PSICOSES ECOAM POR TRÁS DE UMA BARREIRA IMAGINÁRIA: O TRAUME GERACIONAL INGLÊS PÓS-SEGUNDA GUERRA EM THE WALL (1982) E TOMMY (1975) Daniel Dória Possollo Carrijo - UFPR1 Pensar a linguagem do rock enquanto uma manifestação cultural da sociedade em que o artista está inserido pode oferecer ao pesquisador na área de história possibilidade muito férteis de análise, estando o gênero localizado no limiar entre a cultura popular e a chamada contracultura, ou mesmo underground, para não confundirmos necessariamente com a chamada contracultura dos anos 1960. Os grandes nomes do estilo são efetivamente indivíduos que vivenciam um presente compartilhado por todos e exprimem essa experiência através de sua arte, sendo boa parte desses músicos, e em especial se pensarmos nos grupos que surgem entre as décadas de 1960 e 1970, oriundos das classes trabalhadoras, trazendo assim o discurso do homem comum. O rock vem desde muito tempo se relacionado com o cinema, não se limitando apenas à representação da música e de sua história na grande tela, mas também dialogando de forma frutífera. Destaco aqui no caso as chamadas óperas rock, peças que envolvem uma trama encenada de forma teatral, mas que em lugar de cenas faladas se valem integralmente de canções, tal como uma ópera clássica, mas executando apenas números de rock. É um gênero que produziu grandes clássicos a partir da década de 1970. Dois deles serão observados aqui: Tommy (1975) e The Wall (1982), adaptações dos álbuns homônimos das bandas The Who e Pink Floyd. O objetivo aqui é analisar por um ponto de vista historiográfico primeiramente o como esses artistas de rock – aqui em destaque Pete Towshend e Roger Waters, dois ingleses – exprimem uma experiência comum vivenciada pelo jovem inglês nascido no contexto da Segunda 1 [email protected] Guerra Mundial – Towshend em 1945 e Waters em 1943 – que pode ser compreendida enquanto um trauma geracional pós-conflito, bem como observar o diálogo que essas obras primeiramente musicais em sua origem estabelecem com a linguagem cinematográfica, atentando também para o como esse produto cultural é recebido e que repercussão causa no público com relação a essa dimensão psicológica decorrente do advento bélico na vida de não-combatentes. Essa não é uma análise profunda e nem definitiva. Este artigo consiste em algumas reflexões iniciais do que muito provavelmente se tornará um projeto de doutorado no futuro, mas cabe aqui já pontuar algumas questões basilares e trabalha-las a fim de amadurecer os questionamentos rumo a uma pesquisa mais sólida e consistente. Questões metodológicas Bom, primeiramente é necessário pontuar alguns parâmetros essenciais para a análise de qualquer fonte audiovisual. Diferente da linguagem escrita em sua essência, esse tipo de documento deve ser tratado segundo seus próprios preceitos e natureza. Muitos teóricos, como Robert Rosenstone e Hayden White, defendem que a linguagem fílmica detém meios igualmente eficientes que a escrita para representar o discurso histórico. Isso se deve, primeiramente, à própria natureza da forma de expressão narrativa, empregada em qualquer forma de transmissão de conhecimento histórico. Essencialmente seletiva, a narrativa seleciona, recorta e reordena os fragmentos, imputando-lhes sentido. Nenhum discurso escapa a essas operações e nem pode almejar o alcance total de transmissão de qualquer objeto. White é quem analisa de forma mais crítica essa questão, atentando para outros estudos também, como os de Northrop Frye, que aponta para estruturas de enredo pré-genéricas, ou seja, “formas de contar algo”, empregadas com o objetivo de imputar certa inteligibilidade ao texto frente ao público, R. G. Collingwood, que constata a importância e a presença inevitável de certa dose de imaginação em qualquer construção narrativa, imaginação essa presente no ato de “ligar os pontos”, nada diferente do paradigma indiciário de Carlo Ginzburg por exemplo. O historiador não tem acesso à totalidade do passado, e nem teria como o ter, uma vez que a realidade é demasiadamente plural para que se possa almejar absorve-la por completo. Além disso, White ainda destaca também as teorias de Roman Jakobson