PSICOSES ECOAM POR TRÁS DE UMA BARREIRA IMAGINÁRIA: O
TRAUME GERACIONAL INGLÊS PÓS-SEGUNDA GUERRA EM THE WALL
(1982) E TOMMY (1975)
Daniel Dória Possollo Carrijo - UFPR1
Pensar a linguagem do rock enquanto uma manifestação cultural da sociedade
em que o artista está inserido pode oferecer ao pesquisador na área de história
possibilidade muito férteis de análise, estando o gênero localizado no limiar entre a
cultura popular e a chamada contracultura, ou mesmo underground, para não
confundirmos necessariamente com a chamada contracultura dos anos 1960.
Os
grandes nomes do estilo são efetivamente indivíduos que vivenciam um presente
compartilhado por todos e exprimem essa experiência através de sua arte, sendo boa
parte desses músicos, e em especial se pensarmos nos grupos que surgem entre as
décadas de 1960 e 1970, oriundos das classes trabalhadoras, trazendo assim o discurso
do homem comum.
O rock vem desde muito tempo se relacionado com o cinema, não se limitando
apenas à representação da música e de sua história na grande tela, mas também
dialogando de forma frutífera. Destaco aqui no caso as chamadas óperas rock, peças que
envolvem uma trama encenada de forma teatral, mas que em lugar de cenas faladas se
valem integralmente de canções, tal como uma ópera clássica, mas executando apenas
números de rock. É um gênero que produziu grandes clássicos a partir da década de
1970. Dois deles serão observados aqui: Tommy (1975) e The Wall (1982), adaptações
dos álbuns homônimos das bandas The Who e Pink Floyd. O objetivo aqui é analisar
por um ponto de vista historiográfico primeiramente o como esses artistas de rock –
aqui em destaque Pete Towshend e Roger Waters, dois ingleses – exprimem uma
experiência comum vivenciada pelo jovem inglês nascido no contexto da Segunda
1
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Guerra Mundial – Towshend em 1945 e Waters em 1943 – que pode ser compreendida
enquanto um trauma geracional pós-conflito, bem como observar o diálogo que essas
obras primeiramente musicais em sua origem estabelecem com a linguagem
cinematográfica, atentando também para o como esse produto cultural é recebido e que
repercussão causa no público com relação a essa dimensão psicológica decorrente do
advento bélico na vida de não-combatentes. Essa não é uma análise profunda e nem
definitiva. Este artigo consiste em algumas reflexões iniciais do que muito
provavelmente se tornará um projeto de doutorado no futuro, mas cabe aqui já pontuar
algumas questões basilares e trabalha-las a fim de amadurecer os questionamentos rumo
a uma pesquisa mais sólida e consistente.
Questões metodológicas
Bom, primeiramente é necessário pontuar alguns parâmetros essenciais para a
análise de qualquer fonte audiovisual. Diferente da linguagem escrita em sua essência,
esse tipo de documento deve ser tratado segundo seus próprios preceitos e natureza.
Muitos teóricos, como Robert Rosenstone e Hayden White, defendem que a linguagem
fílmica detém meios igualmente eficientes que a escrita para representar o discurso
histórico. Isso se deve, primeiramente, à própria natureza da forma de expressão
narrativa, empregada em qualquer forma de transmissão de conhecimento histórico.
Essencialmente seletiva, a narrativa seleciona, recorta e reordena os fragmentos,
imputando-lhes sentido. Nenhum discurso escapa a essas operações e nem pode almejar
o alcance total de transmissão de qualquer objeto. White é quem analisa de forma mais
crítica essa questão, atentando para outros estudos também, como os de Northrop Frye,
que aponta para estruturas de enredo pré-genéricas, ou seja, “formas de contar algo”,
empregadas com o objetivo de imputar certa inteligibilidade ao texto frente ao público,
R. G. Collingwood, que constata a importância e a presença inevitável de certa dose de
imaginação em qualquer construção narrativa, imaginação essa presente no ato de “ligar
os pontos”, nada diferente do paradigma indiciário de Carlo Ginzburg por exemplo. O
historiador não tem acesso à totalidade do passado, e nem teria como o ter, uma vez que
a realidade é demasiadamente plural para que se possa almejar absorve-la por completo.
