CATS 2012 – Congresso de Arquitetura, Turismo e Sustentabilidade
PATRIMÔNIOS MATERIAL E IMATERIAL COMO VIABILIZADORES DE
SUSTENTABILIDADE DO TURISMO CULTURAL EM PELOTAS
Fernanda Costa Silva
Mestranda em Planejamento Urbano e Regional
(PROPUR/UFRGS) Bacharel em Turismo (UFPEL)
Aline Martins Silva
Mestre em Planejamento Urbano e Regional
(PROPUR/UFRGS) Bacharel em Turismo (UFPEL)
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Resumo
Se por um lado o contexto da globalização tem como cerne as tecnologias de ponta,
verifica-se também uma grande valorização dos projetos que remetam aos atributos
formadores da cultura e do resgate da memória de uma sociedade. Na conjuntura
brasileira, são cada vez mais expressivas as ações que visam o resguardo dos elementos
culturais de uma cidade. Como segmento que se utiliza dessas ações, no Turismo Cultural
percebe-se o incremento de estratégias dos destinos turísticos para a promoção dos
patrimônios culturais de municípios e regiões. Como evidência dessa tendência de
mercado turístico, o presente artigo elucidará as articulações possíveis entre processos,
produtos e recursos humanos para o incremento do Turismo Cultural no município de
Pelotas, localizado no Rio Grande do Sul, Brasil. Serão analisadas ações desenvolvidas
entre os anos de 2005 e 2008, as quais buscaram tanto a divulgação turística da cidade
em questão, como também a preservação de seus patrimônios materiais e imateriais.
Como resultados, percebe-se que as ações adotadas corroboraram para o
reconhecimento das manifestações culturais locais, bem como para o incremento do
trabalho em rede, visando o desenvolvimento sustentável do turismo naquela cidade.
Palavras-chave: Turismo Cultural; sustentabilidade; patrimônio material; patrimônio
imaterial.
Abstract
The context of globalization has the high technologies as heartwood, but there is also a
strong valuation of projects referring to the attributes of culture and the society memory.
In Brazilian conjuncture there are expressive actions aimed to safeguarding the cultural
elements of a city. The Cultural Tourism is one important segment that uses these actions
to increase tourist destinations as a way to promote the cultural heritage of cities and
regions. As evidence of this trend in touristic market this article will illustrate possible links
between processes, products and resources to the Cultural Tourism growth in Pelotas, Rio
Grande do Sul, Brazil. Actions between 2005 and 2008 will be analyzed. Those strategies
were taken as a way to promote this brazilian city, such as a way to collaborate with the
preservation of tangible and intangible heritages. As results, the article shows that the
actions taken have corroborated to the recognition of local cultural manifestations, as
well as has increased the network in a sustainable way of tourism development in that
city.
Key words: Cultural Tourism; sustainability; material heritage; intangible heritage.
119
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1. Introdução
A ideia de “memória urbana” é relativamente nova na sociedade brasileira. Após
um longo período no qual se cultuava apenas o novo, o moderno, hoje se vê uma grande
valorização de tudo que remete à memória das cidades através de projetos que pregam a
preservação e a revalorização dos vestígios do passado (ABREU, 2011). Nesse momento
de medo do esquecimento e de intensa globalização, se vê um verdadeiro boom de
museus e memoriais, projetos “monumenta”, de modo que tudo que seja passível de
esquecimento deve ser lembrado e eternizado. Nas palavras de Hussen (2000, p.24), “o
passado está vendendo mais do que o futuro”.
Como referencial de que a valorização do passado seja recente no Brasil, verificase que, legalmente, a preocupação em proteger o patrimônio teve um de seus principais
marcos na primeira metade do século 20, com a criação, em 1937, do atual Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e da legislação de proteção e
salvaguarda patrimonial. Existem exemplos espalhados em várias regiões do Brasil que
confirmam o empenho em defender o que se considera como bens da humanidade
imprescindíveis a cultura (FREIRE, 2005).
