Liliane Prata
Uma bebida e um amor
sem gelo, por favor
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Pego uma xícara de café com leite e me sento de frente para o computador. É mais um daqueles domingos em que o céu nublado parece olhar para
mim e dizer, sorrindo: “Que patético, você não tem ninguém para dividir
seu café com leite e assistir a um filme previsível na TV!”.
Olho para a bebida e me arrependo de não ter comprado o maldito
leite desnatado. Eu tento, mas não consigo beber aquela coisa rala e sem
gosto. Toda vez que entro em um supermercado é sempre a mesma coisa:
olho para a caixa do leite desnatado, ela olha para mim, eu finjo que não a
vi olhando e pego a do leite integral que, por sinal, é muito mais chamativa e colorida. Como publicitária, teoricamente deveria entender por que
eles fazem a embalagem dos produtos light bem mais sem sal e sem graça,
mas não entendo. Não tem vacas nessas embalagens, só contorno de vacas.
E ainda usam cores como azul-claro e verde-água, as mesmas cores da lasanha light e do requeijão sem gordura. Eu não tenho vontade de comer nada
que venha dentro de uma embalagem azul-clara com verde-água – todas as
embalagens dessas cores que tenho em casa são de absorvente ou de xampu
para cabelos sem volume.
Não que eu esteja gorda. Se divido meu peso pela minha altura ao quadrado o resultado sempre balança entre 21 e 22, o que é “normal”, segundo
a tabela que veio dentro de uma caixa de cereal junto com um boneco de
plástico. (Inteligente, isso. A tabela para a mamãe e o boneco para o pentelho,
embora eu não tenha filhos e tenha ficado brava porque os cinco centímetros
de altura do boneco ocuparam o espaço de cinco centímetros de cereal, fora
a largura, que não calculei. Não sou engenheira.) O problema são as velhas
sobrinhas, dobrinhas, camada adiposa, etc. Claro que tento mudar o quadro
deprimente com ginástica, mas tomo leite integral, cereal – com achocolatado e chocolate granulado, eu falei? – presunto, etc., e a gordura continua
lá. É ridículo. Eu comecei a malhar para emagrecer de forma saudável, mas
tudo o que estou conseguindo é passar a tarde pesquisando condições de
pagamento de uma lipoaspiração.
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Também não vou dizer que sou uma bruxa horrorosa. Mas minha autoestima não me deixa em paz desde que o X fez aquilo comigo. Acho que
estou melhor, apesar de ainda não conseguir falar o nome dele, mas vou dizer uma coisa: se não fosse o X, que fez a coisa Y com a Z (certo, isso está
virando uma equação matemática), eu não estaria com uma xícara de café
com leite – integral! – em frente ao computador (estaria com uma xícara de
café com leite – integral! – em frente à televisão, mas enfim).
Chega de incógnitas, chega de letras malucas, vamos aos fatos como eles
são: tristes, avassaladores e cruéis. X é Gustavo, que trabalha comigo na agência de publicidade Os Criativos (eu sei, é um nome previsível, que não denota criatividade nenhuma, mas o que mais se pode esperar de uma agência
cujo dono escolhe o nome porque teve um sonho em que o Sol e Saturno
se encontraram e sussurraram “Os Criativos deve ser o nome”?). Bem, eu
odeio o Gustavo. Odeio. Mas antes eu o adorava. Adorava. Na verdade, acho
que posso dizer que o amava, apesar de termos ficado só dois meses juntos
(como é deprimente saber que o relacionamento mais longo da minha vida durou dois meses). Eu o adorava mais que tudo, mais que o mundo, por
que ele foi fazer isso comigo, aquele filho da puta!!! Certo, eu já superei isso,
embora não pareça.Vamos aos fatos.
Eu estava desesperada. Todas as minhas amigas ou já tinham se casado,
ou estavam namorando o mesmo cara há milênios, muitas vezes morando
junto, e eu não tinha nada. Estava sozinha, desamparada, solitária, sem perspectivas. Enfim, eu estava exatamente do jeito que estou agora. Quer dizer,
eu ficava cada fim de semana com um cara diferente, e minha cama era um
verdadeiro parque de diversões – mas eu queria mais, eu queria um amor.
É muito isso, querer um amor? Ainda mais para alguém que daqui a poucos anos vai fazer 30 anos? Ok, faltam seis anos para eu fazer 30 anos, mas o
tempo passa voando. Já pensou? No meu currículo de balzaquiana não vou
ter um único relacionamento longo?
Acontece que todos os homens com quem eu ficava sumiam. Desapareciam mesmo. Eu só conseguia pensar em como eu seria feliz se conseguisse um cara bem legal para formar, comigo, um casal de propaganda de
margarina. Mas tudo o que eu encontrava eram homens legais, divertidos e
bonitos, mas que desapareciam sem mais nem menos depois de dois ou três
encontros. Isso me deixava louca: por que não aparecer aqui em casa para
dizer que acabou, ou pelo menos dar um telefonema, mandar um e-mail,
um sinal de fumaça, deixar recado com a vizinha? A expectativa acabava comigo: eu achava que o relacionamento estava ficando sério, comentava toda
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animada com as amigas que o que eu tinha já podia ser chamado de namoro, e pronto – lá se ia mais um para a minha lista de “desaparecidos, se tiver
notícia, avise-me”. Até que conheci o Gustavo.
