APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DA GEOMETRIA PROJETIVA Adlai Ralph Detoni1, Marina Dutra Vieira2, Marcelo Cunha Figueiredo3 1 UFJF/Departamento de Matemática/ [email protected] 2 UFJF/Mestrado Profissional em Educação Matemática/ [email protected] 3 IFET-Rio Pomba / DMAFE/ [email protected] Resumo Este texto traz a estruturação da compreensão que seus autores fazem da história da Geometria Projetiva a partir de pesquisa bibliográfica sobre obras de estudiosos da História da Matemática e afins. Inicialmente se põe uma definição do que é essa ciência, a fim de circunscrever seu lugar na geometria como um todo. A partir das indicações colhidas na literatura, estrutura-se um caminho cronologicamente delineado, amalgamado com nomes, conceitos geométricos e alguns sentidos epistemológicos que as fontes ofertaram. Ao fim, fazem-se algumas conclusões pertinentes para a compreensão da própria Geometria Projetiva, objeto de estudo dos autores, que pesquisam suas possibilidades curriculares. Palavras-chave: Geometria Projetiva, História da Matemática. “Na casa da matemática há muitas moradas e, dessas, a mais elegante é a geometria projetiva” Morris Kline Introdução Neste texto, empreendemos uma busca compreensiva da constituição histórica da Geometria Projetiva. Num âmbito mais amplo, formamos um grupo que estuda as possibilidades da presença curricular dessa ciência e intuímos que essa compreensão histórica pode ser importante para estreitarmos entendimento com essa Geometria, em seu estatuto epistemológico e estrutura científica. Nosso intuito esbarra, preliminarmente, na não disponibilidade de uma historiografia já realizada especificamente sobre a Geometria Projetiva, o que nos faz pôr em campo de pesquisa de publicações referenciais mais diversas. Emerge, desde já, uma tarefa de estabelecer eixos estruturais, ao mesmo tempo de manter um olhar global sobre essa ciência do espaço. Pela característica de nosso objeto nossas fontes são advindas da literatura. Sabemos que a exploração desse campo solicita uma metodologia que se institui “a partir do registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em documentos impressos, livros, artigos, teses, etc [...]. Os textos tornam-se fontes dos temas a serem pesquisados.” (SEVERINO, 2007, p. 122). Apresentaremos um esboço inicial de estruturação histórica, privilegiando dois elementos que se tornam diretores categóricos: a presença do geômetra - sem entrar em detalhes biográficos que não forem importantes para nosso foco- e dos objetos geométricos que falam propriamente de uma Geometria Projetiva. Prevenimos que outros elementos possíveis para a historiografia que pretendemos, tais como os valores epistemológicos dessa ciência, não serão enfatizados ocasionalmente. Uma presença curricular da Geometria Projetiva passaria por convencer professores, como a nós mesmos que pesquisamos, das potencialidades pedagógicas dessa ciência, e esse pretendido envolvimento com a história – expectamos - pode ser um dos caminhos para a aceitação dessa presença. Breve entendimento da Geometria Projetiva Consideramos, aqui, alguns apontamentos do que é a Geometria Projetiva, a fim de estreitar um entendimento base daquilo a que estamos nos referindo quando usamos esse termo. Obviamente que projeção é um objeto máster a ser considerado, mas, restrições devem ser postas. Não estaremos tratando da ciência Perspectiva, apesar de seus laços genéticos com a Geometria Projetiva, que, na atualidade, é uma disciplina acadêmica mais própria dos currículos de cursos de Artes e Arquitetura. Também não estaremos falando da Geometria Descritiva, obra de Gaspar Monge, também com ligações fraternais com nossa Geometria, aquela que é disciplina dos cursos de Desenho e Engenharia; inclusive, o termo Descritiva já foi usado como sinônimo de Projetiva. Outras geometrias que lidam com projeções podem ser listadas aqui – como a Geometria Cotada, usada na representação de curvas de nível; preferimos, agora, caracterizar mais pontualmente a Geometria de que queremos tratar. Acima, talvez curiosamente, colocamos exemplos de Geometrias que não são dos matemáticos. A Geometria Projetiva é, por observação pragmática, um assunto de matemáticos, desde o cientista puro ao educador matemático. Considerando o mundo global