Além disso, White ainda destaca também as teorias de Roman Jakobson sobre a posição
de mensagem no texto. Segundo esse autor, mediante uma hierarquização de fatores
dentro da estrutura narrativa, o indivíduo que se expressa determina o sentido daquilo
que comunica.
Partindo desses pressupostos alguns autores como Robert Rosenstone e Natalie
Zemon Davis defendem fortemente essa chamada “linguem fílmica da história”
enquanto uma atualização do ofício historiográfico, tendo ambos inclusive atuado já
junto à indústria cinematográfica produzindo filmes históricos de qualidade – Reds
(1981) e O Retorno de Martin Guerre (1982). Para esses autores, na mesma medida em
que a linguagem escrita possui maior capacidade de trabalhar com questões abstratas e
mais profundas, a audiovisual é mais bem sucedida em trabalhar não só com os
referenciais visuais, mas também com os ligados às emoções, fora o grande alcance do
cinema em termos de público também. William Guynn, seguindo nessa linha de
pensamento também, posiciona-se forma muito interessante:
Cinema gives us a convincing analogue of concrete space, mimics to
perfection the flow of time within the single shot, and reproduces the
movement of real phenomena in space. Given the concreteness of its
expression, it is not surprising then that film has difficulty expressing
abstract notions. Literary texts, on the other hand, have immense
powers of abstraction since language is the source of all intellection,
but fall short of producing a persuasive imitation of real phenomena
as they occur in space and time.2 (GUYNN, 2006, p. 72-73).
Além disso, segundo o francês Marc Ferro, o discurso cinematográfico nos
oferece uma “contra-análise” da sociedade de onde fala, uma representação alternativa
da realidade que escapa aos determinantes dos grupos dominantes e dá voz àqueles que
comumente não a teriam. Aqui temos a justificativa não do cinema enquanto veículo de
transmissão do conhecimento histórico, mas sim do cinema enquanto fonte legitima
para a produção desse conhecimento, agindo enquanto elemento complementar. Nesse
momento passa a ser importante tomar nota a respeito de algumas características
intrínsecas dessa linguagem.
2
“O cinema nos proporciona uma analogia convincente do espaço concreto, um simulacro que visa
aperfeiçoar o fluxo de tempo com uma única tomada, e reproduzir o movimento de fenômenos reais no
espaço. Dada a concretude de sua expressão, não surpreende que o filme tenha dificuldade em expressar
noções abstratas. Textos literários, por outro lado, detém imenso poder de abstração uma vez que a
linguagem [escrita] é a fonte de todo produto intelectualizado, mas encontra limitações em produzir uma
imitação persuasiva de fenômenos reais da forma como ocorreram no tempo e espaço.”
David Bordwell, por exemplo, alerta sobre as características do chamado “drama
hollywoodiano clássico”, e da existência de três elementos fundamentais que interferem
nas tramas tidas como mainstream: primeiramente a noção de observador invisível
gerada pelo jogo de câmeras, que almejaria produzir certa dimensão de realismo à obra,
garantindo a consistência da narração clássica mediante a ocultação de seus dispositivos
codificados. Temos ainda a perspectiva dos gêneros cinematográficos que, como nos
aponta o autor, definem em grande medida o como a trama se articulará, submetida a
convenções pré-determinadas que devem ser perseguidas a fim de obter o sucesso de
público, previamente instrumentalizado para assimilar determinados tipos de “formas de
contar”3 uma história. Finalmente, temos o que Bordwell denomina de star-system, que
atuaria na criação de protótipos de personagem básico, submetendo assim a obra às
dinâmicas de mercado relacionadas a Hollywood e a todo esse sistema que envolve
celebridades e propaganda. Nesse sentido podemos pensar também na análise que
George F. Custen propõe em seu artigo “Making History” (1992), onde aponta para o
que chama de retórica da fama: “In movies, the actor portraying the eminent figure had
an actual, corporeal existence outside the narrative frame of a particular biographical
life that may or may not have been congruente with the figure depicted4” (LANDY,
2001, p. 68). Para o autor, dessa forma, nossa concepção a respeito de personalidades
históricas representadas em filmes está submetida a um filtro duplo ligado à celebridade
que o interpreta: num primeiro grau relacionado à performance do ator e num segundo a
toda a dimensão propagandística e publicitária externa ao filme envolvida.
