APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA
DA GEOMETRIA PROJETIVA
Adlai Ralph Detoni1, Marina Dutra Vieira2, Marcelo Cunha Figueiredo3
1
UFJF/Departamento de Matemática/ [email protected]
2
UFJF/Mestrado Profissional em Educação Matemática/ [email protected]
3
IFET-Rio Pomba / DMAFE/ [email protected]
Resumo
Este texto traz a estruturação da compreensão que seus autores fazem da história da
Geometria Projetiva a partir de pesquisa bibliográfica sobre obras de estudiosos da História
da Matemática e afins. Inicialmente se põe uma definição do que é essa ciência, a fim de
circunscrever seu lugar na geometria como um todo. A partir das indicações colhidas na
literatura, estrutura-se um caminho cronologicamente delineado, amalgamado com nomes,
conceitos geométricos e alguns sentidos epistemológicos que as fontes ofertaram. Ao fim,
fazem-se algumas conclusões pertinentes para a compreensão da própria Geometria
Projetiva, objeto de estudo dos autores, que pesquisam suas possibilidades curriculares.
Palavras-chave: Geometria Projetiva, História da Matemática.
“Na casa da matemática há muitas moradas e,
dessas, a mais elegante é a geometria projetiva”
Morris Kline
Introdução
Neste texto, empreendemos uma busca compreensiva da constituição histórica da
Geometria Projetiva. Num âmbito mais amplo, formamos um grupo que estuda as
possibilidades da presença curricular dessa ciência e intuímos que essa compreensão
histórica pode ser importante para estreitarmos entendimento com essa Geometria, em seu
estatuto epistemológico e estrutura científica.
Nosso intuito esbarra, preliminarmente, na não disponibilidade de uma
historiografia já realizada especificamente sobre a Geometria Projetiva, o que nos faz pôr
em campo de pesquisa de publicações referenciais mais diversas. Emerge, desde já, uma
tarefa de estabelecer eixos estruturais, ao mesmo tempo de manter um olhar global sobre
essa ciência do espaço.
Pela característica de nosso objeto nossas fontes são advindas da literatura.
Sabemos que a exploração desse campo solicita uma metodologia que se institui “a partir
do registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em documentos impressos,
livros, artigos, teses, etc [...]. Os textos tornam-se fontes dos temas a serem pesquisados.”
(SEVERINO, 2007, p. 122).
Apresentaremos um esboço inicial de estruturação histórica, privilegiando dois
elementos que se tornam diretores categóricos: a presença do geômetra - sem entrar em
detalhes biográficos que não forem importantes para nosso foco- e dos objetos geométricos
que falam propriamente de uma Geometria Projetiva. Prevenimos que outros elementos
possíveis para a historiografia que pretendemos, tais como os valores epistemológicos
dessa ciência, não serão enfatizados ocasionalmente.
Uma presença curricular da Geometria Projetiva passaria por convencer
professores, como a nós mesmos que pesquisamos, das potencialidades pedagógicas dessa
ciência, e esse pretendido envolvimento com a história – expectamos - pode ser um dos
caminhos para a aceitação dessa presença.
Breve entendimento da Geometria Projetiva
Consideramos, aqui, alguns apontamentos do que é a Geometria Projetiva, a fim de
estreitar um entendimento base daquilo a que estamos nos referindo quando usamos esse
termo.
Obviamente que projeção é um objeto máster a ser considerado, mas, restrições
devem ser postas. Não estaremos tratando da ciência Perspectiva, apesar de seus laços
genéticos com a Geometria Projetiva, que, na atualidade, é uma disciplina acadêmica mais
própria dos currículos de cursos de Artes e Arquitetura. Também não estaremos falando da
Geometria Descritiva, obra de Gaspar Monge, também com ligações fraternais com nossa
Geometria, aquela que é disciplina dos cursos de Desenho e Engenharia; inclusive, o termo
Descritiva já foi usado como sinônimo de Projetiva. Outras geometrias que lidam com
projeções podem ser listadas aqui – como a Geometria Cotada, usada na representação de
curvas de nível; preferimos, agora, caracterizar mais pontualmente a Geometria de que
queremos tratar.
Acima, talvez curiosamente, colocamos exemplos de Geometrias que não são dos
matemáticos. A Geometria Projetiva é, por observação pragmática, um assunto de
matemáticos, desde o cientista puro ao educador matemático. Considerando o mundo
global matemático, a Geometria Projetiva é uma possibilidade alternativa ao euclidiano,
apesar de não estar filiada, usualmente, ao que se passou a designar geometrias não
euclidianas. Suas distinções do euclidiano são boas trilhas para caracterizá-la.
