança autista, então como ela poderá ocupar outro papel além daquele “vazio” que lhe é atribuído? Os estudos que abordam a linguagem do autista como tendo caráter funcional, comunicativa e de subjetivação são poucos e recentes, de tal forma que este e o próximo tópico usarão análises de recortes de situações terapêuticas do sujeito desta pesquisa para tentar alcançar o seu objetivo: o de olhar a linguagem do autista sob um prisma diferente do “patológico” e, principalmente, de uma linguagem “sem sujeito”. Segundo Kendon (1982 apud McNeill,2000), os lingüistas têm, desde Saussure, definido linguagem quase sempre em termos estruturais e, até os estudos de língua de sinais, a linguagem precisava ser falada para que fosse considerada “linguagem”. Para que se possa olhar além da fala caracterizada como “ecolálica” e “descontextualizada” (KANNER, 1943; LEBOYER, 2003) e da linguagem gestual 54 como “inexistente” (LEBOYER, 2003), usaremos a perspectiva de linguagem que não se limita à emissão oral compreensível como um código perfeito, mas, sim, numa perspectiva mais ampla - a de linguagem como processo de subjetivação constituída no e pelo sujeito (DE LEMOS, 2000). Neste sentido buscamos também incluir a gestualidade como constitutiva da linguagem, considerando gesto e fala como uma unidade significativa (McNEILL, 2000; KENDON, 1982). A seguir, mostraremos dois recortes interativos com o intuito de apontar a comunicação existente por parte da criança autista, embora tal comunicação se dê dentro das particularidades da criança, fazendo juz à descrição de linguagem marcadamente atípica e com dificuldades para a interação, ela está presente e constitui uma realidade que foi o foco de nosso estudo. Cena Interativa 16: A terapeuta e a criança estão sentadas de frente uma para outra, em volta de uma mesa de atividades, desenhando cada uma em sua folha de papel. Idade: 07 anos e 01 mês T* Gesto (terapeuta) 1 vira a sua folha ó u qui eu fiz' de papel de frente para a criança aponta para o a rosa desenho no canto direito do papel 2 3 6 aponta para o desenho de um carro no canto esquerdo do papel Fala (terapeuta) Gesto (criança) Fala (criança) olha para o papel mostrado pela terapeuta continua olhando para o papel mostrado pela terapeuta u qui é issu” Consultar tabela de transcrição na página 69 55 4 5 sorri, balançando a cabeça em sinal positivo 6 entrega o desenha iguáu u hidrocor à criança meu buni:tu' u qui é issu” desenha com outro lápis meu nô:mi: ã:dré:ia 9 10 aponta para o desenho da flor a flô' eu fiz prá você 11 entrega um lápis à criança faz uma flô passa os dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda, inclinando o corpo para frente olha para a terapeuta ééé:: não segura o lápis passa os dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda, inclinando o corpo para frente 12 13 ééé:: pega o lápis e começa a desenhar 7 8 passa os dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda, inclinando o corpo para frente interrompe o movimento estereotipado e olha para a terapeuta segura o lápis em faz' você sabi direção à criança fazê uma flô' não sabi” 56 passa os dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda, inclinando o corpo para frente 14 15 olha para a criança e inclina a cabeça para o lado bigu' bigu' bigu” interrompe o movimento corporal, olha para a terapeuta 16 17 18 olha para a criança u bigu bigu bigu bii:igu ê u bigu bigu bigu bigu bigu bii:igu ê u bigu bigu bigu bii:igu ê u carru' é u carru o bigu bigu bigu” começa a desenhar No recorte acima, temos um contexto terapêutico no qual a interação terapeuta – paciente ocorre independente da fala da criança. O movimento de estereotipia descrito acima – quando a criança passa as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda – aparece como indicativo de presença por parte da criança na interação. Desde a primeira sessão gravada, tal estereotipia foi realizada pela criança em momentos de alegria ou tristeza, mostrando uma criança inserida num contexto dialógico. No primeiro turno, ao dizer “ó u qui eu fiz”, a terapeuta tenta obter a atenção da criança, o que acontece sem maiores dificuldades: a criança olha para o papel que a terapeuta lhe mostra. Quando indagada sobre o seu desenho, no turno três, com a pergunta “u qui é issu?”, a criança inicia o movimento estereotipado com as mãos, inclinando o corpo para frente e dizendo algo aparentemente sem sentido “ééé”, que demonstra a sua inserção no diálogo. Foi atribuido à criança o papel de interlocutor / locutor, na medida em que a terapeuta 57 fala com ela e espera dela uma resposta. Esta resposta veio em forma de uma linguagem atípica, com movimentação corporal e emissão de um som a que não se pode atribuir, com segurança, um significado. Contudo, marca o lugar daquele falante em particular. No turno seis, a terapeuta entrega um hidrocor à criança e solicita: “desenha iguáu u meu”, em resposta, a criança aceita o hidrocor e começa a desenhar (turno sete). No turno oito a terapeuta começa a desenhar o seu próprio nome e a criança reage com o movimento estereotipado. Aqui cabe-nos questionar o que impulsionou este movimento da criança. Teria sido uma tentativa de resgatar a atenção da terapeuta para o seu desenho? Seria um desejo que a terapeuta não desenhasse seu nome? Ou teria sido apenas uma “estereotipia característica do autista” sem maiores implicações no contexto? Esta última opção não nos parece justa, uma vez que tem sido clara a interação terapeuta – criança e a movimentação feita pela criança neste diálogo. No turno onze, a terapeuta tenta entregar um hidrocor à criança, semelhante ao que fez no turno seis, mas, desta vez, a criança não segura o hidrocor que lhe é oferecido e inicia o movimento estereotipado de passar as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda. No turno treze, a terapeuta insiste para que a criança desenhe uma flor: “faz' você sabi fazê uma flô' não sabi”” e a criança apresenta como resposta o enunciado: “o bigu, bigu, bigu ê”. A terapeuta devolve este mesmo enunciado à criança, em tom de pergunta: “bigu, bigu, bigu”” e, mais uma vez, a criança insiste no enunciado. No turno 17 a terapeuta atribui a esta fala um sentido possível, associando a palavra “bigu” à palavra “carro” ao dizer: u carru' é u carru o bigu 58 bigu bigu” talvez devido ao termo bigu poder ser empregado no sentido de “carona”, “pegar um bigu”. De qualquer forma, até antes da terapeuta atribuir sentido ao enunciado da criança, a fala apresentada por Hugo manteve-se inalterada, constituindo numa fala ecolálica tanto por parte dele como por parte da terapeuta. Ao dar um significado à fala da criança, a terapeuta mostrou que mesmo uma fala ecolálica pode ser significada e constitutiva do diálogo. Foi através desta fala que a terapeuta permitiu que o enunciado circulasse no discurso, primeiro numa repetição espelhada da fala da criança, modificando apenas a entonação, depois numa atribuição de sentido. Também é importante ressaltar que ao solicitar à criança que desenhasse uma flor, a resposta recebida pela terapeuta foi esta fala “enigmática” e a não aceitação do hidrocor por parte da criança. Após o sentido dado à esta fala pela terapeuta a criança começa a desenhar, interrompendo o movimento estereotipado apresentado até então. As situações interacionais observadas mostram sempre uma criança com um comportamento atípico, que se assemelha à descrição clínica do autismo, inclusive com uma fala que poderia ser descrita como descontextualizada e ecolálica. Contudo, Hugo mostra-se inserido na linguagem e consciente do mundo ao seu redor, ocupando o seu espaço no eixo dialógico apesar das particularidades descritas. O recorte apresentado acima ilustra esta realidade, da mesma forma que o recorte seguinte: Cena Interativa 2: Terapeuta e criança brincam com um jogo de letras de encaixe. A criança não permite que a terapeuta encaixe as letras em seus respectivos lugares, sendo ela a única a encaixar as peças. Idade: 7 anos e 1 mês. 59 T* Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) olha para a criança 3 4 mu:itu beim' mas não tá certu não xuxuxU xaxaxÁ xixi' hugo faz xixi” faz” olha para a criança tentando encaixar a peça 6 tátátátátá tátátátátá’ estende a mão em direção à letra x dêxa eu butá” encaixa a peça parcialmente 8 9 continua tentando encaixar a letra x em seu respectivo molde ê:ita 5 7 Fala (criança) pega a letra x e tenta encaixá-la em seu molde 1 2 Gesto (criança) faz sinal negativo com o dedo indicador e com a cabeça entrô não cruza as pernas e bate a mão direita no dorso da mão esquerda ((como se estivesse comemorando)) 10 11 12 entrô não para de gesticular e volta a tentar encaixar a peça (10s) puxa a mão esquerda da terapeuta e coloca-a sobre a peça 13 14 retrai o braço agá agá cauma' u qui é qui você qué” 60 olhando para a peça no chão 15 u xixi 16 tenta encaixar o x u xixi' dêxa eu em seu respectivo butá molde a criança olha a 17 peça com a letra x parcialmente encaixada 18 virando o dorso entrô não' da mão para cima vira' vira e para baixo 19 20 (a peça desencaixa) 21 tenta encaixar a cá:u:ma' peça 22 encaixa a peça olhaí 23 a criança vira a letra e consegue encaixá-la vira as costas para (choraminga) a terapeuta e para o jogo, batendo com a mão na cadeira que está próxima para de bater na cadeira e interrompe o choro, voltando-se para a terapeuta e para o jogo 24 procurando no muintu bem' chão por outra êssi aqui ficô peça sem encaixe pronto' ôtru' Neste recorte, há uma interação efetiva entre a criança e a fonoaudióloga. Podemos dizer que os dois participam de uma mesma atividade, embora Hugo só permita que a terapeuta execute o encaixe das peças quando ele não o consegue fazer. O jogo foi introduzido pela terapeuta e ela mantém-se na atividade através da fala, a exemplo dos turnos 2, 3, 4, 7, 9, 11, 15, 17 e 22, participando das ações da criança. 