II REUNIÃO CIENTÍFICA REDE CYTED-XVII
INTERDISCIPLINARY SYMPOSIUM ON WETLANDS
3º SIPRES – SIMPÓSIO INTERDISCIPLINAR SOBRE PROCESSOS ETUARINOS
LIVRO GUIA DA EXCURSÃO
O SISTEMA DE ILHAS – BARREIRA
DA RIA FORMOSA
25 – 28, Maio, 2004
(Algarve – Portugal)
J. A. DIAS, Ó.
FERREIRA E D. MOURA
O SISTEMA DE ILHAS-BARREIRA DA RIA FORMOSA
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O SISTEMA DE ILHAS-BARREIRA DA RIA
FORMOSA
O sistema de ilhas-barreira da Ria Formosa
(figuras 1 e 2) é actualmente constituído por
cinco ilhas e duas penínsulas (de ocidente para
oriente: Ancão, Barreta ou Deserta, Culatra,
Armona, Tavira, Cabanas e Cacela), separadas
por 6 barras (do Ancão ou de São Luís, de FaroOlhão, da Armona ou Grande, da Fuzeta, de
Tavira e de Cacela ou do Lacém). No sistema é
relativamente frequente algumas ilhas e barras
terem diferentes designações, o que reflecte, por
um lado, denominações diversificadas atribuídas
por diferentes utilizadores (pescadores, turistas,
etc.) e, por outro, a grande dinâmica que o
caracteriza, com modificações na forma e
extensão das ilhas, e migração e/ou abertura de
novas barras e colmatação de outras. Das barras
aludidas, a de Faro-Olhão e a de Tavira são
artificiais, estando fixadas com molhes.
As ilhas e penínsulas referidas são arenosas e
definem um corpo lagunar importante constituído
por sapais, rasos de maré, canais de maré e
pequenas ilhas de carácter lodoso ou arenoso.
A actual designação do sistema é, cientificamente,
incorrecta. Efectivamente, as “rias” correspondem
a vales fluviais inundados, e têm como paradigma
as Rias Bajas da Galiza. Tipologicamente têm
características completamente diferentes, que
nada têm a ver com as do sistema lagunar de
Faro-Olhão, designação por que era conhecida até
à década de 80 do século XX. A actual
designação (imprópria) de Ria Formosa teve
essencialmente motivações de índole turística.
Os sistemas de ilhas-barreira são assim
designados por possuírem um rosário de ilhas que
define, entre estas e o continente emerso, um
corpo lagunar. Consequentemente, as ilhas
aludidas constituem uma barreira entre a laguna e
o oceano. São sistemas caracterizados por uma
dinâmica muito intensa, verificando-se que são
típicos dois tipos de migração: a) migração
longitudinal das barras (e consequentemente, a
acumulação de areias na extremidade de uma das
ilhas e erosão da extremidade da ilha seguinte); b)
migração transversal do sistema em direcção ao
continente (nomeadamente como "resposta" a
pequenas variações do nível do mar).
Fig. 1 - O sistema de ilhas barreira da Ria Formosa.
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J. A. DIAS, Ó . FERREIRA e D. MOURA (2004)
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A migração longilitoral da maior parte das barras
(e consequente crescimento de umas ilhas e
erosão de outras) do sistema da Ria Formosa é,
aparentemente, cíclica, tendo sobre o assunto sido
efectuado um excelente estudo por Weinholtz
(1978). Têm naturalmente tendência para migrar
de poente para nascente até atingirem uma
posição limite, na qual começam a assorear,
abrindo-se então, no decurso de um temporal
maior, nova barra a ocidente, iniciando-se, assim,
novo ciclo. Aparentemente co-existem dois tipos
de migração das barras: partícula a partícula, em
que a barra se vai deslocando progressivamente
devido principalmente à actuação continuada da
onda incidente; e por saltos, em que, no decurso
de um temporal, se verifica galgamento oceânico
de uma parte fragilizada das ilhas, o que conduz a
que a barra seja aí relocalizada (Dias, 1988).
Todas as barras naturais do sistema estão sujeitas
a esta ciclicidade, com taxas de migração média
que chegam a ultrapassar 100m/ano (e.g.:
Bettencourt, 1985; Dias, 1988), à excepção da
barra da Armona que, não se sabe ainda bem
porquê, se tem mantido na mesma posição,
embora com variações de largura.
A migração transversal das ilhas em direcção ao
continente (razão por se designam este sistemas
como
“transgressivos”)
verifica-se
principalmente em períodos de elevação do nível
médio do mar, e processa-se através de conjunto
vasto de processos construtivos / destrutivos,
entre os quais se incluem os galgamentos
oceânicos, o transporte eólico de areias e a
incorporação de deltas de maré enchente. Como
resultado da actuação destes processos, a linha de
costa na zona está em recuo há, pelo menos, um
século.
Segundo levantamentos topo-hidrográficos da
Direcção-Geral de Portos, a linha de baixa-mar na
ilha de Faro recuou 20m entre 1945 e 1964, ou
seja, cerca de 1m/ano. Tal recuo é induzido,
muito possivelmente, pela elevação do nível
médio relativo do mar, sendo provavelmente
agravado, nas últimas décadas, por deficiências
de abastecimento sedimentar e pela intensificação
do pisoteio.
A erosão dos sapais e assoreamento dos canais é
outro factor que importa considerar. Grande parte
desta erosão e assoreamento advêm, certamente,
da elevação do nível médio do mar, estimada em
cerca de 1,5mm/ano (Dias e Taborda, 1992).