Usando uma fala bem conhecida, se o euclidiano é a Geometria da régua e do
compasso, por vezes até só do compasso, a Geometria Projetiva é a geometria só da régua.
Isso porque, basicamente, seus objetos envolvem a colinearidade (de pontos) e a incidência
(de retas), dois critérios que são invariantes segundo projeções (sobre um plano). As
projeções, em geral, não mantêm medidas lineares nem angulares, critérios euclidianos, o
que, retomando, dispensa o compasso.
Enfim neste artigo, ao estarmos com a Geometria Projetiva, não trataremos da
proporção como em Thales, mas da razão anarmônica. Não buscaremos resultados
métricos, mas teoremas que resultem no alinhamento de pontos. Finalmente, interessamnos as cônicas mais que o círculo, uma vez que, na superfície cônica circular, elipses,
hipérboles e parábolas são projeções do círculo, abarcando todas as suas propriedades
projetivas.
Busca de sentidos históricos
Na história da Geometria Projetiva, assim como em toda realização estrutural
humana, não se tem uma data precisa para seu início. Registros históricos nos levam a vêla consolidada como uma ciência distinta de outras geometrias apenas no século XIX,
devido, principalmente, aos esforços de Poncelet e Staudt.
Ela vem a ganhar uma estruturação mais rigorosa – no sentido de um aporte
axiomático- apenas no início do século XX, quando há um movimento de autocompreensão da matemática e uma tentativa de compreensão do que, à época, vinha sendo
chamado, em geral, de Geometria Qualitativa. Entretanto, formulações assistemáticas suas
vão ocorrendo desde antes.
Buscando circunvizinhar como a Geometria Projetiva chega a um ponto de
amadurecimento - quando podemos dizer que é uma Geometria distinta das demais-, nos
lançamos nas fontes possíveis e conhecidas em busca de provas circunstanciais de nomes e
realizações. Encontramos as primeiras já no século I da era cristã.
Uma vez que um dos objetos principais da Geometria Projetiva é a colinearidade,
vislumbramos, em nossas pesquisas históricas, Menelau como primeiro marco cronológico
dessa Geometria. Embora não existam menções de que Menelau tenha se preocupado
conscientemente em construir uma geometria alternativa, ele desenvolveu, no início do
milênio, um teorema que – entendemos- é um marco de explicitação de um resultado
projetivo. Esse teorema ficou esquecido por mais de 15 séculos, sendo redescoberto por
Giovanni Ceva no ano de 1678. Uma representação do Teorema de Menelau pode ser a que
trazemos a seguir:
Teorema de Menelau
Toda reta que corta as três retas suporte
dos lados de um triângulo determina seis
segmentos tais que o produto de três dentre
eles, não tendo extremidade comum, é igual ao
produto dos outros três.
Sejam três pontos D, E e F localizados
respectivamente nas retas suporte dos lados
AB, BC e CA de um triângulo ABC, e
diferentes dos vértices. Se D, E e F são
colineares, então
É mais explicitamente projetivo o que seria o teorema recíproco desse, ou seja, se a
relação de medidas acima ocorre, então os pontos D, E e F são colineares. O teorema de
Menelau foi retomado tanto por Ceva como por outros geômetras, como Pascal, e sustenta
uma possível linhagem histórica de estruturação da Geometria Projetiva. Afirmamos isso,
pois, adiante, em Pappus, veremos uma criação independente que permite outro caminho
de estruturação.
Uma observação filosófico-epistemológica também de importância histórica sobre o
teorema é a abertura para uma discussão acerca do infinito. Não há registros de que
Menelau a tenha explorado – até porque à sua época não havia ambiente para isso-, mas, na
figura acima, se o ponto D se afastar cada vez mais do ponto B, mais a distância DB se
aproxima da distância DA, e a razão entre essas duas medidas se aproxima de 1. Fazendo
isso, a relação de Menelau se reduz à relação de Thales, o que implicaria a reta definida
por E e F ser paralela ao lado AB. Em outras palavras, começa a fazer sentido um ponto D
no infinito. Nossas digressões, intuitivamente levadas aqui, mostram que o teorema de
Menelau é um caso geral do teorema de Thales, o que antecipa, historicamente, o
panorama do século XVIII, que, para algumas análises, situou a Geometria Euclidiana
como um caso particular de geometrias mais amplas em suas fundamentações.
