A CARNE DA IMAGEM: UMA POÉTICA DE TRÂNSITOS
DO CINEMA E DA FOTOGRAFIA ATRAVÉS DA PINTURA
Ricardo Perufo Mello / Universidade Federal de Pelotas
RESUMO
Este artigo propõe-se como uma reflexão a respeito dos aspectos sociais presentes em, e
deflagrados por, minha produção poética pictórica. Trata-se aqui de uma pintura que
engloba em sua feitura lógicas imagéticas próprias aos meios do cinema, do vídeo e da
fotografia analógicos. Esta análise foi auxiliada pelas teorias de Paul Virilio que ponderam
sobre a percepção humana no recente cenário midiático instaurado na urbe, dado que os
dispositivos fotográfico, videográfico e cinematográfico transitam visualmente nessa pintura
de tempo deliberamente lento e de execução meticulosa. O tempo nela se dilata em
oposição à virtualidade, à velocidade e à profusão atual das imagens. Este trabalho
demarca uma atitude política pessoal e artística: ao se deter na necessária meditação da
natureza destas imagens, busca-se uma restauração da experiência do ver e do fazer.
PALAVRAS-CHAVE
pintura; poéticas visuais; Paul Virilio; imagem videográfica; fotografia.
ABSTRACT
The main goal of this article is to present a reflection on the social aspects that my painting's
work evoke from the imagery use of the medias of cinema, analog video and analog
photography. This analysis is supported by Paul Virilio's theory about the human perception
in the most recent urban's mediatic scenario, given the fact that there are visual exchanges
between the photographic picture, the cinematographic and videographic images, and this
painting in its slowly and meticulous making. The time is expanded in this painting as
opposed to the virtuality and the fast profusion of the image nowadays. This is a work that
makes a personal political stand through the dedication to a meditation about the nature of
these mediatic images, seeking a restoration of the seeing and doing experiences.
KEYWORDS
painting; visual poetics; Paul Virilio; videographic image; photography
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A CARNE DA IMAGEM: UMA POÉTICA DE TRÂNSITOS
DO CINEMA E DA FOTOGRAFIA ATRAVÉS DA PINTURA
Ricardo Perufo Mello / Universidade Federal de Pelotas
Comitê de Poéticas Artísticas
Rarefação e construção pictórica: paradoxos imagéticos
A pesquisa que desenvolvo no Estágio Pós Doutoral em Artes Visuais da UFPA –
continuação de minha pesquisa de doutorado – possui o título provisório “A Carne
da Imagem: uma poética de trânsitos do cinema e da fotografia através da pintura” e
abrange, em termos de trabalho prático, os meios da fotografia e da pintura.
Na pesquisa de doutoramento empreendi uma investigação poética visual referente
às interferências existentes nas transposições efetuadas entre a linguagem
imagética do vídeo (que exibia um frame de um filme cinematográfico) para a pintura
e a sua subsequente rarefação visual ao ser reelaborada pictórica e manualmente.
Essas transposições revelavam implicações semânticas evidenciadas pelo que
identifiquei como 'rarefação', um conceito que abrangia o esmaecimento, a diluição e
o crescente distanciamento perceptivo do conteúdo das imagens cinematográficas
originalmente apropriadas.
Registros da pintura "imersão noturna #175 (655 horas)", 2010–13
Acrílico sobre chapa de alumínio, 118 x 293 cm
Em exposição no Espaço Cultural ESPM de Porto Alegre, out. 2014
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Neste processo de trabalho, essas imagens são exibidas por um sistema analógico
de videocassete e captadas pelo positivo fotográfico (slide), para depois serem
projetadas e pintadas ponto a ponto, camada de cor por camada de cor, no suporte
pictórico de metal (alumínio). Essa técnica de pintura minuciosa e lenta derivou,
desde a pesquisa de meu mestrado, de meu conhecimento, estudo e noções do
movimento identificado como Fotorealismo, ou Hiper-Realismo1.
Registros do processo em ateliê, em agosto de 2012, durante a feitura da pintura
“imersão noturna #175 (655 horas)”, no trabalho com as camadas de magenta e ciano.
Abaixo, detalhe das fitas adesivas para demarcar a pintura de linhas horizontais de pontos.