Temos ainda a questão da autenticidade, problematizada por Natalie Zemon
Davis. Para a autora um filme tende a obter sucesso frente ao público na medida em que
o conteúdo exposto é tido como autêntico, ou seja, entre em consonância com aquele
instrumental prévio que o público que detém a respeito de determinado recorte
temporal, algo na verdade muito próximo ao que Bordwell analisa também com relação
ao drama hollywoodiano clássico e suas convenções estéticas e narrativas. A grande
3
Em um sub-tópico de seu texto intitulado “A lógica da espectatorialidade clássica” (BORDWELL,
1986, p. 295), Bordwell aponta para “motivações” da linha causal da trama, como a “realística”, a
“composicional”, a “transtextual”, a “genérica” e a “artística”, que estariam diretamente relacionadas a
séries particulares de schematas, hipóteses e inferências particulares do espectador, que estaria segundo o
autor muito bem preparado com noções “canônicas” e gerais que o levariam a compreender e a esperar
por determinado desenrolar da trama segundo categorias prévias apreendidas, escravas não somente dos
dispositivos inerentes ao drama hollywoodiano como também das convenções estilísticas de gênero, tais
como romance, western ou comédia.
4
“Em filme, um ator retratando uma figura eminente tem uma existência atual e corpórea externa à
narrativa de uma vida biográfica particular que pode ou não ter sido congruente com a figura descrita”.
questão é que os parâmetros dessa chamada autenticidade de baseiam em estereótipos
muitas vezes, e comumente tendem a deixar em segundo plano a análise crítica e a
representação mais profunda do objeto. O ideal assim consistiria em se valer dessas
chamadas
representações
“autênticas”
trabalhando-as
de
forma
pertinente
e
fundamentada, tal com um historiador faria com seu trabalho escrito. Aliar as dimensões
artísticas e mercadológicas do cinema aos preceitos científicos e (na medida do
possível) objetivos da história acadêmica.
Pontuadas essas questões, partamos para a análise das fontes.
Os filmes: contextualizando
Quando acaba uma guerra? Segundo Pedro Tota, a Segunda Guerra Mundial
acabou no dia 2 de maio de 1945, às 23 horas, quando o chefe do Estado-Maior da força
alemã, general Jodl, após a notícia do suicídio de Adolf Hitler, se rende perante as
tropas soviéticas. Entretanto, podemos dizer que a guerra não acaba aí; ela vai
permanecer por muitos anos ainda na memória daqueles que a viveram. Um conflito
armado, e em especial um dessa magnitude, deixa marcas permanentes nas psiques de
quem a presenciou, tanto no campo de batalha quanto fora dele. Segundo Eric
Hobsbawm em sua obra Era dos Extremos: “As maiores crueldades de nosso século
foram as crueldades impessoais decidias a distância, de sistema e rotina, sobretudo
quanto podiam ser justificadas como lamentáveis necessidades operacionais”
(HOBSBAWN, 1995, p. 97), e que afetavam as vidas de civis a quilômetros do front.
Entre esses indivíduos estavam alguns jovens que se tornariam futuramente grandes
personalidades da música e que, de uma forma ou de outra, manifestariam ecos de sua
experiência em suas obras. Dentre eles, podemos destacar John Lennon, Keith Richards,
Eric Clapton, Pete Towshend e Roger Waters. Esses dois últimos, inclusive,
empregaram seus esforços criativos de forma brilhante para exprimir esse sentimento
vivenciado por toda uma geração em dois trabalhos emblemáticos para a história do
rock, os álbuns Tommy, lançado em 1969 pela banda The Who, da qual Towshend faz
parte até hoje, e The Wall, de 1979, gravado pela então banda de Waters, Pink Floyd,
ambos tendo sido logo adaptados para a linguagem cinematográfica, em 1975 e 1982,
respectivamente.