sobre a posição de mensagem no texto. Segundo esse autor, mediante uma hierarquização de fatores dentro da estrutura narrativa, o indivíduo que se expressa determina o sentido daquilo que comunica. Partindo desses pressupostos alguns autores como Robert Rosenstone e Natalie Zemon Davis defendem fortemente essa chamada “linguem fílmica da história” enquanto uma atualização do ofício historiográfico, tendo ambos inclusive atuado já junto à indústria cinematográfica produzindo filmes históricos de qualidade – Reds (1981) e O Retorno de Martin Guerre (1982). Para esses autores, na mesma medida em que a linguagem escrita possui maior capacidade de trabalhar com questões abstratas e mais profundas, a audiovisual é mais bem sucedida em trabalhar não só com os referenciais visuais, mas também com os ligados às emoções, fora o grande alcance do cinema em termos de público também. William Guynn, seguindo nessa linha de pensamento também, posiciona-se forma muito interessante: Cinema gives us a convincing analogue of concrete space, mimics to perfection the flow of time within the single shot, and reproduces the movement of real phenomena in space. Given the concreteness of its expression, it is not surprising then that film has difficulty expressing abstract notions. Literary texts, on the other hand, have immense powers of abstraction since language is the source of all intellection, but fall short of producing a persuasive imitation of real phenomena as they occur in space and time.2 (GUYNN, 2006, p. 72-73). Além disso, segundo o francês Marc Ferro, o discurso cinematográfico nos oferece uma “contra-análise” da sociedade de onde fala, uma representação alternativa da realidade que escapa aos determinantes dos grupos dominantes e dá voz àqueles que comumente não a teriam. Aqui temos a justificativa não do cinema enquanto veículo de transmissão do conhecimento histórico, mas sim do cinema enquanto fonte legitima para a produção desse conhecimento, agindo enquanto elemento complementar. Nesse momento passa a ser importante tomar nota a respeito de algumas características intrínsecas dessa linguagem. 2 “O cinema nos proporciona uma analogia convincente do espaço concreto, um simulacro que visa aperfeiçoar o fluxo de tempo com uma única tomada, e reproduzir o movimento de fenômenos reais no espaço. Dada a concretude de sua expressão, não surpreende que o filme tenha dificuldade em expressar noções abstratas. Textos literários, por outro lado, detém imenso poder de abstração uma vez que a linguagem [escrita] é a fonte de todo produto intelectualizado, mas encontra limitações em produzir uma imitação persuasiva de fenômenos reais da forma como ocorreram no tempo e espaço.” David Bordwell, por exemplo, alerta sobre as características do chamado “drama hollywoodiano clássico”, e da existência de três elementos fundamentais que interferem nas tramas tidas como mainstream: primeiramente a noção de observador invisível gerada pelo jogo de câmeras, que almejaria produzir certa dimensão de realismo à obra, garantindo a consistência da narração clássica mediante a ocultação de seus dispositivos codificados. Temos ainda a perspectiva dos gêneros cinematográficos que, como nos aponta o autor, definem em grande medida o como a trama se articulará, submetida a convenções pré-determinadas que devem ser perseguidas a fim de obter o sucesso de público, previamente instrumentalizado para assimilar determinados tipos de “formas de contar”3 uma história. Finalmente, temos o que Bordwell denomina de star-system, que atuaria na criação de protótipos de personagem básico, submetendo assim a obra às dinâmicas de mercado relacionadas a Hollywood e a todo esse sistema que envolve celebridades e propaganda. Nesse sentido podemos pensar também na análise que George F. Custen propõe em seu artigo “Making History” (1992), onde aponta para o que chama de retórica da fama: “In movies, the actor portraying the eminent figure had an actual, corporeal existence outside the narrative frame of a particular biographical life that may or may not have been congruente with the figure depicted4” (LANDY, 2001, p. 68). Para o autor, dessa forma, nossa concepção a respeito de