Na década de 1970, iniciou-se um movimento com vistas a repensar os conceitos
de referências culturais e patrimônio. Percebeu-se que considerar patrimônio nacional
somente os bens palpáveis era não abranger a totalidade e diversidade da nação. Em
2003, houve o reconhecimento das manifestações como bens nacionais e a definição do
conceito de patrimônio imaterial, estabelecida pela United Nations Educational, Scientific
and Cultural Organization (Unesco) – Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, em
português – como:
[...] as práticas, representações, expressões, conhecimentos e
técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares
que lhe são associados – que as comunidades, os grupos e, em
alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de
seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se
transmite de geração em geração, é constantemente recriado
pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua
interação com a natureza e de sua história, gerando um
sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para
promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade
humana (FREIRE, 2005, p. 16).
120
Na atualidade, sabe-se que tanto patrimônio edificado como o simbólico de um
município pode corroborar para o desenvolvimento do segmento turístico denominado
Cultural. Como definição, entende-se por Turismo Cultural toda a atividade turística cuja
principal atração e, portanto, motivação de viagem, não resida na natureza, mas nas
questões características às manifestações humanas, seu conjunto cultural ou parte dele.
O segmento é caracterizado, por exemplo, pela procura de estudos, eventos,
conhecimento de sítios arqueológicos ou históricos, participação em ambientes ou
festividades folclóricas, dentre outros (BARRETTO, 2000, p. 19). Alguns autores, como
Gastal (2002,p. 125), sinalizam ser a cultura um dos principais insumos do fazer turístico,
uma vez que ela incorpora a noção de aglutinadora da vida em sociedade e é através da
ação e dos bens culturais que a materializam que visitantes e visitados constroem suas
trocas.
Importante notar que no Turismo Cultural há a integração da cultura enquanto
processo e enquanto produto. Enquanto processo, pelo qual um povo se identifica
consigo próprio e com sua forma de vida – autenticidade. Enquanto produto, pela
operacionalização de um conjunto de recursos, infraestrutura e serviços, oferecidos de
forma organizada, regular, em um tempo e local determinados (LIMA, 2003, p. 62).
Se até o século passado o Turismo Cultural era constituído basicamente em torno
de grandes ícones culturais (GASTAL, 2002, p. 127), e nesse contexto o que interessava
em uma cidade era se ela poderia ser consumida pelos turistas, na atualidade percebe-se
a valorização da cultura enquanto processo de socialização, fruto da dinamicidade do
simbólico, voltando-se assim para um pensamento mais sustentável. São crescentes os
planejamentos turísticos que promovem a visitação turística a bens culturais enquanto
símbolos referenciais de um momento para uma comunidade, mas que também
valorizam o conhecimento desses símbolos enquanto vivos para a sociedade na qual
estão inseridos.
Os processos de planejamento turístico que vislumbram o desenvolvimento do
Turismo Cultural passam, indiscutivelmente, pela qualidade dos recursos humanos
envolvidos. Eles podem ser categorizados da seguinte maneira: político, técnico e
operacional (LIMA, 2003). Em relação à esfera política, Lima (2003) aponta ser ela
decisiva, pela capacidade que tem de elevar bens públicos a recursos turísticos,
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articulando setores público e privado para tanto. A intervenção técnica-científica é vista,
pelo autor, como alicerce da mão de obra empregada na gestão das estratégias
planejadas pela primeira esfera. E, por último, tem-se nos componentes técnico e
operacional a forma de concepção e organização dos produtos turísticos advindos do
Turismo Cultural.
Nesse sentido, o presente artigo elucidará as articulações possíveis entre
processos, produtos e recursos humanos para o incremento do Turismo Cultural de um
município, como segmento a valorizar tanto as referências históricas, como as tradições
vivas de uma comunidade. Objetiva-se mostrar que a organização dos atores envolvidos
na rede turística de uma cidade é capaz de incrementar este setor, utilizando-se tanto do
patrimônio material como do imaterial, evidenciando-se aí a importância da preservação
desses patrimônios para um município, como forma de sustentabilidade da atividade
turística tanto em nível individual como coletivo. Para tanto, serão analisadas ações
compreendidas no período entre 2005 e 2008 na cidade brasileira de Pelotas, localizada
na Região Sul do Rio Grande do Sul.