Dois meses. Dois meses foi o que durou meu namoro com ele, um verdadeiro recorde na minha vida amorosa. Fiquei igual a qualquer pessoa que
não está acostumada a namorar por muito tempo: depois de duas semanas,
tinha certeza de que tinha encontrado o homem da minha vida; quando
completamos um mês, já pensava em me casar; com um mês e meio, sabia
que ficaríamos juntos para sempre e, com dois meses, que seria Mariana, se
fosse menina, e Vítor, se fosse menino. A história poderia até ter sido assim
mesmo se, no final de dois meses, eu não o tivesse encontrado agarrando a
estagiária da agência.
Gustavo tinha e infelizmente ainda tem um cargo acima do meu, para
piorar. Mas não é meu chefe (ainda bem!). Fazia poucos meses que ele tinha entrado na agência e, desde o começo, eu tinha ficado bem interessada
por ele. Para começar, ele é muito bonito. Daquele tipo que tem uma cara
de mau, supercharmoso. E ainda malhava. Nossa, eu tenho uma fissura por
homem que malha. Além de eles terem um corpo no mínimo razoável e
não apresentarem barriga de cerveja (argh!), eles entendem sua necessidade
diária de contar as calorias (apesar de eles poderem comer muito mais do
que você e não engordar nada, o que é bastante irritante).
Outra vantagem do Gustavo é que eu já o conhecia, então, quando saímos, não tivemos que desperdiçar nosso tempo com o que casais que estão
se conhecendo sempre conversam – “qual é o seu tipo de música preferido?”, “o que você faz da vida?”, etc. É engraçado, conhecer alguém parece
entrevista de emprego, só que os dois fazem perguntas e os dois respondem.
No final, se rolar, rolou. Como já nos conhecíamos há alguns meses, passamos a noite conversando sobre assuntos mais profundos e acabamos indo
para a... cama.
Não, eu não acho que ir para a cama com um homem no primeiro encontro seja a maneira mais eficaz de conquistá-lo, casar e ser feliz para sempre. Geralmente eu consigo me segurar até a terceira vez que saio com o
cara. Mas eu estava carente (para variar) e tinha a impressão de que conhecia
Gustavo há mais tempo do que uma noite (e conhecia, mesmo). Acabamos
indo para um motel e tivemos uma noite perfeita. Nem sei dizer quantos
orgasmos tive com aquele cachorro. Aliás, esse é um ponto comum entre os
homens-cachorro: eles são bons de cama. Incrível. Ele tinha pegada, ele sabia
as posições do Kama Sutra de cor e é melhor nem mencionar sua habilidade
para fazer outras coisas com a boca que não são beijar.
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No outro dia, eu cheguei ao trabalho com a síndrome do pós-primeiro-encontro-com-o-cara-do-trabalho-com-quem-você-ficou, caracterizada
pelas dúvidas: como ele vai me tratar no trabalho? Como se eu fosse uma
simples colega? Ou ele vai me dar flores e desfilar comigo de mãos dadas
pelo corredor da agência?
No fim das contas, ele foi super-receptivo e simpático, o que me deixou
absurdamente feliz. E com um bônus extra: tecnicamente, ele não poderia
sumir, já que trabalhava comigo e o que não faltaria seriam oportunidades
para tirar satisfação. Quer motivo maior para ficar feliz?
Bem, ele me traiu com a estagiária e eu não tirei satisfação. Não tive
coragem. Fiquei ali, parada, vendo os dois se agarrando e tendo certeza de
uma verdade absoluta: que outra característica comum a esse tipo de homem
é ficar com uma mulher mais bonita e geralmente mais nova que você. Por
que eles fazem isso? Já basta ficar triste e deprimida pela traição, mas não:
ainda querem que a gente fique comparando nossos peitos e constatando
que o cabelo dela brilha mais do que o nosso.
Como me senti enganada! Estava naquela fase de paixão absoluta de, quando nós dormíamos juntos, escovar os dentes discretamente quando acordava
e voltar para a cama, certa de que ele pensaria que eu tinha acordado com
aquele hálito de hortelã! Eu tinha o vestido de casamento na minha cabeça,
estava plenamente informada sobre as flores de cada estação, tudo!
Mas o pior foi, naquele estado, ter que dar de cara com ele todo dia no
trabalho. Nós não tínhamos contado para ninguém que estávamos juntos,
mas todo mundo sabia. Inclusive a Lu, colega na agência, que já tinha ficado
com ele e me garantiu que ele era homem de uma noite só (apesar de ela
ter passado duas noites com ele). Sugeriu que eu entrasse naquela só para
me divertir. Mas eu entrei querendo algo mais e tive que agüentar a humilhação de ele não sumir como os demais caras com quem eu fico – em vez
disso, me traiu.
Passei meses acabada. Não podia nem ver um casal se beijando na rua
que começava a chorar. Mas o pior é que estava chegando o dia dos namorados e eu tinha que fazer uma campanha enorme para a agência. Este é o
problema de ser uma publicitária com o coração quebrado em plena época
do dia dos namorados: além de VER outdoors, anúncios de revista e de jornal,
comerciais de TV, etc., etc., etc. com casais se beijando felizes e contentes, eu
tinha que INVENTAR outdoors, anúncios de revista e jornal, comerciais de
TV, etc., etc., etc. com casais se beijando felizes e contentes.