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Após estas pesquisas, o problema atual é o de buscar um outro adensamento
conceitual levando-se em conta que, conforme percebido ao longo da pesquisa de
doutoramento, a rarefação não dependia ou advinha apenas de uma soma de
aspectos técnicos. A chamada
rarefação
encontrava-se especialmente
no
entendimento e na reinterpretação pictóricos processuais ao se reelaborar aquela
imagem apropriada. Um processo que se deu na pesquisa por meio de uma
construção gestual que considerava metódica e minuciosamente o quanto a imagem
visual se apresenta atualmente por meio de uma miríade de suportes que não são,
de modo algum, homogêneos, pois possuem códigos visuais e lógicas particulares
de instauração e apresentação – lógicas que foram nomeadas por mim como sendo
as “carnes das imagens”.
Pintura "imersão noturna #185", 2013
Acrílico sobre chapa de PVC, 20 x 20 cm
Após tal percurso, que se direcionou para o aumento da proporção de tamanho de
imagens e de telas de pintura, procurando assim estender o processo em seu tempo, em sua desaceleração e em seus paradoxos no amálgama de diferentes meios
visuais, o que se propõe agora é uma nova pesquisa que surge como ramificação da
anterior. Porém, esta se norteia pela feitura intensiva de telas de pequenos formatos
(com tamanho fixo de 20 x 20 cm – a exemplo da pintura acima, a primeira feita por
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mim em pequeno formato), mais minuciosos e intimistas do que os anteriores. Procura-se assim alcançar outras intensidades neste trabalho pictórico – a de uma amostragem de maior quantidade de telas e do quão próximo e particular o olhar pode se estabelecer nesta relação imagética.
Neste processo, a captação fotográfica, bem como todo o trabalho efetuado antes
de se chegar à execução pictórica, têm como fim desenvolver matéria-prima para a
pintura e possui condições de operação e conceitos próprios. De modo que constitui
anteriormente
uma
extensa
série
de
imagens
apropriadas
de
cenas
cinematográficas, fotografadas unicamente diante de uma tela de televisão. A
fotografia recorta um pedaço, no campo total original, do tipo de cena específico
escolhido para essa proposição: o close-up (identificado pelo diretor de cinema Jean
Epstein como sendo “a alma do cinema” 2).
Imagem que originou a pintura “imersão noturna #175 (655 horas)”,
tal como fora integralmente exibida na televisão.
A hipótese elaborada a partir dessas articulações é a de que a experiência narrativa
e perceptiva de nossa sociedade é fortemente determinada pelos meios da fotografia, cinema e televisão em suas conjunções (e de modo ainda mais intenso em suas
conjunções digitais recentes). Portanto, nossa experiência da realidade, de estar no
mundo e de estar na cidade, seria determinada e transpassada pela imagem em sua
diversidade de dispositivos visuais contemporâneos de apresentação. Pois, como
pontua o filósofo francês Paul Virilio,
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(...) o que até então se encontrava privado de espessura – a
superfície de inscrição - passa a existir enquanto “distância”,
profundidade de campo de uma representação nova, de uma
visibilidade sem face a face, na qual desaparece e se apaga a antiga
confrontação de ruas e avenidas: o que se apaga aqui é a diferença
de posição, com o que isto supõe, com o passar do tempo, em
termos de fusão e confusão. Privado de limites objetivos, o elemento
arquitetônico passa a estar à deriva, a flutuar em um éter eletrônico
desprovido de dimensões espaciais, mas inscrito na temporalidade
única de uma difusão instantânea. (VIRILIO, 1993, p. 9–10)
Em meio a esse cenário, o cinema em particular – com suas imagens e narrativas –
ampliou sua difusão no decorrer das últimas quatro décadas, em grande parte por
conta do advento de sua transposição para o vídeo e para as mídias digitais. O que
confirmou sua importância como mídia responsável pela formação de uma
sistemática particular de percepção visual socialmente compartilhada, conforme já
havia sido apontado por Walter Benjamin na década de 1930: “(...) a indústria
cinematográfica tem todo interesse em estimular a participação das massas através
de concepções ilusórias e especulações ambivalentes.” (1995, p. 184).