61 No turno três, a terapeuta tenta dar sentido à letra x, dizendo: “xuxuxU xaxaxÁ xixi' hugo faz xixi” faz” Esta fala, aparentemente ignorada pela criança, é retomada no turno quatorze, quando a terapeuta pergunta: “u qui é qui você qué” e Hugo responde (turno quinze): “u xixi”. Esta retomada da fala da terapeuta pela criança mostra um sujeito que não está alheio à linguagem, que ouve e compreende o que lhe é dito. Se olharmos isoladamente o enunciado de Hugo: “u xixi”, podíamos dizer se tratar de uma fala descontextualizada. Mas, como nos mostram os estudos de De Lemos, a fala isolada perde o seu sentido quando deslocada do lugar do seu acontecimento, do seu contexto (GUIMARÃES LEMOS, 2002). Desta forma, se considerarmos que o enunciado “u xixi” foi falado pela terapeuta quando exploravam a letra “x”, sendo a ela referente, então compreendemos que quando é perguntado a Hugo: ““u qui é qui você qué” e ele responde: “u xixi”, faz sentido que a terapeuta atribua a esta fala o sentido de que Hugo quer a letra “x”, ao contrário de fazer xixi, por exemplo. No turno treze, o comportamento de Hugo de usar a mão do adulto para conseguir o que quer, ao invés de solicitar ajuda oral ou gestualmente, aparece como característico do quadro autístico. A terapeuta não aceita tal padrão comportamental e expressa isso claramente em sua linguagem: ela puxa o braço para trás, para que a criança não o coloque em cima da letra “x”, ao mesmo tempo em que diz: “cauma” e pergunta: “u qui é qui você qué””, provocando uma mudança de posição na criança que, para conseguir o que deseja, precisa se colocar de outra forma, optando pelo discurso. No turno dezoito, temos uma situação que mostra a compreensão que a criança tem da linguagem. A terapeuta diz que a peça não encaixou, e pede que a 62 criança a vire, fazendo uso da gestualidade (McNeill, 2000) de movimentar a palma da mão para cima e para baixo, “virando” a mão, ao mesmo tempo em que diz: “entrô não’ vira’ vira”. Imediatamente a criança faz o que lhe é solicitado, mostrando não estar alheia ao que acontece à sua volta e inserida na esfera da linguagem. 1.3.2.1. Gesto e fala Como já mencionado, adotamos aqui a idéia de gesto e fala como fatores constituintes da linguagem, sem prevalência hierárquica. Ou seja, o gesto não auxilia nem precede a fala (oral), mas, sim, faz parte dela. No conceito de gesto incluem-se os quatro tipos de gestos propostos por McNeill (2000) - a gesticulação, os gestos emblemáticos, a pantomima e a língua de sinais. McNeill (op.cit.) afirma que os gestos são parte integrante do processo de interação e que interferem e dão forma a este processo. Segundo McNeill (2000, p.1): “A palavra 'gesto' não precisa de explicação. (...) Estamos discutindo um fenômeno que, embora passe muitas vezes despercebido, é onipresente.”7 De acordo com o autor em questão, há diferentes tipos de movimentos que são denominados gestos e, para um estudo mais detalhado sobre o assunto, estes gestos foram categorizados em “gesticulação”, “pantomima”, “emblemático” e “língua de sinais”. Esta categorização foi primeiramente elaborada por Kendon (1982) e colocada em um continuum por McNeill. “este único continuum está agora subdividido em quatro contínuos, estando cada um em uma dimensão analítica separada 7 Tradução nossa. “The word 'gesture' needs no explanation. (...) We are discussing a phenomenon that often passes without notice, though it is omnipresent.” 63 na qual os tipos de gestos acima citados podem ser diferenciados” (McNEILL, 2000, p.1)8 . De acordo com Mc Neill (2000), a gesticulação seria representada por aqueles gestos realizados no ato da fala, e que refletem, portanto, o estilo próprio de cada um, bem como de sua comunidade de fala. A gesticulação está, obrigatoriamente, acompanhada da fala. Os gestos emblemáticos são convencionais, determinados culturalmente, podendo ser ou não acompanhados de fala. A pantomima não se dá junto com o ato de fala e representa ou simula uma ação. A língua de sinais é convencional, criada por uma comunidade específica de fala. Além de classificar, Kendon relacionou os diferentes tipos de gestos em quatro contínuos de acordo com a relação estabelecida com a língua (contínuo 1), com as propriedades lingüísticas (contínuo 2), com a convenção (contínuo 3) e o caráter semiótico (contínuo 4), conforme tabela a seguir: Gesticulação Pantomima Emblemático Língua de sinais Contínuo 1 Presença obrigatória de fala Ausência de fala Presença opcional de fala Ausência de fala Contínuo 2 Ausência de propriedades lingüísticas Ausência de Presença de propriedades algumas lingüísticas propriedades lingüísticas Presença de propriedades lingüísticas Contínuo 3 Não convencional Não Parcialmente convencional convencional Totalmente convencional Contínuo 4 Global e sintética Global e analítica Segmentada e analítica Segmentada e analítica 8 Tradução nossa. “That single continuum is now subdivided into four continua, each an analytically separate dimension on which the types of gestures above can be differentiated.” 64 No Continuum 1 é feita a relação do gesto com a fala, de forma que a gesticulação tem que ser acompanhada da fala; o gesto emblemático pode ser ou não acompanhado da fala; a pantomima, obrigatoriamente, é sem acompanhamento da linguagem oral e o mesmo ocorre com a língua de sinais. O Continuum 2 mostra a relação dos gestos com as propriedades lingüísticas. Assim, na gesticulação e na pantomima há ausência destas propriedades, no gesto emblemático algumas propriedades lingüísticas estão presentes e na língua de sinais tais propriedades são marcantes. O terceiro continuum traz a relação existente entre gestos e convenções. Quando se faz uso da gesticulação e da pantomima não há uso de gestos utilizados estabelecidos socialmente, ou seja, comuns a todos de uma mesma sociedade, sendo os gestos utilizados de acordo com as características particulares daquele que fala / gesticula ou ilustra uma ação (no caso da pantomima). Já os gestos emblemáticos são parcialmente convencionais enquanto que a língua de sinais é totalmente convencional, de modo que determinado gesto representa, necessariamente, uma mesma idéia. O último continuum9 diz respeito à diferenciação entre gestos e sinais. Segundo o autor (2000, p.5): “Esta dimensão também mostra a riqueza que vem da combinação de gesticulação com fala em um sistema unificado fala-gesto (...)”10 Na gesticulação, os gestos realizados seriam globais: a compreensão de um gesto isolado depende da compreensão do todo, do contexto; e sintéticos: um único gesto pode assumir diferentes significados no decorrer de uma frase. Na pantomima, o gesto também seria global, podendo ainda ter caráter analítico. Já 9 Para maiores esclarecimentos sobre o quarto continuum, consultar McNeill (2000). Tradução nossa. “This dimension also shows the richness that comes from combining gesticulation with speech into a unified speech-gesture system (...)” 10 65 no gesto emblemático, há os gestos segmentados e os sintéticos enquanto que na língua de sinais os gestos são segmentados e analíticos. A respeito dos gestos e da postura corporal na comunicação, Laver (2001) ressalta a importância e influência dos fatores orgânicos e comportamentais, bem como dos marcadores psicológicos no processo de comunicação. Como fatores orgânicos, o autor usa a definição de Mackenzie Beck (1997, p.256. In: LAVER, 2001) como sendo aqueles que: “têm a ver com estrutura ou morfologia anatômica, e com os limites que a estrutura impõe no potencial da atividade fisiológica”. Assim, os fatores orgânicos fogem ao controle imediato do indivíduo. Já os componentes comportamentais que fazem parte do processo de comunicação são aqueles aprendidos socialmente, geralmente na infância, e que são usados, de certa forma, inconscientemente e que podem, até mesmo, modificar a postura global do indivíduo. Laver (2001) nos mostra que, em um diálogo, a postura gestual tem tanta importância quanto o que é dito, de forma que além daquilo que é “ouvido” pelo “interlocutor” ou pelo outro do diálogo, o que é visto também interfere na comunicação. Deste modo, podemos pensar em uma postura retraída, apática, tão característica da criança autista, e do impacto que essa postura pode causar no outro. Bruner (1983) destaca a importância dos gestos no processo de aquisição de linguagem, ao mencionar que tal processo ocorre mesmo antes do discurso, sendo iniciado nas trocas comunicativas estabelecidas entre mãe e bebê, numa situação interativa particular em que há uma rotina partilhada na qual os gestos são essenciais. 66 Esta amplitude na noção de linguagem nos permitirá olhar além das “anormalidades” da linguagem do autista, descritas na literatura, e observar a movimentação que esse sujeito faz na língua através do seu corpo, de sua voz e, até mesmo, dos seus silêncios. Temos, assim, uma visão de linguagem como constituinte do sujeito e que é, ao mesmo tempo, por ele constituída. Traremos agora um recorte feito a partir de uma das sessões terapêuticas filmadas e transcritas para esta dissertação, com o intuito de ilustrar a gestualidade presente na interação terapeuta - paciente autista . Cena interativa 3: terapeuta e criança autista estão na sala de terapia, com uma bola grande e vários brinquedos no chão. Idade: 7 anos e 6 meses. T* Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) 1 em pé, olhando para a criança, com os braços estendidos para frente vamu jogá bola” joga pra mim’ (cantando) jó:ga: bo:la’ não dê:xa caí’ vou jogá: bola(...) Fala (criança) entrega a bola à terapeuta, olhando para ela 2 3 Gesto (criança) se posiciona de frente para a criança e segura a bola com as duas mãos, com movimentos corporais, como se fosse jogar a bola vamu jogá bola” 67 parado em pé, de frente para a terapeuta, olha para ela e estende os braços para cima 4 5 estende os di novu’ braços para frente (cantando) joga a bola não deixa” (faz uma pausa como que esperando que a criança complete a sua fala) sai andando pela sala com a bola, sem olhar para a terapeuta 6 7 caminha em direção à criança com um braço estendido tentando bater na bola num dêxa caí’ vai caí a bola” desvia a bola das mãos da terapeuta e afasta-se da terapeuta, rodando em torno de si mesmo, com a bola encostada na ponta do nariz 8 9 olhando para a criança eita’ eu queru brincá também’ No recorte mostrado, a terapeuta faz uso de gestos na sua comunicação com a criança autista. Ao estender os braços para frente e solicitar a bola, como visto nos turnos um e três, a terapeuta estabelece ser esta a forma de pedir um objeto, passando tal gesto a ser considerado um gesto emblemático. Em situações terapêuticas, sempre que a terapeuta solicita algum objeto à criança, o 68 faz da mesma forma estendendo o braço para frente e fazendo a solicitação também através da fala. Assim, podemos supor que este gesto tornou-se uma convenção, de forma que ambos, terapeuta e paciente, compreendem o significado do mesmo. Tal convenção é compreendida pela criança, que repete e modifica este gesto como código de comunicação, conforme visto no turno quatro em que fica diante da terapeuta e estende os braços para cima, à espera da bola. Embora não haja presença de fala, os gestos da criança, o fato de ficar de frente para a terapeuta e esticar os braços para cima, mostram que foi estabelecida a comunicação através dos gestos. A criança autista, no turno oito, apresenta o movimento estereotipado de girar em torno de si mesma, que é citado como comum no comportamento autístico. Mas mesmo este tipo de comportamento tem uma importância significativa para a continuidade da interação e construção de sentido. Desta forma, podemos afirmar a presença de gestos na comunicação da criança autista, ao contrário do que diz a literatura (KANNER, 1943; LEBOYER, 2003; ELLIS, 2003) e que, conseqüentemente, há comunicação por parte desta criança, ficando descartada a hipótese de um sujeito “vazio”, um “buraco negro”. A seguir, daremos continuidade a esta dissertação apresentando o capítulo do método, que consiste da descrição dos procedimentos realizados para a coleta de material deste estudo, bem como da tabela de transcrição utilizada. 