Quase fui despedida. Naquele estado miserável, eu não tinha nenhuma
idéia de propaganda com casais a não ser algumas que envolviam facas e coisas
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do tipo.Tentei argumentar com o diretor de criação, o Alexandre, falando que
alguém deprimida amorosamente não pode fazer propaganda para namorados, mas ele disse que não menstrua e mesmo assim, aceita fazer propaganda
de absorvente (o problema de ser publicitária é esse. Seu chefe sempre tem
tiradinhas inteligentemente irritantes que deixam você sem resposta).
Bom, mas um dia eu precisava sair daquela situação – se não fosse pela
minha auto-estima, que fosse pelo meu emprego, então, já que até cogitei
marcar entrevistas para mostrar meu portfólio, mas não soube de nenhuma
agência que não aceitasse fazer campanha de namorados. Então, decidi que
já era hora de me animar e ficar com outras pessoas. Enfim, hora de voltar
a ser o que eu era.
O problema era esse: igual ao que eu era. Eu não queria voltar à rotina
de ficar um dia com um, outro dia com outro. Eu tinha acabado de fazer
24 anos e precisava de um relacionamento mais profundo de qualquer jeito! Nem que fosse para ter alguém para sair com minhas amigas quando
elas me convidavam para uma noite de fondue. E eu queria, de preferência,
um homem não volátil, porque de relacionamentos que se evaporavam eu
estava cheia (e de relacionamentos com homens que me traíam com a estagiária também).
Então o que eu fiz? O que eu fiz? Nada, porque eu não fazia idéia de
como começar. Afinal, nunca tinha namorado a sério na vida e estava decidida a não ficar com mais ninguém que eu conhecesse no trabalho ou em
uma danceteria. Acabei ouvindo a Juliana, que mora comigo e vive dizendo
que eu precisava de alguém (como se eu não soubesse). Conheci a Ju na faculdade: ela cursava relações públicas e coincidiu de fazermos algumas matérias juntas. Mas é como se fosse minha amiga de infância. Assim como eu,
ela é de outra cidade e se mudou para cá para fazer faculdade. A Ju namora
há três anos o Bruno e eles são supermargarina juntos. Eles só não moram
juntos porque ela faz questão de se casar na igreja – apesar de o lado careta
dela se resumir a isso, já que ela perdeu a virgindade com 14 anos e antes de
conhecer o Bruno tinha transado com praticamente todos os caras da agenda
do celular dela. Enfim: ela agora vivia uma vida margarina e poderia ter algo
a me ensinar. Mesmo assim, toda vez que ela vinha com uma sugestão, eu
mudava de assunto – acho que não queria tocar no problema. É engraçado
isso. Quando a gente tem um problema, fica ainda mais irritada se as amigas
aparecem querendo arranjar soluções para os nossos problemas. Afinal, por
que não deixar o problema lá, quieto?
Ela me falou que a prima de uma amiga da concunhada dela tinha conhecido o namorado pela internet – e sim, eles estavam muito felizes. Nós
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estávamos em um café e eu respondi que tudo o que eu queria naquele momento era decidir se pedia um cappuccino com creme, mais calórico, ou um
sem creme, menos calórico, porém menos gostoso.
– Nossa, Marina. Nem para aceitar minha sugestão, pelo menos? O que
custa tentar? Só tentar, me fala? – ela perguntou.
– Grande sugestão a sua. Internet? Eu tenho o quê, 109 anos, por acaso?
– Pois saiba que tem muita gente legal na internet! Mas, se você não
quer, fica aí, sozinha! Depois fica reclamando comigo:“Não tenho ninguém,
vou morrer sozinha, ai, ai”.
De tanto ela insistir, acabei falando que tudo bem, eu procuraria alguém
na internet. Apesar de, desde o começo, ter achado essa idéia ridícula, humilhante e muito provavelmente ineficaz.
Bom, foi aí que eu vim parar aqui, na frente do computador, com minha
xícara de café com leite integral. E, sinceramente, não estou com a mínima
vontade de cumprir o combinado com a Ju, apesar de achar que vou cumprir porque ela me prometeu 30 reais se eu tentasse. Em que nível eu estou,
comprometer minha vida sentimental por três notas de 10 reais.
Suspiro, tomo um gole da bebida, olho para a tela e acabo ligando o
computador. Que droga, já uso computador a semana inteira, no trabalho, e
ainda tenho que usar para procurar alguém. Tudo bem, não vou achar ninguém, faturo meus 30 reais e pronto. Olho mais uma vez para a tela e desisto. Quer saber? Eu não preciso disso. E posso ter meus 30 reais mesmo
assim, porque acabo de me lembrar que a Ju está me devendo, da última vez
que foi ao salão.
Desligo a máquina e vou para a televisão. Está passando a primeira temporada da minha sitcom preferida, oba. Definitivamente, foi bom ter desistido
do computador.