No que se refere aos filmes, podemos pensa-los enquanto “óperas rock”. Para
Christopher John McGowan em sua tese de doutoramento defendida em 2011, podemos
pensar o gênero da seguinte forma:
Above all, the Rock Opera genre combined the broad spectrum of the
pop-rock music of the day with the novel techniques and forms of what
was considered to be ‘experimental’ or ‘fringe’ theatre5
(McGOWAN, 2011, p. 8)
Rock Operas can be read as ‘accessible version[s] of avant-garde
experiments or accessible works which pass for avant-garde
experiments’ due to their combination of ‘two normally exclusive
characteristics, immediate accessibility and the outward signs of
cultural legitimacy.’6 (McGOWAN, 2011, p. 9)
O autor trabalha essa forma específica de expressão audiovisual enquanto um
sintoma característico dos chamados “anos sessenta”, que para o autor podem ser
pensando enquanto o recorte que abarca desde o ano de 1955 até 1975. Marcado por
esse diálogo entre uma forma erudita de arte e as novas diretrizes performáticas do rock
e da cultura pop, esses filmes dizem muito sobre o contexto em questão, trazendo toda a
confusão de um mundo abalado pela guerra, pelas incertezas e expondo a visão de
mundo que emerge e que se faz dominante entre a juventude que tende a se entregar ao
hedonismo e a buscar o questionamento dos costumes e do status quo. Partindo das
análises de Mark Donelly, McGowan nos traz que:
Donnelly has contrasted the harsh economic climate endured by
Britons prior to and during the Second World War with the ‘outlook
… and expectations’ of the post-1945 generation, who would ‘show
themselves to be less like their parents than any previous generation
in modern times’ and ‘more likely to have unrestrained appetites’. He
has identified the emergence of ‘a “now” mentality’ which ‘developed
as the young calculated that postponing pleasure as their parents had
done was a pointless trade, not least as there was a declining faith in
the promise of an afterlife’.7 (McGOWAN, 2011, p. 15)
5
“Sobretudo, o gênero ópera rock combina o amplo espectro da música pop/rock atual com as técnicas e
formas novelísticas do que era considerado teatro ‘experimental’ ou ‘marginal’”.
6
“Óperas rock podem ser lidas como ‘versões acessíveis de experimentos de vanguarda ou trabalhos
acessíveis que passam por experimentos de vanguarda’ devido à sua combinação de duas características
normalmente excludentes, acessibilidade imediata e os símbolos externos de legitimidade cultural”.
7
“Donnelly contrastou o áspero estado econômico enfrentado pelos britânicos antes e durante a Segunda
Guerra Mundial com a ‘perspectiva... e expectativa’ da geração pós-1945, que iria comportar-se menos
como seus pais do que qualquer outra geração anterior nos tempos modernos e mais como detentores de
um apetite irrestrito. Ele identificou a emergência de uma mentalidade do ‘agora’ que ‘se desenvolveu ao
E completa citando o posicionamento de Pete Towshend frente à sua geração, que afirma que:
The suffering of people in the war’ such as Tommy’s mother was real.
Real bombs had dropped on them … But my generation, which was
born post-VE day, all we got was the party. You know, it was like ‘it’s
all over’, and the first four years of my life were just glorious [with]
everybody singing and dancing.8 (McGOWAN, 2011, p. 230)
Entender o como essas obras cinematográficas se comunicam com o seu presente
de produção é fundamental para entendermos em parte esse “contra-discurso”, como
propõe Ferro, que a sociedade gera a respeito de sua experiência histórica. Por meio da
expressão artística aqui podemos investigar de que forma viveram e quais foram alguns
dos dramas e tribulações enfrentados por esses indivíduos que se viram forçados a lidar
com a herança da Segunda Guerra Mundial por meio de seus porta-vozes. Analisemos
agora os dois filmes de forma mais específica.
Tommy (1975)
O filme Tommy, como já mencionado, é uma adaptação do álbum homônimo
lançado em 1969 pela banda The Who. A sua produção levara longo tempo para ser
empreendida pois Pete Towshend almejava superar o sucesso de Tommy com o projeto
Lifehouse – que acabou por não avançar. O compositor ainda tentaria mais uma vez
superar sua obra-prima com Quadrophenia9, falhando novamente em seus esforços.
