GT: RELAÇÕES INTERNACIONAIS E AMBIENTE Coordenação: Prof. Dr. Wagner Costa Ribeiro “CONSTRUINDO RELAÇÕES INTERNACIONAIS EM TORNO DOS RECURSOS HÍDRICOS” Cristiane Fernandes de Oliveira1 Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar e discutir os interesses que buscam nortear as políticas públicas que envolvem o gerenciamento dos recursos hídricos brasileiros. São diversas as forças que integram estes interesses, muitas entre elas mostramse contraditórias quando comparadas aos seus objetivos e princípios originais, dentre os quais podemos destacar o da defesa do acesso ao cidadão brasileiro à água com qualidade e à garantia estratégica de uso deste recurso natural pelo Estado brasileiro. Compondo esta diversidade de forças estão representantes de poderes públicos nacionais nas diversas instâncias, de poderes públicos internacionais e representantes de grandes instituições privadas, algumas das quais transnacionais. Para discutirmos como são traçadas as relações internacionais em torno do interesse pelo controle destes recursos faz-se necessário, sobretudo compreendermos como interagem estas representações em diferentes escalas. Neste sentido, inspirados por LE PRESTRE (2000: p.352) quanto à questão da degradação das trocas comerciais e quanto ao seu impacto sobre a exploração dos recursos, em especial para os países mais empobrecidos economicamente, buscamos discutir as vantagens e desvantagens de negociações e acordos comerciais acerca da exploração dos recursos hídricos, enfocando o caso brasileiro, em virtude do crescente déficit mundial e do grande potencial ainda oferecido neste território. 1 Doutoranda no programa de pós-graduação em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP/SP. Introdução: O crescente esgotamento de recursos naturais do globo tem incitado muitas discussões2 ao longo das últimas décadas, em especial a partir da década de 1970, proporcionando encontros e também gerando polêmicas em torno das conclusões e propostas obtidas até então. Cada vez mais, torna-se essencial uma melhor compreensão do papel de nossos representantes na formulação destas resoluções e acordos internacionais. Esta compreensão, por sua vez, passa pela construção de um sentido crítico e de cidadania indispensável para um maior empenho da sociedade brasileira na participação ativa na cobrança de seus direitos e no cumprimento de seus deveres. Além da compreensão do papel desempenhado por nossos representantes é importante também ter claro que há grande desigualdade nos pesos destas representações perante outras nações, por diversos motivos que vão desde dificuldades financeiras, por parte de países mais pobres, para manter tais representações até pela influência política e de poder econômico que algumas nações exercem sobre outras. Neste sentido, considerando as questões supracitadas, procuramos discutir, ao longo deste trabalho, a articulação e a preponderância de interesses econômicos na construção de relações internacionais no que diz respeito à gestão dos recursos hídricos no Brasil. Devemos para tanto, em primeiro lugar, discutir sucintamente como a questão ambiental, encarada do ponto de vista da economia neoclássica têm sido apropriada crescentemente por gestores urbanos e ambientais e quais são as possíveis implicações deste fato. Em seguida procuramos considerar neste trabalho quais caminhos têm sido trilhados na construção de relações internacionais com objetivos focados na questão do acesso aos recursos hídricos e na alteração dos rumos do uso e conservação desses recursos, em especial no caso brasileiro. 2 Entre alguns dos encontros e documentos formulados a partir destes primeiros pode-se ressaltar o estudo elaborado pelo Massachusetts Institute of Technology em 1972, que provocou grande polêmica ao defender o “congelamento” do crescimento econômico. Há também a 1ª Conferência das Nações Unidas sobre o Homem e o Meio Ambiente em Estocolmo, também na década de 1970, o Relatório Brundtland em 1987, publicado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU e os documentos resultantes da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1992 no Rio de Janeiro, como a Agenda 21 e as Convenções sobre as Mudanças Climáticas e sobre a Biodiversidade. Desenvolvidas estas duas etapas, procuramos finalizar nosso trabalho não de maneira conclusiva, mas apontando questões que ainda estão se desenrolando