Quando a Ju chega, vai logo me perguntando o que eu estou fazendo
na frente da TV em vez de estar teclando.
– Desisti, Ju. Mas você tem que me dar os 30 reais de qualquer jeito. Está
me devendo, lembra?
– Por que você desistiu, Mari? Meu Deus, você é tão cabeça-dura! – ela
berra.
– Posso ser cabeça-dura, mas não vou descer a esse nível. Eu sou bonita,
jovem, por que vou conhecer alguém pelo computador?
– Ninguém disse que você é feia. Nem velha. Mas é que você vive reclamando que está sozinha, e ainda não superou totalmente o caso do Gustavo...
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– Superei, sim.
– Tá, superou. Mas o caso é que, se deu certo com a prima da amiga da
minha concunhada, por que não pode dar certo com você?
– Porque eu não vou tentar – eu respondo. – Não se preocupe comigo,
eu acabo encontrando alguém. Só ainda não sei como. Mas eu encontro.
Ela suspira e desiste (finalmente! Já basta ter perdido metade do meu
seriado). Acaba me chamando para almoçar fora e eu digo que topo, assim
que o programa acabar.
Chegamos a um restaurante japonês. Está fechado; também, já são 4 horas
da tarde. Resolvemos ir a um chinês. Comida oriental é estranha: a japonesa
e a chinesa não têm nada a ver, mas sempre que não dá para comer uma, eu
como a outra. Acho que é desejo inconsciente de comer alguma coisa da
terra de pessoas de olhos puxados.
Mal entramos no restaurante, vejo o Gustavo. A Ju se senta, e eu também quero sentar, mas ele me pega para conversar. É impressionante como
ele me irrita.
– Oi, Marina. Como está bonita, hein?
Idiota. Não perde uma oportunidade de falar como estou bonita. Eu
gostaria de saber que curso os homens-cachorros fazem para serem homenscachorros. Sim, porque são todos estranhamente parecidos. Jogam charme
até quando estão desentupindo uma pia do banheiro (não que eu já tenha
namorado por tempo suficiente para ver um cara nessa situação), sempre falam que você é linda e adoram chamar você para sair de última hora. Mesmo
sabendo que todos são iguais, não paro de sair com caras assim. Sinceramente,
tem hora que questiono minha inteligência.
– E a campanha do celular, teve idéias? – ele pergunta.
– Por favor, Gustavo. Não vamos falar de trabalho em pleno domingo. –
Boa, Marina. Só para ele deixar de ser intrometido.
– Pois é, mas o Alexandre disse que quer novas idéias para amanhã urgentemente, na reunião.
Conselhos. Esse tipo de homem ainda nutre uma paixão doentia por
dar conselhos. Essa vaga é melhor do que aquela, é melhor você fazer desse
jeito, você não deveria ter feito aquilo.
– Eu sei o que o Alexandre disse, eu estava na sala, lembra?
– Marina, posso perguntar uma coisa?
– Talvez.
– Você ainda tem raiva de mim por causa daquilo?
– Não sei do que você está falando – eu respondo.
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– Sabe, sim.
– Se você está se referindo a eu ter raiva por ter pegado você e a Amanda
se agarrando na escada da agência enquanto eu tinha descido para comprar
uma Coca, eu não tenho mais raiva, não. Agora, se você está falando de não
ter me dado satisfação nenhuma depois, e de ter voltado a me tratar como
uma colega de trabalho, eu também não guardo nenhum rancor.
– Guarda, sim.
– E se eu guardar?
– Queria pedir desculpas. Eu não fiz por mal – ele diz, no velho estilo
cãozinho abandonado.
– Fez por bem, imagino.
– Não. Eu só... você sabe, não ia dar certo.
– Eu não sei de nada.
– Deixa para lá. Eu só queria que não ficasse mais esse clima entre a
gente, entende? Você nunca mais foi a mesma comigo. Eu tenho medo de
que isso acabe prejudicando nosso trabalho em equipe.
Medo de prejudicar nosso trabalho em equipe. Ele fica com a estagiária, me deixa morta de vergonha dos comentários que rolaram na agência,
e tudo o que ele tem a me dizer é que tem medo de prejudicar nosso trabalho em equipe. Sem contar que, de brinde, ainda me deixa preocupada com a campanha do celular. Concordo com a cabeça, tento forçar um
sorriso e me despeço.
– Vamos, come um pouco. Este yakisoba está divino – diz a Ju, pouco
depois de termos nos sentado à mesa.
– Ju, a única vantagem de ficar deprimida e inconsolável é que eu perco
a fome e desincho um pouco. Me deixa curtir essa vantagem.
– Você não precisa desinchar nada. Está ótima. Quem me dera ter esse
corpo e esse cabelo.
Provo um pouco do rolinho primavera. Está uma delícia.
– Esse Gustavo é um babaca – ela fala. – Esquece.
– O problema é esse. Babaca demais para esquecer.
– Meu Deus, Marina, já faz uns cinco meses.
– Amanhã. Amanhã faz cinco meses que a gente terminou.
– Isso não muda nada. Esquece.
– Fácil falar.Você namora há dois mil anos.
– Se você tivesse encontrado um carinha bem legal na internet, não estaria assim.