2 Pelotas1
Terceiro município mais populoso do Rio Grande do Sul2, distante 255Km da
capital Porto Alegre (Fig. 1), Pelotas tem sua primeira referência histórica no ano de 1758,
quando Gomes Freire de Andrade fez doação de terras às margens da Lagoa dos Patos
para Coronel Thomáz Luiz Osório. Nessas terras ganharam abrigo os habitantes da Vila
Rio Grande, refugiados da invasão espanhola em 1763. Mais tarde, em 1777, juntaram-se
a eles os retirantes da Colônia de Sacramento.
122
Porto Alegre
Pelotas
BR
Figura 1 - Localização geográfica atual de Pelotas.
Fonte: acervo pessoal, 2012.
Em 1780, abandonando o Ceará em decorrência da seca, José Pinto Martins
fundou a primeira Charqueada, às margens do Arroio Pelotas, dando início à tradição
saladeril3 e impulsionando o crescimento demográfico e comercial da região. Com a
prosperidade, o território conhecido hoje como Pelotas, ganhou status de Freguesia de
São Francisco de Paula, em 07 de julho de 1812 e, em 1832, a Freguesia foi elevada à Vila.
Três anos mais tarde, na vigência do Presidente Antônio Rodrigues Fernandes Braga, a
Vila obteve status de cidade, ganhando a denominação atual, advinda da referência das
embarcações de varas de corticeira forradas com couro, usadas para travessia dos rios na
época em que as charqueadas mantinham atividade.
Foi também nas décadas do século 19, marcadas pelo constante progresso
econômico e social da cidade, que a diversidade de imigrantes influenciou e proporcionou
o desenvolvimento da gastronomia doceira pelotense, merecendo destaque a influência
da cultura portuguesa ao longo desse processo. A principal matéria prima para confecção
dos doces, o açúcar, vinha do Nordeste do Brasil, onde era trocado pelo charque. A
tradição do consumo do doce também se deve à indústria saladeril, uma vez que os
abastados charqueadores buscavam demonstrar sua abonança em festas para a alta
sociedade, nas quais os doces eram servidos, como forma de evidenciar o requinte da
família anfitriã através da gastronomia.
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Considerada por muitas décadas o centro econômico e sociocultural do Rio
Grande do Sul, período em que ganhou a alcunha de “Princesa do Sul”, Pelotas deve sua
prosperidade à indústria do charque, a qual possibilitou investimentos da classe abastada
especialmente na região central cidade, percebidos até hoje pelos legados em sua
arquitetura Eclética – uma das mais importantes da América Latina –, pela cultura
advinda da diversidade de imigrantes que se estabeleceram na cidade e arredores, bem
como devido às contribuições na culinária, a qual caracteriza a cidade como Capital
Nacional do Doce.
Atualmente, o município desenvolve-se com base na cultura do pêssego, aspargo
e arroz. O cultivo de leite é destaque na pecuária e o comércio é pólo na Região Sul, com
empresas de portes variados. Essa conjunção de legados históricos, com influências
diversas expressas até hoje na cultura dos pelotenses, bem como a diversidade
econômica, refletem no fluxo turístico da cidade.
A partir da criação de uma secretaria específica para o turismo, da organização do
setor com profissionais capacitados, em conjunto com os estudos das universidades, a
cidade de Pelotas teve expressivos resultados de incremento turístico, em especial no que
tange ao Turismo Cultural. Seu posicionamento no cenário turístico ocorre de forma
segmentada: Pelotas Comercial, Pelotas Costa Doce, Pelotas Rural e Pelotas Cultural.
Neste último eixo, um expressivo fenômeno atrator de turistas será analisado neste
trabalho, qual seja a gastronomia da cidade, mais especificamente sua tradição doceira.
3. Articulação em rede como forma de estratégia sustentável para promoção do
Turismo Cultural em Pelotas
Na década de 90 do século passado, Pelotas tinha na Sociedade para o
Desenvolvimento do Turismo Sustentável em Pelotas (FITUR) uma forma de
representação, através de ações de desenvolvimento e promoção do turismo no
município e arredores. A partir dos anos 2000, com o estabelecimento do Curso de
Bacharelado em Turismo da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e do Curso
Sequencial de Turismo da Universidade Católica de Pelotas (UCPEL), a formação da mão
de obra voltada ao setor turístico passou por transformações, atraindo também
124
profissionais de áreas afins ao turismo e novos investimentos para o município. Como
resultado, o trade turístico pelotense passou a se organizar, com o surgimento de
entidades representativas, grupos temáticos e associações, bem como através da
qualificação do setor de serviços, em agências, transportadoras, empreendimentos
receptivos, dentre outros.