e que, portanto, carecem de uma continuidade de discussões e de pesquisas. Para nos aprofundarmos na análise da adoção de retóricas econômicas como suporte das críticas à gestão pública dos recursos hídricos faz-se necessária uma rápida revisão do que aborda a teoria neoclássica. A abordagem neoclássica na gestão ambiental Baseada numa lógica dedutiva a escola neoclássica nega, conforme MARTINS (2004, p.7) “as concepções de Marx acerca da categorização de processos econômicos como processos sociais dialéticos, (...)”, aceitando em seu lugar “comportamentos individuais em situações de mercado”. O valor de bens seria obtido, nesta ótica teórica neoclássica, através de sua relação com o mercado e não mais com a produção. Deste modo a noção de expropriação do trabalho é eliminada o que é convenientemente aceito pela ideologia capitalista neoliberal. Este fato por sua vez, é criticado por MARTINS (2004: p.16) já que encobriria possíveis conflitos através da aparência de um equilíbrio nas relações de troca. Neste sentido, temos: “(...), presa à experiência imediata da circulação de mercadorias, a explicação neoclássica corrobora o entendimento de uma aparente equivalência das relações de troca que se estabelecem entre o capitalista e a força de trabalho, camuflando assim um movimento que foge às práticas capitalistas aparentes, qual seja, o movimento de criação de valor excedente e realização da mais-valia”. Encobre-se assim, com o discurso de uma melhor eficiência econômica as relações conflituosas entre expropriador e expropriado, transferindo a resolução dos problemas ao mercado, que supostamente deveria estar em constante equilíbrio. Em relação à aplicação da teoria neoclássica a discussões ambientais podemos dizer que esta tem ganhado grande destaque nos últimos anos, principalmente no que diz respeito a tentativas de valoração de recursos naturais e mais recentemente influenciando negociações e decisões de cunho político ambiental. É importante observar a priori que a abordagem neoclássica ou a economia ambiental como ficou conhecida a partir de suas inserções em questões relacionadas ao meio ambiente, considera os recursos naturais como ativos ambientais e que estes como observa MARTINS (2004: 17) “(...) passariam a se inserir na modelagem neoclássica de alocação eficiente, a qual entende que a escassez relativa de qualquer bem ou serviço – inclusive os ativos ambientais – seria refletida de forma eficaz no sistema de preços de mercado”. Em relação aos recursos hídricos, podemos dizer com grande grau de certeza que, devido às condições naturais de diferentes locais do planeta e devido ao uso indevido ou à poluição, chegamos ao século XXI com um grande problema a ser solucionado que é o de escassez, seja ela quantitativa ou qualitativa tal como trata TUNDISI (2003) em seu trabalho. Do ponto de vista das populações que dependem destes recursos a palavra escassez significa queda na qualidade de vida ou em casos extremos significa a ausência de vida. Por outro lado, como vimos do ponto de vida da economia ambiental esta palavra pode significar lucro, desde que este bem seja inserido na lógica de mercado. A inserção do recurso natural água na lógica de mercado, porém, vai depender principalmente de como está estruturado o Estado, já que no caso brasileiro, o mesmo teria o papel de gerir este bem de natureza pública. Deste modo, dependendo do poder de coesão do Estado frente à diversidade de interesses regionais, de seu poder econômico, de sua força de representação política perante outras nações e do grau de importância do significado de soberania sobre seu território - por parte dos representantes deste Estado e por parte de sua sociedade - os recursos hídricos estarão mais ou menos suscetíveis a serem transformados em ativos ambientais. Assim, quanto mais frágil o Estado estiver em relação aos fatores supracitados maior será a facilidade de inserção desta lógica em seus domínios. Existem por sua vez, duas formas pelas quais se absorve esta forma de raciocínio neoclássico pela estrutura gestora: uma através da via da privatização de setores prestadores de serviços e outra através da utilização pelo próprio Estado, dos princípios norteadores da economia ambiental. Estes princípios, por sua vez, são visíveis na formulação de políticas e aplicação de medidas compensatórias, voltando-se amplamente para a cobrança pelo uso da