Porém, o assoreamento tem sido fortemente
amplificado
por
actividades
antrópicas
diversificadas, como seja o lançamento de
efluentes urbanos e industriais directamente para
o meio lagunar, a impermeabilização das áreas
circundantes (com aumento da escorrência
superficial e transporte de materiais “urbanos”,
dragagens portuárias com ressuspensão de finos,
etc. (Ramos e Dias, 2000).
Fig. 2 – Imagem da Ria Formosa, obtida pelo satélite Landsat 5, em 1997.
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O SISTEMA DE ILHAS-BARREIRA DA RIA FORMOSA
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Alguns investigadores (e.g.: Pilkey et al., 1989),
inspirados na teoria de Hoyt (1967) desenvolvida
para as ilhas-barreira da costa oriental da América
do Norte, aceitam que a origem e evolução do
sistema estão relacionadas com variações do nível
do mar associadas à última glaciação,
subsequente deglaciação e transição para o actual
período interglaciário. Quando o nível do mar, no
último máximo glaciário ocorrido há cerca de
18000 anos, se encontrava próximo do bordo da
plataforma (uns 120m abaixo do nível actual),
desenvolveram-se cordões arenosos paralelos à
costa. Com a posterior subida do nível marinho,
estes cordões arenosos foram inundados pelo lado
do continente, constituindo-se em ilhas. Depois de
formadas, estas ilhas responderam à progressiva
subida
do
nível
do
mar
migrando
transversalmente
através
da
plataforma
continental até atingirem a posição que ocupam
actualmente.
O sistema de ilhas-barreira da Ria Formosa
apresenta algumas características únicas ou raras
no conjunto dos sistemas semelhantes mundiais.
Teoricamente, estes sistemas só se desenvolvem
em ambientes em que a amplitude máxima da
maré é inferior a 4 metros. Com uma amplitude
máxima da maré que ultrapassa os 3,5m, este
sistema encontra-se praticamente no limite a
partir do qual não se desenvolvem sistemas de
ilhas-barreira.
Verifica-se,
também,
que
geralmente estes sistemas se encontram na
dependência de desembocadura de rios
importantes. Também neste aspecto as ilhasbarreira da Ria Formosa são originais porquanto
não há qualquer rio importante que aflua ao
sistema ou o possa alimentar sedimentarmente. O
rio Guadiana, cuja foz se localiza algumas
dezenas de quilómetros a nascente da Ria
Formosa, poderia ser uma fonte de areias para o
sistema, mas tal não é credível porquanto o
sentido da resultante anual da deriva litoral (isto
é, das areias que são transportadas ao longo da
costa) é de Oeste para Leste, sendo
consequentemente as areias fornecidas por este
rio transportadas no sentido contrário ao da Ria
Formosa.
Outra originalidade interessante é a da própria
disposição geral do sistema, formando grosso
modo um triângulo escaleno (um vértice do qual é
o chamado Cabo de Santa Maria, localizado na
ilha da Barreta). Esta forma protuberante do
sistema algarvio é peculiar e raro. Efectivamente,
os sistemas conhecidos mundialmente ocorrem,
geralmente, como alinhamentos mais ou menos
rectilíneos de ilhas. O caso mais semelhante ao
do Algarve é o do Cabo Haterras, na Carolina do
Norte, para o qual ainda não foi encontrada
explicação genética satisfatória. Para o sistema da
Ria Formosa, alguns autores (e.g..: Monteiro et
al., 1984; Dias, 1988; Pilkey et al., 1989),
atribuem esta forma aos diferentes pendores da
plataforma continental adjacente, a qual é mais
inclinada frente ao Cabo de Santa Maria, sendo
os pendores progressivamente mais suaves para
nascente e para poente, isto é, na direcção das
partes laterais do sistema (fig. 1). A migração das
ilhas barreira terá sido, consequentemente, mais
lenta frente ao cabo referido e mais rápida de um
e do outro lado.
Como se depreende do que se expressou, as
características do sistema de ilhas-barreira da Ria
Formosa são incompatíveis com uma ocupação
intensa e permanente. Todavia, verifica-se que,
nas últimas décadas, a ocupação tem revelado
precisamente tendência para se intensificar,
tornar-se permanente e, o que é extremamente
grave, localizar-se nas zonas mais frágeis e de
maior risco. É o que se verifica, por exemplo, na
Praia de Faro (na península do Ancão), no núcleo
urbano do Farol (na ilha da Culatra), na povoação
da Armona (na ilha com o mesmo nome) e no
núcleo de casas construídas em frente da Fuzeta
(também na ilha da Armona). Este tipo de
ocupação, além do risco intrínseco que constitui,
acaba por fragilizar amplas áreas e induzir
impactes negativos na globalidade do sistema,
podendo mesmo pôr em causa a existência das
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ilhas-barreira e, consequentemente, do próprio
meio lagunar por elas definido.
A erosão costeira tem sido antropicamente
amplificada por várias intervenções efectuadas na
adjacência ou no próprio sistema, entre as quais
se podem referir a construção dos molhes da
marina de Vilamoura e o campo de esporões de
Quarteira, os esporões de fixação da barra
artificial de Tavira e, principalmente, a
construção da barra artificial de Faro-Olhão,
cujos molhes fizeram com que o sistema entrasse
em ruptura. Esta erosão costeira suplementar,
associada à intensificação do pisoteio decorrente,
designadamente, da intensificação da utilização
turística do sistema, fez com que a
vulnerabilidade ao galgamento tenha sido
fortemente amplificada na generalidade da zona
de barreira (ilhas e penínsulas frontais).