A organização do setor turístico de Pelotas obteve grande avanço com a criação do
Pelotas Convention & Visitors Bureau, em 2005. No mesmo ano, o município passou a
contar com uma secretaria direcionada especificamente para as demandas do turismo, a
Secretaria de Turismo, Esporte e Lazer – STE4. Assim, o segmento passou a ganhar mais
importância em relação aos investimentos e trabalhos desenvolvidos, tanto em nível
local, como no que se refere às ações de representatividade em nível nacional e
internacional.
Entendendo ser o Turismo Cultural um dos mais importantes da cidade, a STE
passou a traçar, periodicamente, conjunto de ações advindas de planejamentos
trimestrais e bimestrais. Atenta às questões de identidade, tão importantes como forma
de representatividade da cultura local, a STE buscou, em 2006, o fortalecimento do
Turismo Cultural da cidade, congregando ações que divulgassem o município tanto por
seu patrimônio material, como por seu patrimônio imaterial. Encontrou, assim, na cultura
doceira, o segmento mais adequado de promoção da cidade em um dos mais importantes
eventos de turismo no cenário nacional, o 3° Encontro Anual do Fórum Mundial de
Turismo para Paz e Desenvolvimento Sustentável - Destinations 2006, ocorrido, naquele
ano, em Porto Alegre,capital Rio Grande do Sul.
Contando com a presença de 86 países e projetando a participação de cerca de
cinco mil pessoas ao longo dos quatro dias em que seria desenvolvido, o evento foi
vislumbrado como importante para divulgação de um município que buscava sua
afirmação enquanto destino turístico. Sem previsão orçamentária para contratações de
serviços terceirizados ou para aquisição de produtos, a STE articulou estratégia com os
atores turísticos para representação da cidade de forma incisiva no Fórum (Fig. 2).
125
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Figura 2 - Notícia do site da Prefeitura Municipal de Pelotas sobre participação do município no
Destinations 2006. Fonte: Prefeitura Municipal de Pelotas – SECOM
Em parceria com o Instituto de Hospitalidade, a Secretaria prospectou reuniões
marcadas para o evento, as quais teriam confirmação de autoridades da área turística
mundial. Com o agendamento assegurado, buscou parcerias junto aos comerciantes
126
locais, como forma de levar os doces de Pelotas ao conhecimento de um público diverso e
consumidor em potencial.
Naquele período, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
(SEBRAE) em nível nacional e estadual, em conjunto com a Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa), Prefeitura Municipal, Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) e
Associação dos Produtores de Doces de Pelotas, realizavam projeto para aquisição do selo
de Indicação Geográfica dos doces da cidade5. O selo buscava a indicação de procedência
e exclusividade de 15 doces, entre finos e de frutas, cujas receitas remontassem ao século
19.
Contando com 16 doçarias na época, a Associação dos Produtores de Doces de
Pelotas comprometeu-se com a ação articulada pela STE e forneceu os doces em
quantidade suficiente para atender reuniões temáticas e degustações de parte do público
do evento. Em contrapartida, a STE realizou divulgação impressa da Associação, bem
como levou ao conhecimento do público atendido o processo em andamento para
aquisição da Indicação Geográfica, além de ter agregado folhetaria turística informativa
do município (Fig. 3 e Fig. 4). Destaca-se ainda que o serviço de degustação também levou
ao público informações sobre o Inventário Nacional de Referências Culturais – produção
de doces tracionais pelotenses, com uma representante deste, funcionária do Laboratório
de Ensino e Pesquisa em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Pelotas
(LEEPARQ).
Figura 3 - Mesa para autoridades.
Fonte: Prefeitura Municipal de Pelotas
Figura 4 - Atendimento aos visitantes.