69 II. MÉTODO O presente estudo toma como caso clínico o da criança que chamaremos Hugo11, de 07 anos de idade, diagnosticado como autista aos 03 anos de idade. A criança é atendida em uma clínica particular da cidade do Recife há quatro anos por uma fonoaudióloga que concebe a linguagem como constituinte do sujeito, facilitando a entrada da criança no eixo da linguagem aceitando, acolhendo e interpretando a fala “enigmática” de Hugo. As sessões foram acompanhadas durante nove meses, com uma média de uma filmagem a cada 20 dias. Esta pesquisa é classificada como qualitativa e teórico-analítica e tem como corpus as transcrições integrais das sessões acompanhadas durante o período de nove meses, totalizando 12 sessões de, aproximadamente, 30 minutos cada, num total de 6 horas de filmagem. Para as transcrições das sessões, faremos uso de um modelo proposto por Cavalcante (1999), a fim de padronizar as transcrições e, acreditamos, melhor retratar a interação, dando espaço para a fala e para a ação de cada indivíduo. O referencial teórico utilizado como base para esse estudo é De Lemos (1986, 1995, 2000) e colaboradores (GUIMARÃES LEMOS, 2002, SCARPA, 2001, LIER-DE-VITTO, 1995), possibilitando que a aceitação da linguagem como constituinte do sujeito e de que todo sujeito é atravessado pela linguagem. Foi elaborado um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, segundo a resolução 196/96, que foi entregue ao responsável pela criança, termo este que se encontra em anexo. O projeto de pesquisa foi encaminhado para apreciação ao Comitê de Ética da Universidade Federal da Paraíba e aprovado. 11 Hugo é o nome fictício do paciente. 70 Quadro de sinais para transcrição (tempo) Pausas maiores (ininteligível) Dúvidas e suposições Maiúscula : (( )) Ênfase Alongamento da vogal Comentários do analista ‘ Aspa simples “ Aspas duplas (entonação) (...) Trechos cortados Para pausas que ultrapassam 1.5 segundo, indica-se o tempo. Quando não se entende parte da fala ou todo o turno. Quando uma sílaba ou palavra é pronunciada com maior ênfase. Os dois pontos podem ser repetidos, a depender da duração. Colocado no lugar da ocorrência Para subida leve (como uma vírgula ou ponto e vírgula) Para uma subida rápida (como no ponto de interrogação) Indicação de transcrição parcial ou de eliminação (Cavalcante, 1999) 71 III. Apresentação e análise dos dados O sujeito da nossa pesquisa, Hugo, é descrito, pela mãe, como de difícil temperamento, que não sabe dizer o que quer, como se vivesse em “seu próprio mundo”. Segundo a terapeuta que o acompanha, ele é caracterizado como dócil e amável e com melhoras significativas na linguagem. Levando em consideração esse seu trabalho, o diagnóstico de autismo é secundário, sendo fundamental para a terapia o sujeito da linguagem. Pode-se dizer que a terapeuta considera a fala como constitutiva do sujeito e, conseqüentemente, carregada de significado e significação. A seguir, apresentaremos trechos de uma entrevista realizada em setembro de 2005 com a mãe de Hugo, a fim de mostrarmos um pouco a história desta criança. Sobre a gravidez – “A gestação de Hugo foi o seguinte: (...) então aí eu já não queria ter filhos. Quando aconteceu essa gravidez foi que eu fiquei com mais trauma e não queria mesmo. Depois de oito anos foi que a gente, que eu tive ele, por um acaso, eu nem queria (...) Porque a gente sempre tinha cuidado, aí no dia que aconteceu ele disse que não tinha feito mas tinha feito e depois eu fui, eu nem sabia que tava grávida, fui saber já tava com dois meses e começou todo o aperreio porque eu tinha um problema de engravidar, não de engravidar, de segurar. Tive de tomar remédio pra segurar Herlon porque eu tive também novamente tipo um início de aborto aí tive de tomar remédio até os quatro meses mais ou menos, tive que tomar remédio, e aí foi indo e eu ficando mais ainda com trauma de estar grávida porque eu não tava preparada pra estar grávida. Eu sou uma pessoa muito vaidosa, gosto muito do meu corpo e aquilo ‘tava mexendo muito comigo. E aí foi e aí eu tô também, o relacionamento com meu marido que não ‘tava bem, (...) que não queria viver mais com ele e ele por eu ter, por eu estar grávida, ele resolveu ficar comigo, ter paciência, queria ficar comigo, (...), aquela história toda, né? Aí, resumindo, aí eu fui ter, ele nasceu de oito meses, ele não foi de sete nem de nove, foi de oito meses, foi cesárea.” Sobre os exames pré-natais – “fiz o pré-natal tudinho, tava tudo normal. Não tinha mostrado nada, o batimento cardíaco, tudo, tudo, tudo.” A mãe e a gravidez – “eu não gostei da experiência de estar grávida (...) “ 72 Sobre a amamentação – “não mamou, não consegui. Acho que devido aquela ... como é que diz? Como é que diz que tem pós-parto?” Pesquisadora – depressão? – “depressão pós-parto. Eu acho que eu não tive paciência e não queria novamente pensando que ia deixar meu peito deformado com as coisas todas, aí não tinha paciência de deixar ele e ele não pegava no meu peito aí contribuiu mais ainda, só que de todo jeito deformou o meu peito porque eu tive que ficar tirando o leite para dar a ele na mamadeira e na colher o negócio e deformou de todo o jeito e nem eu dei a ele o peito nem nada.” Pesquisadora – mas deu leite materno, então? – “dei pouco, eu tive pouco, acho que devido ele não mamar. Ele ficou só dois meses, aí ele precisou ele até mamou um mês até quatro meses ele mamou de uma vizinha minha, o filho dela tinha nascido no mesmo mês só que é uma semana de diferença dele, que é o amigo dele aí ela como tinha muito ele pegava no dela.” Pesquisadora – ele mamou da sua vizinha? – “mamou dela um mês, dois meses.” Pesquisadora – todos os horários ou era só de vez em quando? – “não, era só mais à noite.” Sobre o Hugo bebê – “era um bebê muito calmo que ninguém nem achava que tinha filho dentro de casa, ele era calado calmo, ele não chorava, quietinho, dormia que só, dormia muito que o povo estranhava assim. E um menino sempre saudável que nunca teve problema nenhum, nada, nada, nada, nunca corri com ele pra médico pra nada, sempre foi saudável, quieto. Aí a gente começou a estranhar, assim, o fato dele não a gente sempre fazia comparação com esse amiguinho dele que nasceu na mesma época, que era minha vizinha de cima só que foi com uma semana de diferença, aí a gente sempre fazia comparação a ele, que ele faz isso e ele não fazia, foi notando dessa forma. Eu, por ser inexperiente, né? E minha mãe por ser mais experiente ficava achando estranho. Eu não achava estranho por não ter tido experiência, mas ela por ter me tido aí vivia comparando e dizia: “isso não é normal, isso é estranho, ele não olha, ele não responde” entendeu? Ele ria por ele mesmo, entendeu, a gente conversava com ele mas parecia que ninguém tava conversando com ele. Parecia que alguém estava conversando com ele, algum fantasma. Mas a gente conversando ele não estabelecia nenhum contato. A gente achou que ele não escutava, entendeu?, que ele não enxergava, ficava desconfiando, só que ele era normal. Quando veio a parte de engatinhar, entendeu, seis meses mais ou menos. Ele era um menino alegre, ria, mas sem estabelecer contato.” 73 Pesquisadora – Ele ria aleatoriamente? Sem precisar da presença de vocês? - “é, não precisava da gente para nada.” Sobre o vínculo mãe–bebê – “não, em nenhum momento. Não tive vínculo com o meu filho, eu vim ter assim, vinculo com ele. Não, eu gostava de bebê, sempre gostei de bebê aí quando ele veio ficar com seis, oito meses, que é a fase que eu mais gosto, ele era um bebê gordinho, muito gordão, ele era fofinho, lindo, aquelas coisas, mas eu não me sentia mãe. Eu só vim me sentir mãe, realmente, quando eu vim descobrir o problema dele, acho que mais ou menos uns três anos quando eu vim me sentir mãe.” Sobre a relação pai-filho – “com certeza, sempre foi (afetuoso com a criança). Era o que ele mais queria. Assim, até porque quando eu descobri que estava grávida tem esse detalhe, que eu também queria ter tido uma mulher não queria ter homem, ele também, era louco pra ter uma menina. Aí quando eu descobri aí fiquei com mais trauma ainda pelo fato dele saber que era homem e eu também de achar que ele não ia gostar, que pererê, aquelas coisas todas. Só que aí eu fiquei com mais trauma ainda porque eu sempre sonhei ter um filho só, mas não agora, queria ter lá pros 35, entendeu? E que quando eu tivesse que fosse uma mulher. ((a gestação ocorreu quando a mãe tinha 27 anos)). (...) ele é muito apegado ao meu marido, não sei se o vinculo é por ele ter tido vontade de ter tido ele, eu sinto que a ligação dele é mais com meu marido que comigo, mas quando meu marido não está é comigo, nem com minha mãe que criou ele, é comigo.” Pesquisadora – O Hugo conversa com o pai, brinca? – “conversa, brinca, o meu marido conversa com ele, brinca, ensina as coisas a ele também. A ligação deles dois é muito fina, assim, muito junto, tanto é que hoje em dia eu já quis me separar do meu marido e ele também foi um dos motivos que eu pra pensar duas vezes nessa historia, com a ligação que ele tem. Eu tenho medo de atrapalhar o tratamento dele, da separação, mas vontade eu tenho de me separar do meu marido, não que meu marido seja um marido ruim, não, (...) Ele é que faz eu me segurar assim. “ Cuidados com a criança –“minha mãe, minha mãe até hoje realmente eu reconheço que ela é a mãe do meu filho. Eu, hoje em dia pela minha vida ser muito assim... conturbada porque eu faço faculdade, faço curso (...) resolvo as coisas dela tudinho aí levo ele pra terapia, aí eu cuido mais dele nessa parte burocrática, levo ele pra médico, ir atrás de médico, essas coisas todas. Mas em casa quem cuida mais é minha mãe. 74 Apesar de hoje ele acho que ele desde o início ele não obedece minha mãe, ele só me obedece.” Sobre as suspeitas iniciais e o diagnóstico – “desde os seis meses o pediatra dele começou a suspeitar que ele tinha o autismo, aí ele mandou a gente pesquisar, ir pra fono, fazer o exame de audiometria, teste de desenvolvimento, procurar psicóloga. Desde aí começou a minha peregrinação, eu digo assim, eu tive sorte que eu comecei cedo, eu acho que até hoje eu digo a todo mundo e aos profissionais que tão com ele que o pediatra dele foi o anjo da guarda dele. Assim, porque eu sou espírita, minha família é toda espírita e por coincidência o médico dele também é espírita, aí acho que tudo teve ligação, entendeu? Porque eu acho muito difícil, assim, em tão pouco tempo já suspeitar, entendeu? E também já o progresso dele que todo mundo que acompanha ele, até mesmo o pediatra mesmo que acompanha ele desde o inicio e vê a evolução dele até hoje vê que realmente ele teve uma evolução muito grande. Foi ele que realmente deu o passo assim, deu a estrada pra gente caminhar, entendeu?” Pesquisadora - Você deve ter procurado vários profissionais... - “Vários, passei por vários, me aperreei muito, me estressei demais e eu me desesperava porque eu não tinha certeza da historia, né? E eu via o problema alí no meu filho e era mais outro problema pra mim lidar (SIC) porque além de eu não ter tido uma filha mulher, além de eu não querer um filho, ter ainda de lidar com isso, saber que ele tem um problema aí foi pior ainda pra mim, eu me estressei demais, eu precisei fazer terapia, eu e meu marido. A gente fez terapia de casal, me ajudou muito a me encontrar, ela que realmente me ajudou a me encontrar. Foi a partir dela que eu pude me encontrar.” Pesquisadora – você diz muito claramente tudo o que você sentia em relação ao seu filho. Foi a terapia que possibilitou isso ou você sempre assumiu? – “assumia, eu sempre disse a todo mundo.” Pesquisadora – para o seu marido também? – “para o meu marido, pra todo mundo. Eu sou uma pessoa que, eu não olho assim a forma de que as pessoas me vejam, eu quero que elas me vejam como eu sou, mesmo que elas gostem de mim ou não, eu sou isso. Então eu sabia que aquilo ali ‘tava me prejudicando, eu sabendo que ia escutar como escutei várias vezes que eu era uma mãe desnaturada, que eu não era mãe, da minha própria família, né? Das minhas tias, que eu não era uma mãe, mas mesmo assim eu não ‘tava nem aí, eu queria saber o que eu tava sentindo e pronto. Desde a terapeuta foi que eu comecei a me encontrar e a repensar isso... assim, não que eu mudei meu jeito de ser. Pelo contrário, eu continuo do mesmo jeito, não tenho medo de dizer quem eu sou ou deixo de ser, mas a ver as coisas 75 por outro lado, não ver só de um lado. Porque antes eu via só pelo meu lado, de não gostar de ser mãe, de ter meus objetivos, de não querer ter filhos, que ia estragar minha vida. Hoje não, eu já olho por outro lado. Que isso não é tão importante, mesmo eu sabendo que eu senti tudo isso. Hoje eu vejo mais por outro lado, que é bonito ser mãe, mesmo se ele veio dessa forma é porque realmente tem uma ligação, nada é por acaso e por aí vai.” Pesquisadora – quem foi que deu o diagnóstico de autismo? – “Como eu tava dizendo, o pediatra suspeitou e eu comecei a suspeitar tudinho e aí todo mundo só suspeitava que era autismo mas até então ninguém dava o diagnóstico certo e também um atraso no desenvolvimento, ele fez teste do desenvolvimento, todos os testes, tudo deu normal. Graças a Deus eu tive um caminho muito vasto de pegar profissionais bons, mas também me aperreei muito até chegar neles, mas também quando eu cheguei o negócio deslanchou. Aí quem deu realmente o diagnóstico foi Dr. Marcelino Bandini, foi aos 3 anos. Foi ele quem disse que era o autismo e ele tinha um grau leve, não tinha um grau forte nem moderado. Andréa também suspeitava, mas ela também tinha dúvida porque ele estabelecia contato, assim, sempre deixava interrogação, porque a gente que conhece o que é o autismo e que olha pro meu filho ninguém diz que ele é um autista, só quando ele faz as estereotipias dele aí que a gente diz que é um autista, mas mesmo assim eu que tô lá no dia a dia e que tô estudando isso vejo que eu acredito que, se ele for autista ele tem um grau levíssimo mesmo, mas que também o autismo dele não é um autismo verdadeiro, ele pode estar num estado autístico que eu acredito que o autismo não seja um problema, uma doença, eu acredito que é um estado. Eu venho escutando, lendo na internet, que tem até o site da AMA e tudo que eu até faço parte aí eu vejo sempre e comparo com o meu filho e acho estranho. Por isso é que eu acredito que ele vá, não é ficar bom, eu acredito que ele vá ser um menino normal, sociável, que conviva na sociedade normalmente, entendeu? Eu acredito.” Sobre a escola – “ele estuda numa escola normal, agora os amiguinhos dele todos gostam dele, brincam com ele, acho que compreendem as limitações dele. Agora não sei dizer a você como é lá na escola, assim, a professora diz que ele faz os trabalhos, dá uma folha pra ele desenhar, não fez o mesmo trabalho que os outros faz, mas ele desenha muito bem porque ele é muito bom em desenho. Desde os dois anos que ele fazia aqueles origami, né? Aqueles que dobram assim. Pronto, fazia avião, barco, aí os amiguinhos da sala dele não sabem fazer aí pediam pra ele fazer aí todo mundo ficava besta que ele fazia muito bem, que nem eu sabia fazer avião nem barco nem essas coisas. E de desenho então que ele desenha cada carro que você assim que no futuro 76 vai ter aqueles carros que ele ‘tá desenhando, que é muitos carros estranhos assim que ele desenha. De propaganda então, ele sabe todas as propagandas na televisão, novelas, músicas, ele já sabe. Canta uma música ele já sabe que é da novela, se falar uma propaganda ele já sabe do que é, ele já lê. Não sei onde ele aprendeu, ele já sabe todas as letras. Deve ser o tratamento que ele vem tendo, né? Se assim, tem uma palavra que chama a atenção dele ele já vai assim que letra é essa, tal, aí soletra, aí vai e fala, se ele ver uma cerveja schin aí ele vai e fala, tudo essas coisas assim.” Embora a entrevista da mãe de Hugo tenha sido usada para retratar a história de vida desta criança, não achamos cabível comentá-la. O que para nós pode parecer “chocante” ou “ousado” faz parte da realidade desta mãe, realidade por nós desconhecida. Portanto, trouxemos recortes da entrevista apenas para mostrar que Hugo não foi uma criança desejada, sua infância foi, aparentemente, tranqüila; era um bebê “caracteristicamente” autista e que, mesmo com as suspeitas precoces do pediatra, o diagnóstico só foi dado aos 03 anos de idade. Contudo, faz-se necessário dizer que o depoimento da mãe, ao dizer que não se sentia “mãe” do seu filho, corrobora com a perspectiva de Ferreira (2004) que afirma não ser possível “encontrar a mãe da criança autista falando em manhês12 com o seu filho”. Também neste caso, seria improvável pensar nesta mãe “maternando” o seu filho, quando ela afirma não se sentir mãe da criança. Também gostaríamos de ressaltar que relatos do comportamento dos autistas enquanto bebês diferenciam-se dos relatos comportamentais de bebês não autistas. Estas “diferenças” podem não ser percebidas pelos pais a princípio, por se tratar de um bebê calminho, que quase não chora, como no caso do sujeito do nosso estudo que não demonstrava precisar dos cuidados e da atenção dos outros, como se bastasse a si mesmo (conforme relato da mãe). Em contrapartida, há relatos que mostram que a criança autista fora um bebê que 12 Sobre o manhês, ver Cavalcante 1999. 77 apresentava um comportamento irritadiço, com presença constante de choro. O estudo de Ferreira (2004) nos mostra um bebê que chorava incessantemente, por horas e até dias consecutivos, sem causa aparente. Traremos agora os recortes e posteriores análises das situações terapêuticas escolhidas para ilustrar esta dissertação. Recorte 1a Contexto interativo: A terapia é iniciada com a entrada da terapeuta e da criança na sala. Há bolas coloridas espalhadas no chão. Ao entrar, Hugo pega uma das bolas, e a terapeuta, outra. Idade:07 anos e 05 meses T* Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) Gesto (criança) 1 pega uma das bolas e joga contra a parede ((cantando)) jó:ga: bo:la’ não dê:xa caí’ vou jogá: bola(...) 2 pára de jogar e olha para a criança tira a bola da criança e remove o pito hu:gu:’ não podi butá a bola na boca’ vô tirá’ sinão você podi ingulí i si machucá’ qui ventinhu bom’ né” olha u ventinhu’ ((aparentemente indiferente à terapeuta)) segura uma bola nas mãos e morde o pito da bola continua mordendo o pito da bola observa enquanto a bola murcha 3 4 5 aperta a bola, direcionando a saída de ar para o rosto da criança depois que a bola esvazia, deixa-a no chão. Fica de frente para a parede e recomeça o jogo de atirar a bola contra a parede, usando outra bola. ((cantando)) jó:ga: bo:la’ não dê:xa caí’ vou jogá: bola(...) Fala (criança) continua observando a bola murchar olha atentamente para a terapeuta 78 6 7 coloca uma mão na bola vazia e olha para a criança 10 Continua olhando para a criança; segura, junto com ela, a bola vazia enchi’ enchi” olha para a terapeuta enquanto segura a bola jó:ga: bo:la’ não dê:xa caí’ ((imita a terapeuta)) alterna o olhar entre a terapeuta e a bola murcha enchi’ enchi’ eu não sei inchê:’ vamu pedí a seu edson’ 8 9 pega a bola murcha e entrega-a à terapeuta eu sei qui você qué jogá a bola’ mas eu não consigu inchê Nesta análise, achamos importante salientar uma das características comportamentais das crianças autistas: a resistência a mudanças com tendência à repetição de comportamentos. Isso fica visível quando a criança começa a morder o pito da bola, comportamento para ela prazeroso, não interrompendo com a solicitação da terapeuta e, no decorrer da terapia, pela angústia demonstrada ao perceber que a bola não voltaria ao seu estado inicial. Ao tirar o pito e esvaziar a bola, a terapeuta modifica dois aspectos: primeiro interrompe o comportamento da criança e, em seguida, modifica o estado da bola que passa de cheia a murcha. A criança depara-se com algo novo, diferente, e mostra a sua inquietação durante a terapia. No início deste recorte, a criança aparenta