Na gestão do sistema e nas intervenções que aí se
efectuem há sempre que considerar que a Ria
Formosa constitui um recurso económico de
grande importância regional e, mesmo, nacional,
gerando anualmente mais de dez milhões de
contos em actividades variadas (Ramos e Dias,
2000). A prossecução da maior parte destas
actividades necessita de um bom funcionamento
hidráulico do sistema que propicie eficiente
renovação de águas e/ou canais com
profundidade minimamente adequada.
Os problemas de gestão do sistema da Ria
Formosa são ainda agravados por uma certa falta
de coordenação entre os diferentes organismos
que sobre ele têm competências jurisdicionais
directas ou indirectas, por algum permissivismo
e, não raro, pela falta de mecanismos que
possibilitem o cumprimento do que legalmente
está consignado. Este último ponto é
particularmente grave, pois que, actualmente, são
cerca de 2000 as construções clandestinas
existentes nas ilhas barreira, frequentemente
edificadas no cordão dunar frontal e, por vezes,
mesmo em zonas de muito elevada
vulnerabilidade ao galgamento. Alguns dos casos
mais críticos são, apesar das intervenções
efectuadas, o da Ilha de Cabanas, sobretudo junto
aos apoios de praia aí existentes, e o da ilha da
Armona, frente à Fuzeta (Ramos e Dias, 2000).
As características das tendências evolutivas do
sistema, associadas às consequências de muitos
dos tipos de exploração do próprio sistema
(turismo, portos, extracção de areias, aquacultura,
conchicultura, etc.), têm conduzido a elevado
conflito de interesses, o que, aliás, é normal em
zonas costeiras. No entanto, o nível de
conflitualidade aumenta quando se considera que
o sistema corresponde a um Parque Natural, onde
há que compatibilizar interesses económicos e
actividades antrópicas diversificadas com a
conservação do ambiente natural. Num sistema
bastante sensível e já fortemente impactado pelas
actividades antrópicas, só é possível proceder à
conservação do ambiente natural através de
intervenções tendentes a minimizar os impactes
negativos induzidos por essas actividades
antrópicas.
Com base nesta filosofia de actuação, tem vindo
o Parque Natural da Ria Formosa (PNRF) /
Instituto de Conservação da Natureza (ICN) a
efectuar, nos últimos anos, várias intervenções de
carácter suave, tendentes a melhorar o
funcionamento do sistema e, simultaneamente,
diminuir a vulnerabilidade ao galgamento,
evitando, assim, a construção de obras fixas
(paredões, esporões, etc.), ambientalmente muito
agressivas.
As
intervenções
efectuadas
enquadram-se na filosofia de Construir com a
Natureza, a qual advoga que essas intervenções
devem manter a dinâmica dos processos naturais.
Nesta linha, as intervenções têm consistido
designadamente na dragagem de alguns canais de
maré com repulsão das areias dragadas para a
frente oceânica do sistema. Tem-se, assim,
procedido
a
realimentação
de
praias,
robustecimento dos cordões dunares e colmatação
de cortes de galgamento. Complementarmente,
tem-se procedido à instalação de paliçadas e à
plantação de espécies pioneiras (ammophila
arenaria) características do ambiente dunar.
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O SISTEMA DE ILHAS-BARREIRA DA RIA FORMOSA
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As principais intervenções efectuadas foram:
Robustecimento da Península de Cacela
(efectuada entre Novembro de 1996 e Abril de
1998); Abertura da Barra do Ancão (em 23 de
Junho de 1997); Requalificação do Sistema
lagunar (entre Abril de 1999 e Julho de 2000);
Abertura da Barra da Fuzeta (em 13 de Julho de
1999); e Colocação de Paliçadas, Plantação de
Ammophila arenaria, e Construção de Passadiços
Sobreelevados em vários locais da zona de
barreira da Ria Formosa, numa extensão superior
a 13km (actualmente em curso).
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J. A. DIAS, Ó . FERREIRA e D. MOURA (2004)
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PRAIA DE FARO
(1)
por completo o cordão dunar aí previamente
existente. Pelas suas características pode ser
considerado como uma das maiores aberrações
da faixa costeira portuguesa.
A chamada "Praia de Faro" (fig. 3) localiza-se na
península do Ancão, a qual constitui a unidade
mais ocidental do sistema de ilhas-barreira da Ria
Formosa. A Praia de Faro situa-se em plena zona A linha de costa na zona está em recuo há, pelo
de migração histórica da barra do Ancão, a qual menos, meio século. Segundo levantamentos topotem tendência de migração para nascente, até hidrográficos da Direcção-Geral de Portos, a linha de
atingir uma posição limite em que começa a baixa-mar na ilha de Faro recuou 34m entre 1945 e
assorear, verificando-se então a abertura natural 1964, ou seja, cerca de 1,7m/ano (Weinholtz, 1978a).
de nova barra a poente, na zona localizada frente Todavia, a zona era ocupada apenas por algumas
à Quinta do Lago (Weinholtz, 1978a).
casas de pescadores, não havendo registo, até ao
Para atingir a Praia de Faro atravessa-se o corpo início da década de 60, de problemas graves para a
lagunar pela ponte rodoviária (fig. 4). Foi a ocupação humana. Essa ocupação só se verificou de
construção desta ponte que viabilizou, neste forma mais significativa após 1956, quando a zona
ponto, acesso fácil para a zona de barreira do foi desafectada do Domínio Público Marítimo,
sistema de ilhas barreira da Ria Formosa e que, passando a sua gestão para a Câmara Municipal de
consequentemente, propiciou o desenvolvimento Faro. O primeiro grande alarme sobre a evolução
desfavorável para o núcleo urbano da Praia de Faro
urbano da Praia de Faro.
surgiu apenas em 1962 (Esaguy, 1988).