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– Ai, lá vem você. Põe na sua cabeça: eu não vou me prestar a esse papel ridículo.
Terminamos de comer e saímos. No caminho, tento pensar em algumas
propagandas para celular, mas nada me vem à cabeça.Acho que Gustavo faz de
propósito: leva minha fome, mas em compensação, minhas idéias também.
Chego em casa e tomo um banho. É, meu corpo não está nada mal. Mas
bem que eu preferiria ter um corpo igual ao da Ju – que não é feio, mas
bem standard – e ser tão feliz amorosamente como ela. De qualquer forma,
desisto de tentar achar alguém na internet. Estou começando a achar que
não vai dar certo desse jeito nem de nenhum outro – é melhor eu tentar
naturalmente. Um dia, se eu não morrer antes, conheço alguém. Assim, sem
forçar, sabe? Do mesmo jeito que a Ju e o Bruno se conheceram. E do mesmo jeito que eu conheci o Gustavo (e não deu certo).
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Acordo atrasada, como de costume, especialmente nas segundas-feiras.
Meu Deus, como odeio segunda-feira. Definitivamente, a semana deveria
começar na terça, mas aí as terças virariam segundas, e meu problema não
seria resolvido.
Depois de ativar três vezes a função soneca do meu celular e dormir 30
minutos a mais do que deveria, consigo me arrastar até a cozinha. Leite integral: não, hoje não. Goiaba: está verde. Mamão e torradas: uma boa idéia.
Sento-me à mesa e dou de cara com uma Juliana mais feliz do que... bem,
do que uma coisa bem feliz (de manhã, não sou muito boa em analogias).
– Você não imagina o que aconteceu, Mari!
– O quê, hein? – eu respondo, tentando demonstrar algum interesse.
Afinal, o que pode ter acontecido de tão fabuloso às 7 da manhã de uma
segunda-feira?
– Na verdade, ainda NÃO aconteceu. Mas está por acontecer. Como
eu sou feliz!
– Ótimo. É manhã de uma segunda-feira e você entra na cozinha pulando
por causa de uma coisa que ainda não aconteceu. Eu queria ser assim.
Mordo a torrada e só agora noto que ela é integral. Pelo menos isso,
acertei na torrada. Aliás, por que torrada integral é certo na dieta e leite integral é errado? Nunca entendi isso.
– O Bruno. O Bruno vai me pedir em casamento hoje.
– Sério? Como você sabe disso? – pergunto, sinceramente interessada.
– Ontem à noite, quando a gente se despediu, ele me olhou com uma
cara de “vou te fazer uma surpresa amanhã”.
– A última vez que ele fez essa cara, chegou no outro dia com chocolates, você sabe disso.
– Não, Marina, você não está entendendo. A gente tinha conversado há
um mês sobre casamento, lembra? Então. Um mês depois, ele me fala que
vai me fazer uma surpresa? O que isso significa?
– Eu ainda acho que pode ser chocolate.
Ela me olha emburrada e peço desculpas. Ela sabe que eu acordo mal-
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humorada nas segundas-feiras. E, depois que aconteceu aquilo com o Gustavo, acordar e lembrar que eu tenho que ver a cara dele não se tornou a
coisa mais divertida do mundo, seja na segunda, na terça, na quarta ou em
qualquer dia da semana.
– Desculpa, Ju. Eu realmente acho que pode ser casamento.
– Jura?
– Juro.
– E, se for mesmo, você sabe que você vai ser madrinha, não é? – ela
pergunta.
– Sei, Ju.
Excelente. Ser madrinha de casamento era mesmo meu grande objetivo de vida.
– Eu ligo para a agência mais tarde, para contar para você, tá? – ela fala.
– Tá bom. Liga para... a agência. A agência! Meu Deus, a reunião!
Saio correndo da mesa, visto a primeira roupa que encontro e deixo
para pentear o cabelo no carro. Chego no carro, vejo que o pente não está
no porta-luvas, subo, pego o pente, penteio o cabelo e desço correndo. O
Alexandre odeia atrasos, mas a sorte é que ele mesmo sempre se atrasa, logo,
ainda tenho alguma chance.
O trânsito está horrível, embora isso seja um pleonasmo na região onde
moro, e resolvo cortar caminho por um atalho que nunca tinha visto na vida, o que me faz chegar mais ou menos 25 minutos mais atrasada do que eu
já chegaria. Eu tenho que parar com essa mania de cortar caminho. Ainda
mais quando não conheço o caminho.
Chego na porta da agência correndo, mas consigo dar um sorriso de leve
– se eu tivesse um namorado, e ele estivesse comigo no carro, teria que ouvir meia hora de implicância porque errei a droga do caminho. É um bom
consolo para quem não tem um namorado, certo? Errado – fecho a cara,
sentindo-me mais idiota do que nunca e pego o elevador.
Vinte e dois andares. Por que a droga desse prédio tem que ter 22 andares? Não poderia diminuir quando chego atrasada? A sorte é que o prédio
tem vários elevadores e por isso ele vai direto, sem parar muito nos andares.