água e pagamento pela poluição produzida ou para a expansão física das redes de saneamento básico. Naturalmente que em virtude dos grandes déficits acumulados em serviços de abastecimento de água e cobertura e tratamento dos esgotos e do crescimento das demandas sejam necessárias decisões de cunho prático para amenizar os conflitos mais urgentes. Entretanto, temos vivenciado durante décadas este estado de emergência, em que o planejamento tem sido resumido às tentativas de solução de problemas já consolidados e não à elaboração de propostas que pudessem evitar futuros problemas. Este “tipo” de planejamento é claramente exposto freqüentemente na mídia, como o do anúncio recente da SABESP – Companhia de Saneamento Ambiental do Estado de São Paulo sobre seu “Plano para a Grande São Paulo”3, em que estaria diminuindo seus investimentos até 2025 e procurando ser mais produtiva. Em outras palavras, a empresa estaria investindo em aprimoramento da exploração de mananciais que já são explorados atualmente, havendo um pequeno investimento em novas barragens e não desconsidera em suas previsões a provável expansão da exploração de água dos rios Juquiá e Juquitiba, mananciais mais distantes da RMSP. É importante observar que, esta última alternativa, apesar de provavelmente modificar os custos previstos inicialmente passa a ser, aos olhos da empresa, prioridade no caso de perder, ainda este ano, a concessão da retirada de 31,3 mil litros por segundo da Bacia do rio Piracicaba. Além da perda do caráter preventivo que o planejamento deveria ter o chamado “plano” da Sabesp não inova muito em relação à suas metas, garantindo mais uma vez o abastecimento de água em detrimento da coleta e tratamento de esgotos e apresentando uma forte característica tecnicista em suas propostas, dando ênfase a obras. Apesar de reconhecermos a importância de tais obras em caráter emergencial, como já foi afirmado anteriormente, questionamos se estas políticas de investimentos não estariam redundando em novos déficits futuros, já que são encarados de forma dissociada da necessidade de recuperação dos mananciais já existentes e da necessidade de revisão do estilo de consumo. Felizmente esta visão começa a ser questionada, abrindo espaço para discussões em torno de mudanças no padrão de consumo, no estímulo ao reuso da água, no controle da expansão urbana e no cuidado com a qualidade dos mananciais. Neste sentido, já é possível observarmos a opinião de diversos especialistas da área e representantes da sociedade civil sobre estas discussões, como foi expresso pelo Jornal a Folha de São Paulo (2004: p.C1), fato este que pode ser um indício de um novo período marcado por uma maior participação social nas decisões sobre o destino dos recursos hídricos brasileiros, até então, de domínio estritamente técnico e político. É possível perceber que ao mesmo tempo em que no Brasil o Estado através de suas instâncias de governo absorve o discurso tecnicista como forma de viabilizar desenvolvimento priorizando obras, subestima a importância dos necessários 3 Ver VIVEIROS, M. Sabesp reduz gasto com água até 2025. (Jornal Folha de São Paulo: p.C1 e C3) investimentos em educação e conscientização social, que propiciariam a médio e longo prazo uma maior participação da sociedade na resolução dos problemas relativos ao saneamento básico. Quanto a medidas tomadas para o estímulo da redução de consumo de água poucos exemplos podem ser mencionados, entre eles o de descontos crescentes nas tarifas cobradas para casos de redução de consumo, divulgados pelo atual governo de São Paulo recentemente. Porém, apesar deste tipo de estímulo poder resultar em uma economia no uso da água em curto prazo, com incorporação de novos costumes diários, no uso doméstico especialmente, por outro lado, isoladamente não promove necessariamente uma modificação na conscientização social sobre a questão dos recursos hídricos. Ou seja, não promove a inserção social em relação ao problema da poluição e impermeabilização do solo, da ocupação das áreas de mananciais e, entre outras coisas mais não oferece condições reais ao setor agrícola na substituição de mecanismos perdulários de irrigação por outros mais adequados às novas necessidades, já que mais de 70% do consumo de água no território nacional se concentra na agricultura. A pequena mobilização social e a falta de conscientização da grande maioria da