Fonte: Prefeitura Municipal de Pelotas
127
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Como resultado, a ação rendeu divulgação nacional e internacional, não apenas de
um grupo de empreendedores e de seus produtos, mas do patrimônio cultural de um
município. Foram atendidos ministros, presidentes, autoridades do setor turístico de nível
internacional e nacional, bem como amostra do público visitante do Fórum, o qual
ultrapassou a marca das dez mil pessoas.
Esse tipo de estratégia adotada evidencia o alinhamento das ações municipais de
Pelotas com o que regia, já naquela época, a política nacional de turismo, qual seja a
cooperação em rede para o desenvolvimento do turismo. Considerando, para tanto, que
rede seja “um modo de organização, constituído de elementos autônomos que, de forma
horizontal, cooperam entre si” (BRASIL, 2008, p. 117). Na prática, tal como apontam os
princípios do Ministério do Turismo, as ações em rede buscam “fazer com que seus
integrantes, as pessoas – físicas ou jurídicas –, consigam colaborar entre si, (...) dividir
riscos e responsabilidades, conquistar novos mercados”, dentre outros aspectos (Ibidem).
Portanto, o que se evidencia pelo estudo de caso é que houve a organização de uma rede
voltada ao desenvolvimento da cultura associativa e participativa, já existente na
comunidade, mas levada ao conhecimento externo desta.
4. Patrimônio imaterial de Pelotas e o turismo
Devido ao reconhecimento do valor das manifestações culturais, constituídas
também como patrimônio cultural nacional, em 2000, o IPHAN criou através do Decreto
3.551 uma metodologia chamada Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC),
que tem como objetivo identificar, documentar e registrar esses bens. Na lógica do
Inventário, essas manifestações devem ser devidamente identificadas e documentadas, e
subsequentemente registradas em um dos quatro livros6 que foram criados
especialmente para isso. Caso o bem não se enquadre em nenhuma das categorias, um
novo livro é aberto (FREIRE, 2005).
Em 2005, o IPHAN lançou um edital para que os municípios que entendessem ser
detentores de algum bem imaterial e desejassem tombá-lo, se inscrevessem para
concorrer a uma verba federal que subsidiaria, durante período determinado, uma
investigação dessa manifestação, aplicando o INRC. Atenta ao edital, a Secretaria
128
Municipal de Cultura da Prefeitura Municipal de Pelotas (SECULT) inscreveu os doces de
Pelotas pensando em preservar a arte doceira. Com a aprovação da pesquisa na cidade,
formou-se uma equipe encabeçada pela Câmara de Dirigentes e Lojistas de Pelotas (CDL)
como proponente, técnicos da SECULT como supervisores e pesquisadores do Laboratório
de Ensino e Pesquisa em Antropologia e Arqueologia (LEEPARQ) da Universidade Federal
de Pelotas (UFPel) como executores, estes com a missão de aplicar a metodologia do
IPHAN.
O Inventário Nacional de Referências Culturais – produção de doces tracionais
pelotenses teve como objetivo identificar e documentar as formas de fazer e os saberes
que compõem a tradição doceira da cidade de Pelotas. Seguindo a metodologia
desenvolvida pelo IPHAN, a pesquisa contemplou três etapas, para realizar o registro
etnográfico, quais sejam: Preliminar, Identificação e Documentação. Na etapa Preliminar
(2006) formou-se a equipe de trabalho, delimitou-se os bens a serem inventariados como
doces de Pelotas – doces finos e coloniais, com base em pesquisas anteriores, realizou-se
ainda, um levantamento bibliográfico, para catalogar obras que fizessem referência direta
e indireta aos doces. Na etapa de identificação (2006-2007) mapeou-se os envolvidos na
tradição doceira da cidade, criando assim uma rede de informantes7. Na última etapa
(2008), através de provas documentais, delimitou-se quais doces contemplavam a
tradição doceira da cidade e que, por isso, deveriam ter seus modos de fazer tombados
pelo IPHAN.