indiferença à ação da terapeuta de jogar a bola contra a parede enquanto canta. Porém, no turno oito, vê-se que a criança repete a fala da terapeuta, cantando a música no mesmo tom, a fim de 79 demonstrar que quer jogar a bola. Podemos supor que a criança percebeu a funcionalidade da música associada à brincadeira de jogar a bola contra a parede e fez uso dela para solicitar à terapeuta que enchesse a bola. A terapeuta interpreta o enunciado da criança, atribuindo a ele sentido e falando pela criança (turno nove: “eu sei qui você qué jogá a bola’ mas eu não consigu inchê’) e isto provoca uma mudança no discurso da criança que solicita, explicitamente, que a terapeuta encha a bola, apresentando um discurso inédito (turno dez: “enchi’ enchi’). Guimarães Lemos (2002, p.12) nos mostra a importância do outro / interlocutor enquanto instância de significação da fala da criança: “qualquer que seja a fala da criança, é do lugar do outro que ela recebe sua significação”. A movimentação que a criança faz pela linguagem fica evidenciada nas diferentes condutas que toma no diálogo, ora repetindo o enunciado da terapeuta, ora trazendo uma fala inédita, mostrando-se sujeito da fala (respectivamente, primeira e terceira posições propostas por De Lemos). Recorte 1b Contexto: ainda na mesma sessão, a criança não desiste da solicitação para que a terapeuta encha a bola, insistentemente pede “enche, enche”. A terapeuta tenta encher a bola, sem sucesso. Senta-se no chão, de frente para a criança também sentada, e explica que não consegue encher a bola. A solicitação da criança persiste, gritando de modo mais enfático. A terapeuta tenta, mais uma vez sem sucesso, encher a bola. T* Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) 11 sentada no chão, de frente para a criança, tenta encher a bola. eu não consigu sentada de frente para a terapeuta inchê’ apresenta movimentos estereotipados de friccionar os dedos Gesto (criança) Fala (criança) chora e grita 80 12 toca os ombros da criança suavemente e olha para ela você tá tristi porque queria jogá com essa bola’ mas eu não consigu mais inchê’ 13 levanta-se e joga a bola para fora da sala pela janela a:cá:bô’ não teim mais bola’ de uma mão contra a palma da outra mão e balança o corpo para frente e para trás a criança continua balançando o corpo para frente e para trás, enquanto fricciona os dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda, o choro fica mais alto olha atentamente para a terapeuta, o choro e os movimentos corporais são interrompidos A mãe da criança entra na sala e pergunta o motivo de o filho estar chorando, olhando diretamente para a terapeuta. T* Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) Gesto (criança) 14 olha para a mãe da criança eli queria(...) olha para a mãe, acabô’ acabô’ interrompe a fala não tem mais da terapeuta bola’ já passô’ Fala (criança) A mãe não apresenta qualquer reação à fala do filho, continua olhando para a terapeuta. T* Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) 15 olha para a criança pois é’ Hugo’ comu eu não sabia u qui você quiria’ joguei a bola fora’ agora acabou’ Gesto (criança) Fala (criança) 81 volta o olhar acabô’ para a terapeuta 16 No turno onze, a terapeuta mostra-se disposta a atender a solicitação da criança e tenta encher a bola, mas diz que não está conseguindo e a criança demonstra grande dificuldade em aceitar o fato de a bola estar murcha e não voltar mais ao seu estado inicial. Ela chora e grita, em voz alta e demonstrando grande desespero. O movimento estereotipado de balançar o corpo para frente e para trás é descrito na literatura quando se trata das estereotipias dos autistas. O comportamento de friccionar as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda é comumente realizado por Hugo em momentos de emoções intensas: alegria e/ou tristeza. Logo em seguida, no turno doze, a terapeuta procura o contato físico, aproximando-se e tocando gentilmente a criança enquanto atribui significado ao choro e angústia: “você tá tristi porque queria jogá com essa bola’ mas eu não consigu mais inchê’”, mostrando que o comportamento da criança tem um sentido que é compreendido pelo interlocutor. No turno treze, ao se deparar com uma situação que parecia não ter fim, a terapeuta optou por encerrar o motivo da aparente angústia da criança, retirando a bola do contexto terapêutico. De imediato, o choro e os movimentos estereotipados da criança cessam e a criança olha atentamente para a terapeuta. Ao se deparar com a presença da sua mãe, que aparece a meio da sessão preocupada com o seu choro, a criança vira o rosto em sua direção e fala diretamente para ela (turno 14): “acabô’ acabô’ não tem mais bola’ já passô’” mostrando que a situação de angústia já havia acabado e que o motivo era a 82 bola: “não tem mais bola”. O enunciado “acabô’ acabô’ não tem mais bola” foi uma colagem do enunciado anterior da terapeuta. Conforme De Lemos, esta posição diz respeito ao momento da linguagem no qual a fala da criança não lhe é própria, mas sim uma colagem da fala do outro, sendo o outro o pólo dominante da estrutura lingüística. Contudo, nesta mesma fala, a criança traz um enunciado que não havia sido dito pela terapeuta: “já passô”, mostrando ineditismo em sua fala e a sua colocação no eixo do diálogo enquanto autor do próprio discurso. Apesar de tudo, a fala da criança não provoca qualquer reação em sua mãe. De Lemos (1995) mostra que uma fala que não é interpretada e devolvida em um contexto, fica perdida, sem sentido, como que “calada”. Cabe ao interlocutor dar sustentabilidade à fala da criança: “(...) o fato da criança pequena tender a parar de falar, deixando seu enunciado à deriva, na ausência de resposta do interlocutor, ou melhor, de um enunciado que lhe dê sentido.” (DE LEMOS, 1995, p. 23) A fala da terapeuta no turno quinze aparece como uma tentativa de inserção da fala da criança no diálogo e, consequentemente, daquela criança no lugar de falante. Ao dar atenção à fala da criança, a terapeuta mostra compreender e concordar com o que foi dito e, assim, colabora para que esta criança se veja como autor do seu discurso/sujeito da fala. O lugar de locutor é atribuído à criança e o diálogo acontece, com a fala da criança circulando no discurso, sendo interpretada e respondida pela terapeuta. A última fala da criança, no turno 16, vem complementar o discurso da terapeuta: “acabô" é o enunciado da criança em resposta à fala da terapeuta no turno quinze: “pois é’ hugo’ comu eu não sabia u qui você queria’ joguei a 83 bola fora’ agora acabô’”. No turno 16, podemos dizer que a fala de Hugo é ecolálica, uma repetição fragmentada da fala da terapeuta. Contudo, o que queremos ressaltar é a ecolalia, em seu sentido de “fala em eco”, presente em toda a interação tanto na fala da terapeuta quanto na fala da criança. Pelo recorte mostrado, os trechos de fala são constituídos, em grande parte, por repetições de uma mesma fala. Nos turnos 9, 11 e 12, a terapeuta repete o enunciado “eu não consigu inchê”. No turno treze, a terapeuta introduz o enunciado “acabô’ não tem mais bola’”, que é repetido pela criança no turno seguinte, ao se dirigir à mãe e responder à pergunta feita por ela (sobre o motivo do choro do filho): “acabô’ acabô’ não tem mais bola’ já passô”. O enunciado “acabô" volta ao discurso nos turnos 15 e 16, usado tanto pela terapeuta ao fim de sua fala, como pela criança, num enunciado que surge aparentemente para concluir e concordar com a fala da terapeuta. Conforme evidenciado, o diálogo que se dá nesta sessão terapêutica, neste trecho em particular, é marcado pela presença de enunciados repetidos, mas que não impossibilitam ou dificultam a interação. São enunciados que constituem, com suas particularidades, a marca discursiva apresentada por esta díade. De tal forma, distancia-se a idéia de “fala ecolálica” como sinônimo de “fala patológica” e aproxima-se a repetição das diversas falas num diálogo de uma situação natural e corriqueira, comum a todos os falantes sujeitos aos efeitos da linguagem e do outro no processo de interação. Assim, a ecolalia torna-se mais comum, seria os tantos ditos repetidos nos tantos diálogos que, possivelmente, passaria despercebida não se tratasse, neste recorte em particular, de uma criança autista. 84 Recorte 2 Contexto interativo: a terapeuta chama a criança para entrar na sala de terapia, a criança entra, tira a sandália, e depara-se com bolas espalhadas pelo chão. Idade: 07 anos e 06 meses T* Gesto (terapeuta) 1 andando pela sala á’ muitas bolas’ vâmu jogá” 2 em pé, segura uma bola ((inicia a canção)) jó:gá: Fala (terapeuta) 4 em pé, de frente para a criança 5 joga a bola contra ((começa a a parede cantar)) jó:gá: bo:la não dê:xa caí tira a bola das mãos da terapeuta estende os braços para frente mi dê uma’ entrega a bola azul à terapeuta 8 9 10 segura a bola 11 em pé, segurando a bola com as duas mãos, de frente para a criança obrigada’ “abraça” a bola em pé, braços ao longo do corpo jóga em pé, próximo da terapeuta pula e passa as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda puxa as mãos da terapeuta para que solte a bola jóga jógu aondi” 12 14 bóla joga a bola 6 13 Fala (criança) segura uma bola azul e anda pela sala aproxima-se da terapeuta e toca a bola que ela segura 3 7 Gesto (criança) ao:ndi" jó:ga bola jóga jóga bola’ 85 15 joga a bola contra ((cantando)) a parede jó:gá bo:la não dê:xa ((diminui o tom de voz)) permanece em pé, ao lado da terapeuta 16 17 entrega a bola à criança caí joga a bola’ segura firmemente a bola com as duas mãos e anda pela sala 18 No recorte selecionado, a criança mostra-se muito participativa, querendo fazer parte da atividade e solicitando à terapeuta que jogue a bola. No segundo turno (t2) a terapeuta inicia a canção da bola enquanto segura uma bola com as duas mãos e a criança completa o seu enunciado com a fala “bóla” (t3). Em seguida a terapeuta começa a jogar a bola contra a parede e a criança, então, tira a bola de suas mãos, mostrando claramente que desejava fazer parte do jogo. Temos uma interação efetiva, com a criança completando a fala da terapeuta, constituindo, assim, uma situação dialógica. No turno sete, a terapeuta pede à criança que lhe dê uma bola, ao que a criança obedece prontamente, entregando à terapeuta não a bola que havia tirado dela, mas, sim, a bola azul que a própria criança estava segurando no início da terapia (turno 8). No turno dez, a criança solicita à terapeuta que jogue a bola com o enunciado: “jóga"; ao