Tommy, o álbum, pode ser pensado, segundo McGowan, como o álbum
definitivo da banda, ao lado apenas de Who’s Next? (1971), seu sucessor. Apesar de
uma primeira reação negativa, após uma semana o LP já alcançara a nona posição no
Top 30 da New Musical Express. Com duas semanas já ocupava o segundo lugar na
Record Mirror, e nos EUA, apenas na primeira quinzena, o álbum já havia vendido
passo que os jovens calculavam que postergar o prazer como seus pais haviam feito era uma troca sem
sentido, ao mesmo tempo em que havia um declínio da fé numa pós-vida’”.
8
“O sofrimento das pessoas na guerra tal como a mãe de Tommy foi real. Bombas de verdade caíram
nelas... Mas minha geração, que nasceu após o dia da vitória, tudo o que nós tínhamos eram as festas.
Sabe, era como ‘está tudo acabado’, e os primeiros quatro anos da minha vida foram simplesmente
gloriosos com todos cantando e dançando”.
9
O álbum de estúdio fora lançado em 1973 e uma adaptação cinematográfica não tão fiel quanto a de
Tommy em 1979.
mais de 200 mil cópias, rendendo assim à banda seu primeiro disco de ouro por alcançar
a marca de um milhão de dólares arrecadados em venda, mantendo-se na lista da
Billboard por um total de 126 semanas.
A adaptação cinematográfica veio apenas em 1975, após uma tentativa de
adaptação para um musical orquestrado e interpretado por um grupo de estrelas – entre
eles Ringo Starr, Richie Havens e Rod Stewart – em 1972. A tarefa ficou a cargo do
diretor Ken Russell, que fez algumas adaptações do “roteiro” original presente no
álbum. Dentre essas atualizações da trama, destaco o deslocamento temporal do período
pós-Primeira Guerra Mundial para o pós-Segunda Guerra, tornando o filme muito mais
apelativo para o público contemporâneo por falar com a geração que representa. O filme
fora um grande sucesso, arrecadando 2 milhões de dólares em um mês, se mantendo por
14 semanas como o filme mais popular da Grã-Bretanha e sendo indicado a 3 Oscars,
incluindo a categoria de melhor atriz para Ann-Margaret. Sua média segundo o site
IMDb é de 6,4 (atribuída pelos usuários) e de acordo com o portal metacritic de 76
(atribuída pela equipe do site).
Em Tommy temos a história de um garoto que nasce no dia da vitória das Forças
Aliadas na Segunda Guerra Mundial. Entretanto, seu pai, um combatente, encontra-se
desaparecido, e é tido como morto em combate. Sua mãe passa a se envolver com outro
homem e a levar uma vida tranquila, até que o oficial Walker, até então desaparecido,
retorna e encontra sua mulher na cama com seu novo amante. Esse o assassina frente
aos olhos da criança que nesse momento é traumatizada ao ouvir as expressões “você
não viu nada, não ouviu nada, não contará nada a ninguém”. O jovem Tommy a partir
desse momento entra num estado catatônico manifestando surdez, cegueira e mudez
simultaneamente, vivendo aparte do mundo exterior. A trama se desenrola assim, com a
mãe buscando ajuda para seu filho – que é torturado e abusado durante todo o filme por
personagens como seu tio pervertido, Ernie, e seu primo sádico, Kevin – até que enfim,
após jogá-lo contra um espelho que se rompe, liberta assim o herói da trama de seu
casulo de alienação. Tendo se destacado como celebridade ainda catatônico por suas
habilidades jogando pinball, Tommy agora se converte num misto entre celebridade e
líder espiritual, agregando seguidores ao seu redor. Entretanto, ao submetê-los a um
regime de vida extremamente rígido, a massa se revolta, destrói seu templo, assassina
sua mãe e seu padrasto, e leva nosso herói a um exílio épico ao som da trilha sonora
emocionante do filme.
Muito pode ser absorvido da análise da obra. Primeiramente temos o retrato de
uma geração que se vê tornada órfã de forma violenta e repentina – algo que veremos
também em The Wall. Essas crianças crescem sem uma referência familiar palpável e
acabam por buscar solidez em outras fontes. Temos também o próprio trauma nacional e
a necessidade de se manter o status quo e “tocar a vida” fazendo de conta que nada
aconteceu, esquecendo todas as atrocidades vivenciadas e praticadas a pouquíssimo
tempo atrás. Seguindo a metáfora do filme, fingir que nada fora visto, dito ou escutado.
