ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Memória e Devires em Linguagens de Dança – Setembro/2014
DANÇA MESTRE:
ESTUDO DA CORPORALIZAÇÃO DA DANÇA DOS MESTRES DA JUREMA
Renata Rocha Ferraz (UFBA)*
Orientador(a): Daniela Amoroso (UFBA)**
RESUMO: Esse trabalho aborda elementos da dança dos mestres da religiosidade
Jurema a partir da pesquisa de campo realizada na cidade de Recife-PE, em setembro de
2014. Entre suas características principais destaca-se a interferência do sobrenatural
manifestado no corpo (corporificação), especialmente por mestres juremeiros e caboclos.
Entende-se esse processo enquanto estado alterado de corpo e busca-se evidenciar a
percepção da estética da dança dos mestres da Jurema a partir dos seus “textos
corporais”. A metodologia utilizada se apoia na pesquisa de campo e revisão bibliográfica.
PALAVRAS-CHAVE: Dança. Jurema. Mestres. Corpo.
MASTER DANCE:
STUDY OF CORPORALIZATION DANCE FROM THE MASTERS OF JUREMA
ABSTRACT: This paper discusses elements of the master´s dance of a religious practice
named Jurema from the field research conducted in the city of Recife, in September 2014.
Among its main features there is the interference of the supernatural manifested in the
body (embodiment), especially juremeiros teachers and „caboclos‟. This process is
understood as an altered state of body and seeks to highlight the perception of aesthetic
dance of Jurema´s masters from their "body texts". The methodology is based on field
research and literature review.
KEYWORDS: Dance. Jurema. Masters. Body.
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Jurema
Jurema é uma árvore sagrada, que de sua casca é retirado o material que
virá a ser o vinho da Jurema, de sua raiz se fabrica o cachimbo o “catimbó”, de sua
flor é fabricado o fumo e o defumador, e com a sua semente se inicia e surge um
novo mestre e seguidor desta religiosidade (Lopes, 2005, p.251).
É um ritual pouco estudado, sendo de origem nordestina, tendo como seus
percussores os índios, esta religiosidade teria se reconstituído a partir da
Umbanda, do feitiço e do Catimbó1 possuindo influências variadas. (Silva, 2010,
p.4)
[..] é uma arvore que floresce no agreste e na caatinga nordestina; da casca de
seu tronco e de suas raízes se faz uma bebida mágico-sagrada que alimenta e da
força aos encantados do “outro mundo”. É também essa bebida que permite aos
homens entrar em contato com o mundo espiritual e os seres que lá residem.Tal
arvore, se constitui enquanto símbolo mágico-sagrado, o núcleo de várias práticas
mágico-religiosas de origem ameríndia.De fato, entre os diversos povos indígenas
que habitaram ou habitam o nordeste, se fazia e em alguns deles ainda se faz o
uso ritual desta bebida. (Brandão;Nascimento,1998, p.71)
Reginaldo Prandi na apresentação do livro O reino dos mestres a tradição
da Jurema, de Luiz Assunção (2010) define a Jurema como sendo:
[...] uma árvore sagrada considerada pelo grupo religioso a que pertence. Também
é denominado o nome de uma bebida preparada com a casca do tronco da
Jurema,beberagem encontrada entre antigos costumes indígenas. (Prandi apud
Assunção, 2010, p.11)
Pode-se perceber que, tanto na definição de Lopes (2005) como a de Prandi
(2010), a Jurema é vista como sendo uma árvore sagrada, dela se obtém o
fumo,a flor e a semente que tem grande importância na magia e na iniciação de
novos mestres. Já a definição de Brandão (1998) e Nascimento (1998) nos situa
em relação ao território em que a Jurema se instala, e a aproxima de outras
religiões afro brasileiras.
A consolidação de um mestre Juremeiro se concretiza a partir do ritual de
„ensementação‟, onde o filho da Jurema receberá sua semente numa cerimônia de
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O catimbó é um culto individual e não mais social para onde as pessoas vão para curar seus males físicos
e espirituais. (Assunção, 2010,p. 79)
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batismo (Lopes, 2005). O batismo segundo Lopes (2005) é o ritual mais importante
da Jurema exigindo certo cuidado na sua preparação. É levada até a mata uma
toalha branca, que será colocada ao redor do pé de Jurema, o filho após ter
passado por um jejum de sete dias será „ensementado‟, tornando-se um mestre.
(Lopes, 2005, p.17)
Olhar sobre a dança dos mestres da Jurema
O corpo dançante dos mestres da Jurema, me reporta à análise de todos os
elementos internos e externos necessários para a boa realização desta
religiosidade2.Prioritariamente, é uma dança que se concretiza, com os pés
conectados a terra com suas propriedades e simbologias, é recorrente escutarmos
a expressão „mãe terra e sua força fundante‟. Além do elemento terra, temos a
água que traz e leva, mata a sede e limpa as plantas com sua rica fauna, serve de
instrumento de limpeza, cura, estabelece conexão com o plano espiritual e o ar que
respiramos, que não é palpável e nos possibilita a condição de estarmos vivos.
Todos esses elementos são comuns nas religiões afro brasileiras e afro
indígenas pois sem eles a pratica ritualística dessas religiões, não se realizaria.E
em meio a tantos símbolos, a dança desses mestres ancestrais, se faz presente,
com movimentos fortes e expressivos,cada um com sua especificidade.