que a terapeuta responde com uma pergunta: “jógu aondi” e a criança, mais uma vez, solicita: “jóga" (t12) e a terapeuta insiste, abraçando a bola contra o corpo: “ao:ndi”” e, em resposta, a criança puxa a mão da terapeuta e pede: “jô:ga bola jóga jóga bola” (t14). Neste trecho específico vê-se que o intuito da terapeuta era o de provocar a linguagem na criança. A criança queria 86 jogar a bola junto com a terapeuta, mas o enunciado “joga a bola para mim” não foi dito por Hugo, que permaneceu sempre colado às palavras “joga” e “bola”, ora juntando-as, ora emitindo somente a palavra “joga”. Apesar desta fala em que duas palavras são insistentemente repetidas, é possível compreender o desejo de Hugo. No turno quinze, a terapeuta joga a bola contra a parede e canta uma música comum à atividade de jogar a bola. Em determinado momento da música ela diminui o volume da voz, num movimento lingüístico comum quando se quer ter o enunciado complementado pelo outro, e a criança assume o lugar de locutor, complementando a fala da terapeuta, preenchendo a “lacuna” por ela deixada naquela música tão conhecida dos dois. Na medida em que a criança participa com a terapeuta da música ela interage ativamente, mostrando-se inserida no diálogo. No turno dezessete, a terapeuta entrega a bola à criança e pede-lhe que a devolva. Em resposta, a criança segura firmemente a bola e começa a andar pela sala, não mais retomando a atividade de jogar com a terapeuta naquela sessão. É importante ressaltar que, durante a maior parte do tempo em que esteve com a bola, a terapeuta não a jogou para a criança: mesmo diante das suas solicitações, jogou a bola contra a parede. Recorte 3 Contexto interativo: a terapeuta e a criança estão sentadas no chão da sala ao fim de uma sessão; todos os brinquedos utilizados já foram guardados em uma caixa, exceto um animal de borracha que a criança segura em uma das mãos e brinca no chão. Apesar de ter sido dito pela terapeuta que a sessão estava encerrada, a criança persiste na brincadeira. Sentada em uma cadeira, na sala, há também uma fonoaudióloga que não participa diretamente das atividades realizadas. Idade: 07 anos e 08 meses 87 T* Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) Gesto (criança) 1 sentada de frente e olhando para a criança tá na hó:ra’ já terminô a nossa brincadêra’ sentada no chão, de frente para a terapeuta, brincando com um animal de borracha, olha para baixo 2 olhando para a criança vamos' hugo’ calce o sapa:tu’ tá na hora di ir embora” continua brincando Fala (criança) Neste momento, a outra terapeuta que estava na sala levanta-se da cadeira e diz: “Vamos comigo, Hugo. Estou te esperando para sairmos juntos.” continua olhando para o brinquedo no chão 3 senta aí na cadêra No recorte 2, nota-se claramente a significância pertinente da voz de Hugo, visto que ele reluta em sair da sala e continua brincando, parecendo estar indiferente à fala da terapeuta. Contudo, pela resposta dada por Hugo à outra terapeuta (turno 3): “senta aí na cadêra’”, vê-se que a criança não está alheia ao mundo da linguagem, percebendo e reagindo à situação. Também podemos afirmar que a sua fala não se encaixa nos rótulos de “descontextualizada” e “sem intuito comunicativo”, conforme aponta a literatura (KANNER, 1943; LEBOYER,2003). Ao contrário, mostra claramente inserida naquele determinado contexto. Fica patente que, embora permanecesse envolto nas suas brincadeiras, Hugo não estava indiferente ao que se passava à sua volta: estava ouvindo e compreendendo o que era dito, tanto que trouxe uma fala espontânea, ou, pelo 88 menos, espontânea nesta situação terapêutica, expressando que não desejava sair da sala de terapia. Recorte 4 Contexto interativo: criança senta-se no chão, de costas para a terapeuta, e tira animais de brinquedo de uma caixa. Sentada atrás da criança, a terapeuta mexe em outra caixa e tira de lá carros de plástico. Há bolas espalhadas pelo chão. Idade: 07 anos e 10 meses. T* Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) Gesto (criança) 1 segura os carros e vai tirando-os da caixa, um de cada vez começa a colocar os carros de volta na caixa olhi us carrus ó’ hugo’ você vai querê brincá” us carrus istão aqui’ 3 arruma as bolas numa caixa plástica a bola está aqui’ de costas para a terapeuta, manuseando animais de plástico permanece sentada de costas para a terapeuta, manuseando animais de plástico permanece sentada de costas para a terapeuta, manuseando animais de plástico 4 estende o braço e aqui são us pega um animal, animais’ colocando-o numa caixa 2 5 6 olhando para a criança vai brinca com us animais” 7 estende a mão direita para frente e fecha os dedos contra a palma da mão, num gesto de “chamar” víri pra cá’ mi mostri us animais’ pur favô’ queru vê’ Fala (criança) gira o corpo para trás e pega o animal que a terapeuta colocou na caixa. olha para a terapeuta. volta à posição inicial, dando as costas para a terapeuta brinca com as miniaturas de animais que estão à sua frente 89 8 olha para a criança quais são us animais qui você tem aí” (10s) 9 10 sorri batendo palmas 12 olha para a criança leão' cadê u leão” 13 olha para a criança segura o animal que a criança jogou na caixa e, imediatamente, coloca-o de volta olha para a criança lião' qui mais” procura’ eita' issu aqui” issu aqui não é lião’ cadê u lião” (10s) qual é u animau que tem aí mais” 15 16 eu não tô vendo’ eu não to vendu nenhum animal’ mi mostra’ 17 hugu” (5s) 18 bate palmas gira a cabeça para trás e olha para a terapeuta LIÃO’ olhando para a terapeuta volta-se para a frente, de costas para a terapeuta, e manuseia os animais joga um cavalo na caixa vazia permanece manuseando os animais, de costas para a terapeuta lião eita' 11 14 permanece manuseando os animais inicia movimento estereotipado de friccionar as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda inclina o corpo para baixo e continua a estereotipia, friccionando as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda permanece friccionando as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda permanece friccionando as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda 90 eu queru brincá com você também’ eu tava com saudadi’ mi mostri us animais’ permanece na estereotipia, agora com vocalização 20 mi mostri u qui você tem aí’ (8s) continua friccionando as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda 21 hum” coloca o leão na frente da terapeuta, volta-se de costas para ela e recomeça a friccionar as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda permanece na estereotipia, sem vocalização olha para a terapeuta e para a estereotipia 19 olha para a criança 22 segura o leão a' mi mostrô u lião 23 aproxima-se da criança e toca o seu braço você tá feliz é” tá feliz purquê você tem essis bichus todus e eu só tenho um’ 24 olha para a criança mi dá ôtru’ mi dá ôtru’ éééééé No início do recorte 4, a criança não aparentou interesse em olhar para a terapeuta enquanto esta brincava com os carros e com as bolas. Contudo, a criança reagiu imediatamente quando a terapeuta pegou um dos brinquedos que 91 a criança estava manuseando (um animal de plástico), tomando de volta o animal (t5). É importante ressaltar que o discurso da terapeuta durante os turnos t1 a t8 foram encadeados, sem momentos de silêncio ou pausas prolongadas. Apenas em t8 a terapeuta faz uma pergunta à criança “quais são us animais qui você tem aí”” e realiza uma pausa de 10 segundos, obtendo uma resposta da criança que diz, em voz alta e ritmo acelerado “LIÃO” (t9). A nosso ver, o silêncio da terapeuta foi um acontecimento importante para que a criança se colocasse no discurso pela primeira vez durante esta sessão específica13. Ao perguntar diretamente quais os animais que a criança tem e ao dar um espaço, através do silêncio, a terapeuta atribui à criança o lugar de interlocutor, daquele para quem/ com quem se fala, do outro do diálogo. Ao receber uma resposta positiva por parte da terapeuta que sorri e bate palmas (t10), Hugo repete o seu enunciado e mais uma vez afirma ser o leão o animal com o qual brinca. Nesta segunda fala (t11), o enunciado de Hugo se dá de forma mais tranqüila, num ritmo mais lento e num tom de voz mais baixo, que no turno anterior. Poderia esta fala de Hugo (t11) ser caracterizada como um episódio de ecolalia? Sim, acreditamos que sim na parte da ecolalia que diz tratarse de uma “fala em eco”, repetida, mas não no sentido de uma fala descontextualizada ou sem intuito comunicativo. A ecolalia, a nosso ver, não está necessariamente fora do sentido da linguagem, desprovida de “motivação”. Tal perspectiva por nós apresentada é partilhada por outros pesquisadores, a exemplo de Rego (2005) que afirma que é possível olhar além do aspecto 13 Para maiores informações sobre a importância do silêncio como “porta de entrada” para a criança / bebê no discurso, ver Cavalcante (1999). 92 patológico envolvido na fala ecolálica, atribuindo a ela um espaço de subjetivação do sujeito. Neste trecho específico do recorte selecionado (turnos 8 a 13), é estabelecida uma situação de interação efetiva entre terapeuta – paciente e a criança é colocada, pela terapeuta, no lugar daquele que fala, daquele que poderia responder ao que lhe é perguntado. A criança, por sua vez, assume o papel do sujeito da fala e responde à pergunta da terapeuta, dizendo que o leão é o animal com o qual brinca. No turno 13, a terapeuta retoma a fala da criança, repetindo a palavra “lião” e solicitando outros animais “qui mais””. Neste recorte, a exemplo do que acontece no recorte 1b, se retomarmos que o enunciado “leão” já foi dito pela criança nesta sessão terapêutica, então temos a ecolalia ou a repetição presente na fala da terapeuta. Ela parte do enunciado final da criança para iniciar o seu próprio enunciado, resgatando o dito e introduzindo o ineditismo ao solicitar por outros animais. A resposta da criança ao enunciado da terapeuta, em t13, foi coerente com a solicitação feita. A terapeuta diz: “lião’ qui mais” procura’” ao que a criança responde jogando um cavalo de brinquedo na caixa. A ação da criança foi com o intuito de oferecer à terapeuta aquilo que havia sido pedido: outros animais. Contudo, como acontece em qualquer situação de diálogo, a terapeuta não parece se lembrar do que havia solicitado à criança, uma vez que estranha o cavalo que a criança lhe mostra. Ao dizer: “eita’ issu aqui” issu aqui não é lião’ cadê u lião”” a terapeuta diz à criança que ela não correspondeu à solicitação inicial. Aqui testemunha-se um “lapso” no discurso da terapeuta, “lapsos” comuns nas situações de comunicação, tendo sido percebida aqui por se tratar de uma transcrição com análise da interação desta díade em particular. 