matemático, a Geometria Projetiva é uma possibilidade alternativa ao euclidiano, apesar de não estar filiada, usualmente, ao que se passou a designar geometrias não euclidianas. Suas distinções do euclidiano são boas trilhas para caracterizá-la. Usando uma fala bem conhecida, se o euclidiano é a Geometria da régua e do compasso, por vezes até só do compasso, a Geometria Projetiva é a geometria só da régua. Isso porque, basicamente, seus objetos envolvem a colinearidade (de pontos) e a incidência (de retas), dois critérios que são invariantes segundo projeções (sobre um plano). As projeções, em geral, não mantêm medidas lineares nem angulares, critérios euclidianos, o que, retomando, dispensa o compasso. Enfim neste artigo, ao estarmos com a Geometria Projetiva, não trataremos da proporção como em Thales, mas da razão anarmônica. Não buscaremos resultados métricos, mas teoremas que resultem no alinhamento de pontos. Finalmente, interessamnos as cônicas mais que o círculo, uma vez que, na superfície cônica circular, elipses, hipérboles e parábolas são projeções do círculo, abarcando todas as suas propriedades projetivas. Busca de sentidos históricos Na história da Geometria Projetiva, assim como em toda realização estrutural humana, não se tem uma data precisa para seu início. Registros históricos nos levam a vêla consolidada como uma ciência distinta de outras geometrias apenas no século XIX, devido, principalmente, aos esforços de Poncelet e Staudt. Ela vem a ganhar uma estruturação mais rigorosa – no sentido de um aporte axiomático- apenas no início do século XX, quando há um movimento de autocompreensão da matemática e uma tentativa de compreensão do que, à época, vinha sendo chamado, em geral, de Geometria Qualitativa. Entretanto, formulações assistemáticas suas vão ocorrendo desde antes. Buscando circunvizinhar como a Geometria Projetiva chega a um ponto de amadurecimento - quando podemos dizer que é uma Geometria distinta das demais-, nos lançamos nas fontes possíveis e conhecidas em busca de provas circunstanciais de nomes e realizações. Encontramos as primeiras já no século I da era cristã. Uma vez que um dos objetos principais da Geometria Projetiva é a colinearidade, vislumbramos, em nossas pesquisas históricas, Menelau como primeiro marco cronológico dessa Geometria. Embora não existam menções de que Menelau tenha se preocupado conscientemente em construir uma geometria alternativa, ele desenvolveu, no início do milênio, um teorema que – entendemos- é um marco de explicitação de um resultado projetivo. Esse teorema ficou esquecido por mais de 15 séculos, sendo redescoberto por Giovanni Ceva no ano de 1678. Uma representação do Teorema de Menelau pode ser a que trazemos a seguir: Teorema de Menelau Toda reta que corta as três retas suporte dos lados de um triângulo determina seis segmentos tais que o produto de três dentre eles, não tendo extremidade comum, é igual ao produto dos outros três. Sejam três pontos D, E e F localizados respectivamente nas retas suporte dos lados AB, BC e CA de um triângulo ABC, e diferentes dos vértices. Se D, E e F são colineares, então É mais explicitamente projetivo o que seria o teorema recíproco desse, ou seja, se a relação de medidas acima ocorre, então os pontos D, E e F são colineares. O teorema de Menelau foi retomado tanto por Ceva como por outros geômetras, como Pascal, e sustenta uma possível linhagem histórica de estruturação da Geometria Projetiva. Afirmamos isso, pois, adiante, em Pappus, veremos uma criação independente que permite outro caminho de estruturação. Uma observação filosófico-epistemológica também de importância histórica sobre o teorema é a abertura para uma discussão acerca do infinito. Não há registros de que Menelau a tenha explorado – até porque à sua época não havia ambiente para isso-, mas, na figura acima, se o ponto D se afastar cada vez mais do ponto B, mais a distância DB se aproxima da distância DA, e a razão entre essas duas medidas se aproxima de 1. Fazendo isso, a relação de Menelau se reduz à relação de Thales, o que implicaria a reta definida por E e F ser paralela ao lado AB. Em outras palavras, começa a fazer sentido um ponto D no infinito. Nossas digressões, intuitivamente levadas aqui, mostram que o teorema de Menelau é um caso geral do teorema de Thales, o