Fig. 3 - Vista da Praia de Faro. A ocupação antrópica é
completamente desadequada à fragilidade deste sistema. É
bem evidente nesta fotografia a pequena largura da
península, o tipo de urbanismo mais do que questionável, e
a completa inexistência de corpos dunares.
Fig. 4 - Vista aérea da ponte rodoviária que dá acesso à Praia de
Faro e do parque de estacionamento.
O primeiro factor decisivo que propiciou a intensa
ocupação que se verifica na Praia de Faro foi a
Devido a esta ocupação intensiva, os corpos construção da ponte rodoviária (fig. 4) que lhe dá
dunares desapareceram por completo e a zona acesso.
ficou extremamente fragilizada. O crescimento
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deste núcleo urbano efectuou-se rapidamente,
1
Adaptado de DIAS, TEIXEIRA e FERREIRA (1997) – “Seminário
quer
com
construções
clandestinas
sobre
a Zona Costeira do Algarve: Livro Guia da Excursão”.
(posteriormente “legalizadas”), quer com
Associção Eurocoast Portugal / Universidade do Algarve /
edificações “legais”,
sempre de forma DRARN Algarve, Faro
desordenada, sem obedecer a quaisquer princípios
estéticos e urbanísticos coerentes, e destruindo
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O SISTEMA DE ILHAS-BARREIRA DA RIA FORMOSA
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Face a uma expansão, extraordinariamente
intensa, do turismo no Algarve, e às apetências,
para fins balneários, da península do Ancão, a
zona com acesso rodoviário facilitado (a Praia de
Faro) foi progressivamente ocupada por casas, na
esmagadora maioria clandestinas e de segunda
habitação, que no conjunto constituíram um
aglomerado caótico em termos urbanísticos. O
cordão dunar singular que constitui esta península
foi completamente ocupado por edificações. A
construção de infra-estruturas pela Câmara
Municipal de Faro, entretanto, constituiu
incentivo forte à continuação da ocupação da
zona e, consequentemente, ao agravamento dos
problemas.
A evolução natural neste tipo de sistemas, em
situações de elevação do nível médio do mar, é no
sentido da migração do cordão arenoso (zona da
barreira arenosa) em direcção ao continente. A
urbanização aludida veio impedir essa evolução
natural, fazendo com que o sistema entrasse em
ruptura.
O
cordão
dunar
começou
progressivamente a ser atacado pelo mar com
mais intensidade e, na zona urbana, as casas
começaram a ficar ameaçadas sendo, por vezes,
danificadas.
redução drástica do número e tipo de edifícios aí
existentes.
Durante o inverno de 1989/90, em especial
durante os meses de Novembro e Dezembro,
ocorreram temporais na costa sul, tendo-se
registado valores de 6,0 a 7,0m de altura
significativa (Pires, 1990), em consequência dos
quais se verificaram grandes galgamentos
generalizados. Como resultado, o número de
casas danificadas foi bastante elevado (fig. 5). O
facto dos máximos de altura significativa terem
ocorrido próximo da baixa-mar contribuiu para
que os prejuízos provocados pelo mar não fossem
ainda mais elevados. Em Janeiro e Fevereiro de
1990 a ocorrência de ondas com 5 a 6m de altura
provocaram novos galgamentos oceânicos e
inundação de habitações.
Face às ameaças existentes, e para impedir o
recuo da linha de costa, construiu-se pequena
estrutura longilitoral aderente na zona externa
frente à ponte (parque de estacionamento). Como Fig. 5 – Aspecto de casas danificadas, na Praia de Faro,
é normal acontecer quando se controi este tipo de durante os temporais do Inverno de 1989/1990.
estruturas, o perfil de praia tornou-se mais Em Março de 1990 a altura significativa das
reflectivo, o que veio ampliar a vulnerabilidade ondas atingiu 3m, valor que pode ser considerado
aos galgamentos oceânicos.
normal para o Algarve. Todavia, por se tratar de
Por várias vezes se tentaram adoptar medidas período de marés vivas equinociais e devido à
correctivas, nomeadamente demolindo várias erosão que os temporais precedentes tinham
casas clandestinas. Todavia, tais acções foram induzido, o mar atingiu a zona urbanizada
contrariadas pelas populações locais e provocando danos variados. Durante a noite de 18
encontraram, mesmo, oposição por parte do poder de Março a ondulação de sueste provocou o
autárquico. Consequentemente, não foi possível derrube de cerca de 30m do muro que protegia a
concretizar as acções mínimas imprescindíveis estrada junto à colónia de férias e induziu danos
para efectuar uma ocupação racional da zona, a graves em várias habitações (fig. 6).
qual forçosamente teria de passar por uma Durante este período foram empreendidas obras
de emergência na praia, tendo sido efectuada
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colocação de areia e a construção de uma
protecção frontal com blocos, calhaus e sacos de
pedras. A dragagem de sedimento foi efectuada
com uma draga de sucção e repulsada
directamente para a praia, junto à colónia de
férias. Na protecção frontal foram utilizadas cerca
de 11000 toneladas de calhaus.
de 1995 até ao presente), indicam que as
quantidades
sedimentares
transferidas
prependicularmente à praia são extremamente
elevadas, processando-se essa transferência com
grande rapidez. No entanto, durante o período de
análise, a recuperação foi quase imediata após
episódios de agitação com energia elevada,
denotando a praia capacidade da resposta
relativamente boa a este tipo de eventos.