93 A criança, no turno quinze, inicia um movimento estereotipado, que lhe é particular e comum às situações de felicidade e/ou insatisfação, sentimentos intensos e opostos, que é o movimento de friccionar as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda. Talvez tenha sido em resposta ao fato de não ter tido o seu comportamento compreendido, mas isso foge à nossa análise. Não pretendemos aqui decifrar o comportamento de Hugo, apenas constatamos que este movimento estereotipado em particular sempre acompanhou situações prazerosas e/ou angustiantes. A estereotipia de Hugo, iniciada no turno quinze, e acompanhada de vocalização no turno dezenove, tem uma breve interrupção no turno vinte e um, sendo imediatamente retomada até o turno vinte e dois. Nos turnos quinze e dezesseis, a terapeuta diz à criança que quer ver os animais, pedindo que os mostre a ela. A criança, contudo, permanece na estereotipia. No turno dezessete, a terapeuta chama a criança pelo nome e, ao não obter resposta, bate palmas (turno dezoito), fazendo um barulho diferente da solicitação vocal, o que também não provoca reação na criança. Em seguida, turno dezenove, a terapeuta expressa o seu desejo de brincar com a criança, tratando o momento de estereotipia de Hugo como uma brincadeira: “eu queru brincá com você também’”. Neste turno, a estereotipia de Hugo passa a ser acompanhada de uma vocalização contínua “éééeééé”. Nos turnos 8, 14, 17 e 20, a terapeuta realiza pausas após as solicitações feitas à criança. Ao perguntar “quais são us animais que você tem aí”” a terapeuta espera 10 segundos, dando à criança o espaço para que entre no diálogo. No turno vinte, a terapeuta pede para ver o animal que a criança tem nas mãos “mi mostri u qui você tem aí” e permanece em silêncio durante oito 94 segundos, quando a criança coloca a miniatura do leão em frente à terapeuta. De imediato, a resposta da terapeuta, turno vinte e dois, mostra que a criança agiu conforme o solicitado, dizendo: “a’ mi mostrô u lião’”. Apesar de a criança ter entregue o objeto solicitado à terapeuta, a estereotipia persiste e, no intuito de contextualizá-la, a terapeuta aproxima-se e toca a criança, turno vinte e dois, dizendo: ”você tá feliz é” tá feliz purquê você tem essis bichus todus e eu só tenho um”” Após esta troca interativa, a estereotipia é encerrada. Aqui, mais uma vez, não sabemos o que fez com que Hugo interrompesse os movimentos estereotipados. Uma vez “resgatada” a criança de sua estereotipia, a terapeuta volta a solicitar por mais animais, dando continuidade à sessão terapêutica. Neste recorte específico, temos a presença da estereotipia, que provoca inquietude na terapeuta. Sabe-se que as estereotipias, como já dito na fundamentação teórica deste estudo, são movimentos considerados “diferentes” e, consequentemente, causam estranhamento. Desde o início deste processo terapêutico as estereotipias foram tratadas como comportamento a ser eliminado. Assim, a terapeuta contextualiza e atribui significado aos episódios apresentados por Hugo, na tentativa de mostrar à criança que aquele comportamento provoca no outro uma reação, sendo percebido na interação. Recorte 5 Contexto interativo: sentadas no chão, terapeuta e criança manuseiam as peças de um zoológico em miniatura espalhadas pelo chão. Há uma caixa vazia, da qual a criança tirou os animais. A criança está de costas para a terapeuta. Na sessão anterior, a terapeuta trouxe bonecos de super-heróis e a criança identificou e manuseou o boneco do Batman. Idade: 07 anos e 11 meses 95 T* Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) Gesto (criança) 1 coloca o cavalo atrás da cerca sentada de costas para a terapeuta, manuseia os animais ó vira para trás e olha para a terapeuta 2 3 olha para a criança Fala (criança) bátina' bátina' ((ritmo acelerado)) sim:: olha para a terapeuta bátina ((ritmo acelerado)) 4 5 levanta o queixo ligeiramente para cima, ainda olhando para a criança 6 de joelhos, começa a procurar numa gaveta 7 encontra uma revista com os super-heróis na capa, senta-se no chão, de frente para a criança e começa a colocar os animais na caixa u: bá:timã:: eu não tenhu u bátimã hoji' ou será qui eu tenhu” volta-se de costas para a terapeuta e começa a manusear os animais inicia o movimento estereotipado, friccionando as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda ó u homem aranha’ venha pra cá’ venha’ eu arrumu us animais’ 8 arruma os animais na caixa 9 arrumando os sorrindo, continua venha pra cá’ animais na caixa, venha’ senti colocando os sorri animais na caixa aqui juntu di mim’ tia déia tá chamanu’ comu é qui tia déia chama” venha pra cá’ venha ((mesma entonação da terapeuta)) 96 Neste recorte, a exemplo do que já foi evidenciado em recortes anteriores, a repetição de enunciados está presente, tanto por parte da terapeuta como por parte da criança, fazendo parte do processo de comunicação. Em sua primeira fala, turno dois, a criança diz e repete o enunciado “bátina”. No turno oito, a criança volta a repetir, desta vez não sua própria fala, mas a fala da terapeuta, usando, inclusive, a mesma entonação da terapeuta. O enunciado da terapeuta foi parcialmente repetido pela criança “venha pra cá’ venha“. Ao mesmo tempo em que repete a fala da terapeuta, a criança também repete a ação da terapeuta, colocando os animais numa caixa. No turno nove é a terapeuta que faz uso da repetição. Ela inicia a sua fala repetindo o enunciado da criança, que já foi um enunciado dela repetido pela criança, usando-o como ponto de partida para o resto de sua fala: “venha pra cá’ venha’ senti aqui juntu de mim’ tia déia tá chamanu’ comu é qui tia déia chama””. Também achamos importante ressaltar que, ao caracterizar a linguagem do autista, os autores14 mencionam a inversão pronominal (troca da 1ª. pela 3ª. pessoa no singular) como característica destas crianças. No recorte acima, vemos que a terapeuta também fala de si na terceira pessoa do singular, se autodenominando “tia déia”: “comu é qui tia déia chama””. Desta forma, trazemos de volta a indagação feita em outra situação de análise sobre o quanto a linguagem que circula no diálogo é passível de “contaminação” por todos os que fazem parte da situação interacional. Voltando à primeira fala da criança, turno dois, vemos um enunciado inédito para aquele dia de terapia. O personagem do batman havia sido usado na terapia anterior, mas mostrou-se como enunciado inédito nesta terapia específica. 14 Gauderer (1997), Perissinoto (2003), Leboyer (2003), dentre outros. 97 A criança estava de costas para a terapeuta e reagiu ao seu chamado, olhando para ela e para o brinquedo que mostrou. Mostrando o seu desejo de brincar com o batman e não com o cavalo apresentado pela terapeuta, a criança diz “bátina”, voltando a repetir o enunciado no turno seguinte quando só tinha conseguido da terapeuta um “sim” como resposta. Ao perceber que a terapeuta compreendeu a sua solicitação “u: ba:timã:: eu não tenhu u bátimã hoji’ ou será qui eu tenhu””” a criança não mais insiste no mesmo enunciado, passando a apresentar o comportamento estereotipado de friccionar as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda. No turno sete, a terapeuta chama a criança para perto: “ó u homem aranha’ venha pra cá’ venha’ eu arrumu us animais’” enquanto começa a colocar os animais na caixa. A criança repete a ação e a fala da terapeuta, colocando alguns animais também na caixa enquanto repete “venha pra cá, venha”, fazendo uso da mesma entonação da terapeuta. Ao perceber que o seu enunciado do turno oito provocou reação na terapeuta, turno oito, a criança sorri. A terapeuta, no turno nove, faz uso da repetição que a criança emitiu e coloca essa fala para circular no discurso, pontuando que é assim que ela (terapeuta) o chama para sentar-se junto dela: “venha pra cá’ venha’ senti aqui juntu de mim’ tia déia tá chamanu’ comu é qui tia déia chama””. Conforme mostrado, a ecolalia presente não impossibilita o diálogo. Ao contrário, parece ser usada como ponto de retomada da fala do outro, principalmente quando utilizada pela terapeuta, ou como orientação de compreensão do enunciado, aqui por parte da criança. 98 Recorte 6a Contexto interativo: a terapeuta e a criança usam o computador. Hugo está sentado na cadeira e a terapeuta está em pé, por trás dele, manuseando o mouse. A terapeuta mostra uma apresentação com diversas figuras, muito semelhante a um álbum articulatório15. Idade: 07 anos e 11 meses T* Figura Gesto mostrada no (terapeuta) monitor Fala (terapeuta) Gesto (criança) 1 banana u:m' u qui é issu” olha o monitor 2 duas figuras bate palmas de bolo parabéns pra você' nessa data querida' U BÔLU' inicia movimento estereotipado, friccionando as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda 3 chocolate sonho de valsa CONFÊITU (em ritmo acelerado) olha para a criança 4 5 aponta para o monitor Fala (criança) confêitu cachorro quente u pão' 6 olha para frente, para o monitor toca o rosto da terapeuta 7 olha para o hum” rosto de hugo 8 pão (3s) pão 9 olha para a criança e sorri u pão 10 espeto de carne olha para o monitor u qui é issu” (5s) carninha olha o monitor 15 Material utilizado em terapia fonoaudiológica que apresenta diversas ilustrações, a fim de se avaliar a linguagem da criança. 