No momento inicial de maior difusão e acesso cinematográfico através do vídeo,
estabelecimentos passaram a disponibilizar o serviço de aluguel de filmes
(em
formato VHS – sigla de Video Home System – e mais recentemente nos formatos
DVD, Blu-ray, e pela própria internet, dispensando-se a necessidade até mesmo de
um estabelecimento físico para esse fim). De maneira que o indivíduo adquire a
possibilidade de, não apenas imergir na narrativa visual cinematográfica 3,mas
também decidir quando, em que lugar, como, e de que modo assistir. Constituem-se
assim inserções socialmente compreendidas “[...] onde a própria sensação visual é
recuperada através da máquina” (BARDONNÈCHE, 1997, p. 199).
Amplifica-se, de modo considerável, o acesso ao universo das narrativas visuais do
cinema, isto aliado a um consumo cada vez maior e mais numeroso destas imagens.
O que, em certa medida, institui características que tangem as de um vício: “[...] as
próprias palavras e imagens são drogas, segundo Burroughs, por meio das quais
poderes invisíveis controlam uma população de viciados em imagens. ‘Imagens,
milhões de imagens, eis o que devoro’.” (LASCH, 1987, p. 122).
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É precisamente esse desdobramento, essa sobreexposição, esse distanciamento
do olhar em relação à percepção direta das coisas e dos fatos que tenho como
ponto de partida na pesquisa em Poéticas Visuais que desenvolvo. Uma vez que
também identifico tal distanciamento como sendo uma das causas que historicamente levou pintores como Chuck Close, Gerhard Richter, e mais recentemente,
Luc Tuymans a empregarem fotografias como base e alicerce para constituição
imagética de suas pinturas.
É importante ressaltar que a utilização de fotos que estes artistas levam a cabo não
se dá como referência de apoio para a elaboração bidimensional de uma imagem
tridimensional que teria sido visualizada pelo pintor, mas sim dentro de uma prática
de apropriação. Uma prática de transposição através de trabalho pictórico manual
visual de uma imagem bidimensional (fotografia) para uma superfície igualmente
bidimensional (tela de pintura).
O fato da prática de apropriação4 ter se adentrado de tal forma no campo da pintura
não deixa de ser, ele mesmo, outro sintoma decorrente da percepção fotográfica socialmente instaurada. Ou, como pontua Susan Sontag: “A nossa era não prefere as imagens às coisas reais por perversidade mas, em parte, como reacção às formas
como a noção do real progressivamente se complicou e debilitou” (1986, p. 141).
Busco assim – pelo recurso da apropriação de uma imagem – a retenção perceptiva
na retirada de fragmentos de um fluxo constante e contínuo, através de uma prática
pictórica laboriosa que demanda, literalmente, centenas de horas de trabalho. Ou
seja, o tempo prolongado desse processo pictórico específico é invariavelmente
humano e orgânico. E mesmo que o empenho do pintor seja no sentido de copiar
fielmente o que vê, por meio de uma construção gestual metódica, o longo tempo
macera o slide fotográfico e distancia a execução pictórica dessa concepção
preliminar de fidelidade, gerando um objeto sensível. Ocorre aí uma mestiçagem,
dado que essa feitura humana e manual aborda e reconstitui, nos termos indicados,
a imagem proveniente da captação e da transposição de aparelhos óticos, químicos
e eletrônicos. Uma vez que, conforme esclarece a professora e teórica Icleia Cattani,
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Os cruzamentos que suscitam relações com o conceito de
mestiçagem são os que acolhem sentidos múltiplos permanecendo
em tensão na obra a partir de um princípio de agregação que não
visa fundi-los numa totalidade única, mas mantê-los em constante
pulsação. Esses cruzamentos tensos são os que constituem as
mestiçagens nos processos artísticos atuais (2007, p. 11).
O pintor invariavelmente confere suas marcas pessoais, mesmo que exista um esforço pessoal para que isso não aconteça. Contudo, elaboro a pintura com uma gestualidade metódica, por entender que essa atitude fornece um pressuposto para as condições de execução do acontecimento-pintura, definindo um campo de ações particular.
A intenção contida na opção deliberada de se pintar uma construção gestual metódica é a de alcançar um resultado no limite absurdo e falho de uma execução pictórica
que procura reconstruir a imagem fotográfica captada do vídeo. O esforço nesse
sentido se expressa pela sutileza das operações pictóricas que são investidas na
fatura. Essa é uma decisão tomada para se tentar sublinhar visualmente na tela o
somatório das mídias pelas quais a imagem passou anteriormente.