população, exemplificada por NEDER (2000) em relação à participação nas reuniões dos comitês de Bacia da Região Metropolitana de São Paulo, deixa claro a falta de experiência do próprio Estado na articulação dos diferentes interesses e de estímulo à organização por parte da sociedade civil. O quadro que se apresenta, portanto, de fragilidade das organizações sociais e de déficits acumulados na estrutura física e técnica embasam a crítica elaborada por adeptos da economia ambiental à administração pública, enfatizando invariavelmente por sua vez, a obsolescência da estrutura física e administrativa dos órgãos gestores do Estado e afirmando a defasagem tecnológica existente entre estas frente a instituições gestoras privadas ditas mais eficientes. Este tipo de crítica tem servido comumente como método para inserir bens públicos na lógica de mercado e tem sido promovida amplamente por agências multilaterais, como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e apoiadas por outras instâncias tais como o Fundo Monetário Internacional. O discurso pró-privatização, portanto, tem sido apoiado como caminho para a viabilização da expansão do acesso à água, mas pouco conduz à modificação nos padrões perdulários de consumo. Quanto a este discurso CASTRO (1999) chama a atenção para as experiências internacionais em relação à inserção da água na lógica de mercado, como no caso do Chile e do México, observando que o fato de dar preço à água não elimina problemas de superexploração e esgotamento de mananciais e nem a necessidade de intervenção do Estado seja como instância reguladora ou fiscalizadora. Neste sentido, a inserção dos recursos hídricos como bem passível de ser comercializado não significa necessariamente uma mudança de conscientização social. O espírito consumista e individualista, tão difundidos na sociedade capitalista atual estaria sendo perpetuado e possivelmente até mesmo estimulado pelo detentor do poder de venda deste bem. Prevalecendo a lógica de mercado, a instância gerenciadora teria maiores lucros quanto maior fosse o consumo ou quanto mais se pagar pela mesma quantidade de água. Podemos perceber como o discurso pró-privatização dos serviços de saneamento básico perde força quando se afasta do aspecto relacionado aos domínios de modernas técnicas de exploração e de redução de perdas em redes para se dirigirem à conscientização de uso e inclusão social. Neste aspecto, como podemos esperar que essa mesma lógica baseada na busca por lucros venha solucionar problemas como os da necessidade de economia de água ou de atendimento das camadas mais empobrecidas economicamente? Alguns estudos têm sido desenvolvidos com o intuito de avaliar as experiências privadas na gestão de serviços de saneamento básico no Brasil e no mundo, entre eles LIMA (2003), VARGAS e LIMA (2003), MELLO (2001) e SWANN (1988). Um traço comum a todos eles é o da reafirmação da necessidade de regulação por parte do Estado, já que em sua falta predominariam os interesses privados em relação às taxações e aos investimentos em áreas mais pobres e deficitárias. Notamos também que em todos estes trabalhos sobre a experiência privada não se relata estímulos à economia de água, o que fortalece os indícios sobre o predomínio dos ideais da economia ambiental que defenderia o aumento do consumo e não o contrário disto. Relações internacionais e inclusão social Quando falamos em relações internacionais devemos ter claro que estas se desenvolveram dentro de diferentes contextos político-econômicos e que durante muito tempo o aspecto político ocultava as finalidades econômicas através de estratégias militares com objetivos de defesa territorial. Durante principalmente o período conhecido como o da “Guerra Fria”, a centralização do poder político, de informações e da gestão do território influenciaram países de ambos os blocos dominantes. Os limites do modelo econômico vigente até então ficaram evidenciados após este período, através do esgotamento de reservas naturais e de problemas sociais e ecológicos, contribuindo desta forma para a consolidação e expansão de uma das principais características do sistema capitalista – a competição, impulsionando novas estratégias e relações internacionais que estimulam a descentralização do poder político em contraposição às fusões e centralizações empresariais mundiais. Neste sentido, como lembra BECKER (1995) estas