Nesse sentido há uma referência importantíssima no filme: os acampamentos de verão.
Aparecendo no começo da trama enquanto o lugar que a mãe de Tommy o leva nas
férias, momento em que conhece e se apaixona por seu futuro marido, e no final
enquanto o próprio templo dessa espécie de messias, esses acampamentos são, segundo
Towshend, “almost like … a parody of English life’ during the 1950s as post-war
austerity gradually gave way to the ‘affluent society’”10 (McGOWAN, 2011, p. 230).
Para o compositor ainda “it was only in the ‘moment’ that Tommy’s temple is also
revealed to be a holiday camp that ‘all of the elements of it come together”11
(McGOWAN, 2011, p. 206), ou seja, esses acampamentos funcionam como o
referencial metafórico do ambiente inglês em que essa geração fora criada, onde
brincadeiras tornavam a vida mais palatável e facilitavam a superação do trauma
causado pela guerra. Isso nos leva, naturalmente, à questão do triunfo do hedonismo
proposto por McGowan, como já citado aqui anteriormente, e é exatamente isso que é
questionado ao final: Tommy passa toda a sua juventude isolado do mundo e
aprendendo mais sobre si mesmo. De fato, é apenas quando trespassa o espelho, seu
reflexo, que consegue livrar-se de seu estado. No momento em que impõe um estado
semelhante de isolamento a um grupo de pessoas acostumadas à satisfação sensorial
nosso protagonista é rechaçado, pois está a tirar precisamente aquilo que a sociedade
inglesa usa para superar sua condição: o prazer.
De fato, inspirado pelos ensinamentos do líder religioso oriental, Meher Baba, o
grande objetivo de Towshend é transmitir uma mensagem sobre autoconhecimento
frente a essa realidade de alienação vivenciada em seu contexto. Cito McGowan:
10
“Quase como... uma paródia da vida nos anos 1950 enquanto a austeridade do pós-guerra gradualmente
cedia espaço para a ‘sociedade afluente’”.
11
“é só no momento que o templo de Tommy se revela um acampamento de verão também que todos os
elementos se juntam”.
during ‘Amazing Journey’ Tommy is, in fact, looking at his reflection
in the mirror. What he is describing is his ‘illusory self’ – ‘the
teacher; life, the way, the path’. It is ‘Tommy’s real self’ which,
according to the composer, ‘represents the aim – God’. Townshend
further explained that ‘the play between self and illusory self’ was
‘one of the central themes of Tommy’.12 (McGOWAN, 2011, p. 196)
Acredito dessa forma que possamos pensar o filme Tommy não só como uma
representação da experiência dessa geração inglesa que vivenciou o pós-guerra, mas
também como uma crítica à mesma e à sociedade que a acolhe. Passemos agora ao
segundo filme.
The Wall (1982)
O filme em questão, como já foi mencionado, é uma adaptação cinematográfica
do álbum The Wall da banda Pink Floyd – adaptação esta que já estava planejada antes
da concepção do álbum. Suas letras originalmente abordam as mesmas questões que o
enredo – o trauma geracional e a experiência de se reconhecer órfão, além de outros
temas que não serão aqui abordados, como a relação entre artistas e a indústria
fonográfica, o abuso de narcóticos, distúrbios familiares, conjugais, e aquilo que tornou
o filme mais famoso: uma crítica ao sistema educacional e à disciplina empregada. O
filme foi dirigido por Alan Parker, tendo Roger Waters assumido a autoria do roteiro e
Gerald Scarfe participado com animações intensas que se intercalam às cenas atuadas.