personalidades históricas representadas em filmes está submetida a um filtro duplo ligado à celebridade que o interpreta: num primeiro grau relacionado à performance do ator e num segundo a toda a dimensão propagandística e publicitária externa ao filme envolvida. Temos ainda a questão da autenticidade, problematizada por Natalie Zemon Davis. Para a autora um filme tende a obter sucesso frente ao público na medida em que o conteúdo exposto é tido como autêntico, ou seja, entre em consonância com aquele instrumental prévio que o público que detém a respeito de determinado recorte temporal, algo na verdade muito próximo ao que Bordwell analisa também com relação ao drama hollywoodiano clássico e suas convenções estéticas e narrativas. A grande 3 Em um sub-tópico de seu texto intitulado “A lógica da espectatorialidade clássica” (BORDWELL, 1986, p. 295), Bordwell aponta para “motivações” da linha causal da trama, como a “realística”, a “composicional”, a “transtextual”, a “genérica” e a “artística”, que estariam diretamente relacionadas a séries particulares de schematas, hipóteses e inferências particulares do espectador, que estaria segundo o autor muito bem preparado com noções “canônicas” e gerais que o levariam a compreender e a esperar por determinado desenrolar da trama segundo categorias prévias apreendidas, escravas não somente dos dispositivos inerentes ao drama hollywoodiano como também das convenções estilísticas de gênero, tais como romance, western ou comédia. 4 “Em filme, um ator retratando uma figura eminente tem uma existência atual e corpórea externa à narrativa de uma vida biográfica particular que pode ou não ter sido congruente com a figura descrita”. questão é que os parâmetros dessa chamada autenticidade de baseiam em estereótipos muitas vezes, e comumente tendem a deixar em segundo plano a análise crítica e a representação mais profunda do objeto. O ideal assim consistiria em se valer dessas chamadas representações “autênticas” trabalhando-as de forma pertinente e fundamentada, tal com um historiador faria com seu trabalho escrito. Aliar as dimensões artísticas e mercadológicas do cinema aos preceitos científicos e (na medida do possível) objetivos da história acadêmica. Pontuadas essas questões, partamos para a análise das fontes. Os filmes: contextualizando Quando acaba uma guerra? Segundo Pedro Tota, a Segunda Guerra Mundial acabou no dia 2 de maio de 1945, às 23 horas, quando o chefe do Estado-Maior da força alemã, general Jodl, após a notícia do suicídio de Adolf Hitler, se rende perante as tropas soviéticas. Entretanto, podemos dizer que a guerra não acaba aí; ela vai permanecer por muitos anos ainda na memória daqueles que a viveram. Um conflito armado, e em especial um dessa magnitude, deixa marcas permanentes nas psiques de quem a presenciou, tanto no campo de batalha quanto fora dele. Segundo Eric Hobsbawm em sua obra Era dos Extremos: “As maiores crueldades de nosso século foram as crueldades impessoais decidias a distância, de sistema e rotina, sobretudo quanto podiam ser justificadas como lamentáveis necessidades operacionais” (HOBSBAWN, 1995, p. 97), e que afetavam as vidas de civis a quilômetros do front. Entre esses indivíduos estavam alguns jovens que se tornariam futuramente grandes personalidades da música e que, de uma forma ou de outra, manifestariam ecos de sua experiência em suas obras. Dentre eles, podemos destacar John Lennon, Keith Richards, Eric Clapton, Pete Towshend e Roger Waters. Esses dois últimos, inclusive, empregaram seus esforços criativos de forma brilhante para exprimir esse sentimento vivenciado por toda uma geração em dois trabalhos emblemáticos para a história do rock, os álbuns Tommy, lançado em 1969 pela banda The Who, da qual Towshend faz parte até hoje, e The Wall, de 1979, gravado pela então banda de Waters, Pink Floyd, ambos tendo sido logo adaptados para a linguagem cinematográfica, em 1975 e 1982, respectivamente. No que se refere aos filmes, podemos pensa-los enquanto “óperas rock”. Para Christopher John McGowan em sua tese de doutoramento defendida em 2011, podemos pensar o gênero da seguinte forma: Above all, the Rock Opera genre combined the