estratégias não acabariam com o Estado, mas com o welfare state, assegurando as diferenças e os direitos à propriedade privada. BECKER (1995, p.50) ainda explicita: “A nova forma de produção e demandas de autonomia requerem uma nova forma de Estado, uma organização econômica e social flexível e abertura à internacionalização que favoreça e estimule a competição. Enfim, um Estado com uma lógica privada”. Percebe-se com isto que não se equaciona o problema de esgotamento das reservas naturais nem dos problemas sociais e ecológicos resultantes, porém, procura-se garantir o domínio e o abastecimento de fatias lucrativas do mercado, ou seja, procurase atender aqueles com alto poder de consumo, em detrimento da maior parte da sociedade. Deste modo, é possível constatar que há um grande ônus social acumulado por décadas em relação aos serviços de saneamento básico, principalmente em áreas periféricas em que predominam populações mais empobrecidas e que não seriam capazes de arcar com o custo destes necessários investimentos. Este não é unicamente um problema brasileiro, sendo observado principalmente em países economicamente pobres, conhecidos como “em vias de desenvolvimento” e em países destruídos por conflitos armados ou por grandes catástrofes de ordem natural. Entretanto, apesar da grande dimensão deste ônus social em alguns destes países, a riqueza de seus recursos naturais ainda continua atraindo a atenção e o interesse de investidores internacionais. O potencial hídrico de países como o Brasil, a China, a Colômbia, a Indonésia e a Rússia, poderia suprir as necessidades de consumo de grande parte da população mundial, desde que os padrões de consumo fossem adequados ao equilíbrio de cada uma destas reservas. Os padrões de consumo, porém, variam muito não somente em relação as suas reservas, mas principalmente em relação ao poder aquisitivo da sua população e do grau de industrialização, conforme nos aponta MEKAY (2004). Podemos, a partir desta observação, nos indagar se a necessidade de importação de água por países que possuem um alto padrão de consumo, como os EUA influenciariam numa modificação desse padrão por parte de suas populações ou, como no caso do petróleo, os seus padrões de consumo seriam perpetuados à custa de perdas ambientais e sociais em outras áreas? Quem lucraria com a inserção da água no mercado mundial? A entrada de investidores internacionais a partir da abertura dos mercados mundiais tem sido viabilizada por medidas neoliberais difundidas principalmente do final dos anos 1980 e intensificada nos últimos anos em virtude da necessidade de se estabelecer, por parte de nações economicamente hegemônicas, mercados supranacionais. Estes mercados supranacionais deveriam segundo esta lógica, continuar subordinados às nações hegemônicas, obedecendo aos padrões de desenvolvimento por estas criadas. É muito interessante observar o que BECKER (1995: p.51) destaca como algumas estratégias introduzidas por estas nações na tentativa de criar estes chamados “territórios livres”, para a atuação dos mercados supranacionais: “Primeiro, o mito da desestatização, quando nos países centrais o Estado se moderniza, mas não se desmonta. Segundo, o cerceamento tecnológico, sob a justificativa da não proliferação nuclear e a restrição de fornecimento de armas a ‘governos irresponsáveis’. Terceiro, a rodada Uruguai do GATT quanto à prestação de serviços, propriedade intelectual e investimentos. Quarto, a limitação da soberania em amplas áreas do planeta sob variados pretextos como o narcotráfico, os recursos energéticos e a preservação ecológica”. Na maior parte dos pontos mencionados é possível constatar que no Brasil estas estratégias são largamente aplicadas, em especial em relação ao primeiro item. Sendo assim, podemos afirmar que em relação à defesa do chamado “Estado mínimo”, com as políticas neoliberais de desmonte do Estado no Brasil, tem-se perdido de vista o risco do enfraquecimento do mesmo e, por conseguinte, do enfraquecimento de seu poder de atuação e negociação política internamente e externamente, como já apontou BECKER (1995: p.56). Este enfraquecimento por sua vez, possui um aspecto que agrada as empresas privadas, já que estas últimas passariam a controlar mais facilmente a própria estrutura reguladora de seus serviços prestados e, outro aspecto, que agradaria os representantes político-econômicos internacionais