A “era da lógica paradoxal” das imagens.
A maneira vagarosa e meticulosa de proceder na pintura dá vazão a uma
temporalidade que difere radicalmente da imediatez característica do mundo urbano
atual e de seus inúmeros dispositivos – mediadores de tarefas, afazeres e
comunicações humanas. Nesse sentido, é cabível traçar algumas considerações em
relação a tais motivações, que são oriundas do – e ligadas ao – pensamento de Paul
Virilio.
O filósofo já abordava criticamente, décadas atrás, as profundas alterações
instauradas na percepção por conta das novas situações midiáticas dispostas nas
políticas urbanas contemporâneas e no nosso convívio com o mundo. De maneira que
Se no século XIX a atração cidade/campo esvaziou o espaço agrário
de sua substância (cultural e social), no final do século XX é a vez do
espaço urbano perder sua realidade geopolítica em benefício único
de sistemas instantâneos de deportação cuja intensidade tecnológica
perturba incessantemente as estruturas sociais: (...) deportação de
atenção, do face a face humano, do contato urbano, para interface
homem/máquina. (Ibid., p. 12, grifo do autor)
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Daí a opção deliberada e consciente pela pintura (um meio visual que pode até
mesmo ser visto como anacrônico frente a miríade de mídias visuais disponíveis a
um artista atualmente), que aqui reconstrói manualmente o vestígio de uma imagem
ótica e de origem eletrônica. A pintura, nesse caso, traz consigo a exigência de um
procedimento que envolve uma temporalidade diametralmente oposta àquela
imposta na situação de “instantaneidade da ubiquidade (que) resulta na atopia de
uma interface única. Depois das distâncias de espaço e tempo, a distânciavelocidade abole a noção de dimensão física” (Ibid., p.13, grifo do autor).
Ou, como também pondera Luiz Paulo Baravelli (1942), artista e professor paulista,
em um texto que escreveu para o catálogo de uma mostra de trabalhos em vídeo,
Às vezes me pergunto por que faço pinturas. Hoje, cultural e
socialmente, tudo está contra ela. A tecnologia é obsoleta, não pode
ser reproduzida direito, é frágil, limitada e estetizante. Em um mundo
de seis bilhões de pessoas é intransmissível e tem de ser vista no
original, alguns privilegiados por vez. Em outras palavras, ela é não
elétrica, pecado mortal nos dias que correm. (1991, p. 44-45)
Na percepção do sujeito contemporâneo, “a organização do tempo se dá a partir de
uma fragmentação imperceptível da duração técnica, onde os cortes e as
interrupções momentâneas substituem a ocultação durável” (VIRILIO, 1993, p. 14).
Tais aspectos são característicos da linguagem cinematográfica e, conforme analisa
Virilio, tiveram contribuição fundamental para alterar o próprio sentido de espaço e
tempo na contemporaneidade. Uma vez que
Da estética da aparição de uma imagem estável, presente por sua
própria estática, à estética do desaparecimento de uma imagem
instável, presente por sua fuga (cinemática ou cinematográfica),
assistimos a uma transmutação das representações. À emergência
de formas e volumes destinados a persistir na duração de seu
suporte material, sucederam-se imagens cuja única duração é a da
persistência retiniana. [...] Aqui, mais do que em qualquer outra parte,
as tecnologias avançadas convergiram para moldar um espaçotempo sintético. (Ibid., p. 19-20)
A instauração gradual do espaço-tempo sintético mencionado pelo autor encontra
paralelo com a própria história de desenvolvimento do meio cinematográfico. Como
nos lembra Philippe Dubois, o cinema
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[...] Há mais de um século, e profundamente, forma nosso imaginário
– o da imagem e o do movimento, pelo menos. Queiramos ou não,
nosso pensamento da imagem é hoje um pensamento
“cinematográfico”. Henri Bergson percebeu isto desde o início, com
suas famosas teses sobre o ‘mecanismo cinematográfico do
pensamento’ (A evolução criadora, 1907). [...] O imaginário
cinematográfico está em toda parte, e nos impregna até em nossa
maneira de falar ou de ser. Quem, ao percorrer de carro um longo
trajeto numa vasta paisagem aberta, não pensou, com a ajuda da
música no rádio, numa figura de travelling mergulhando na tela
panorâmica de seu para-brisa? (2004b, p. 25, grifo do autor)
Assim, orientando-se pelas referidas teorias de Virilio, minhas pesquisas
direcionaram-se ao uso estrito de imagens cinematográficas no vídeo. Nesse sentido,
de maneira a também tornar evidenciado o volume massivo de imagens presentes
no mundo contemporâneo, os filmes cinematográficos selecionados para servir de
base na captura de imagens fotográficas apresentam como característica principal
certo anonimato, pois dão forma a imagens cuja origem tem chance remota de
serem identificadas. Este tipo peculiar de filme foi aqui denominado como “filmeexcesso”.