que antecipa, historicamente, o panorama do século XVIII, que, para algumas análises, situou a Geometria Euclidiana como um caso particular de geometrias mais amplas em suas fundamentações. Nossas leituras vão nos mostrando que os objetos matemáticos que hoje podemos reconhecer como sendo da Geometria Projetiva vão aparecendo aos poucos, desapegados de uma linearidade cronológica e unidade lógica para uma ciência. Suas descobertas e avanços vão surgindo de forma extemporânea. A exemplo dessa extemporaneidade, temos Pappus (290 d.C. e 350 d.C), que postulou um teorema que leva seu nome. Caindo no anonimato de três séculos, somente mais tarde esse teorema foi usado por Pascal. Pappus, a partir de comentário de um dos livros de Euclides, teoriza sobre um resultado marcante para o pensamento projetivo, que é a invariância da razão cruzada, ou razão anarmônica, nome e conceituação dados e ratificados séculos mais tarde com Desargues e Cremona. Uma formulação do teorema de Pappus pode ser: sejam dois conjuntos de três pontos alinhados A, B e C, e a, b e c; as interseções das linhas Ab e aB, Ac e aC, Bc e bC estão alinhadas (figura abaixo). A demonstração desse teorema requer relações que resultam nesse novo objeto geométrico, que é a citada razão cruzada. Aparentemente, Pappus não se deu conta da amplitude do que realizou, uma vez que, já no século XVII, Pascal descobriu seu trabalho e generalizou esse resultado. Ilustração do teorema de Pappus (anos mais tarde generalizado por Pascal, situando os seis pontos A, B, C, a, b e c sobre uma cônica) Percebemos que esse movimento histórico vai além de uma ratificação e generalização, em vista que a situação geométrica posta envolve feixes projetivos de quatro retas. Todo feixe de quatro retas que passa pelos mesmos quatro pontos alinhados e sua razão cruzada-, terá a mesma razão cruzada, e uma consequência epistemológica se abre, uma vez que podemos ter feixes relacionados coplanares ou não. Uma característica da Geometria Projetiva é sua independência de se estar no plano ou no espaço volumétrico. As duas figuras a seguir ilustram o que falamos: Esse movimento de generalização e incorporação sistemática de resultados é próprio da matemática, às vezes se dando de forma claudicante, como vemos para a Geometria Projetiva. Mas não só de geômetras foi alimentada essa ciência. No século XV ela ganha inestimáveis companhias vindas do âmbito das artes e arquitetura e, mesmo para matemáticos, essas influências são seu ponto de partida (COXETER, 1974, p. 2; EVES, 1963, p. 281). A estética renascentista, que começa a ser constituída por essa época, coloca em questão uma técnica de representação que espelhasse a reprodução mais fiel do mundo físico real, e seus grandes artistas partem para soluções tanto instrumentais quanto matemáticas. Os estúdios de pintura, a essa época, viram laboratórios experimentais, com grande aporte de descobertas das leis da ótica, ainda estruturadas em arcabouço euclidiano, como em Alberti (MACHADO, p. 63-75). No início do século XVI, o pintor Dürer, por exemplo, afasta-se de seus afazeres pictóricos na intenção de estudar uma geometria que satisfizesse relações de projeções dos objetos para suas telas, ao fim publicando sua Géométrie (DÜRER, 1995). Fazendo interpretações a partir do que vemos tratado nessa citada obra, encontramos resultados geométricos voltados para um objetivo determinado, que abrange estudar as deformações métricas (angulares e lineares) inerentes ao objeto real até sua representação numa tela. Vemos muitas soluções particularizadas, ainda que com apresentação de interessantes relações matemáticas. Muito do que ali está é base para o que, depois, veio a ser a Geometria Projetiva - como grande exemplo temos o esquema dos planos em geometral-, mas, correlativamente, identificamos uma ligação científica mais forte com o que hoje chamamos de Perspectiva. Paralelamente, um nome renascentista, já no século XVII, se debruça sobre a mesma tarefa e realiza resultados que mais se ligam à Geometria Projetiva do que à Perspectiva dos artistas. Girard Desargues, arquiteto, mesmo tendo em vista suprir necessidades imediatas de sua profissão, em seus estudos acaba por produzir teoremas e eixos conceituais que o tornam o primeiro sistematizador do pensamento projetivo. Os