1 História da Ciência no Cinema: o relato de uma experiência formativa1 Prof. Dr. Márcio Norberto Farias – DEF/UFLA – [email protected] Prof. Drª. Luciana Azevedo Rodrigues – DED/UFLA – [email protected] José Sebastião de Andrade Melo – DQI/UFLA - [email protected] Emilene Coelho Viana – DQI/UFLA- [email protected] Rógério Custódio de Oliveira Júnior - DQI/UFLA - [email protected] Palavras-chave: história da ciência, cinema, crítica social Este trabalho visa relatar os resultados preliminares da Mostra de Filmes Ciência ComVida. Como o objetivo da Mostra não era simplesmente apresentar filmes, mas proporcionar condições de leituras críticas das imagens exibidas, o trabalho baseou-se em leituras e discussões de textos que versam sobre a História da Ciência, dentro de uma perspectiva crítica. Tal objetivo se justifica diante de um contexto social intensamente habitado por imagens televisivas e cinematográficas, muitas vezes confundidas com a realidade concreta. Isso pode ser facilmente reconhecido quando filmes de ficção científica inspiram interesse pela ciência e, ao mesmo tempo, a distorcem extraindo-a do contexto histórico em que ela surgiu e se desenvolveu. Assim, ao longo de 2008, especialmente no segundo semestre, um grupo de alunos e professores dos cursos de licenciaturas na Universidade Federal de Lavras se encontraram regularmente para estudar o tema em questão. Tomando por base o livro Para Compreender a Ciência, organizado por Maria Amália Andery et al.(2007), o grupo pôde discutir os processos sociais, econômicos e políticos que propiciaram o surgimento e o desenvolvimento do pensamento científico na sociedade industrial e sua estruturação sobre a observação e a manipulação da natureza, reduzida a mero objeto do conhecimento. Tais discussões foram constantemente acompanhadas de buscas por obras cinematográficas que abordavam os temas estudados e que culminaram na escolha de um filme que trouxesse não só as características do pensamento moderno, instituídos a partir das obras de René Descartes, Galileu Galilei e Francis Bacon, mas também suas conseqüências para a relação dos seres humanos com a natureza. Um dos componentes do grupo sugeriu a exibição do filme Ponto de Mutação, baseado no livro homônimo de Fritjof Capra (1986). Após uma primeira incursão sobre idéias desenvolvidas neste filme e sua 1 Ciência ComVida é uma das atividades compreendidas no interior do projeto de pesquisa UFLA-Ciência, cujo objetivo é promover atividades e eventos para a popularização da ciência realizado no Departamento de Educação e no Museu de História Natural da UFLA. 2 discussão entre os componentes do grupo de estudo chegou-se ao reconhecimento de que seria relevante sua análise em um grupo mais amplo; a partir disso, definimos que a primeira exibição se voltaria para estudantes de graduação e de pós-graduação da Universidade Federal de Lavras e de outras Instituições de Ensino Superior do município de Lavras. Esta definição se justificou tanto na complexidade dos aspectos formais e dos conteúdos do filme, quanto na finalidade central que conduziu a proposição do trabalho com filmes: a conscientização acerca do desenvolvimento histórico do pensamento humano, como forma de se contrapor aos estereótipos de ciência e de cientistas difundidos pelos produtos midiáticos, que comumente, os tratam numa perspectiva a-histórica, como se estivessem à margem do espírito de uma determinada época, como se fossem neutros e imunes aos interesses econômicos e sociais de um determinado momento histórico e, sobretudo, fossem seres fantásticos, superiores e super-poderosos. Como sintetizou um dos alunos de graduação envolvidos no projeto: “queremos com essas atividades, com o grupo de estudo formado e com a exibição de tal filme, levantar uma discussão a respeito da não imparcialidade ou neutralidade do pensamento científico. Queremos apresentar uma discussão, aqui dentro da Universidade, a respeito desta forma de pensar evidenciando que ela é um produto sócioeconômico, cultural e histórico, assim como qualquer outro. Temos como objetivo compreender a ciência contemporânea em sua perspectiva epistemológica, entender e mostrar como o pensamento científico se desenvolveu, desde o final da idade média e inicio da idade moderna até os dias atuais, e como os diferentes contextos históricos refletiram e ainda refletem no modo de como fazemos ciência, faremos isto perante o grande público através da exibição de filmes com conteúdos científicos e proposição de debates” (J.S.A MELO, 2008). Desse modo, no dia 21 de novembro de 2008 foi realizada a exibição