broad spectrum of the pop-rock music of the day with the novel techniques and forms of what was considered to be ‘experimental’ or ‘fringe’ theatre5 (McGOWAN, 2011, p. 8) Rock Operas can be read as ‘accessible version[s] of avant-garde experiments or accessible works which pass for avant-garde experiments’ due to their combination of ‘two normally exclusive characteristics, immediate accessibility and the outward signs of cultural legitimacy.’6 (McGOWAN, 2011, p. 9) O autor trabalha essa forma específica de expressão audiovisual enquanto um sintoma característico dos chamados “anos sessenta”, que para o autor podem ser pensando enquanto o recorte que abarca desde o ano de 1955 até 1975. Marcado por esse diálogo entre uma forma erudita de arte e as novas diretrizes performáticas do rock e da cultura pop, esses filmes dizem muito sobre o contexto em questão, trazendo toda a confusão de um mundo abalado pela guerra, pelas incertezas e expondo a visão de mundo que emerge e que se faz dominante entre a juventude que tende a se entregar ao hedonismo e a buscar o questionamento dos costumes e do status quo. Partindo das análises de Mark Donelly, McGowan nos traz que: Donnelly has contrasted the harsh economic climate endured by Britons prior to and during the Second World War with the ‘outlook … and expectations’ of the post-1945 generation, who would ‘show themselves to be less like their parents than any previous generation in modern times’ and ‘more likely to have unrestrained appetites’. He has identified the emergence of ‘a “now” mentality’ which ‘developed as the young calculated that postponing pleasure as their parents had done was a pointless trade, not least as there was a declining faith in the promise of an afterlife’.7 (McGOWAN, 2011, p. 15) 5 “Sobretudo, o gênero ópera rock combina o amplo espectro da música pop/rock atual com as técnicas e formas novelísticas do que era considerado teatro ‘experimental’ ou ‘marginal’”. 6 “Óperas rock podem ser lidas como ‘versões acessíveis de experimentos de vanguarda ou trabalhos acessíveis que passam por experimentos de vanguarda’ devido à sua combinação de duas características normalmente excludentes, acessibilidade imediata e os símbolos externos de legitimidade cultural”. 7 “Donnelly contrastou o áspero estado econômico enfrentado pelos britânicos antes e durante a Segunda Guerra Mundial com a ‘perspectiva... e expectativa’ da geração pós-1945, que iria comportar-se menos como seus pais do que qualquer outra geração anterior nos tempos modernos e mais como detentores de um apetite irrestrito. Ele identificou a emergência de uma mentalidade do ‘agora’ que ‘se desenvolveu ao E completa citando o posicionamento de Pete Towshend frente à sua geração, que afirma que: The suffering of people in the war’ such as Tommy’s mother was real. Real bombs had dropped on them … But my generation, which was born post-VE day, all we got was the party. You know, it was like ‘it’s all over’, and the first four years of my life were just glorious [with] everybody singing and dancing.8 (McGOWAN, 2011, p. 230) Entender o como essas obras cinematográficas se comunicam com o seu presente de produção é fundamental para entendermos em parte esse “contra-discurso”, como propõe Ferro, que a sociedade gera a respeito de sua experiência histórica. Por meio da expressão artística aqui podemos investigar de que forma viveram e quais foram alguns dos dramas e tribulações enfrentados por esses indivíduos que se viram forçados a lidar com a herança da Segunda Guerra Mundial por meio de seus porta-vozes. Analisemos agora os dois filmes de forma mais específica. Tommy (1975) O filme Tommy, como já mencionado, é uma adaptação do álbum homônimo lançado em 1969 pela banda The Who. A sua produção levara longo tempo para ser empreendida pois Pete Towshend almejava superar o sucesso de Tommy com o projeto Lifehouse – que acabou por não avançar. O compositor ainda tentaria mais uma vez superar sua obra-prima com Quadrophenia9, falhando novamente em seus esforços. Tommy, o álbum, pode ser pensado, segundo McGowan, como o álbum definitivo da banda, ao lado apenas de Who’s Next? (1971), seu sucessor. Apesar de uma primeira reação negativa, após uma semana o LP já alcançara a nona posição no Top 30 da New Musical Express. Com duas semanas já ocupava o segundo lugar na Record Mirror, e nos EUA, apenas na primeira quinzena, o álbum já havia vendido passo que os jovens calculavam que postergar o prazer como seus pais haviam feito era uma troca sem sentido, ao mesmo tempo em que havia um declínio da fé numa pós-vida’”. 