Nossas leituras vão nos mostrando que os objetos matemáticos que hoje podemos
reconhecer como sendo da Geometria Projetiva vão aparecendo aos poucos, desapegados
de uma linearidade cronológica e unidade lógica para uma ciência. Suas descobertas e
avanços vão surgindo de forma extemporânea. A exemplo dessa extemporaneidade, temos
Pappus (290 d.C. e 350 d.C), que postulou um teorema que leva seu nome. Caindo no
anonimato de três séculos, somente mais tarde esse teorema foi usado por Pascal.
Pappus, a partir de comentário de um dos livros de Euclides, teoriza sobre um
resultado marcante para o pensamento projetivo, que é a invariância da razão cruzada, ou
razão anarmônica, nome e conceituação dados e ratificados séculos mais tarde com
Desargues e Cremona.
Uma formulação do teorema de Pappus pode ser: sejam dois conjuntos de três pontos
alinhados A, B e C, e a, b e c; as interseções das linhas Ab e aB, Ac e aC, Bc e bC estão
alinhadas (figura abaixo). A demonstração desse teorema requer relações que resultam
nesse novo objeto geométrico, que é a citada razão cruzada. Aparentemente, Pappus não se
deu conta da amplitude do que realizou, uma vez que, já no século XVII, Pascal descobriu
seu trabalho e generalizou esse resultado.
Ilustração do teorema de
Pappus
(anos mais tarde generalizado por
Pascal, situando os seis pontos A,
B, C, a, b e c sobre uma cônica)
Percebemos que esse movimento histórico vai além de uma ratificação e
generalização, em vista que a situação geométrica posta envolve feixes projetivos de
quatro retas. Todo feixe de quatro retas que passa pelos mesmos quatro pontos alinhados e sua razão cruzada-, terá a mesma razão cruzada, e uma consequência epistemológica se
abre, uma vez que podemos ter feixes relacionados coplanares ou não. Uma característica
da Geometria Projetiva é sua independência de se estar no plano ou no espaço volumétrico.
As duas figuras a seguir ilustram o que falamos:
Esse movimento de generalização e incorporação sistemática de resultados é próprio
da matemática, às vezes se dando de forma claudicante, como vemos para a Geometria
Projetiva. Mas não só de geômetras foi alimentada essa ciência. No século XV ela ganha
inestimáveis companhias vindas do âmbito das artes e arquitetura e, mesmo para
matemáticos, essas influências são seu ponto de partida (COXETER, 1974, p. 2; EVES,
1963, p. 281). A estética renascentista, que começa a ser constituída por essa época, coloca
em questão uma técnica de representação que espelhasse a reprodução mais fiel do mundo
físico real, e seus grandes artistas partem para soluções tanto instrumentais quanto
matemáticas.
Os estúdios de pintura, a essa época, viram laboratórios experimentais, com grande
aporte de descobertas das leis da ótica, ainda estruturadas em arcabouço euclidiano, como
em Alberti (MACHADO, p. 63-75). No início do século XVI, o pintor Dürer, por exemplo,
afasta-se de seus afazeres pictóricos na intenção de estudar uma geometria que satisfizesse
relações de projeções dos objetos para suas telas, ao fim publicando sua Géométrie
(DÜRER, 1995).
Fazendo interpretações a partir do que vemos tratado nessa citada obra, encontramos
resultados geométricos voltados para um objetivo determinado, que abrange estudar as
deformações métricas (angulares e lineares) inerentes ao objeto real até sua representação
numa tela. Vemos muitas soluções particularizadas, ainda que com apresentação de
interessantes relações matemáticas. Muito do que ali está é base para o que, depois, veio a
ser a Geometria Projetiva - como grande exemplo temos o esquema dos planos em
geometral-, mas, correlativamente, identificamos uma ligação científica mais forte com o
que hoje chamamos de Perspectiva.
Paralelamente, um nome renascentista, já no século XVII, se debruça sobre a mesma
tarefa e realiza resultados que mais se ligam à Geometria Projetiva do que à Perspectiva
dos artistas. Girard Desargues, arquiteto, mesmo tendo em vista suprir necessidades
imediatas de sua profissão, em seus estudos acaba por produzir teoremas e eixos
conceituais que o tornam o primeiro sistematizador do pensamento projetivo. Os objetos
geométricos que cria e desenvolve são, com alto grau de explicitude projetiva,
dessemelhantes dos objetos euclidianos, tanto em sua formulação ontológica quanto em
sua presença epistemológica. Mesmo sem ter essa intenção, poderíamos dizer que esse
arquiteto é o primeiro geômetra projetivo.