de filme proposto, sob a responsabilidade de dois professores da Universidade Federal de Lavras e de três alunos de graduação do curso de Licenciatura em Química, que também formam o grupo de estudos sobre a história da ciência. O filme O Ponto de Mutação (Mindwalk) do diretor Bernt Amadeus Capra, foi exibido para 24 pessoas — alunos da graduação, da pós graduação e docentes universitários —, que permaneceram e participaram ativamente do debate sobre as idéias que entrelaçam política, ciência, arte e filosofia. O filme O Ponto de Mutação coloca em contraste um político fracassado, com pretensões ao cargo de presidente dos Estados Unidos, que contata um amigo poeta que mora em Paris e o convida a um encontro para pedir sua ajuda na construção de um programa político que possa levá-lo à conquista da vitória nas próximas eleições americanas. Eles seguem juntos, de carro, até uma região francesa chamada Mont Saint Michel, que num determinado período, é envolvido pela águas do mar que sofrem 3 a ação da subida das marés. Quando ainda estão no carro, falam muito pouco um com o outro, enquanto seus pensamentos, especialmente do poeta a respeito de como seu amigo observa o mundo a partir de sua centralidade, são apresentados ao público. Antes de chegar ao destino, eles param o carro e depois do convite feito pelo poeta ao político, para que ambos repitam as ações de seus antepassados seguem caminhando através de um pântano. Ao chegarem em Mont Saint Michel, eles iniciam um debate sobre o que teria levado o poeta a sair dos EUA, assim como o que teria levado o político a insistir em seus projetos de conquista da “Casa Branca”. Já no interior de uma igreja eles encontram uma cientista na área de Física que após acompanhar por algum tempo, em silêncio, a conversa dos dois expressa seu interesse pelos assuntos por eles tratados, confessando sua admiração pelo poeta pouco conhecido e seu total desconhecimento frente ao famoso político. Este encontro, apesar de se anunciar no interior de uma igreja medieval que impressiona pela onipotência de sua arquitetura, se efetiva quando eles se dirigem a uma torre, diante do relógio aí instalado. A mulher cientista que ocupa predominantemente a fala, a partir deste momento, aponta a necessidade da ciência perceber os limites do pensamento inaugurado por Descartes, de modo a avançar na compreensão da matéria e da própria vida. Curiosos diante da fala da cientista, o poeta e o político questionam os motivos que a levaram para aquele lugar marcado pelo isolamento. Após relatar suas frustrações diante da utilização bélica de suas pesquisas, a cientista apresenta detalhadamente a forma de compreender a vida, desenvolvida por pensadores como Maturana e Varela (1986), na chamada Teoria dos Sistemas, que não mais se baseia na compreensão dividida dos corpos, mas nas relações existentes entre as várias formas de seres integradas, tratada por Edgar Morin (1990) como pensamento complexo. A teoria dos sistemas, adverte a cientista no filme, não mais separa, hierarquiza, une e centraliza os fenômenos naturais, partindo de princípios lógicos ou visando a constituição de axiomas, mas compreende tais fenômenos como complexus, como algo tecido em conjunto, algo indissociável e que só adquire sentido quando percebido na várias relações que o constituem. “O campo da teoria dos sistemas é muito mais vasto [...] qualquer realidade conhecida, desde o átomo até a galáxia, passando pela molécula, a célula, o organismo e a sociedade pode ser concebida como sistema, quer dizer, associação combinatória de elementos diferentes [...] a teoria dos sistemas que surgiu com Von Bertalanffy, a partir de uma reflexão sobre a biologia espalhou-se, a partir dos anos 50 de maneira profusa nas mais diferentes direções. (MORIN, 1990, p. 28)” A cientista, no filme, explicita, a partir do conceito de autopoiésis que os processos da vida e do conhecimento não podem ser tratados isoladamente, mas a partir do entrelaçamento entre a vida e o conhecimento. Exemplifica essa ligação descrevendo as 4 inúmeras relações de uma árvore com diversos sistemas vitais. Após a apresentação do filme, os participantes foram convidados a participar de uma discussão e reflexão tanto da fala dos personagens quanto dos textos estudados pelo grupo que coordenou a Mostra. Neste momento, o filme e os textos foram comentados de modo a evidenciar o processo histórico de constituição do método científico. Em longos diálogos sobre as diferentes formas de perceber o mundo, o filme também foi destacado, durante a discussão, como uma obra que exige atenção incomum