8 “O sofrimento das pessoas na guerra tal como a mãe de Tommy foi real. Bombas de verdade caíram nelas... Mas minha geração, que nasceu após o dia da vitória, tudo o que nós tínhamos eram as festas. Sabe, era como ‘está tudo acabado’, e os primeiros quatro anos da minha vida foram simplesmente gloriosos com todos cantando e dançando”. 9 O álbum de estúdio fora lançado em 1973 e uma adaptação cinematográfica não tão fiel quanto a de Tommy em 1979. mais de 200 mil cópias, rendendo assim à banda seu primeiro disco de ouro por alcançar a marca de um milhão de dólares arrecadados em venda, mantendo-se na lista da Billboard por um total de 126 semanas. A adaptação cinematográfica veio apenas em 1975, após uma tentativa de adaptação para um musical orquestrado e interpretado por um grupo de estrelas – entre eles Ringo Starr, Richie Havens e Rod Stewart – em 1972. A tarefa ficou a cargo do diretor Ken Russell, que fez algumas adaptações do “roteiro” original presente no álbum. Dentre essas atualizações da trama, destaco o deslocamento temporal do período pós-Primeira Guerra Mundial para o pós-Segunda Guerra, tornando o filme muito mais apelativo para o público contemporâneo por falar com a geração que representa. O filme fora um grande sucesso, arrecadando 2 milhões de dólares em um mês, se mantendo por 14 semanas como o filme mais popular da Grã-Bretanha e sendo indicado a 3 Oscars, incluindo a categoria de melhor atriz para Ann-Margaret. Sua média segundo o site IMDb é de 6,4 (atribuída pelos usuários) e de acordo com o portal metacritic de 76 (atribuída pela equipe do site). Em Tommy temos a história de um garoto que nasce no dia da vitória das Forças Aliadas na Segunda Guerra Mundial. Entretanto, seu pai, um combatente, encontra-se desaparecido, e é tido como morto em combate. Sua mãe passa a se envolver com outro homem e a levar uma vida tranquila, até que o oficial Walker, até então desaparecido, retorna e encontra sua mulher na cama com seu novo amante. Esse o assassina frente aos olhos da criança que nesse momento é traumatizada ao ouvir as expressões “você não viu nada, não ouviu nada, não contará nada a ninguém”. O jovem Tommy a partir desse momento entra num estado catatônico manifestando surdez, cegueira e mudez simultaneamente, vivendo aparte do mundo exterior. A trama se desenrola assim, com a mãe buscando ajuda para seu filho – que é torturado e abusado durante todo o filme por personagens como seu tio pervertido, Ernie, e seu primo sádico, Kevin – até que enfim, após jogá-lo contra um espelho que se rompe, liberta assim o herói da trama de seu casulo de alienação. Tendo se destacado como celebridade ainda catatônico por suas habilidades jogando pinball, Tommy agora se converte num misto entre celebridade e líder espiritual, agregando seguidores ao seu redor. Entretanto, ao submetê-los a um regime de vida extremamente rígido, a massa se revolta, destrói seu templo, assassina sua mãe e seu padrasto, e leva nosso herói a um exílio épico ao som da trilha sonora emocionante do filme. Muito pode ser absorvido da análise da obra. Primeiramente temos o retrato de uma geração que se vê tornada órfã de forma violenta e repentina – algo que veremos também em The Wall. Essas crianças crescem sem uma referência familiar palpável e acabam por buscar solidez em outras fontes. Temos também o próprio trauma nacional e a necessidade de se manter o status quo e “tocar a vida” fazendo de conta que nada aconteceu, esquecendo todas as atrocidades vivenciadas e praticadas a pouquíssimo tempo atrás. Seguindo a metáfora do filme, fingir que nada fora visto, dito ou escutado. Nesse sentido há uma referência importantíssima no filme: os acampamentos de verão. Aparecendo no começo da trama enquanto o lugar que a mãe de Tommy o leva nas