Em minhas observações em pesquisa de campo, destaco a última
experiência, vivida no evento kipupa Malunguinho idealizado por Alexandre L‟Omi
L‟Odò, tal termo Kipupa, significa agregação de pessoas, nesse caso específico,
agregação de pessoas em volta da figura de Malunguinho. Este evento ocorre nas
terras do antigo Quilombo de Catucá, zona da mata de Pernambuco onde hoje fica
a cidade de Abreu Lima, zona rural deste município. A união das pessoas se dá no
2
[...] optei por me referir à Jurema como uma religiosidade em predileção à palavra religião.Uma primeira
justificativa se dá ao considerar que alguns adeptos do culto utilizam tal termo, o que por si só já o torna
válido. Similarmente, ao refletir sobre as duas palavras e consultar um dicionário, vemos que um dos
significados possíveis do segundo vocábulo envolve um “sistema de doutrinas,crenças e práticas rituais
próprias de um grupo social”(Houaiss Vilar, 2009). Por sua vez, o termo religiosidade apresenta o
significado de qualidade do que é religioso;tendência para os sentimentos religiosos, para as coisas
sagradas”(ibid.). O que pretendo destacar aqui é que enquanto “religião” tem muitas vezes a ideia inerente
de formação de doutrina, o que por sua vez formaliza e encerra algumas práticas e crenças, “religiosidade”
aponta para uma atitude ou disposição mas ampla e menos fechada em relação ao mundo espiritual.
(Pires, 2010, p.1)
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pátio da casa de Juarez, um colaborador Quilombo Cultural Malunguinho (QCM),
onde se concentra as falas, avisos, homenagens e a preparação para a ida à mata
no momento da entrega das oferendas e reverências ao mestre Malunguinho.
Chegada a hora, as pessoas rumam para a mata e depois voltam para a finalização
da festa.
A figura do mestre Malunguinho que a principio não tive a certeza se era
mesmo, mas, depois associando com tudo o que eu já tinha lido em relação a
movimentação desse mestre, entendi que se tratava do próprio, se configura a
partir de uma marcha ritmada e com inclinações do tronco para frente, lembra um
soldado rumo ao seu destino. Na execução incansável desses movimentos, me
senti hipnotizada dentre outros mestres que estavam ali ao meu redor, cada um
com sua movimentação especifica e dentre eles, mestre Malunguinho me chamou
muita atenção.
Inaicyra Falcão dos Santos (2002) desenvolve essa discussão do corpo
ancestral e como nós artistas podemos trabalhar com esse novo objeto que
perpassa também o religioso sem cairmos no „copia e cola‟. Em uma de suas
reflexões salienta: “O corpo é um portal que, simultaneamente, inscreve e
interpreta, significa e é significado, sendo projetado como continente e conteúdo,
local, ambiente e veículo da memória”. (Santos, 2002, p.2)
Não podendo desconsiderar a figura simbólica que esse mestre carrega
consigo, mestre Malunguinho foi um grande líder negro atuante como liderança
quilombola do Catucá na primeira metade do século XIX, sua militância se recria na
prática da Jurema, tornando-se um dos principais mestres desta religiosidade.
Acredito que meu olhar ao ver a dança expressiva desse mestre, atravessou os
limites do dançar e se apropriou mesmo que inconscientemente desse histórico de
luta e resistência.
A pesquisadora Jane C. Desmond (2013) traz o conceito de “textos”
corporais que justamente busca entender a dança a partir da trajetória dos sujeitos
envolvidos:
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Ao ampliar nossos estudos sobre os textos corporais para incluir a dança em
todas as suas formas-entre elas a dança social, performances cênicas e
movimentos rituais- podemos ampliar nossa compreensão de como as identidades
sociais são sinalizadas, formadas e negociadas através de movimentos corporais.
(Desmond, 2013, p.94)
Em conclusão provisória, entendo que os textos corporais dos mestres da
Jurema, especialmente os do Mestre Malunguinho, compõem uma corporalidade
reveladora de memórias e de contextos e esse processo acontece pela dança.
Referências:
ASSUNÇÃO, Luiz. O reino dos mestres: a tradição da jurema na Umbanda nordestina.
Rio de Janeiro. Pallas, 2010.
BRANDÃO, Maria. ;NASCIMENTO,Luis. O Catimbó-Jurema. Universidade Federal de
Pernambuco.n.13,1998.
Disponível
em:
<https://www.ufpe.br/clioarq/images/documentos/1998-N13/1998a3.pdf>.
Acesso em 10
set.2014.
DESMOND, Jane C. Corporalizando a diferença: questões entre Dança e Estudos
Culturais. Revista Dança,v.2,n.2 p.93-120,jul/dez.2013.
LOPES, Nei. Kitábu: O livro do saber e do espírito negro-africano. Rio de Janeiro:Editora
Senac Rio,2005.
PIRES, Pedro. Sobre mestres encantados: a jurema como expressão sentimental.
2010.106f. Dissertação (Mestrado em Antropologia)-Programa de Pós –Graduação em
Antropologia Social, Brasília, 2010.
SANTOS, Inaicyra. Corpo e Ancestralidade: Uma proposta pluricultural de dança e arte
educação. Salvador. Edufba, 2002.
SILVA, Marinaldo. Festa do Quilombo: cocos na jurema para o mestre malunguinho.
Cadernos
Imbondeiro,
João
Pessoa,
v.1,n.1.2010.
Disponivel
em:
<
http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ci/search/advanced>. Acesso em: 05 out. 2013.
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*Graduada em Serviço Social pela PUC-SP em (2009). Especialista em Ciências da
Religião do Instituto de Pós Graduação COGEAE-PUC-SP em (2014). Pesquisadora das
religiões afro-brasileiras, afro-indígenas e africanas. Pós-Graduanda (Especialização) pelo
PPGDANÇA, da UFBA. [email protected]
**Professora da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (2010), Doutora pelo
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia UFBA (2009), a pesquisadora realiza pesquisas sobre as danças populares brasileiras e
seus diálogos com a criação em Dança. [email protected]
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