99 11 cebola olha para o monitor 12 olha para o monitor olha para o monitor cebola 13 cenoura a flô olha para o monitor 14 cenoura 15 garrafa de cerveja antática sorri e olha para a criança 16 antá:rtica 17 garrafa de coca-cola 18 má' maçã realiza movimento coca-cola estereotipado (ritmo de friccionar as acelerado) pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda sorri co:ca co:la' coca-cola é issu aí' Nesta sessão terapêutica o uso do computador causou grande satisfação a Hugo, que participou ativamente, reconhecendo e nomeando as figuras mostradas no monitor sem dificuldades. No turno 3, ao ver a figura do sonho de valsa, Hugo grita “CONFÊITu” mesmo antes da terapeuta perguntar a ele o que era. A fala da criança é repetida pela terapeuta, como numa concordância. Ao se deparar com a figura de um cachorro quente, no turno 5, Hugo diz “u pão” e, ao não receber uma reação imediata da terapeuta, toca no rosto da terapeuta, turno seis, fazendo com que ela olhe para o seu rosto. O gesto da 100 criança provoca uma resposta da terapeuta, que pergunta “hum””, ao que a criança responde, turno oito, repetindo o enunciado “pão’ (3s) pão”. A terapeuta, no turno seguinte, repete o enunciado “u pão”, em concordância com a fala de Hugo. Aqui ressaltamos o uso da gestualidade como parte integrante da comunicação (McNeill, 2000). No turno 11, a criança associa a figura de uma cebola a uma maçã, e a terapeuta responde nomeando corretamente a figura. O mesmo acontece no turno treze, quando a criança chama a cenoura de flor. A terapeuta não aceita a nomeação incorreta por parte da criança, dando às figuras os nomes corretos. Ao fazer isto, a terapeuta fala do lugar do “outro que tem uma maior capacidade “linguageira””16 (GUIMARÃES LEMOS, 2002). Desejamos ressaltar, também, que mesmo nomeando “incorretamente” as figuras apresentadas nos turnos 11 e 13, a criança demonstrou perceber que o objetivo da atividade era a nomeação e agiu de acordo com as expectativas, dando nome às figuras à medida que apareciam no monitor. No turno 15, a criança reconhece a garrafa de cerveja, dizendo o nome de uma marca de cerveja amplamente conhecida, o que provoca um sorriso de satisfação da terapeuta. No turno dezessete, a criança reconhece a garrafa de coca-cola e nomeia-a rapidamente, acompanhado do movimento estereotipado de friccionar as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda. Mais uma vez, conforme visto em recorte anterior, a criança usa-se da estereotipia num momento de alegria. As estereotipias que a criança apresentou neste recorte foram nos turnos dois e dezessete, interrompendo-as imediatamente após a apresentação das 16 Aspas da autora. 101 figuras de bolo e coca-cola. Como já foi dito em outro momento da análise e apresentação dos dados, a estereotipia de Hugo está associada a momentos de felicidade e/ou angústia. Neste caso específico, podemos dizer que Hugo ficou feliz em ver a figura do bolo e da coca-cola, porque além da estereotipia ele sorria e demonstrava alegria. Também sabemos, pelo convívio da terapeuta com a criança, que bolo e coca-cola são alimentos de que a criança gosta. Recorte 6b Contexto interativo: continuação da sessão terapêutica mostrada no recorte 8, com a criança e a terapeuta ainda diante do computador. T* Figura mostrada no monitor 19 Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) mamadeira Gesto (criança) inicia movimento estereotipado de friccionar as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda faz sinal mamadêra negativo com o não' eu sei dedo indicador qui você ainda tôma mamadê:ra pra durmi 20 21 mamadêra olha para a criança 22 23 chuveiro mais não' tu já tá grandi ajoelha-se ao sábi u qui é lado da criança issu” e olha para ela 24 25 Fala (criança) olha o monitor tumá bánhu computador aponta para o monitor ó 102 inclina-se em direção ao ouvido da terapeuta 26 sorri e olha computadô para a criança 27 28 29 tadô ((cochichando no ouvido)) liquidificador leitinhu ((ritmo acelerado)) sorrindo, olha é u para a criança liquidificadô' é ondi faz u leitinhu di hugu' Neste trecho da terapia, achamos interessante ressaltar que Hugo reconhece a função dos objetos mesmo quando não os consegue nomear, a exemplo dos turnos vinte e três e vinte e oito. No turno vinte e três, mediante a figura de um chuveiro, a terapeuta pergunta à criança: “sabi u qui é issu”” e a criança responde “tumá banhu”, atribuindo uma função ao chuveiro, mostrando reconhecer aquela figura e seu uso social. No turno vinte e oito, a criança reconhece o “leitinho” como produto final do liquidificador. Desta vez a terapeuta contextualiza a fala da criança, dizendo: “é u liquidificadô’ é ondi faz u leitinhu de hugo’”. Por saber que o liquidificador é utilizado para preparar o seu leite, Hugo atribuiu o nome leitinho ao objeto liquidificador. A terapeuta aparece como instância de significação da fala da criança (GUIMARÃES LEMOS, 2002). No turno vinte e seis, a criança aproxima-se do ouvido da terapeuta, sua gestualidade associada ao tom de voz baixo constituem uma situação específica do diálogo. Fala e gesto, indissociados, representam, neste caso, o ato de cochichar realizado por Hugo (Mc NEILL, 2000). 103 Também neste trecho Hugo apresenta o movimento estereotipado, desta vez ao ver a figura de uma mamadeira. A criança ainda é alimentada através da mamadeira no horário noturno, antes de dormir. Mais uma vez, tal como no recorte anterior, podemos associar a estereotipia de Hugo à felicidade em ver a figura da mamadeira, algo prazeroso para ele. A atividade de nomear figuras no computador provocou uma linguagem na criança e foi possível perceber, através de suas falas e de seus comportamentos, sua satisfação em realizar tal atividade. 104 IV. Considerações Finais É difícil saber o melhor caminho para a terapia de linguagem com uma criança autista, visto que não há, ainda, uma certeza sobre a etiologia do autismo nem um padrão único de comportamento apresentado por estas crianças. Assim, o fazer clínico tem sido baseado, essencialmente, pelo bom senso do terapeuta e pela sua atitude diante do quadro de autismo. Pode-se ver que, no caso descrito aqui, há uma interação efetiva terapeuta – paciente, provocando uma reação nesta criança, que pode ser percebida em sua linguagem. Na literatura, trata-se sempre da criança autista como aquela da falta: de interação, de linguagem, de interesse, de contato social, de contato visual, de risada, de gestos significativos, de comunicação. Pouco ou quase nada se fala sobre o que a criança autista tem, suas aptidões e capacidades (CAVALCANTI E ROCHA, 2001). De acordo com Cavalcanti e Rocha (2001), é de grande impacto a idéia que se tem sobre o autismo e não há como isso não interferir na vida dos familiares e das pessoas que lidam com esses indivíduos, incluindo aqui profissionais considerados como “aptos” para lidar com estas crianças. Desta forma, ao se considerar o autista como um sujeito passível de desenvolvimento, capaz de apresentar habilidades próprias e que está inserido no mundo e não alheio a ele, permite-se a esta criança um desenvolvimento de outro modo negado quando se vê no autista somente o lugar da falta. Em particular sobre a linguagem, é preciso que seja considerada como constituinte e constituída pelo sujeito e, assim, que se abandone o estigma de que o autista, mesmo que fale, nada tem a dizer, visto que o seu discurso é vazio. É 105 necessário que se atribua à criança autista o seu lugar de autor do discurso, de forma que ela sinta que a sua fala lhe pertence e que produz efeito no outro (interlocutor). Ao se tomar a linguagem como lugar de subjetivação, a idéia de um sujeito que fala mas que “nada tem a dizer” é imediatamente descartada. A fala do autista, se sempre considerada como ecolálica e sem intuito comunicativo, receberá do outro/interlocutor interpretação semelhante e como tal será, provavelmente, descartada do eixo da linguagem. Se o autista “não fala” então ele nada nos diz. Ora, é exatamente o oposto do que se vê em situações interacionais com crianças autistas. Vemos crianças que falam, sim, com particularidades de linguagem, também, mas que definitivamente existem e se colocam na e pela linguagem. Se não é novo que a idéia que se faz do termo “autismo” é sempre negativa (CAVALCANTI & ROCHA, 2001), é importante que se pense o impacto deste termo também no outro (profissional) que lida com estas crianças. Se na clínica nos deparamos com um sujeito cuja linguagem nos é enigmática e cuja subjetividade nos parece muito distante, como será que isso reflete no nosso trabalho? Quantas falas não “ouvimos”, quantos silêncios evitamos e quantas vezes falamos nós em “eco” por estarmos ligados diretamente àquele outro? O que a fala de Hugo nos mostra? Embora haja presença de ecolalia, no seu sentido literal, esta é feita de forma coerente. Toda a fala escolhida por Hugo para ser repetida encaixa-se perfeitamente no contexto dialógico. Além da fala ecolálica, há enunciados inusitados e a criança mostra-se inserida na linguagem. E o que diz a situação terapêutica? Pode-se dizer que a terapeuta, na condição de interlocutora, procura significar a fala de Hugo, acolhendo sempre o que ele profere e talvez seja isto que provoca em Hugo as situações de 106 linguagem. Diante disso, é viável pensar se, ao perceber a sua fala como parte constitutiva de um diálogo, Hugo não se sinta mais à vontade para permanecer nesta situação e, conseqüentemente, coloque-se mais e participe, deixando vir à tona o sujeito da linguagem. Mais inquietações que esclarecimentos nos levaram a enfrentar este estudo e seu desenvolvimento. Se, a nosso ver, está claro que há linguagem na criança autista, restam ainda dúvidas relativas a outros aspectos da comunicação, como exemplo: qual será o efeito que esta linguagem diferente e particular provoca no outro? Outra questão que levantamos é relativa aos gestos, ou ausência deles, conforme apontado pela literatura tradicional (LEBOYER, 2003). Será que não se pode dizer que há gestualidade na comunicação do autista? Se acreditamos que a fala e os gestos, juntos, constituem a linguagem (Mc NEILL, 2000) e se levantamos a bandeira de que a linguagem do autista existe e é significativa, então faz-se necessário questionar a idéia difundida na literatura da área médica sobre a ausência de gestos por parte da criança autista. Conforme também já dito na literatura, há uma pluralidade no autismo: manifesta-se de formas diferentes nos indivíduos. Por isso o nosso estudo explora o fenômeno da linguagem em uma criança autista específica, em determinado contexto terapêutico. As nossas indagações, embora possamos tentar ampliá-las para o quadro do autismo em geral, referem-se a um contexto específico, envolvendo a díade da pesquisa. Contudo, e embora não haja pretensão de generalização dos dados aqui encontrados, gostaríamos que este estudo permitisse um outro olhar em relação ao autismo. Se o sujeito da nossa pesquisa, Hugo, apresenta linguagem, então porque não repensar conceitos tão fortemente arraigados em relação ao autismo? 107 Referências Bibliográficas ARRIVÉ, M. Lingüística e psicanálise. São Paulo, EDUSP, 1994. BRUNER, Jerome. Child’s Talk: learning to use the language. London: Norton, 1983. CAVALCANTE, M. C. B. (1999). Da voz à língua: a prosódia e o deslocamento do sujeito na fala dirigida ao bebê. Tese de Doutorado, Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, Campinas. CAVALCANTI, A. 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