objetos geométricos que cria e desenvolve são, com alto grau de explicitude projetiva, dessemelhantes dos objetos euclidianos, tanto em sua formulação ontológica quanto em sua presença epistemológica. Mesmo sem ter essa intenção, poderíamos dizer que esse arquiteto é o primeiro geômetra projetivo. A obra científica de Desargues, apesar de o mesmo a chamar sua principal publicação algo em torno de um esboço – Brouillon project d´une atteinte aux événements des rencontres du cone avec un plane, de 1639, em tiragem de apenas cinquenta exemplares -, é um projeto de desenvolvimento sistemático de um assunto matemático (TATON, 1951). Na citada obra de Taton, que compreende capítulo que traz os originais do Brouillon, podemos ver uma estrutura matemática projetiva se constituindo, concebendo objetos fundamentais, como razões de pontos ordenados sobre uma reta e o conceito de involução. Eves nos lembra que Desargues está produzindo numa época em que as descobertas do cálculo e da análise estão acontecendo diuturnamente, o que, de certo modo, explica o ostracismo ao que foi legadas as ideias produzidas por esse geômetra. Mesmo quando Chasles, em 1839 escreve uma história da geometria, Desargues é olvidado – seis anos depois disso é descoberta cópia de trabalhos seus feita por seguidores, e ele, finalmente, é reconhecido como o primeiro desenvolvedor da Geometria Projetiva (EVES, 1963, p. 282). Vários estudiosos apontam também o movimento de transformação de ideias ocorridas pela nova astronomia, dos séculos XVI e XVII, como um contributo ao desenvolvimento da Geometria Projetiva. Como já apontamos acima, as investigações sobre as cônicas se tornam um âmbito para discutirem-se propriedades projetivas, e o abandono do modelo astronômico, hegemônico até então, legado por Ptolomeu à ciência europeia, favorece que esse tema emerja como horizonte de produção de ideias matemáticas. A revolução que Copérnico planta ao idealizar modelo heliocentrista abre novas soluções geométricas, apesar de ele, por não contar com tecnologia suficiente, residir mais no plano teórico. Quando Tycho Brahe e, em sequência, Kepler podem dispor de aparelhos óticos aperfeiçoados para a pesquisa astronômica, observações experimentais e formulações matemáticas vão se encontrando no mundo das cônicas. A importância da projeção já está posta desde a própria concepção de aparelhos óticos e se estende às propriedades projetivas de elipses, hipérboles e parábolas. Além dos invariantes por projeção, elementos já pontuados como geométricos projetivos, ou criados ocasionalmente como astronômicos vão se constituindo, como a agora necessária ideia de pontos no infinito, como foi o caso da descoberta do segundo foco de uma parábola. Com todos esses apontamentos científicos cruzados, definitivamente o estudo das cônicas, muito além de suas propriedades métricas estudadas notadamente pelos gregos, torna-se um horizonte de pesquisas. Ainda no século XVII, Blaise Pascal, que foi contemporâneo de Desargues, ao debruçar-se sobre os estudos deste, certamente com acesso às mais recentes descobertas científicas – sua família tinha presença intelectual - vai investigar as cônicas e suas propriedades projetivas. Ele, por exemplo, em 1640 desenvolve um importante teorema para a estruturação da Geometria Projetiva que, mostrado abaixo numa situação circular, é extensivo a todas as cônicas. Teorema do hexágono inscrito de Pascal: Os pontos de encontro entre os 3 pares de lados opostos de um hexágono ABCDEF (convexo ou não) inscrito em um círculo são colineares. Esse teorema, mesmo que seu autor não explicitasse isso, é notadamente projetivo, uma vez que seu resultado não acolhe objetivos métricos, mas, trata de uma colinearidade. Nem todas as fontes referendam o que pudemos apurar, porém, seguramente o teorema de Menelau foi usado por Pascal para a confirmação da verdade matemática exposta. De todo modo, é imediato ao leitor perceber que os triângulos que aparecem na figura ilustrativa são cortados por transversais, gerando várias possibilidades de se escrever a relação menelaica. O uso dos resultados projetivos do teorema de Menelau, podemos dizer, passa a ser um crivo de filiação de estudos geométricos ao pensamento projetivo. É com essa interpretação que colocamos Giovanni Ceva como mais um nome na