Algumas fitas VHS (Video Home System)
utilizadas para a apropriação de imagens.
Com efeito, a produção que a indústria do cinema despeja ano a ano no mercado
audiovisual internacional foi responsável por gerar os vídeos intitulados “filmeexcesso”. Isto é, uma invasão de mais produtos do que o público consegue, ou
mesmo, quer consumir. Esses vídeos tinham como destino comum o ostracismo nas
prateleiras das locadoras, e eventualmente eram relegados às lojas popularmente
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chamadas de “sebos”, onde foram adquiridos por mim para este processo de
trabalho. O critério foi então o quão à margem do circuito popular cinematográfico se
encontravam.
Ou seja, a noção de “filme-excesso” refere-se a um produto cultural bastante
previsível e repetitivo em suas soluções estéticas e de roteiro, justamente pela
condição
de
produto
elaborado
por
conta
de
diretrizes
prioritariamente
mercadológicas. Uma vez que
A inovação estética interessa cada vez menos nos museus, nas
editoras e no cinema; ela foi deslocada para as tecnologias
eletrônicas, para o entretenimento musical e para a moda. Onde
havia pintores ou músicos, há designers e discjockeys. A hibridação,
de certo modo, tornou-se mais fácil e multiplicou-se quando não
depende dos tempos longos, da paciência artesanal ou erudita e, sim,
da habilidade para gerar hipertextos e rápidas edições audiovisuais
ou eletrônicas. (CANCLINI, 2000, p. XXXV–XXXVI)
Na contramão da mencionada noção de inovação estética, objetiva-se uma situação
de tempos longos de feitura e de paciência artesanal. Não no sentido de instaurar
uma simples contraposição ao panorama atual descrito acima, mas sim como
situação de trabalho que refaz os escombros das lógicas díspares e paradoxais de
meios visuais distintos – de épocas distintas – configurando uma imagem na
pintura que pulsa em suas mestiçagens.
Há aqui o emprego deliberado de uma tecnologia notoriamente obsoleta nos dias de
hoje. Tal modo de operar é instaurado com a intenção de se estabelecer uma
coerência com o conceito de “filme-excesso”, pois o tipo de tecnologia empregada (o
filme em VHS), em sua condição de obsolescência, alinha-se com a concepção de
“filme-excesso” por se tratar de um dispositivo em desuso, excedente, que sobra.
São abordadas assim as próprias raízes da condição atual da imagem visual e os
seus modos de inserção e percepção, pois são contemplados os dispositivos de
imagem – um através do outro – naquilo que eles possuem a partir de sua estrutura
constitutiva, de seu tecido, de sua “carne”.
Nesse sentido, deve ser observado também que esses vídeos não chegavam ao
mercado brasileiro com um estatuto idêntico ao da exibição e da comercialização em
seu mercado cinematográfico original. Tal alteração no estatuto original que o filme
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possuía acontece devido à disparidade quantitativa da enorme produção
cinematográfica mundial (mas, com maior intensidade, norte-americana) em relação
ao mercado consumidor existente no Brasil. Era (e ainda é) comum que grande
parte dos filmes cinematográficos rodados nos Estados Unidos, e exibidos lá em
salas de cinema, seja disponibilizada no Brasil apenas no formato de vídeo. Isso
ocorre porque não há quantidade suficiente de público consumidor brasileiro para
tamanha produção cinematográfica.
Parece ficar claro, então, o papel intercultural que possui o cinema e sua situação no
processo globalizador em que atuam fluxos das indústrias culturais em meio aos
mercados mundiais. Ademais, como reforça Néstor Canclini, às “modalidades
clássicas de fusão, derivadas de migrações, intercâmbios comerciais e das políticas
de integração educacional impulsionadas por Estados nacionais, acrescentam-se as
misturas geradas pelas indústrias culturais” (Ibid., p. XXXI).