Encontrando-se esta zona protegida pelo
enrocamento de emergência, no dia 30 de Março
o mar atingiu uma zona mais débil a alguns Contudo, verificou-se que a ocupação existente no
metros de distância, junto ao Barracuda. O muro sector ocidental do núcleo urbano da Praia de
de protecção ruiu numa extensão de mais de 40 Faro não possibilita que a península migre para o
metros. No total, nesse inverno, foram destruídos interior, truncando o perfil da praia emersa. Por
cerca de 230 metros do muro aludido.
outro lado, verifica-se que o volume sedimentar
da praia emersa (“stock” arenoso) no sector
oriental (do restaurante Zé Maria para Leste) é
superior ao do sector ocidental da Praia de Faro
(do restaurante Zé Maria para Oeste), o que
contribui para que os efeitos dos temporais
atinjam maiores proporções a poente, onde a
ocupação é, também, mais intensa. Durante as
marés vivas cheias de inverno é frequente
ocorrerem galgamentos oceânicos em vários
pontos da área urbanizada, designadamente no
parque de estacionamento localizado frente à
ponte rodoviária. De certa forma, estes episódios
Fig. 6 – Vista parcial do muro destruído durante os começaram a ser já objecto de atracção turística
temporais do Inverno de 1989/1990.
porquanto, nessas alturas, é frequente que aqui se
É interessante constatar que a zona dragada foi desloquem várias centenas de pessoas para
precisamente aquela para onde, durante muitos apreciarem o espectáculo da rebentação das
anos, as máquinas da Câmara rejeitavam as areias ondas, as quais se espraiam para o parque de
que, durante o inverno e devido ao transporte estacionamento, passando para a zona lagunar.
eólico (e, por vezes, a galgamentos) se
acumulavam na estrada longitudinal.
Em 1991 foram efectuadas duas novas operações
de alimentação artificial, uma em Janeiro /
Fevereiro, que envolveu a dragagem e repulsão
para a praia de cerca de 150.000m3 de areia, e
outra em Outubro em que o volume mobilizado
foi de cerca de 90.000m3 (Correia, 1992).
Trabalhos recentes (Martins et al, 1996; 1997)
sobre a evolução da Praia de Faro, baseados na
realização sistemática de perfis de praia (de Maio
Fig. 7 – Aspecto do litoral da Praia de Faro durante
os temporais do Inverno de 1989/1990.
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Assim, o núcleo urbano actual está fortemente
confinado pelo meio lagunar, de um lado, e pelo
oceano, do outro, encontrando-se numa situação
de grande risco. Quando ocorrer um temporal
excepcional que abranja a preia-mar de marésvivas pode viver-se, aqui, uma situação altamente
dramática, com destruição de edificações e,
eventualmente, mesmo perda de vidas humanas.
Aliás, no passado recente, têm-se verificado,
aquando da ocorrência de temporais, danos graves
e mesmo destruições de várias de edificações.
A zona urbana está, actualmente, bem delimitada.
Todavia, tal não inibe que existam várias
construções (clandestinas) fora dessa área e que,
pelo que tem sido repetidamente anunciado desde
há vários anos, serão em breve demolidas.
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ILHA DA CULATRA (2)
A povoação da Culatra (fig. 8), situada na ilha
com a mesma designação, só pode ser atingida
por barco. Trata-se de uma pequena povoação
com pouco mais de 600 habitantes permanentes e
cerca de 330 habitações. Todavia, devido ao
afluxo turístico, a população estival é muito
superior.
Fig. 9 - Povoação da Culatra na década de 60 do século XX,
por ocasião de uma visita do Director-Geral de Portos.
Note-se que as casas eram ainda de madeira e junco.
Fig. 8 - Imagem aérea da povoação da Culatra. Note-se que
está encostada ao meio lagunar, relativamente distante do
mar. Na imagem é, também, perfeitamente visível a baía
que a rodeia por nascente.
Pelos dados existentes, a povoação da Culatra
surgiu, como local permanente de habitação,
apenas nos finais do século XIX, estando
relacionada com as armações de pesca da
sardinha. Aparece já cartografada no Plano
Hidrográfico da Barra e Canaes de Faro e
Olhão, de 1916. Em 1918 a povoação era
constituída por 13 construções. As casas originais
eram de junco e madeira, sendo apenas
substituídas por casas de alvenaria na década de
60 do século XX (Bernardo et al., 2002).
Como pode ser constatado pelo visitante, a
povoação da Culatra está edificada num dos sítios
de menor risco de toda a ilha. Efectivamente, está
encostada à zona lagunar, protegida dos temporais
oceânicos por extensa zona dunar, o que contrasta
fortemente com as situações existentes noutras
partes do sistema, designadamente na povoação
do Farol e, principalmente, na Praia de Faro. O
facto de estar confinada, a nascente, por uma baía
e canais de mare é, obviamente, altamente
propício à actividade tradicional da pesca.