A obra científica de Desargues, apesar de o mesmo a chamar sua principal
publicação algo em torno de um esboço – Brouillon project d´une atteinte aux événements
des rencontres du cone avec un plane, de 1639, em tiragem de apenas cinquenta
exemplares -, é um projeto de desenvolvimento sistemático de um assunto matemático
(TATON, 1951). Na citada obra de Taton, que compreende capítulo que traz os originais
do Brouillon, podemos ver uma estrutura matemática projetiva se constituindo,
concebendo objetos fundamentais, como razões de pontos ordenados sobre uma reta e o
conceito de involução.
Eves nos lembra que Desargues está produzindo numa época em que as descobertas
do cálculo e da análise estão acontecendo diuturnamente, o que, de certo modo, explica o
ostracismo ao que foi legadas as ideias produzidas por esse geômetra. Mesmo quando
Chasles, em 1839 escreve uma história da geometria, Desargues é olvidado – seis anos
depois disso é descoberta cópia de trabalhos seus feita por seguidores, e ele, finalmente, é
reconhecido como o primeiro desenvolvedor da Geometria Projetiva (EVES, 1963, p. 282).
Vários estudiosos apontam também o movimento de transformação de ideias
ocorridas pela nova astronomia, dos séculos XVI e XVII, como um contributo ao
desenvolvimento da Geometria Projetiva. Como já apontamos acima, as investigações
sobre as cônicas se tornam um âmbito para discutirem-se propriedades projetivas, e o
abandono do modelo astronômico, hegemônico até então, legado por Ptolomeu à ciência
europeia, favorece que esse tema emerja como horizonte de produção de ideias
matemáticas.
A revolução que Copérnico planta ao idealizar modelo heliocentrista abre novas
soluções geométricas, apesar de ele, por não contar com tecnologia suficiente, residir mais
no plano teórico. Quando Tycho Brahe e, em sequência, Kepler podem dispor de aparelhos
óticos aperfeiçoados para a pesquisa astronômica, observações experimentais e
formulações matemáticas vão se encontrando no mundo das cônicas. A importância da
projeção já está posta desde a própria concepção de aparelhos óticos e se estende às
propriedades projetivas de elipses, hipérboles e parábolas.
Além dos invariantes por projeção, elementos já pontuados como geométricos
projetivos, ou criados ocasionalmente como astronômicos vão se constituindo, como a
agora necessária ideia de pontos no infinito, como foi o caso da descoberta do segundo
foco de uma parábola. Com todos esses apontamentos científicos cruzados, definitivamente
o estudo das cônicas, muito além de suas propriedades métricas estudadas notadamente
pelos gregos, torna-se um horizonte de pesquisas.
Ainda no século XVII, Blaise Pascal, que foi contemporâneo de Desargues, ao
debruçar-se sobre os estudos deste, certamente com acesso às mais recentes descobertas
científicas – sua família tinha presença intelectual - vai investigar as cônicas e suas
propriedades projetivas. Ele, por exemplo, em 1640 desenvolve um importante teorema
para a estruturação da Geometria Projetiva que, mostrado abaixo numa situação circular, é
extensivo a todas as cônicas.
Teorema do hexágono inscrito de Pascal:
Os pontos de encontro entre os 3 pares de lados opostos de um hexágono
ABCDEF (convexo ou não) inscrito em um círculo são colineares.
Esse teorema, mesmo que seu autor não explicitasse isso, é notadamente projetivo,
uma vez que seu resultado não acolhe objetivos métricos, mas, trata de uma colinearidade.
Nem todas as fontes referendam o que pudemos apurar, porém, seguramente o teorema de
Menelau foi usado por Pascal para a confirmação da verdade matemática exposta. De todo
modo, é imediato ao leitor perceber que os triângulos que aparecem na figura ilustrativa
são cortados por transversais, gerando várias possibilidades de se escrever a relação
menelaica.