Tais aspectos particulares não são entendidos aqui como arbitrários. Ao contrário,
parte-se do princípio de que, além de impregnarem a imagem com características
que reforçam visualmente a noção de “filme-excesso”, os mesmos desvelam e
manifestam também sentidos políticos. Pois, tal como afirma Virilio, “quem negaria
hoje que a PÓLIS, que emprestou sua etimologia à palavra POLÍTICA, pertença ao
domínio dos fatos da percepção?” (1993, p. 22). O substantivo de origem grega
“pólis”, possível sinônimo de cidade, é entendido no sentido de uma comunidade
organizada formada por cidadãos.
Para a filósofa Hannah Arendt, a pólis é constituída pelo espaço absolutamente
circunstancial e precário criado entre as relações instituídas pelas pessoas, e tem
lugar quando estas vivem conjuntamente. No seu livro “A condição humana”, Arendt
afirma que pólis de fato não é apenas a cidade-estado na sua localização física, uma
vez que a ação e o discurso – ou seja, a necessidade do homem de viver entre seus
semelhantes e os modos através dos quais os humanos se manifestam uns aos
outros – existem previamente às várias formas através das quais o espaço público
pode ser organizado (1981).
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A partir do pensamento de Arendt, nota-se que, entre os sujeitos que compõem o
modelo atual de sociedade urbana, tanto a ação como o discurso são frequente e
intensamente permeados por diversas etapas midiáticas. São, assim, determinados
e regidos por estes novos dados e coordenadas de percepção. Virilio, que se
dedicou justamente a teorizar a respeito destes entremeios humanos situados na
contemporaneidade, acrescenta que
De fato, não se pode falar hoje do desenvolvimento do audiovisual
sem interrogar igualmente este desenvolvimento da imagerie virtual e
sua influência sobre os comportamentos ou ainda sem anunciar
também esta nova industrialização da visão, a instalação de um
verdadeiro mercado da percepção sintética com o que isto supõe de
questões éticas, [...] sobretudo a questão filosófica daquele
desdobramento do ponto de vista, daquela divisão da percepção do
ambiente entre o animado, o sujeito vivo, e o inanimado, o objeto, a
máquina de visão. (2002, p. 86, grifo do autor)
Acrescenta-se a esse cenário a concepção de Arendt de que
Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles
entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua
existência [...] constantemente, as coisas que devem sua existência
aos homens também condicionam os autores humanos. [...] O que
quer que toque a vida humana ou entre em duradoura relação com
ela, assume imediatamente o caráter de condição humana. É por isto
que os homens, independentemente do que façam, são sempre
seres condicionados. [...] O impacto da realidade do mundo sobre
a existência humana é sentido e recebido como força
condicionante. (1981, p. 17, grifo nosso)
Os espaços estabelecidos pelo contato direto entre os sujeitos da pólis – que em
contrapartida a caracterizam – instituem-se agora de modo simultâneo a inúmeros
espaços e situações virtuais que, segundo o entendimento proposto por Arendt,
agora fazem parte da condição humana.
Tal aproximação – entre os citados aspectos peculiares da matéria-prima utilizada
pelo trabalho desta pesquisa e os possíveis sentidos políticos depreendidos desse
uso – justifica-se pelo fato de o “filme-excesso” ser produto do refugo cultural urbano.
Uma sobra considerada arcaica pelos padrões do atual panorama mercadológico
audiovisual, no qual a obsolescência é regra imposta pela velocidade e pela
quantidade desta produção, constante e ininterrupta.
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O intuito presente no emprego do “filme-excesso” é, assim, relacionar-se também
com a situação de acúmulo de imagens que pontua Hélio Fervenza, pela qual o
artista percebe que
[...] vivemos em espaços de grande adversidade onde são
produzidos vazios a todo instante (...) também vazios produzidos por
excessos como o vazio provocado pela acumulação de imagens,
desertos contidos entre as ruas e avenidas, entre as paredes das
casas e edifícios, flutuando no ar da veloz cidade; no meio dessa
adversidade, entretanto, pode surgir algo. Impulsionado pelo não
sentido da situação (um deserto estranho e longínquo). Não-sentido
que produza outros sentidos. Inversão de uma situação a partir dela
mesma, daquilo que ela evoca: o deserto.” (2003, p. 49, grifo nosso)
Os desdobramentos fictícios da realidade suscitados pelo cinema através do
dispositivo doméstico do vídeo – juntamente aos aspectos culturais, políticos e
perceptivos enunciados – apresentaram-se desde o princípio para minha prática
pictórica como uma potente matéria-prima semântica, disponível para ser tensionada
pelo trabalho de minhas pesquisas.