A baía localizada a nascente da povoação, e onde
normalmente se encontram estacionados vários
barcos de recreio, denuncia o crescimento da ilha
através da agradação de restingas encurvadas.
Estas restingas desenvolveram-se sucessivamente
na margem ocidental da barra da Armona.
Passeando pela margem lagunar da ilha é possível
constatar a existência de vários destes sistemas
restinga / baía.
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2
Adaptado de RAMALHO, M. M., BOSKI, T., MOURA, D. &
DIAS, J. A. (2003) - Notícia explicative da Carta Geológica
do Parque Natural da Ria Formosa (no Prelo)
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O SISTEMA DE ILHAS-BARREIRA DA RIA FORMOSA
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aproveitam estes canais nas deslocações. Em
princípio não há grandes inconvenientes nesta
utilização pois que, na próxima maré, a zona fica
renaturalizada. Infelizmente, por vezes, os
tractores deslocam-se até praia, atravessando as
dunas frontais, aí provocando cortes eólicos que,
não raro, acabam por propiciar galgamentos
oceânicos.
Visitando estes canais num dia seco de verão em
altura de maré enchente é possível observar um
processo interessante de transporte sedimentar: o
transporte de areias em flutuação. Efectivamente,
devido à calma com que a maré enche nestes
Fig. 10 -Povoação da Culatra actual
canais e à secura dos grãos de areia, muitos destes
O antigo posto de socorro a náufragos, foi aí são mantidos e transportados à superfície da água
construído quando a margem ocidental da barra da devido à tensão superficial desta.
Armona aí se localizava. Tem-se, assim, ideia Transpondo as dunas chega-se à praia. Ao fundo
clara da dinâmica destas ilhas e da velocidade de da larga e longa praia arenosa, olhando para
crescimento que normalmente apresentam. poente, distingue-se o farol da barra de FaroDurante muito tempo a taxa média de crescimento Olhão e um pouco da povoação que aí nasceu.
da ilha da Culatra foi da ordem de 50 metros/ano. Toda a praia é limitada, do lado de terra, por
Os canais de maré (fig. 11) são uma das estruturas dunares. Estas, com frequência,
características ressaltantes da ilha. Na maré vazia apresentam escarpas de erosão, sendo por vezes
atravessam-se a seco. No entanto, devido à possível distinguir alguns cortes eólicos, bem
amplitude das marés vivas, nas preia-mares torna- como cortes de galgamento oceânico.
se difícil atravessá-los, podendo ser mesmo
Grande parte dos cortes eólicos são naturais.
necessário fazê-lo a nado.
Todavia, muitos outros, são provocados pelo
pisoteio e destruição da vegetação dunar. Com a
continuação do pisoteio a vegetação não tem
possibilidade de se recompor, e estes cortes
eólicos vão-se progressivamente alargando e
aprofundando. Por ocasião de temporais,
principalmente se estes ocorrem em marés vivas
cheias, as ondas penetram por estes cortes eólicos
constituindo-se um galgamento oceânico.
Após a construção dos molhes da barra artificial
de Faro-Olhão verificou-se erosão costeira
generalizada e a ocorrência de vários galgamentos
oceânicos. Em vários casos, estes galgamentos
Fig. 11 - Canal de maré nas proximidades da povoação da efectuavam-se para canais de maré adjacentes às
Culatra. São visíveis os mastros das embarcações dunas, o que poderia provocar, por ocasião de
estacionadas na baía.
temporais, a abertura de novas barras. Para
Existem alguns tractores na povoação (para minimizar os riscos, o Parque Natural da Ria
recolha de lixo e para apoio à pesca) que Formosa colocou paliçadas (fig. 12) em vários
destes cortes de galgamento, as quais propiciaram
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acumulação significativa de areia, colonização por
espécies vegetais precursoras e o início da
reconstrução dunar. A parte superior de alguns
dos postes das paliçadas e das redes são ainda
visíveis nalguns cortes de galgamento.
Fig. 12 - Dunas da praia da Culatra. É possível distinguir a
parte superior dos postes das paliçadas (assinalados com setas)
aí colocadas para recuperação dos cortes de galgamento.
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O SISTEMA DE ILHAS-BARREIRA DA RIA FORMOSA
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ARRAIAL DO BARRIL (ILHA DE TAVIRA)
A ocupação da ilha de Tavira na zona do arraial
do Barril pode ser apontada como um bom
exemplo de exploração turística com minimização
de impactes, no sistema da Ria Formosa. O acesso
à ilha de Tavira efectua-se por uma ponte pedonal
existente junto ao empreendimento de Pedras del
Rei. O facto de ser uma ponte pedonal evita que
os veículos motorizados acedam facilmente à ilha.
Pode aqui observar-se o meio lagunar, com o
canal principal, relativamente estreito.
Na deslocação da ponte até ao arraial do Barril
pode utilizar-se o pequeno combóio aí existente
ou ir-se a pé pelo caminho que margina a linha. A
existência do aterro onde se instalou a linha do
combóio (fig. 13) veio possibilitar a concentração
dos impactes induzidos pelos visitantes a esta
faixa estreita, libertando as áreas restantes do
pisoteio e de outras actividades nocivas. Os
cartazes explicativos e alusivos ao facto da área
ser classificada, em que se expressam as
actividades que o visitante pode ou não
desenvolver,
constituem
complemento
sensibilizador importante.
bem como a vegetação e, com frequência, vária da
fauna característica destes ambientes.