interessados em manter a sua supremacia perante os países periféricos e em fazer frente à concorrência dos países centrais. Sobre o aspecto da estrutura reguladora, notamos que a independência e a idoneidade das instituições encarregadas de regular e fiscalizar os serviços concedidos a instituições privadas é muito importante para a efetivação de todos os planos e propostas aprovadas quando da inserção destas últimas como prestadoras de serviços públicos essenciais. Contudo, conforme exposto por VARGAS e LIMA (2003) a experiência da privatização dos serviços de saneamento básico nos casos estudados mostraram grande variação em relação ao seu comportamento já que havia diferentes fatores atuando em cada um, como em relação “a autonomia e independência das entidades reguladoras”. Sendo assim, nem sempre a regulação é encarada devidamente, como no caso de Limeira-SP, em que se ilustra bem a fragilidade da autarquia municipal encarregada da regulação destes serviços, já que sua manutenção estaria totalmente vinculada financeiramente aos repasses da empresa transnacional privada prestadora dos serviços – a Águas de Limeira – para esta autarquia. Poderíamos neste caso estar observando um exemplo de consumação do risco já apontado por VARGAS e LIMA (2003) sobre “a possibilidade de captura do regulador pelo regulado devido à assimetria de poder e informação que resulta de concessões de serviços municipais a grandes corporações transnacionais, (...)”. O domínio do regulador pelo regulado significa a defesa do interesse destas grandes corporações, que é a da obtenção de lucros, tornada possível através do atendimento de parcelas rentáveis da população. Eles dedicam-se às de áreas em que predominam populações que possam arcar com as taxas impostas em detrimento das camadas mais empobrecidas, de menores investimentos em coleta e tratamento de esgotos e em um aumento dos volumes hídricos explorados, privilegiando o aumento do consumo em detrimento de usos mais equilibrados. Além do aspecto da autonomia da estrutura reguladora, podemos incluir como fator contribuinte para a inserção destas corporações privadas no Brasil a capacidade de mobilização social e sua articulação com entidades representativas do Estado. Ela deve ser compreendida como parte de um projeto regional ou nacional que passa por políticas educacionais que estimulem a inclusão social e a construção da cidadania. Na ausência de projetos como estes, verifica-se o predomínio da ação individualista sobre a social. Na prática é possível observar que a ausência cada vez maior do Estado, através da falta ou fragilidade de estruturas reguladoras, fiscalizadoras ou mesmo educadoras têm impulsionado há décadas uma crescente apropriação privada dos recursos hídricos. Em relação à exploração dos recursos hídricos no Brasil, sabe-se que em detrimento do que afirma a Constituição de 1988, que prevê a União e a seus Estados este direito ou à outorga de licença dos mesmos, muitas vezes interesses privados o fazem sem autorização para tanto, sendo observado na perfuração descontrolada de poços artesianos e no desvio de cursos d’água, até mesmo em áreas de proteção aos mananciais, como lembra OLIVEIRA (2001: p.137-138). Essa permissividade de órgãos públicos, que deveriam estar garantindo a aplicação da Lei, juntamente com a atuação individualista baseada em interesses privados tem impulsionado, de certo modo, a ampliação da aceitação social a este modelo de exploração dos recursos hídricos que visa assegurar o acesso a esse bem pontualmente, ignorando problemas na ordem de outras escalas. Quando falamos da questão dos recursos hídricos abordados em outras escalas nos referimos às relações entre regiões vizinhas e mesmo entre países fronteiriços ao Brasil, que utilizam água de Bacias compartilhadas ou mesmo de aqüíferos compartilhados, como é o caso da Bacia Amazônica e do Aqüífero Guarani. Devemos lembrar que ao tratarmos de recursos hídricos estamos lidando com um bem que segundo observa LE PRESTRE (2000: p 42-43) teria características de um bem comum em que devido seu caráter concorrencial, no caso dos usos diversos existentes em uma mesma Bacia, o consumo desse bem por um ator poderia afetar o nível de consumo dos demais atores. A ausência, portanto de acordos políticos que pudessem garantir a sustentabilidade da exploração destes recursos naturais resultaria, conforme o