Permeada por tais transposições, a imagem apropriada do vídeo pode desvelar um
distanciamento perceptivo no qual “a frequência tempo da luz se tornou fator
determinante da apercepção relativista dos fenômenos e portanto do princípio de
realidade” (VIRILIO, 2002, p. 102, grifo do autor). Distanciamento esse determinado
pelo que Virilio identifica como “máquina de visão”, e que implica na
[...] produção de uma visão sem olhar sendo ela mesma nada mais
do que a reprodução de um intenso cegamento, cegamento que se
torna uma nova e última forma de industrialização: a industrialização
do não-olhar. (Ibid., p. 102-103, grifo do autor)
A noção de excesso implicada nessa concepção – ou seja, aquilo que excede, que
sobra, que ultrapassa – aponta para o estatuto atual das imagens, informações e
meios de comunicação. Minha pintura contempla a transformação de uma imagem
proveniente de tal realidade – uma imagem comum, obsoleta, seriada e banal,
transmutada aqui em uma imagem única. Opera-se uma espécie de metamorfose,
uma mestiçagem, de uma imagem excessiva e saturada nela mesma para uma
imagem reconstruída pela pintura de modo rarefeito, que se faz no desfazimento do
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seu modelo fotográfico. Através de tal mestiçagem, busca-se alcançar a
confrontação e o diálogo nesse encadeamento tenso e insolúvel.
Notas
1
O termo Hiperrealismo é empregado nesta pesquisa como uma das possíveis variações históricas dos termos
Superrealismo ou Fotorrealismo, originalmente em língua inglesa Superrealism (termo empregado pelo teórico
Edward Lucie-Smith (1981)) e Photo-Realism, respectivamente.
2
O close revelou-se muito perturbador “[...] quando começou a mostrar, no cinema, corpos humanos vistos de
perto e, depois, de muito perto. Os primeiros planos enquadrando o busto, até mesmo a cabeça, produziram
durante muito tempo rejeição, ligada não só ao irrealismo dessas ampliações, mas a um aspecto percebido como
monstruoso. [...] Ora, pouco tempo depois, nos anos 20, Jean Epstein podia dizer que o close era ‘a alma do
cinema’.“ (AUMONT, 1993, p. 140-141, grifo do autor).
3
A narrativa visual específica do cinema, como afirma Jean-Louis Baudry citado por Jacques Aumont,
“determina um estado regressivo artificial [...], ‘O aparelho de simulação consiste em transformar uma percepção
em quase-alucinação, dotada de um efeito do real incomparável ao que é trazido pela simples percepção’.” (Ibid.,
p. 189).
4
Os termos “apropriação” e “apropriacionismo” [...] sintetizavam a produção de uma série de artistas que tentava,
de alguma maneira – e por via sobretudo da fotografia –, dar conta e explicitar as modificações que a
proliferação das imagens veiculadas pelos meios de comunicação de massa [...] causavam na sensibilidade
contemporânea. (CHIARELLI, 2002, p. 21).
Referências
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A CARNE DA IMAGEM: UMA POÉTICA DE TRÂNSITOS DO CINEMA E DA FOTOGRAFIA ATRAVÉS DA PINTURA
Ricardo Perufo Mello / Universidade Federal de Pelotas
Comitê de Poéticas Artísticas
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Ricardo Perufo Mello
Presta Estágio Pós-Doutoral no PPGARTES da UFPA, orientado pela Prof.ª Drª. Valzeli
Sampaio. É Professor Adjunto do CeArte da UFPel. Doutor em Artes Visuais (Poéticas
Visuais) pelo PPGAV do Instituto de Artes da UFRGS. Em 2002 obteve Menção Especial no
59º Salão Paranaense. Em 2008 foi um dos artistas selecionados no Programa Rumos Artes
Visuais 2008/2009, tendo exposto através deste em São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro.
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