No final da linha férrea, junto à praia oceânica,
existem os edifícios do antigo arraial do Barril,
infraestrura de apoio à pesca desactivada há
algumas décadas e reconvertida para apoio ao
turismo. Os impactes na área específica das
edificações são fortes, mas limitados a essa área.
Junto aos edifícios é possível observar um vasto
conjunto de fateixas dispostas geometricamente
de forma ornamental. Eram as fateixas utilizadas
pela companha da pesca do atum, que utilizava o
arraial. É possível ver, também, que na parte mais
externa algumas linhas de fateixas estão caídas na
praia. Deve-se, tal facto, à erosão costeira que se
tem verificado e pode servir como índice do
recuo da linha de costa neste ponto.
Fig. 14 - O arraial do Barril localizado imediatamente a
nascente da paragem do combóio. Para cá das edificações é
possível distinguir o “campo” de fateixas.
Nas dunas frontais que limitam a praia é possível
ver escarpas de erosão denunciadoras da erosão
Fig. 13 - Vista aérea da ilha de Tavira na zona do Barril. É costeira, bem como detectar alguns cortes eólicos
visível a linha do combóio (marginada por árvores). Os e, mesmo, pequenos galgamentos oceânicos. O
edifícios junto à praia são os do antigo arraial do Barril.
pisoteio é, aqui, moderado, pelo que a situação é
No trajecto entre a ponte pedonal e a frente muito diversa da que se encontra, por exemplo, na
oceânica tem-se a possibilidade de observar os praia oceânica da Culatra.
sapais, os canais de maré e os corpos dunares,
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Esta praia é muito frequentada na época estival,
mas também o é na época baixa, tendo-se evitado,
no entanto, o aumento das construções e o caos
urbanístico. O acesso à praia é facilmente
propiciado pela ponte e pelo pequeno combóio,
sem grandes impactes generalizados. As
infraestruturas turísticas mais pesadas (hotéis,
variedade de restaurantes, etc.) existem a uns 15
ou 30 minutos de distância, na zona continental.
É um bom exemplo de como o sistema pode ser
explorado de forma sustentável sem induzir
impactes negativos generalizados.
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O SISTEMA DE ILHAS-BARREIRA DA RIA FORMOSA
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PENÍNSULA DE CACELA
Na parte poente do forte de Cacela Velha tem-se
uma magnífica vista sobre a parte oriental do
sistema da Ria Formosa. Do lado esquerdo
estende-se a península de Cacela, extremada pela
barra do Lacém, também chamada barra de
Cacela. Do outro lado desta barra existe a ilha de
Cabanas e, em dia de boa visibilidade, é possível
distinguir os pequenos molhes da barra artificial
de Tavira, que separa artificialmente as ilhas de
Cabanas e de Tavira.
A Península de Cacela constitui a extremidade
oriental do sistema da Ria Formosa. Até à década
de 70 do século XX a península era pouco
utilizada para o turismo balnear e o cordão dunar
que a constitui era robusto e vegetado, sendo a
frequência dos galgamentos relativamente
pequena. Em 1976 a altura média do topo das
dunas era de 3,4m acima do NMM, atingindo a
duna mais alta o valor de 6,1m (Esaguy, 1986). O
limite ocidental da península é definido pela
Barra de Cacela (ou de Lacém), que apresenta
tendência migratória de Oeste para Leste com
valores de deslocação variáveis entre dezenas de
metros a mais de uma centena de metros por ano.
Após o início da década de 70 verificou-se
intensificação da utilização balnear da zona, com
correspondente pisoteio das dunas, o que
conduziu a uma cada vez maior degradação dos
corpos dunares, e grande aumento da frequência
de galgamentos. Em meados da década de 90 a
península apresentava múltiplas zonas de
galgamento, algumas de grande dimensão, apenas
com algumas zonas vegetadas remanescentes. No
inverno de 1995/1996 ocorreram galgamentos
generalizados a quase toda a península,
verificando-se naturalmente a abertura de uma
nova barra, a Barra de Fábrica (fig. 15),
sensivelmente em frente à povoação com este
nome, a qual, em Outubro de 1996, chegou a ter
cerca de 35 metros de largura e quase 5 metros de
profundidade em marés vivas cheias (Dias et al.,
1999).
É perfeitamente visível, de Cacela Velha,
uma protuberância arenosa projectada para o
interior da parte lagunar, a qual corresponde ao
actual remanescente do delta de enchente da
antiga barra da Fábrica. Caso não se efectuasse
qualquer intervenção, era de prever que as dunas
remanescentes desaparecem por completo (e,
eventualmente, a península), em 2004 (Matias et
al., 1998)
Fig. 15 - Aspecto da Barra da Fábrica em 1996
No sentido de proteger a povoação de Fábrica e
de manter a actividade económica mais
importante da zona, a produção de bivalves (ostra
e ameijoa) e, simultaneamente, para robustecer a
península de Cacela garantindo a sua
manutenção, foi efectuada no inverno de 1996/97
uma dragagem do canal de Cacela, com draga de
sucção/repulsão, tendo os sedimentos dragados
sido colocados sobre o cordão arenoso (fig. 16).