férias, momento em que conhece e se apaixona por seu futuro marido, e no final enquanto o próprio templo dessa espécie de messias, esses acampamentos são, segundo Towshend, “almost like … a parody of English life’ during the 1950s as post-war austerity gradually gave way to the ‘affluent society’”10 (McGOWAN, 2011, p. 230). Para o compositor ainda “it was only in the ‘moment’ that Tommy’s temple is also revealed to be a holiday camp that ‘all of the elements of it come together”11 (McGOWAN, 2011, p. 206), ou seja, esses acampamentos funcionam como o referencial metafórico do ambiente inglês em que essa geração fora criada, onde brincadeiras tornavam a vida mais palatável e facilitavam a superação do trauma causado pela guerra. Isso nos leva, naturalmente, à questão do triunfo do hedonismo proposto por McGowan, como já citado aqui anteriormente, e é exatamente isso que é questionado ao final: Tommy passa toda a sua juventude isolado do mundo e aprendendo mais sobre si mesmo. De fato, é apenas quando trespassa o espelho, seu reflexo, que consegue livrar-se de seu estado. No momento em que impõe um estado semelhante de isolamento a um grupo de pessoas acostumadas à satisfação sensorial nosso protagonista é rechaçado, pois está a tirar precisamente aquilo que a sociedade inglesa usa para superar sua condição: o prazer. De fato, inspirado pelos ensinamentos do líder religioso oriental, Meher Baba, o grande objetivo de Towshend é transmitir uma mensagem sobre autoconhecimento frente a essa realidade de alienação vivenciada em seu contexto. Cito McGowan: 10 “Quase como... uma paródia da vida nos anos 1950 enquanto a austeridade do pós-guerra gradualmente cedia espaço para a ‘sociedade afluente’”. 11 “é só no momento que o templo de Tommy se revela um acampamento de verão também que todos os elementos se juntam”. during ‘Amazing Journey’ Tommy is, in fact, looking at his reflection in the mirror. What he is describing is his ‘illusory self’ – ‘the teacher; life, the way, the path’. It is ‘Tommy’s real self’ which, according to the composer, ‘represents the aim – God’. Townshend further explained that ‘the play between self and illusory self’ was ‘one of the central themes of Tommy’.12 (McGOWAN, 2011, p. 196) Acredito dessa forma que possamos pensar o filme Tommy não só como uma representação da experiência dessa geração inglesa que vivenciou o pós-guerra, mas também como uma crítica à mesma e à sociedade que a acolhe. Passemos agora ao segundo filme. The Wall (1982) O filme em questão, como já foi mencionado, é uma adaptação cinematográfica do álbum The Wall da banda Pink Floyd – adaptação esta que já estava planejada antes da concepção do álbum. Suas letras originalmente abordam as mesmas questões que o enredo – o trauma geracional e a experiência de se reconhecer órfão, além de outros temas que não serão aqui abordados, como a relação entre artistas e a indústria fonográfica, o abuso de narcóticos, distúrbios familiares, conjugais, e aquilo que tornou o filme mais famoso: uma crítica ao sistema educacional e à disciplina empregada. O filme foi dirigido por Alan Parker, tendo Roger Waters assumido a autoria do roteiro e Gerald Scarfe participado com animações intensas que se intercalam às cenas atuadas. Estreou oficialmente nos EUA em 13 de agosto de 1982 – após ter sido exibido no festival de Cannes de 1982, sem ter competido –, tendo sua première em Londres, no cinema Empire, no dia 14 de julho do mesmo ano. A obra arrecadou 22 milhões de dólares durante o período em que esteve em exibição, até janeiro de 1983, pagando assim, com folga, o orçamento inicial de US$12 milhões. Fora premiada pela British Academy Awards nas categorias “trilha sonora” e “melhor canção original”, por “Another Brick On The Wall part.2”, contando também com grande receptividade do público geral. Sua média pelo site IMDb é de 7,8, e as críticas, em sua maioria, são bem positivas. Roger Waters, entretanto, não manifesta o mesmo ânimo pelo filme, 12 “em ‘Amazing Journey’ Tommy está, de fato, olhando para seu reflexo no espelho. O que ele descreve é seu ‘eu ilusório’ – ‘o professor; vida, o modo, o caminho’. É o ‘eu real de Tommy’ que, de acordo com o