Logo vejo que estou enganada: naturalmente, no dia do meu atraso, o elevador pára no primeiro andar (eu tenho vontade de enforcar esse sedentário
que usa o elevador para subir um andar), no sétimo (uma criança perdida
entra e ri para mim. Eu também rio. Adoro crianças), no oitavo (por que
essa mulher não parou no sétimo e subiu um andar? Por isso está gorda),
no 12o (andar da creche, a criança sai. Acho que ela não estava perdida) e
finalmente pára no 22o.
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Saio do elevador andando rápido e quase bato a cabeça na porta de vidro.
É incrível, é a porta mais transparente que eu já vi – enquanto não colocarem uma maldita faixa vermelha, como eu já cansei de sugerir, vou continuar
quase batendo. Passo pela recepção.
– Bom dia, Marina – a recepcionista me fala, com a cara de “mau dia”
que ela sempre faz.
– Bom dia, Sônia. O Alexandre já chegou?
– Faz meia hora. Está na sala de reunião.
Meia hora. É sempre assim. Na última reunião, ele tinha chegado duas
horas atrasado – e ninguém pôde falar nada, claro. Chefe é que nem médico:
sempre tem o direito de atrasar. Agora, quando o subordinado atrasa... quer
saber? Isso não vai ficar assim. Não vou entrar naquela sala abalada desse
jeito. Se ele se atrasa sempre e eu não posso falar nada, ele também tem que
entender quando eu me atraso um pouco. E, se não ficar satisfeito, foda-se,
vou embora. Já estou cheia desse Gustavo, mesmo. Respiro fundo, tento me
lembrar de algum mantra para repetir mentalmente, mas não me lembro (eu
deveria ter lido o livro de mantras da Ju) e abro a porta da sala. Encontro
Alexandre e Gustavo jogando dardo, e o resto da criação olhando um site
de piadas na internet.
– Oi, Marina! – o Alexandre grita, empolgado.
– Oi, desculpa o atraso, e...
– Não se preocupe, querida, eu mesmo vivo me atrasando.
Sorrio sem graça e cumprimento o resto das pessoas. Fabiano, nosso diretor de arte e campeão no pinball, Sérgio, assistente de arte, e Luciana, redatora como eu. A Lu é ótima. Quando entrei na agência, ela já trabalhava
aqui e viramos amigas. Não exatamente amigas, mas companheiras de noite.
A Lu sempre sai comigo – ou saía, quando eu estava com ânimo para isso.
Começamos a engatar um papo, quando o Marcos do atendimento liga e
conversa com Alexandre. Eles desligam e o Alexandre pede para o pessoal
parar de jogar – finalmente vai começar a reunião.
– Olhem que legal, conseguimos uma nova conta – o Alexandre diz. É
daquele site Encontro Marcado, não sei se vocês conhecem.
– É um site de namoro virtual, não é? – O Gustavo pergunta. Ele adora
mostrar que sabe alguma coisa, adora.
– Esse mesmo – o Alexandre responde.
– Mas não era a Imagem que estava fazendo a campanha deles? – Eu
resolvo falar.
– Era não, continua sendo. Nós ficamos responsáveis só pelo varejo. Coisa
pequena, fácil de fazer.
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Olho para o Gustavo e tento adivinhar daqui a quantos minutos ele vai
falar da campanha do celular. Ele só sabe falar disso. Também, é uma campanha enorme. E eu também estou empolgada, até porque consegui pensar
em alguma coisa na noite anterior, afinal.
– E a campanha do celular? – o Gustavo diz bingo.
– Ela é a principal, é com o que precisamos nos preocupar agora – responde Alexandre. – Quero você se empenhando nessa conta, Gustavo.
Que ódio! Por que ele fala com Gustavo como se confiasse tanto nele?
Parece um pai falando para o filho “tome este legado de sua mãe, filho. Ele
lhe pertence e eu confio em você para guardá-lo”. Argh. Patético. Bom,
mas não interessa. Já estou acostumada a trabalhar com o Gustavo. No fim,
costuma dar certo.
– E você, Marina.
– Sim?
– Quero que você fique com a conta da Encontro Marcado, você e o
Sérgio.Você, Lu, fica com o Gustavo no celular, mais o Fabiano, claro.
O quê? Não, eu geralmente fico calada, mas dessa vez eu vou falar.
– Como assim? Só eu como redatora nessa campanha? Por quê? Eu pensei que todo mundo ia fazer a do celular junto!
O Gustavo ri. Cretino. A Lu me olha com uma cara de “calma”. Mas o
Alexandre continua.
– Eu queria que todo mundo fizesse junto, Marina. Mas não dá tempo. O cliente quer a campanha do Encontro Marcado semana que vem. Eu
preciso de você nela.
Indignação total. Não bastasse o Gustavo me enchendo, agora o Alexandre também decide complicar minha vida. É um complô. A campanha do
celular era imensa e permitiria anúncios supercriativos, que poderiam resultar
em prêmio – e é óbvio que eu adoraria ganhar um prêmio, coisa que nunca
ganhei, apesar de existir um prêmio para publicidade em cada esquina. Sem
contar que eu acho essa história de procurar alguém pela internet simplesmente ridícula. Como vou fazer uma campanha sobre isso? Mesmo sendo
só varejo, o arroz-com-feijão da publicidade. Como vou criar um bom título
para uma coisa que acho patética?