O objectivo era o de elevar a cota do topo do
cordão dunar até aos 5,5 metros acima do nível
médio do mar (NMM), isto é, reconstituir
situação análoga à existente nos anos 60 (Ramos
e Dias, 2000).
No entanto, como não foram efectuados os
estudos prévios aconselháveis, verificou-se
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J. A. DIAS, Ó . FERREIRA e D. MOURA (2004)
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durante a dragagem que existiam formações
consolidadas que impossibilitavam a dragagem
até à profundidade inicialmente estabelecida, pelo
que a quantidade de sedimentos repulsados para a
península foi bastante inferior à prevista. Ainda
assim, a cota de topo da duna foi elevada para os
3 metros acima do NMM numa extensão de 2000
metros.
Estima-se que o material sedimentar deposto no
cordão dunar atingiu o volume de 325000 m3
(Matias et al., 1998). Nesta operação foi
colmatada, por completo, a barra da Fábrica, que
se tinha constituído no inverno anterior.
Fig. 16 - Vista aérea da intervenção efectuada na Península
de Cacela
De Cacela Velha é possível observar, com
nitidez, os resultados desta intervenção. O aterro
então construído é bem visível, principalmente
nas partes ainda não naturalizadas. É possível,
também, constatar que o aterro não tem forma
rectilínea na parte interna, inflectindo para o
interior na zona da antiga barra da Fábrica. Tal
foi consequência
da escassez de material
sedimentar proveniente da dragagem do canal:
com esta disposição foi possível elevar as cotas
até um valor superior ao que seria atingido caso
se mantivesse uma forma rectilínea.
Na parte oceânica (que pode ser observada
passando o canal, a partir de Fábrica, num dos
barcos locais e transpondo as dunas por um dos
passadiços sobreelevados) desenvolveu-se, como
era esperado, escarpa de erosão bem definida.
Aquando da intervenção, era expectável que parte
importante do material sedimentar fosse erodido,
sendo transferido quer para a praia emersa, quer
para a praia submersa, o que é importante para
que a zona fique naturalizada. Tal, efectivamente,
verificou-se. Passados dois anos da intervenção,
estima-se que 34% do material aí colocado tinha
desaparecido. No entanto, 15% da erosão
verificada ocorreu na extremidade poente da
península, sendo atribuível aos processos de
meandrização e de migração da barra do Lacém.
Apenas 17% da erosão é que é imputável aos
processos de naturalização da frente oceânica e à
erosão costeira generalizada. O desaparecimento
de 2% do material ocorreu na parte lagunar,
devido à actuação das correntes (Dias et al.,
1999).
No entanto, apesar das intervenções descritas,
ficaram por colmatar alguns grandes cortes de
galgamento oceânico existentes na parte oriental
da península, pelo que, em Janeiro de 1998, foi
efectuada nova intervenção com o objectivo de
colmatar três dessas zonas de galgamento. Foram
aí depositados 15 000 m3 de areia trazida do
terraço de maré situado 300m a nascente do local,
constituindo-se “duna” artificial com cota de topo
de 4,5m acima do NMM, numa extensão de
aproximadamente 1000m (Ramos e Dias, 2000).
De Cacela Velha (principalmente tendo como
base a parte oriental do forte) é possível observar
os resultados desta intervenção, bem como alguns
dos cortes de galgamento que não foram
colmatados.Atendendo a que a praia da península
de Cacela é muito procurada durante a época
balnear por grande quantidade de veraneantes que
atravessam o canal de barco, para evitar o
pisoteio generalizado foram construídos dois
passadiços de madeira (fig. 17), sobreelevados
80cm relativamente ao topo do cordão dunar,
ligando a zona lagunar à praia oceânica.
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O SISTEMA DE ILHAS-BARREIRA DA RIA FORMOSA
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Fig. 17 - Vista aérea da Península de Cacela, sendo visíveis
as paliçadas e um dos passadiços sobreelevados.
Posteriormente aos trabalhos de realimentação, e
no sentido de propiciar o desenvolvimento de
dunas naturais, procedeu-se, entre Abril e Agosto
de 1997, à colocação de paliçadas de madeira
com 1,3m de altura, formando quadrados com
42,25m2 de área, numa extensão aproximada de
1200m. Entre Novembro de 1997 e Fevereiro de
1998 procedeu-se à plantação de Ammophila
arenaria no interior das paliçadas (Ramos e Dias,
2000). Estas paliçadas, bem como os passadiços
sobreelevados, são perfeitamente visíveis de
Cacela Velha. Com uns binóculos é porventura
observável que a eficácia destas paliçadas foi
grande na parte oriental da intervenção e reduzida
na parte ocidental. Efectivamente, a escarpa que
se formou na parte oceânica tem altura maior na
zona poente e menor na parte nascente, o que
reflecte as carências de material sedimentar
constatadas no decurso da intervenção. O
transporte eólico de areias para a parte superior
do aterro com que se robusteceu a península é,
consequentemente, difícil na parte nascente, e
mais fácil na parte poente. Devido a estas razões,
as paliçadas da parte nascente rapidamente
ficaram quase por completo enterradas nas dunas
recém-formadas, enquanto que na parte poente a
acumulação verificada foi modesta. De Cacela
Velha, estando virado para Poente, é possível
ainda observar que a laguna é delimitada, do lado
de terra, por arribas em estado de inactividade ou
de fossilização.
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J. A. DIAS, Ó . FERREIRA e D. MOURA (2004)
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