Os ingressos no universo da pesquisa contemplaram duas dimensões: a
doméstica, vinculada à tradição familiar, passada de geração em geração, e a comercial,
dos usos econômicos dessa tradição. Com a análise dessas duas dimensões foi possível
verificar a existência de dois momentos da tradição doceira em Pelotas: o primeiro deles
se remete à origem, quando os doces finos estavam associados à cultura familiar da elite
local dos finais do séc. 19 e início do séc. 20, com a feitura dos doces ligada às festas e aos
grandes eventos da sociedade aristocrática pelotense; e, num segundo momento, foi
evidenciada a relevância da cultura doceira para economia da cidade. Dados que
corroboraram para esta conclusão foram adquiridos também junto ao Serviço Brasileiro
de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) e à Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL),
segundo os quais Pelotas tem 140 doceiros (empresas e pessoas físicas), entre fabricantes
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e comerciantes de doces coloniais ou de frutas, cristalizados, pasta e calda e doces de
confeitaria, também identificados como doces finos.
As abordagens de ingresso em campo, realizadas pelas equipes de pesquisa,
possibilitaram mapear diferentes redes sociais que compõem o sistema de produção e
consumo do doce tradicional na cidade, considerando especialmente as dimensões de
classe social e etnia. Entre as etnias destacam-se, na pesquisa, a contribuição de lusobrasileiros, afrodescendentes, alemães, italianos, pomeranos e franceses para a
constituição da tradição doceira em Pelotas (RIETH, et. al., 2008).
Através da compreensão da configuração histórica e geográfica das duas grandes
tradições doceiras pelotenses – doméstica e comercial –, a pesquisa indica que hoje a
manutenção desta tradição doceira está mais fortemente ligada à produção industrial.
Pelo estudo, comprovou-se que o modo de fazer artesanal transformou-se, para atender
a demanda do mercado, mas as fábricas são familiares, mantendo a antiga tradição.
Pela metodologia de pesquisa aplicada, a tradição doceira de Pelotas confirmou-se
e o doce apresentou-se como um fato social total – o qual permite a compreensão do
conjunto da sociedade e cultura locais a partir de sua trajetória – por possuir um valor
cultural inestimável, do ponto de vista dos saberes e fazeres, fenômeno que diferencia
Pelotas de outras cidades. Por isso, o saber fazer da cultura doceira assumiu papel de
elemento central na composição da Memória Social e Identidade Cultural, motivo pelo
qual se pode asseverar que essa tradição caracteriza-se como Patrimônio Cultural, dado
seu valor e sua originalidade. Cabe apontar que, apesar da mudança de paladar e das
receitas, reflexo do caráter inventivo dos atores, a arte de fazer doces permanece até
hoje como prática social no cotidiano da cidade.
Atualmente, o Inventário Nacional de Referências Culturais – produção de doces
tradicionais pelotenses está finalizado, no que se refere aos levantamentos e pesquisas, e
encontra-se em análise pelos técnicos no IPHAN. Todavia, mesmo que ainda não se tenha
o reconhecimento oficial do modo de fazer e o conseqüente registro no Livro dos Sabes,
evidencia-se o reconhecimento da cidade como Capital Nacional do Doce. Este é de
extrema importância para a consolidação de Pelotas no circuito turístico nacional e
internacional (como já vem ocorrendo há quase 20 anos, com a realização da Feira
Nacional do Doce – Fenadoce), e, sobretudo, para barrar possíveis intervenções que
possam deturpar esta tradição em nome de maiores ganhos financeiros. Além disso, os
130
resultados servem, ainda, para evidenciar aos doceiros envolvidos nesta tradição e à
população pelotense o grande passado que possuem, dada a tradição doceira, a qual faz
de Pelotas uma cidade ímpar no contexto mundial.
Ressalta-se que, nesse sentido, o INRC contribui para o reconhecimento das
manifestações culturais locais, ao se apropriar delas para contribuir com o
desenvolvimento da atividade turística, sem, contudo, ultrapassar os limites do possível,
respeitando a população envolvida e maior interessada. Pelotas ainda caminha para
aprimorar os processos de estudos e estruturação turística em relação ao seu patrimônio
cultural, mas, certamente a tradição doceira, que antes corria risco de se perder com o
passar do tempo e com a apropriação capitalista, hoje tem mais garantias de estar
salvaguardada, especialmente devido ao trabalho de resguardo das memórias da tradição
doceira, trabalhadas para não serem esquecidas.