dos que o assistem. Como contrapartida, fornece elementos preciosos para a compreensão dos pensamentos de René Descartes (1596-1650) e de Issac Newton (16421727) sobre a constituição do método científico e da concepção mecanicista do mundo. Como a obra destes pensadores foi estudada no grupo de estudos, a partir de Andery et al. (2007) muitas questões puderam ser elaboradas e refletidas ao longo do debate. As leituras realizadas pelo grupo organizador proporcionaram ao debate fundamentações teóricas e reflexões sobre os vários processos sociais, econômicos e políticos que caracterizaram o período de transição da sociedade medieval para a sociedade capitalista, momento histórico em que viveram Galileu Galilei (1564-1642), René Descartes e Issac Newton. Como o modelo do raciocínio matemático presente no método cartesiano para atingir verdades indubitáveis, e sua concepção matematizada do mundo foram fortemente evidenciadas e criticadas ao longo da obra cinematográfica, muitos presentes expressaram desconforto, pois até então apenas tinham aprendido que o modelo cartesiano era o único método científico válido. O desconforto articulado às reflexões teóricas permitiu que se evidenciasse na discussão que a concepção materialista da natureza representada pelo pensamento de Descartes persiste na maneira dos cientistas conceberem a natureza até hoje. No próprio filme se explicita que apenas na metade do século XX, com a terrível demonstração de poder do ser humano sobre a natureza, utilização de bombas atômicas, no final da segunda grande Guerra, e com o surgimento de grandes evidências sobre danos ao meio ambiente, se iniciou um pensamento crítico ao modo cartesiano de se pensar e de se fazer ciência. Crítica apresentada no filme por uma personagem feminina, o que fez com que no momento do debate, discutíssemos por que uma mulher assume a representação da ciência crítica, nomeada na obra como Teoria dos Sistemas. O confronto de duas perspectivas de ciência foi tomado como um aspecto central da obra cinematográfica para alcançar uma resposta a esta questão. O homem político, representante da funcionalidade do conhecimento, do conhecimento como meio de dominação, de confirmação e manutenção das condições existentes foi contraposto por aquela que historicamente desempenhou um papel social semelhante ao da natureza dominada. Com isso, a perspectiva científica apresentada pela Física reforçava que com a Teoria dos Sistemas 5 a ciência e seus representantes se reconheciam como natureza e não simplesmente como seus dominadores. Crítica necessária, mas que, a partir das discussões realizadas teve seus limites evidenciados, especialmente quando se destacou que o poeta, como representante da arte, da filosofia como pensamento reflexivo, apontou que nem o pensamento do político nem o da cientista conseguiam dar conta da totalidade do objeto do conhecimento, e que apesar da perspectiva progressista da mulher, ela também agia do modo como criticava, ou seja, visava à apreensão mesma do objeto do conhecimento, buscada pelo método científico anterior. A partir daí, o grupo de discussão compreendeu que o papel do poeta na obra cinematográfica visava ao pensamento de como ao converter a res cartesiana em res autopoiética, a crítica anunciada pela cientista acabava enfatizando a percepção da vida como natureza, esquecendoa enquanto produto da cultura. O filme, sem dúvida trouxe incômodo, seja por sua crítica a predominância do pensamento mecanicista, seja pelos seus limites de naturalização dos fenômenos sociais, presente na perspectiva da Teoria dos Sistemas. O estudo e a discussão em grupo foram condições fundamentais para a exibição e a leitura crítica das imagens que compõem o filme e, sobretudo, para que se desenvolva uma percepção e compreensão histórica sobre a ciência. É isso que continua impulsionando o desenvolvimento deste trabalho. Referências Bibliográficas ANDERY, Maria Amélia. P. A.; et al. Para compreender a ciência: uma perspectiva histórica. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. ASSMANN, Hugo. Metáforas novas para reencantar a Educação: epistemologia e didática. 2.ed. Piracicaba: Unimep, 1998. KELLNER, Douglas. Lendo imagens criticamente: em direção a uma pedagogia pósmoderna. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (org). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 104-131. MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. 2.ed. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. ______ et al. O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Publicações EuropaAmérica, 1996.