O uso dos resultados projetivos do teorema de Menelau, podemos dizer, passa a ser
um crivo de filiação de estudos geométricos ao pensamento projetivo. É com essa
interpretação que colocamos Giovanni Ceva como mais um nome na história da Geometria
Projetiva, quando, em 1678, em sua obra De lineis rectis, prova um teorema que, hoje, leva
seu nome:
Teorema de Ceva:
Três medianas de um triângulo
concorrem em um ponto se, e
somente se,
CE . AF . BD = AE . FB . CD
Na situação ilustrada acima, também podemos vislumbrar vários triângulos partidos
do triângulo original, todos cortados por transversais e, portanto, permitindo a escrita de
várias relações menelaicas. Isso é suficiente para a demonstração desse teorema, que pode
ser visto quase que como corolário do teorema de Menelau. Uma observação
epistemológica interessante é que, embora não deixe de ser um resultado que se aplica a
situação muito próxima do euclidiano, carrega a característica de se aplicar genericamente
sobre cevianas, não requisitando que elas tenham alguma particularidade. Essa observação
reproduz o que já apontamos antes, que a Geometria Projetiva se mostra num mundo
geométrico mais amplo que a Euclidiana.
A matemática como um todo, como sabemos, avança sobremaneira no século
XVIII, na análise e na álgebra notadamente, mas a geometria sofre um refluxo de
produção. Nossas pesquisas dão indícios que a Geometria Projetiva corrobora com essa
observação. Mesmo os nomes de De La Hire e Le Poivre, que publicam até apenas o início
desse século, não têm a ordem projetiva genuína, pois “para Desargues e Pascal uma
cônica é a projeção de uma circunferência sobre um plano, e [...] De la Hire concebeu um
processo que permite passar de uma circunferência para uma cônica situada no plano da
circunferência”. (GODEAUX, s/d, p. 66)
A percepção de o século XVIII não trazer grandes avanços projetivos é
indiretamente corroborada por Bell, que mostra o geômetra Poncelet, nos primórdios do
século XIX como um reiniciador dos grandes avanços da Geometria Projetiva, depois do
século XVII de Desargues e Pascal. (BELL, 1937, p. 208)
A Politécnica de Paris, um misto de academia militar e engenharia, que floresce
desde a Revolução Francesa, é um celeiro de geômetras, tendo em seu docente Gaspar
Monge uma figura aglutinadora e inspiradora para muitos. Além de desenvolver a
analítica, especialmente escrevendo obras didáticas para sua sedimentação acadêmica, este
matemático cria uma geometria que usa de projeções em um sistema de dois ou três planos
para levar os objetos de três dimensões para o plano, desenvolvendo, assim, sua Geometria
Descritiva. Como o nome diz, é uma Geometria que se importa com a representação de
objetos, não com o desenvolvimento de relações geométricas intrínsecas novas.
Poncelet é aluno de Monge e vários estudiosos creditam àquele um ápice de
sistematização da Geometria Projetiva, que com se consolida como uma ciência
independente em seus objetos e propósitos. Entre outras obras preliminares, Poncelet
publica o Tratado das Propriedades Projetivas das Figuras no ano de 1822, que é
considerada um marco para essa ciência. O método de pesquisa geométrica presente nessa
obra compartilha a projeção e a seção.
Entre outras contribuições que vão se estendendo nos anos seguintes, Poncelet
introduz fundamentadamente a noção de elementos ideais, buscando dar sentido a
interseções no infinito. Bell (BELL, 1937, p. 211) lembra que ele realiza isso quando a
Geometria Cartesiana estava em franca produção de descobertas algébricas, e algumas
situações não encontrariam sentido geométrico sem as contribuições de Poncelet. A
importância maior desse matemático foi se ocupar de soluções sintéticas, e os avanços
nessa direção são considerados grandes motivadores de novas pesquisas em álgebra e em
análise.
Uma das aberturas permitidas pelos estudos de Poncelet foi o estudo das polaridades,
conceito que faz juntar processos de transformação por inversão com invariantes por
projeção e que foi ocupação de Chasles. Esse contemporâneo de Poncelet na Politécnica de
Paris sistematiza estudo já intuído por Monge, que culmina no importante princípio da
dualidade. Entendemos que tal princípio ratifica uma observação nossa anterior de que a
Geometria Projetiva lida com poucas fronteiras entre situações planas e no espaço de três
dimensões.
A partir dos estudos de Poncelet, as pesquisas das invariâncias projetivas ganharam
eixo de desenvolvimento, como em Von Staudt, que publicou uma formulação mais radical
na qual se dispensa qualquer resultado métrico. Para Bell (op. cit.), esses avanços
culminaram nos esforços de Cayley e, especialmente, Klein em suas intenções de se
compreender unificadamente todas as geometrias.