autor, em uma possível “tragédia dos bens comunais”. Entretanto, estes acordos políticos, na escala internacional, devem saber respeitar o princípio de soberania nacional e isto significa o respeito aos planos de ação desenvolvidos por seus Estados em relação ao seu patrimônio nacional. Isto, por sua vez, significa que não somente os interesses comuns devem ser ponderados, mas também as diferenças existentes. Estas diferenças podem ser traduzidas pela variedade de realidades culturais, econômicas e sociais em cada país, resultando em combinações políticas que possibilitam ou não, em diversos graus, intervenções externas em seu modo de vida. Desse modo, estaria fadada ao insucesso a aplicação de soluções impostas externamente com características homogeneizadoras ou aquelas de dependem de sanções para o cumprimento de acordos firmados, ou seja, que dependem de mecanismos punitivos, já que estes mecanismos dificultariam as mesmas relações internacionais. Respeitadas estas diferenças e observados os interesses comuns tornam-se viáveis a construção de um projeto de desenvolvimento que priorize a inclusão social e a difusão do conhecimento e do domínio tecnológico e científico para países que compartilham seus recursos hídricos em áreas de Bacias hidrográficas comuns ou em áreas de aqüíferos comuns. As relações internacionais apoiadas nestes parâmetros podem contribuir para o fortalecimento político e econômico de todos os atores envolvidos. Encarada sob outro aspecto, têm se mostrado bastante tendenciosas as relações traçadas entre o Brasil e os países centrais em torno do uso e conservação dos recursos naturais, em especial os pertencentes à Bacia Amazônica. Pressionado num viés de negociação, através do discurso ideológico preservacionista a manter intactos seus recursos naturais, o Estado brasileiro corre o risco de atender a projetos de desenvolvimento alheios ao país, que incluem o controle e exploração do banco genético presente na região e a exploração de seus recursos hídricos por agentes estrangeiros. Se isto se mantiver, se perderá mais uma vez a oportunidade de se promover inclusão social em meio a relações comerciais com outros países. Considerações Finais Há uma clara incoerência entre o discurso difundido por representantes dos países centrais em relação à defesa da preservação a qualquer custo dos ecossistemas florestais tropicais, especialmente no que concerne à Amazônia. Enquanto as cobranças recaem sobre o governo brasileiro, as mesmas nações impõem, através da degradação das trocas comerciais por um lado e da espoliação social advinda da ampliação da dívida externa por outro, uma maior pressão sobre estes recursos. Ora, se é necessário maior volume de recursos primários exportados para fazer frente às necessárias importações de produtos industrializados, conforme aponta LE PRESTRE (2000: p.352) em virtude das desiguais taxas entre os intercâmbios comerciais em pró dos países centrais, é evidente a ocorrência de uma maior pressão sobre os recursos naturais, para a produção ou exploração dos mesmos. Ou seja, a degradação das relações comerciais tem contribuído em última instância para a degradação ambiental, condenada por estas mesmas representações internacionais. Sob o aspecto da espoliação social advinda da ampliação da dívida externa podemos destacar a diminuição ou a ausência de investimentos em setores sociais importantes, destacando-se a área da saúde, do saneamento básico e a área da educação. Percebemos que na medida em que o Estado abandona seu papel como gestor social, de ordenar e fiscalizar atividades que deveriam beneficiar grandes parcelas da sociedade, este papel vai sendo assumido gradativamente por iniciativas individuais com intuito de beneficiar pequenos grupos. Isto, por sua vez, tem concorrido para disseminação de uma visão compartimentada sobre a problemática dos recursos hídricos que amplia ainda mais a problemática da exclusão social e tem contribuído para uma maior receptividade dos discursos pró-privatização, inserindo mais facilmente grandes corporações transnacionais na gestão dos recursos hídricos brasileiros. A atuação destas corporações não significa necessariamente uma melhoria da qualidade dos serviços prestados, nem de mudanças observáveis de comportamento quanto ao consumo dos recursos hídricos, dependendo fortemente da estrutura reguladora existente e da organização e capacidade