Quando a reunião termina, fico emburrada e resolvo conversar com o
Alexandre, que está na cozinha, tomando um café, mas desisto no meio do
caminho – ele provavelmente diria o mesmo que disse quando eu não quis
fazer a campanha dos namorados. Decido mudar de tática: vou mostrar para
ele que eu não sou a pessoa mais indicada para a campanha, até ele perceber
que, se entregar a responsabilidade para mim, vai sair uma porcaria. Porcaria,
não: inviável. É mais profissional.
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Vou até ele, lançando meu olhar de “não estou satisfeita”.
– Não precisa falar nada, Marina. Já sei que você veio reclamar do Encontro Marcado.
– Eu? Imagina.Vim só falar que essa campanha vai ficar uma merda.
– Como é que é?
– É sério, Alexandre. Eu acho ridícula essa coisa de procurar alguém pela
internet. Eu nunca vou conseguir fazer uma boa campanha, nunca.
Ele suspira. Odeio quando o Alexandre suspira. Isso significa que ele vai
me olhar com um olhar paternal.
– Marina, senta aqui.
Não falei? Olhar paternal.
– Você é uma profissional. Se eu passei essa tarefa para você, é porque eu
confio no seu trabalho. Tenho certeza de que você consegue.
– Mas, Alexandre, eu não sei nem por onde começar.
Ele me olha com uma cara de quem acabou de ter uma idéia brilhante.
Sempre tenha medo de idéias brilhantes. Ela pode ser brilhante para quem
fala, não para você.
– Tive uma idéia brilhante.
Não falei? Sabia. Ele continua.
– Por que você não entra em um chat, ou mesmo em um site como o
Encontro Marcado, e tenta conhecer alguém?
– O quê?!
– É isso mesmo! Espera um minuto, que eu preciso anotar isso.
Enquanto ele sai para anotar no seu bloco onde está escrito “Idéias do
caralho”, eu me afundo no sofá, derrotada. Ele definitivamente enlouqueceu. Dois minutos depois, ele volta, feliz da vida. E eu resolvo dizer que não
vai rolar.
– Não vai rolar.
– Por quê? É uma idéia fantástica! Você conversa com alguém e sente
na pele como é se envolver virtualmente, como é falar sem conhecer, ver,
cheirar. Que tal?
– Nada feito. Eu achava que essa história de conhecer alguém pela internet era péssima e vou continuar achando. Vou me sentir simplesmente
ridícula se fizer isso.
Ele suspira. Mas nada paternal, agora.
– Ok, Marina, faça como quiser. Mas semana que vem eu quero essa
campanha aqui, na minha mesa. E quero acompanhar você de perto, me
mostre os primeiros títulos que vierem à sua cabeça.Títulos bons, hein? Que
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emocionem, que falem ao coração de quem procura pessoas pela internet.
É isso o que o cliente quer. Agora vai.
Merda, merda, mil vezes merda.
– Ah, não, Má, chega de ficar com essa cara – a Lu diz um tempo depois
que voltei para a sala de criação.
– Fácil você falar. Pegou uma campanha superlegal.
– O que é isso? A sua é mais legal ainda!
– Mas é varejo, esqueceu? Sem contar que você sabe que eu odeio isso
de conhecer pessoas pela internet.
– Ai, Marina, pára com isso, vai.Vamos falar de coisas mais interessantes.
O que você vai fazer hoje à noite?
– Sofrer.
– E fora isso?
– Pensar nessa maldita campanha.
Ela ri. Isso é legal na Lu: ela sempre me anima. É divertida, empolgada.
O oposto do que eu estou hoje.
– Vamos sair para dançar, Má.
– De jeito nenhum. Não estou nem um pouco empolgada.
– Alôôô? A velha Marina está aí? Aquela que eu conheci antes de o Gustavo acabar com ela? – ela pergunta, afastando meu cabelo do ouvido.
– Acho que ela saiu de férias e não tem data para voltar.
– É sério, Marina! Desencana!
– Ele ainda está com a estagiária?
– Pirou? Até parece! Ele agora passou para o setor do atendimento.
– Meu Deus, ele vai varrer a empresa toda.
– E você devia parar de pensar no que ele faz ou deixa de fazer. Desencana.
Meu telefone toca. É a Sônia, dizendo que a Ju está na linha.
– Alô? Ju?
– Mari, era casamento mesmo!!!!!!
– Jura? Parabéns, Ju, parabéns!
Desligo o telefone e conto a novidade para a Lu, sinceramente feliz. Mas
aí passam alguns minutos e faço uma cara de afastar até um cachorrinho fofo
(é, pelo visto, as analogias não melhoraram). A Lu me dá um olhar como o
que ela costuma dar quando se desanima comigo.
– Ah, não, Marina, lá vem você.
– Fiquei triste, mesmo. Eu estou sozinha, Lu. Sozinha.
– E eu também. E estou superfeliz por isso! Quer coisa melhor do que
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sair e poder dançar sempre que quiser, sem dar satisfação a ninguém? Poder
ficar com uma pessoa diferente sempre que quiser? Melhor ainda: fazer sexo
com uma pessoa diferente sempre que você estiver a fim?
– Já cansei disso. Cansei – eu repito.