Estreou oficialmente nos EUA em 13 de agosto de 1982 – após ter sido exibido no
festival de Cannes de 1982, sem ter competido –, tendo sua première em Londres, no
cinema Empire, no dia 14 de julho do mesmo ano. A obra arrecadou 22 milhões de
dólares durante o período em que esteve em exibição, até janeiro de 1983, pagando
assim, com folga, o orçamento inicial de US$12 milhões. Fora premiada pela British
Academy Awards nas categorias “trilha sonora” e “melhor canção original”, por
“Another Brick On The Wall part.2”, contando também com grande receptividade do
público geral. Sua média pelo site IMDb é de 7,8, e as críticas, em sua maioria, são bem
positivas. Roger Waters, entretanto, não manifesta o mesmo ânimo pelo filme,
12
“em ‘Amazing Journey’ Tommy está, de fato, olhando para seu reflexo no espelho. O que ele descreve
é seu ‘eu ilusório’ – ‘o professor; vida, o modo, o caminho’. É o ‘eu real de Tommy’ que, de acordo com
o compositor, ‘representa o objetivo – Deus’. Towshend ainda explica que ‘o jogo entre o eu e o eu
ilusório’ é ‘um dos temas centrais de Tommy”.
declarando não ter sentido “nenhuma afinidade com o personagem principal” (REISCH,
2010, p. 46), entre outras demonstrações de desgosto que podem ser encontradas em
suas entrevistas. O que se constata, por fim, é que, a despeito da opinião de Waters
sobre o resultado final, a produção da obra parece ter sido bem fiel aos objetivos do
próprio músico relativos à adaptação cinematográfica do álbum.
Basicamente o filme pode ser entendido como uma crítica ligeiramente
surrealista por parte de Waters à sua geração. O enredo conta a história de Pink, um
garoto que é criado por sua mãe viúva super protetora – que o tornaria “inapto” a viver
por conta própria e a enfrentar os dramas da existência humana sozinho –, que
experimenta um forte estranhamento frente ao sistema educacional que não estimula
suas aptidões artísticas visando apenas normatiza-los para o mercado de trabalho do
contexto inglês pós-Segunda Guerra – “mais um tijolo na parede” – e que na sua vida
adulta torna-se um astro do rock que enfrenta dramas existenciais ligados à sua pessoa
interior, à sua relação com as mulheres, com sua arte e com narcóticos, utilizados para
aliviar o sofrimento. Pink é assim um belo retrato dessa geração hedonista que ao
mesmo tempo em que confronta os padrões dominantes e o status quo também se
debate em agonia, visando encontrar seu lugar nessa sociedade. Por fim o protagonista
torna-se uma espécie de líder fascista e é julgado num nível delirante por ser
“demasiadamente humano” e é condenado a derrubar seu “muro”, sua barreira alienante
– tal como o estado catatônico de Tommy – e enfrentar o mundo exterior tal como
qualquer um.
Dentre as várias temáticas mencionadas acima e abordadas pelo filme, uma nos é
mais interessante: a personagem principal, Pink, apresenta traços autobiográficos do
autor, e um dos mais relevante aqui é o de ter perdido o pai ainda quando criança, morto
em combate durante a Segundo Guerra Mundial. Esse episódio desencadeia uma série
de traumas psicológicos que definem a trajetória tanto da personagem quanto do autor.
A guerra determina uma desorganização total da sociedade (GALBÁN; ARTOLA;
HERNÁNDEZ; HIDALGO, 2007, p. 19), sendo a forma mais extrema de alienação
entre as pessoas (REISCH, 2010, p. 222), e que consiste em “ficar isolado ou afastado
de algo ou de alguém com os quais deveríamos manter conexão” (REISCH, 2010, p.
81), ausência essa determinada pelo “não ser” trabalhado por Jere O’Neill Surber.