5. Considerações Finais
A tradição doceira da cidade de Pelotas é apenas um exemplo de tantas
manifestações culturais brasileiras que tem seu caráter singular empreendido pelo
turismo. Não se pode negar a importância do setor como fonte de renda, mas sabe-se
também que é necessário, para que ele incremente o capital de um município, que se
estabeleça uma rede de cooperação com um corpo técnico capacitado, bem como
mediante a participação dos atores da sociedade, os quais serão afetados pelos
resultados do segmento. Nesse sentido, buscou-se evidenciar, neste artigo, algumas
medidas de como a preservação de uma tradição pode ser apropriada turisticamente,
mediante alternativas sustentáveis de desenvolvimento.
Em primeira instância, fica clara a necessidade do envolvimento de diferentes
atores no processo de desenvolvimento turístico municipal. As práticas analisadas como
estudo de caso da cidade de Pelotas, entre os anos de 2005 e 2008, fazem alusão direta
ao processo de governança, massivamente incentivado na atualidade pelo Governo
Federal. Elas evidenciam que a rede de trabalho no setor turístico é elemento
fundamental para estratégias que visem a sustentabilidade do setor. Isso porque, quanto
mais atores engajados em um projeto, melhor e mais amplos serão os resultados, desde
131
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que, evidentemente, esses atores detenham os conhecimentos específicos técnicos e
científicos para tanto. Nos estudos de caso, foram contempladas redes que envolveram
as instâncias política, técnica e operacional, o que corroborou aos resultados positivos
das estratégias adotadas.
Cabe destacar, igualmente, a importância de se envolverem nos processos de
desenvolvimento turístico municipal a comunidade anfitriã. Somente através dela é
possível haver um processo de legitimação dos trabalhos turísticos e, consequentemente,
um desenvolvimento turístico mais responsável e condizente com a realidade do
município ou da região em que o setor estiver sendo fomentado. Por Turismo Cultural,
pressupõe-se, portanto, não somente a promoção de bens culturais a um público
externo, como também, e especialmente, a participação ativa do núcleo receptor,
detentor dos bens materiais e dos fazeres culturais promovidos, de modo que ele
reconheça na sua cultura o respectivo valor.
Em suma, alinhadas à legislação e às diretrizes federais, bem como a uma revisão
da literatura que aponta a importância do resguardo de bens patrimoniais de uma
sociedade, as ações expostas neste artigo evidenciam a possibilidade de se aplicarem
estratégias de desenvolvimento turístico que visem a sustentabilidade. Não obstante, os
estudos de caso balizam para a possibilidade de instâncias máximas de governo, de
ensino e de pesquisa, serem capazes de se aproximarem da base econômica de um
município para um fim comum, qual seja a promoção turística municipal.
1
Os dados expressos nesta seção do artigo foram consultados na obra Barro e Sangue:
mão-de-obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas - 1777-1888, de Ester J. B. Gutierrez.
2
Pelotas tem mais de 328 mil habitantes, de acordo com informações do site da
Prefeitura Municipal (http://www.pelotas.com.br).
3
4
“Saladeril” é o termo utilizado para a indústria do charque.
Até o ano de 2004 as demandas turísticas de Pelotas eram atendidas pelo Departamento
de Turismo, alocado na Secretaria de Desenvolvimento Econômico – SDE. A partir de
2011, SDE e STE foram agrupadas, formando a Secretaria de Desenvolvimento Econômico
e Turismo – SDET.
132
5
Em 2011 o selo de Indicação Geográfica aos Doces de Pelotas foi adquirido junto ao
INPI.
6
Os 4 livros de registro de bens imateriais são: das Celebrações, das Formas de
Expressão, dos Lugares e dos Saberes.
7
Assumiu-se neste caso a abordagem em rede como sendo: “conjunto de relações
interpessoais concretas que vinculam indivíduos a outros indivíduos” (BARNES, 1987),
pois as indicações e conexões da rede expressam a posição de referência do sujeito no setor.
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PATRIMÔNIOS MATERIAL E IMATERIAL COMO VIABILIZADORES