O Alexandre entra na sala e diz que um anúncio foi recusado pelo cliente.
Passo a tarde com a Lu, refazendo o anúncio com a ajuda do Fabiano. Por
que é que as amigas têm que se casar antes da gente? Veja bem, eu não estou
com inveja. Gosto muito da Juliana, muito mesmo, é uma irmã para mim.
Mas também gosto de mim. E eu queria muito não estar sozinha.
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Chego em casa muito depois de ter escurecido. Não deu tempo de malhar hoje. Amanhã eu malho. Como um chocolate e vou para o computador pensar em alguma coisa para a campanha. É mais fácil pensar em casa e,
além disso, daqui a pouco a Ju chega e não vai dar tempo de fazer mais nada
– com certeza ela só vai querer falar do casamento, e com razão.
Abro o Word. Penso nas palavras: Encontro Marcado. Que idéia quero
transmitir? Pessoas se conhecendo na internet, o que é patético. Certo, vamos tentar esquecer que é patético e se concentrar nas palavras. Encontro.
Marcado. Amor. Distância. Desencalhar. Solidão. Finalmente um título vem
à minha cabeça: Encontro Marcado – Desencalhando corações à distância.
Nossa, de onde eu tirei isso? Péssimo título.Vou comer outro chocolate.
Quando entro na cozinha, a Ju chega.
– Maaari! Olha só o que eu compreeei!
Viro-me para ela: está com uma pilha de revistas sobre casamento. Nunca
vi tantos tipos de vestido na vida. Um mais perfeito do que o outro. Começo a folhear e vou ficando cada vez mais deprimida. A campanha que não
consigo fazer. O namorado que não consigo encontrar. O chocolate que
não consigo comer, porque a Ju não me larga.
– Pode parar de olhar as revistas. Deixa para lá – a Ju fala.
– O que é isso, Ju?
– Eu fui insensível, não fui? Meu Deus, como eu fui insensível. Você
aí, com problemas no trabalho, sem namorado, sem conseguir comer esse
chocolate.
– Também não precisa exagerar.
– E eu aqui, mostrando revistas de casamento.
– Nada a ver, Ju.Você vai se casar, você tem que mostrar.
– Eu não quero deixar você mais triste ainda. Só vou sossegar quando
você arranjar alguém.
– Lá vem você.
– Você não procurou ontem na internet coisa nenhuma, né?
– Eeeuu? Procurei, sim. Não deu em nada.
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– Mentira.
– Ok, você venceu, é mentira. Agora vamos ver os vestidos.
Ela passa a mão no cabelo. Eu adoro o cabelo dela, não sei por que ela
elogia tanto o meu.
– Marina, por favor, olha... tenta só hoje...
– Não vou tentar. Eu me recuso! Aliás, depois você me mostra o vestido,
tá? Eu tenho que trabalhar.
Fecho a cara, vou para o meu quarto e sento na frente do computador.
Começo a pensar. Não chego a lugar nenhum. De repente me dou conta
de que estou com uma blusa extremamente desconfortável. O problema é
este: blusa desconfortável. Prendem minhas idéias.Visto uma blusa larga de
algodão e me sento de novo. Nada de novas idéias.
Olho para o computador. Ele olha para mim. Exatamente como no dia
anterior – está virando um hábito. Clico no provedor gratuito. Demoro
20 minutos para conectar, o que quase me faz desistir – ainda deixo de ser
pão-dura e assino internet a cabo. Finalmente, consigo conectar.
No começo, eu só queria olhar um pouco os sites de namoro, juro. Mas,
depois, acabo falando para mim mesma: “É só trabalho. Eu sei que eu não
preciso dessas coisas para arrumar alguém. Então, vamos acabar logo com
isso”. Eu me inspiro para a campanha e pronto, nunca mais ponho o mouse
em um desses sites deprimentes.
Decido acessar o próprio site Encontro Marcado, que jura encontrar
sua alma gêmea. É só preencher uma ficha com meu perfil e teoricamente
receber um monte de e-mails por dia de homens interessados. Mas é só eu
conseguir abrir a página que desanimo completamente. Isso porque: 1- Eu
tenho pavor de caixa de e-mail lotada. Uma vez, entrei em uma lista de discussão e quase desmaiei ao ver que minha caixa postal tinha 84 mensagens
não lidas; 2- Eu nunca gostei de responder questionários. Na parte em que
pedem minha descrição física, por exemplo, já desanimo. Está escrito que
devo pôr a cor do meu cabelo, mas ele não tem cor definida. É um pouco
mel, escuro demais para ser loiro, mas muito claro para ser castanho, sem
contar que faço mechas, então ele é multicolorido. Logo depois, vejo que
perguntam meu peso. Até parece. Nem a avaliadora física da academia sabe
meu peso.
Já que os sites de namoro não me seduzem nem um pouco, resolvo ir
a uma sala de bate-papo. Fazia muito tempo que eu não ia a um chat – só
quando eu instalei internet e nunca tinha mexido antes, porque pessoas que
não estão acostumadas com internet têm mania de amar loucamente as salas
de bate-papo. Enfim, eu já tinha passado daquela fase e nem me lembrava
de como era teclar com alguém, mas só para não ter que ouvir a Ju falando
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