compositor, ‘representa o objetivo – Deus’. Towshend ainda explica que ‘o jogo entre o eu e o eu ilusório’ é ‘um dos temas centrais de Tommy”. declarando não ter sentido “nenhuma afinidade com o personagem principal” (REISCH, 2010, p. 46), entre outras demonstrações de desgosto que podem ser encontradas em suas entrevistas. O que se constata, por fim, é que, a despeito da opinião de Waters sobre o resultado final, a produção da obra parece ter sido bem fiel aos objetivos do próprio músico relativos à adaptação cinematográfica do álbum. Basicamente o filme pode ser entendido como uma crítica ligeiramente surrealista por parte de Waters à sua geração. O enredo conta a história de Pink, um garoto que é criado por sua mãe viúva super protetora – que o tornaria “inapto” a viver por conta própria e a enfrentar os dramas da existência humana sozinho –, que experimenta um forte estranhamento frente ao sistema educacional que não estimula suas aptidões artísticas visando apenas normatiza-los para o mercado de trabalho do contexto inglês pós-Segunda Guerra – “mais um tijolo na parede” – e que na sua vida adulta torna-se um astro do rock que enfrenta dramas existenciais ligados à sua pessoa interior, à sua relação com as mulheres, com sua arte e com narcóticos, utilizados para aliviar o sofrimento. Pink é assim um belo retrato dessa geração hedonista que ao mesmo tempo em que confronta os padrões dominantes e o status quo também se debate em agonia, visando encontrar seu lugar nessa sociedade. Por fim o protagonista torna-se uma espécie de líder fascista e é julgado num nível delirante por ser “demasiadamente humano” e é condenado a derrubar seu “muro”, sua barreira alienante – tal como o estado catatônico de Tommy – e enfrentar o mundo exterior tal como qualquer um. Dentre as várias temáticas mencionadas acima e abordadas pelo filme, uma nos é mais interessante: a personagem principal, Pink, apresenta traços autobiográficos do autor, e um dos mais relevante aqui é o de ter perdido o pai ainda quando criança, morto em combate durante a Segundo Guerra Mundial. Esse episódio desencadeia uma série de traumas psicológicos que definem a trajetória tanto da personagem quanto do autor. A guerra determina uma desorganização total da sociedade (GALBÁN; ARTOLA; HERNÁNDEZ; HIDALGO, 2007, p. 19), sendo a forma mais extrema de alienação entre as pessoas (REISCH, 2010, p. 222), e que consiste em “ficar isolado ou afastado de algo ou de alguém com os quais deveríamos manter conexão” (REISCH, 2010, p. 81), ausência essa determinada pelo “não ser” trabalhado por Jere O’Neill Surber. Weinstein e Surber observam o como a separação do pai irá determinar o isolamento e a loucura que se desenvolvem em Pink. George A. Reisch destaca dentro dessa discussão os trabalhos de Michel Foucault, que passou a observar a loucura não mais enquanto um advento isolado da medicina e da psiquiatria, afirmando que a loucura é social, tendo uma vida histórica rica e variável. Reisch, inclusive, ao atentar para o conteúdo do álbum em específico, afirma que: O disco mostra sua própria visão de que a loucura é hoje inseparável do histórico social, econômico e moral do mundo moderno. Afinal, Pink é colocado sob julgamento não por causa de nenhum acontecimento ou ofensa específicos. Ele está sendo julgado apenas por ser ele mesmo, por ser humano. (REISCH, 2010, p. 294) Deena Weinstein ainda aponta para a popularidade da linha de pensamento existencialista de Albert Camus e de Jean-Paul Sartre entre a geração de jovens nascidos durante a guerra da qual Waters faz parte. Nessa linha temos a ideia da morte enquanto “ausência permanente” (REISCH, 2010, p. 224), e a guerra enquanto fator alienante mais óbvio e elementar, uma vez que simplesmente mata as pessoas, sendo logo a motivação última para o processo de alienação abordado. Marília Amaro da Silveira Modesto Santos nos traz reflexões úteis para o debate. Citando Sigmund Freud, em relação às reações de alienação que o corpo manifesta frente a um episódio traumático, observa-se que “o ego separa-se da representação insuportável, mas está ligado a um fragmento da realidade; realizando esta ação, o ego separou-se também totalmente