de mobilização social para a cobrança destas melhorias. Contudo, o que se tem verificado em experiências divulgadas é o aumento tarifário, a seleção de mercados mais rentáveis e o abandono das populações mais empobrecidas. Sabemos que para a uma grande parte da população brasileira aumentos nas tarifas dos serviços de saneamento básico ou o abandono de áreas mais periféricas e pobres podem ter resultados desastrosos, ligados ao aumento dos problemas de saúde pública, tais como já ocorreu em outros países4 como na Argentina e na África do Sul. A administração privada por sua vez, não costuma contabilizar estes custos em suas estratégias de desenvolvimento, já que são as instâncias públicas municipais ou estaduais em geral que arcam com despesas relacionadas à saúde, mesmo nos casos de doenças veiculadas pela água. Este fato deve ser considerado já que os números relacionados a estas despesas médicas não são desprezíveis. De acordo com a OMS – Organização Mundial de Saúde, as doenças veiculadas pela água têm atingido cerca de 3,4 milhões de pessoas por ano em todo o mundo e, de acordo com o Sistema Único de Saúde no Brasil, este número chegaria a 888 mil pessoas. 4 Ver International Consortium of Investigative Journalism. The water barons (2003). Por sua vez, a ação preconizada pelo Estado brasileiro para lidar com problemas advindos da falta de estrutura sanitária está baseada fortemente na adoção de medidas compensatórias e não preventivas. Constituídas a partir de princípios difundidos pela economia ambiental neoclássica, as políticas neoliberais passam a estimular medidas que espelham os interesses mercantis, tais como o de cobrar ou pagar pelo direito de uso da água, que conforme observa REBOUÇAS (2003:34) “(...) tem sido mais fácil do que reconhecer obrigações de uso e conservação da gota d’água disponível”. Do ponto de vista do mercado mundial, como lembra REBOUÇAS (2003) a adoção dessas medidas seria muito apreciada, já que haveria um aumento da quantidade de água disponível. Por sua vez, do ponto de vista das relações internacionais podemos apontar possíveis conflitos futuros, já que os pesos e medidas em uma situação de “comércio” de um bem tão precioso seriam muito desproporcionais. Portanto, quanto à construção de relações internacionais com base em questões ambientais pode-se inferir que esta possui características intrínsecas contraditórias, refletindo por um lado a aparente composição estável nos padrões de dominação econômica atual e por outro, dialeticamente, potencializando possíveis transformações. Podemos dizer que a explicitação de interesses empresariais internacionais em recursos hídricos no território brasileiro não aponta somente o reforço do caráter da manutenção das diferenças, mas também impulsionam, em certa medida, os movimentos que lutam por eqüidade de direitos sociais. Surgem a partir de conflitos estabelecidos movimentos reivindicatórios que podem levar a possíveis entendimentos entre representantes de diferentes nações.Isso dependerá principalmente, como já discorremos da disposição das partes envolvidas em respeitar as diferenças existentes, a autonomia e soberania nacional e da existência de interesses comuns, assim como pesos políticos e econômicos equivalentes, evitando a coerção de um país mais frágil por outro mais forte durante os processos de negociações. A história humana é repleta de exemplos de relações internacionais, como as alianças entre reinados do passado com os mais diversos interesses: evitar conflitos ou ampliar forças durante conflitos, para promover a conciliação na repartição de algum bem ou recurso, para a proteção de determinado território, entre outros. Percebe-se no contexto acima que a questão econômica e de manutenção da hegemonia política se mantém sempre presente, embora algumas vezes mais evidente do que em outras, e isto não podemos perder de vista, principalmente no momento atual em que a apropriação do discurso de cunho ambientalista tem se tornado uma estratégia extremamente útil no processo da construção das relações internacionais em torno dos recursos hídricos brasileiros. É importante observar, portanto, que a via de relações internacionais estruturadas por alianças políticas e sociais possibilitaria não somente o fortalecimento político e econômico, mas, sobretudo a construção da cidadania. 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