história da Geometria Projetiva, quando, em 1678, em sua obra De lineis rectis, prova um teorema que, hoje, leva seu nome: Teorema de Ceva: Três medianas de um triângulo concorrem em um ponto se, e somente se, CE . AF . BD = AE . FB . CD Na situação ilustrada acima, também podemos vislumbrar vários triângulos partidos do triângulo original, todos cortados por transversais e, portanto, permitindo a escrita de várias relações menelaicas. Isso é suficiente para a demonstração desse teorema, que pode ser visto quase que como corolário do teorema de Menelau. Uma observação epistemológica interessante é que, embora não deixe de ser um resultado que se aplica a situação muito próxima do euclidiano, carrega a característica de se aplicar genericamente sobre cevianas, não requisitando que elas tenham alguma particularidade. Essa observação reproduz o que já apontamos antes, que a Geometria Projetiva se mostra num mundo geométrico mais amplo que a Euclidiana. A matemática como um todo, como sabemos, avança sobremaneira no século XVIII, na análise e na álgebra notadamente, mas a geometria sofre um refluxo de produção. Nossas pesquisas dão indícios que a Geometria Projetiva corrobora com essa observação. Mesmo os nomes de De La Hire e Le Poivre, que publicam até apenas o início desse século, não têm a ordem projetiva genuína, pois “para Desargues e Pascal uma cônica é a projeção de uma circunferência sobre um plano, e [...] De la Hire concebeu um processo que permite passar de uma circunferência para uma cônica situada no plano da circunferência”. (GODEAUX, s/d, p. 66) A percepção de o século XVIII não trazer grandes avanços projetivos é indiretamente corroborada por Bell, que mostra o geômetra Poncelet, nos primórdios do século XIX como um reiniciador dos grandes avanços da Geometria Projetiva, depois do século XVII de Desargues e Pascal. (BELL, 1937, p. 208) A Politécnica de Paris, um misto de academia militar e engenharia, que floresce desde a Revolução Francesa, é um celeiro de geômetras, tendo em seu docente Gaspar Monge uma figura aglutinadora e inspiradora para muitos. Além de desenvolver a analítica, especialmente escrevendo obras didáticas para sua sedimentação acadêmica, este matemático cria uma geometria que usa de projeções em um sistema de dois ou três planos para levar os objetos de três dimensões para o plano, desenvolvendo, assim, sua Geometria Descritiva. Como o nome diz, é uma Geometria que se importa com a representação de objetos, não com o desenvolvimento de relações geométricas intrínsecas novas. Poncelet é aluno de Monge e vários estudiosos creditam àquele um ápice de sistematização da Geometria Projetiva, que com se consolida como uma ciência independente em seus objetos e propósitos. Entre outras obras preliminares, Poncelet publica o Tratado das Propriedades Projetivas das Figuras no ano de 1822, que é considerada um marco para essa ciência. O método de pesquisa geométrica presente nessa obra compartilha a projeção e a seção. Entre outras contribuições que vão se estendendo nos anos seguintes, Poncelet introduz fundamentadamente a noção de elementos ideais, buscando dar sentido a interseções no infinito. Bell (BELL, 1937, p. 211) lembra que ele realiza isso quando a Geometria Cartesiana estava em franca produção de descobertas algébricas, e algumas situações não encontrariam sentido geométrico sem as contribuições de Poncelet. A importância maior desse matemático foi se ocupar de soluções sintéticas, e os avanços nessa direção são considerados grandes motivadores de novas pesquisas em álgebra e em análise. Uma das aberturas permitidas pelos estudos de Poncelet foi o estudo das polaridades, conceito que faz juntar processos de transformação por inversão com invariantes por projeção e que foi ocupação de Chasles. Esse contemporâneo de Poncelet na Politécnica de Paris sistematiza estudo já intuído por Monge, que culmina no importante princípio da dualidade. Entendemos que tal princípio ratifica uma observação nossa anterior de que a Geometria Projetiva lida com poucas fronteiras entre situações planas e no espaço de três dimensões. A partir dos estudos de Poncelet, as pesquisas das invariâncias projetivas ganharam eixo de desenvolvimento, como em Von Staudt, que publicou uma formulação mais radical na qual se dispensa qualquer