Em seu conhecido Programa, de 1893, Felix Klein observou que o desenvolvimento
da Geometria Projetiva ocupava o primeiro lugar nos resultados obtidos pela geometria nos
últimos cinquenta anos. Ela aparece, nessa publicação, como coroamento de toda a
geometria, uma vez que até as relações métricas – que não se conservam em projeção –
foram incorporadas, “com a ressalva que as propriedades métricas, não mais como
propriedades dos entes em si, são vistas como relações entre esses e uma forma
fundamental, o círculo imaginário no infinito” (KLEIN, 1984, p. 2).
Desse pensamento comunga Kline, que diz que a Geometria Projetiva se fez
independente e plena, a ponto de tornar todas as outras geometrias até então, euclidianas e
não-euclidianas, possíveis derivações dela (KLINE, 1956, s/n). Para esse estatuto supremo
corroborou o pensamento epistemológico que se constituía aos fins do século XIX e
preâmbulo do XX, o qual compreendia que as relações qualitativas, como as projetivas,
deviam preceder as quantitativas.
Com a estruturação dos objetos projetivos em uma linha conceitual, basicamente no
estabelecimento das projetividades, suas aplicações se tornaram mais seguras e seu papel
de geometria mais ampla e abrangente pôde se constituir. Todo esse caminho estruturante
chega, já em 1910, a Hilbert, que, preocupado em ditar formalmente os fundamentos da
geometria, busca um rigor lógico para a articulação dos objetos projetivos, escrevendo uma
axiomática que deixa a Geometria Projetiva, desse modo, com pouca lembrança do
trabalho intuitivo que sempre a caracterizara até ali (BELL, 1945, p. 263).
Com esse nascedouro, o século XX projetivo esteve preocupado com a algebrização
dos procedimentos, deixando basicamente o momento geométrico sintético para ilustrações
ou para apresentação de conceitos, logo postos em escrita formal e algébrica.
Considerações finais
A falta de textos disponíveis já estruturados para a história da Geometria Projetiva
nos pôs em uma trajetória que, se por um lado deixou-nos na incerteza de ter constituído
um material pelo menos coerente, ao menos favoreceu nossa intenção maior, que é a
compreensão do estatuto científico dessa Geometria.
Ter realizado o levantamento de literatura e delineado um eixo historiográfico
reforçou em nós a percepção de que a compreensão histórica é um meio importante para se
acercar duma ciência, permitindo uma perspectiva de compreensão peculiar dela.
Consideramos que fizemos uma articulação ainda tênue, por mais que ajudados por
obras de grandes pensadores da matemática, e que deixamos vãos livres que dariam mais
densidade de compreensão evolutiva e global da Geometria Projetiva. Também, vimos que
uma reflexão filosófico-epistemológica pode e deve ser realizada ao longo da estruturação
histórica, uma vez que a trajetória do pensamento humano para o tema é coadjuvante
precioso de fatos e datas.
Terminamos vendo reforçada nossa intuição da importância da compreensão
histórica da Geometria Projetiva, tanto para nós mesmos que estamos estudando sua
estrutura científica sintética quanto para a levarmos a outros em nossa intenção maior, que
é sugerir a presença curricular dessa ciência.
Referências
BELL, E. T. Men of mathematics. New York: Simon & Schuster, 1937.
______ . The development of mathematics. New York: McGaw-Hill, 1945.
COXETER. H.S.M. Projective Geometry. 2 ed. Toronto: University of Toronto, 1974.
DÜRER, A. Géométrie. Paris: Seuil, 1995.
EVES, H. A survey of geometry: volume one. Boston: Allyn and Bacon, 1963.
GODEAUX, L. As Geometrias. Lisboa: Publicações Europa-América, 1936.
KLEIN, F. O programa de Erlangen. in: FERNANDES, N. C. (Trad.) O programa de
Erlangen de Félix Klein: considerações comparativas sobre as pesquisas geométricas
modernas. São Paulo: Ifusp, 1984, 2-78.
KLINE, M. Foreword. in: RUSSEL, B.A.W. An essay on the foudations of geometry.
New York: Dover Publications, 1956.
MACHADO. A. A ilusão especular. São Paulo: Brasiliense, 1984.
SEVERINO, A. J. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 2007.
TATON, R. L´ouvre mathématique de G. Desargues. Paris: Presses Universitaires de
France, 1951.
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