Weinstein e Surber observam o como a separação do pai irá determinar o isolamento e a
loucura que se desenvolvem em Pink. George A. Reisch destaca dentro dessa discussão
os trabalhos de Michel Foucault, que passou a observar a loucura não mais enquanto um
advento isolado da medicina e da psiquiatria, afirmando que a loucura é social, tendo
uma vida histórica rica e variável. Reisch, inclusive, ao atentar para o conteúdo do
álbum em específico, afirma que:
O disco mostra sua própria visão de que a loucura é hoje inseparável
do histórico social, econômico e moral do mundo moderno. Afinal,
Pink é colocado sob julgamento não por causa de nenhum
acontecimento ou ofensa específicos. Ele está sendo julgado apenas
por ser ele mesmo, por ser humano. (REISCH, 2010, p. 294)
Deena Weinstein ainda aponta para a popularidade da linha de pensamento
existencialista de Albert Camus e de Jean-Paul Sartre entre a geração de jovens nascidos
durante a guerra da qual Waters faz parte. Nessa linha temos a ideia da morte enquanto
“ausência permanente” (REISCH, 2010, p. 224), e a guerra enquanto fator alienante
mais óbvio e elementar, uma vez que simplesmente mata as pessoas, sendo logo a
motivação última para o processo de alienação abordado. Marília Amaro da Silveira
Modesto Santos nos traz reflexões úteis para o debate. Citando Sigmund Freud, em
relação às reações de alienação que o corpo manifesta frente a um episódio traumático,
observa-se que “o ego separa-se da representação insuportável, mas está ligado a um
fragmento da realidade; realizando esta ação, o ego separou-se também totalmente e/ou
parcialmente da realidade” (SANTOS, 2005, p. 286). Completando a análise, ao citar o
trabalho de Abraham e Törok, de 1995, a autora apresenta, através da metáfora da
“pedra bruta em uma cripta”, a ação inconsciente do sujeito que, para não ter de
confrontar o evento traumático, desloca-o para outro “lugar”, para que possa continuar
vivendo. A guerra, dessa forma, estende sua influência para muito além do campo de
batalha13. Eric Hobsbawm afirma que a chamada “guerra total” atinge uma gama muito
maior de indivíduos do que a representada pelos números de contingente militar. A
denominada “Era da Guerra Total” é também a “era do massacre” (HOBSBAWN, 1995,
p. 32), e graças a novos adventos tecnológicos que permitem a invisibilidade das
vítimas, isenta-se o assassino da responsabilidade por seus atos desumanos. Pedro Tota
ainda afirma que “a guerra total significava que qualquer indivíduo do outro lado devia
ser considerado um combatente, e não uma simples pessoa” (MAGNOLI, 2008, p. 356).
Podemos ir além dessas análises e afirmar que, no que se refere às dimensões
13
Podemos, naturalmente, pensar essas reflexões com relação à personagem Tommy.
psicológicas, a guerra se estende para todo e qualquer ser humano que esteja
minimamente conectado ao evento – no caso de uma Guerra Mundial, praticamente toda
uma geração.
Roger Waters, dessa forma, parte de sua experiência pessoal, primeiramente sob
a configuração de álbum de rock e num segundo momento adaptado à linguagem
cinematográfica, e dá voz a toda uma geração que teve o advento da guerra como
primeira experiência de vida, interferindo em suas experiências tanto pessoais – no
sentido das privações enfrentadas num pós-guerra – quanto familiares.
Balanço final (ou melhor, reflexões parciais)
Os filmes Tommy de 1975 e The Wall de 1982 nos ajudam a compreender que as
dimensões da guerra vão muito além daquelas traçadas por uma História simplesmente
política, e que a visão comum, que destaca ao final de seu capítulo a criação da ONU e
o começo da Guerra Fria com a mudança de eixo de poder mundial como principais
heranças da Segunda Guerra Mundial, se faz parcial e demasiadamente simplista. Toda
uma geração fora influenciada por esse evento e toda a produção cultural posterior
igualmente. Como nos traz Marc Ferro, o cinema, representativo por excelência,
estabelece uma relação muito real com a sociedade do seu contexto presente de
produção dando-lhe voz, oferecendo assim para o pesquisador uma espécie de “contradiscurso” da sociedade contemporânea. Robert Rosenstone e Hayden White destacam a
necessidade de se reconhecer que os filmes podem nos proporcionar um novo tipo de
História, uma História como visão, que iria além do documento escrito e que nos
possibilitaria novos horizontes de interpretação. Tommy e The Wall, nesse sentido,
mesmo não sendo exatamente filmes históricos por não se proporem uma reconstituição
ou menos ainda um documentário, são “óperas-rock” que abordam a questão das
neuroses de guerra e do trauma, em especial o trauma geracional inglês pós-Segunda
Guerra, que esse tipo de evento causa às pessoas. Sua validade para o estudo de História
é, dessa forma, o de representação legítima de uma mentalidade vivenciada por uma
geração, expressa através de artistas que efetivamente viveram os dramas ali retratados
– de forma mais ou menos intensa. Os filmes resumem-se assim a relatos angustiantes
de uma geração traumatizada por detrás de um muro imaginário de alienação.
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