resultado métrico. Para Bell (op. cit.), esses avanços culminaram nos esforços de Cayley e, especialmente, Klein em suas intenções de se compreender unificadamente todas as geometrias. Em seu conhecido Programa, de 1893, Felix Klein observou que o desenvolvimento da Geometria Projetiva ocupava o primeiro lugar nos resultados obtidos pela geometria nos últimos cinquenta anos. Ela aparece, nessa publicação, como coroamento de toda a geometria, uma vez que até as relações métricas – que não se conservam em projeção – foram incorporadas, “com a ressalva que as propriedades métricas, não mais como propriedades dos entes em si, são vistas como relações entre esses e uma forma fundamental, o círculo imaginário no infinito” (KLEIN, 1984, p. 2). Desse pensamento comunga Kline, que diz que a Geometria Projetiva se fez independente e plena, a ponto de tornar todas as outras geometrias até então, euclidianas e não-euclidianas, possíveis derivações dela (KLINE, 1956, s/n). Para esse estatuto supremo corroborou o pensamento epistemológico que se constituía aos fins do século XIX e preâmbulo do XX, o qual compreendia que as relações qualitativas, como as projetivas, deviam preceder as quantitativas. Com a estruturação dos objetos projetivos em uma linha conceitual, basicamente no estabelecimento das projetividades, suas aplicações se tornaram mais seguras e seu papel de geometria mais ampla e abrangente pôde se constituir. Todo esse caminho estruturante chega, já em 1910, a Hilbert, que, preocupado em ditar formalmente os fundamentos da geometria, busca um rigor lógico para a articulação dos objetos projetivos, escrevendo uma axiomática que deixa a Geometria Projetiva, desse modo, com pouca lembrança do trabalho intuitivo que sempre a caracterizara até ali (BELL, 1945, p. 263). Com esse nascedouro, o século XX projetivo esteve preocupado com a algebrização dos procedimentos, deixando basicamente o momento geométrico sintético para ilustrações ou para apresentação de conceitos, logo postos em escrita formal e algébrica. Considerações finais A falta de textos disponíveis já estruturados para a história da Geometria Projetiva nos pôs em uma trajetória que, se por um lado deixou-nos na incerteza de ter constituído um material pelo menos coerente, ao menos favoreceu nossa intenção maior, que é a compreensão do estatuto científico dessa Geometria. Ter realizado o levantamento de literatura e delineado um eixo historiográfico reforçou em nós a percepção de que a compreensão histórica é um meio importante para se acercar duma ciência, permitindo uma perspectiva de compreensão peculiar dela. Consideramos que fizemos uma articulação ainda tênue, por mais que ajudados por obras de grandes pensadores da matemática, e que deixamos vãos livres que dariam mais densidade de compreensão evolutiva e global da Geometria Projetiva. Também, vimos que uma reflexão filosófico-epistemológica pode e deve ser realizada ao longo da estruturação histórica, uma vez que a trajetória do pensamento humano para o tema é coadjuvante precioso de fatos e datas. Terminamos vendo reforçada nossa intuição da importância da compreensão histórica da Geometria Projetiva, tanto para nós mesmos que estamos estudando sua estrutura científica sintética quanto para a levarmos a outros em nossa intenção maior, que é sugerir a presença curricular dessa ciência. Referências BELL, E. T. Men of mathematics. New York: Simon & Schuster, 1937. ______ . The development of mathematics. New York: McGaw-Hill, 1945. COXETER. H.S.M. Projective Geometry. 2 ed. Toronto: University of Toronto, 1974. DÜRER, A. Géométrie. Paris: Seuil, 1995. EVES, H. A survey of geometry: volume one. Boston: Allyn and Bacon, 1963. GODEAUX, L. As Geometrias. Lisboa: Publicações Europa-América, 1936. KLEIN, F. O programa de Erlangen. in: FERNANDES, N. C. (Trad.) O programa de Erlangen de Félix Klein: considerações comparativas sobre as pesquisas geométricas modernas. São Paulo: Ifusp, 1984, 2-78. KLINE, M. Foreword. in: RUSSEL, B.A.W. An essay on the foudations of geometry. New York: Dover Publications, 1956. MACHADO. A. A ilusão especular. São Paulo: Brasiliense, 1984. SEVERINO, A. J. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 2007. TATON, R. L´ouvre mathématique de G. Desargues. Paris: Presses Universitaires de France, 1951.