e/ou parcialmente da realidade” (SANTOS, 2005, p. 286). Completando a análise, ao citar o trabalho de Abraham e Törok, de 1995, a autora apresenta, através da metáfora da “pedra bruta em uma cripta”, a ação inconsciente do sujeito que, para não ter de confrontar o evento traumático, desloca-o para outro “lugar”, para que possa continuar vivendo. A guerra, dessa forma, estende sua influência para muito além do campo de batalha13. Eric Hobsbawm afirma que a chamada “guerra total” atinge uma gama muito maior de indivíduos do que a representada pelos números de contingente militar. A denominada “Era da Guerra Total” é também a “era do massacre” (HOBSBAWN, 1995, p. 32), e graças a novos adventos tecnológicos que permitem a invisibilidade das vítimas, isenta-se o assassino da responsabilidade por seus atos desumanos. Pedro Tota ainda afirma que “a guerra total significava que qualquer indivíduo do outro lado devia ser considerado um combatente, e não uma simples pessoa” (MAGNOLI, 2008, p. 356). Podemos ir além dessas análises e afirmar que, no que se refere às dimensões 13 Podemos, naturalmente, pensar essas reflexões com relação à personagem Tommy. psicológicas, a guerra se estende para todo e qualquer ser humano que esteja minimamente conectado ao evento – no caso de uma Guerra Mundial, praticamente toda uma geração. Roger Waters, dessa forma, parte de sua experiência pessoal, primeiramente sob a configuração de álbum de rock e num segundo momento adaptado à linguagem cinematográfica, e dá voz a toda uma geração que teve o advento da guerra como primeira experiência de vida, interferindo em suas experiências tanto pessoais – no sentido das privações enfrentadas num pós-guerra – quanto familiares. Balanço final (ou melhor, reflexões parciais) Os filmes Tommy de 1975 e The Wall de 1982 nos ajudam a compreender que as dimensões da guerra vão muito além daquelas traçadas por uma História simplesmente política, e que a visão comum, que destaca ao final de seu capítulo a criação da ONU e o começo da Guerra Fria com a mudança de eixo de poder mundial como principais heranças da Segunda Guerra Mundial, se faz parcial e demasiadamente simplista. Toda uma geração fora influenciada por esse evento e toda a produção cultural posterior igualmente. Como nos traz Marc Ferro, o cinema, representativo por excelência, estabelece uma relação muito real com a sociedade do seu contexto presente de produção dando-lhe voz, oferecendo assim para o pesquisador uma espécie de “contradiscurso” da sociedade contemporânea. Robert Rosenstone e Hayden White destacam a necessidade de se reconhecer que os filmes podem nos proporcionar um novo tipo de História, uma História como visão, que iria além do documento escrito e que nos possibilitaria novos horizontes de interpretação. Tommy e The Wall, nesse sentido, mesmo não sendo exatamente filmes históricos por não se proporem uma reconstituição ou menos ainda um documentário, são “óperas-rock” que abordam a questão das neuroses de guerra e do trauma, em especial o trauma geracional inglês pós-Segunda Guerra, que esse tipo de evento causa às pessoas. Sua validade para o estudo de História é, dessa forma, o de representação legítima de uma mentalidade vivenciada por uma geração, expressa através de artistas que efetivamente viveram os dramas ali retratados – de forma mais ou menos intensa. Os filmes resumem-se assim a relatos angustiantes de uma geração traumatizada por detrás de um muro imaginário de alienação. Referências bibliográficas BORDWELL, David. “O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos”. In: RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria Contemporânea de Cinema. Vol.2. São Paulo: SENAC, 2004. DAVIS, Natalie Zemon. “Any Resemblance to Persons Living or Dead: Film and the Challenge of Authenticity.” Yale Reviews, vol. 76, no. 4 (September 1987). DETMER, D. “Arrastado pela Pedra: Pink Floyd, Alienação e as Pressões da Vida”. In: REISCH, G. A. Pink Floyd e a Filosofia: cuidado com esse axioma, Eugene! São Paulo: Madras, 2010. FERRO, M. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 2010. GALBÁN, L. Y. P.; ARTOLA, A. 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