A ARQUEOLOGIA NA CONSTRUÇÃO E NA CALIBRAÇÃO DE CURVAS LOCAIS DE
VARIAÇÃO DO NÍVEL MÉDIO DO MAR
Andreas Kneip1
Ciência da Computação, UFT ([email protected])
1
Abstract. The sambaquis of the Camacho region, south coast of Santa Catarina state, have been
subject of studies for more than 10 years. There are more than 50 sambaquis in that region, and 18
of them were dated. The dates point to a continuous occupation of the region since c. 5000 up to
2000 calibrated years before present. During this period, the configuration of the area suffered a
severe modification due to variation of the mean sea level. It is very difficult to understand the
occupation of the region by the prehistorical population responsible for the construction of the
sambaquis due the alterations caused in the landscape by the local variation of the mean sea level,
between them the reduction in the extension of the lagoon. To prevent this limitation, it was
necessary to establish a curve of variation of the mean sea level, based on the survey of paleo-sealevels indicators carried by geologists in the region, in order to simulate the reduction of the
extension of the lagoon. The curve proposed must be consistent with the archaeological knowledge
of the region, and can assist in the construction of the model of the prehistoric occupation.
Palavras-chave: Arqueologia do litoral; Variação do Nível Médio Marinho
1. Introdução
São conhecidos mais de 50 sambaquis na
planície costeira que ocupa parte dos
municípios de Jaguaruna, Laguna e Tubarão,
no litoral sul catarinense (figura 1). Vários
destes sambaquis tiveram amostras datadas, e
as datas obtidas sugerem uma ocupação
contínua da região por mais de três mil anos,
de aproximadamente 5.000 até 2.000 anos
calibrados Antes do Presente (anos cal. AP)
(ver Kneip 2004, para uma lista de sítios com
suas datas).
Durante o período delimitado por estas
datas, a região foi palco de constantes
transformações, determinadas pela variação do
nível médio marinho e pela dinâmica de
sistemas deposicionais costeiros (Giannini
2004), cujo efeito mais espetacular, talvez,
para um povo tão dependente dos recursos
lagunares, tenha sido a redução da extensão
lagunar.
O tamanho de alguns sambaquis, e o largo
período de tempo em que foram utilizados,
mostram que a população responsável pela sua
construção procurava manter estes locais pelo
maior tempo possível. Alguns dos sambaquis
mostram uma densidade de enterramentos
muito grande, o que indica uma grande
densidade populacional para a área (Fish et. al.
2000).
Um dos objetivos do estudo arqueológico
da região é procurar entender a relação entre
esta população humana bastante densa e a
transformação ocorrida no ambiente natural
durante o período de ocupação.
Mais especificamente, o que se procura é
entender se a dinâmica da ocupação, com
sambaquis de diferentes tamanhos, localizados
em diferentes ambientes, está relacionada com
a variação ocorrida na paisagem. Isto é, se
existe uma relação de causa e efeito entre a
variação na extensão lagunar e o tamanho e
localização dos sambaquis.
Para a estimativa da variação na extensão
lagunar foi desenvolvido um modelo de
elevação digital, baseado no relevo atual e em
informações geomorfológicas, num Sistema de
Informações Geográficas (SIG), e feita a
simulação da movimentação do NMM neste
modelo. A comparação entre a extensão
lagunar e os sambaquis datados ativos num
determinado momento mostra a correlação
entre local e momento de construção, ou de
abandono, e tempo de utilização de um
sambaqui.
Para realizar a simulação, por sua vez, foi
necessário postular uma curva de variação do
NMM local. Naquele momento não existiam
curvas satisfatórias propostas para a região.
Com base no levantamento realizado por
Angulo et. al. (1999) foi desenhada uma curva,
e foram utilizados dados da arqueologia para
sua calibração.
2. Construção do modelo
O SIG foi desenvolvido no GRASS
(Geographical Resource Analysis Support
System), que é um software distribuído sob
licença GNU GPL, em ambiente Linux.
As folhas topográficas do IBGE
(Jaguaruna, Lagoa da Garopaba do Sul,
Laguna, Tubarão e Vila Nova) foram
escaneadas num scanner para mapas,
incorporadas ao SIG como imagens, e
finalmente georeferenciadas.
As curvas de nível foram desenhadas uma
a uma com o auxílio do mouse. Em algumas
áreas das folhas, as informações topográficas
foram complementadas com os dados do mapa
geomorfológico de Giannini (1993).
O GRASS possui módulos, que utilizam
diferentes metodologias, para interpolar uma
superfície a partir de um conjunto de curvas de
nível e pontos de elevação. Como primeira
aproximação, e devido à suavidade do mapa
obtido, foi utilizado o módulo que interpola
linearmente a superfície, isto é, dados dois
pontos por onde passam curvas de nível
diferentes, ao ponto mediano entre eles é
atribuído um valor de cota intermediário entre
as cotas destas curvas.
O mapa resultante, chamado de Modelo de
Elevação Digital, é uma imagem matricial: a
cada ponto do mapa é atribuído um valor que
corresponde à altitude deste ponto em relação
ao nível médio do mar atual.
3. Curva de variação do NMM
Inicialmente foram consideradas duas
curvas de variação do NMM.
A curva proposta em Caruso (1995),
baseada em Suguio and Martin (1985). Esta
curva é caracterizada pela presença de uma
oscilação
negativa
de
intensidade
desconhecida, mas que teria levado o NMM a
valores abaixo do atual zero, com duração de
aproximadamente 500 anos, iniciada em 3.000
anos antes do presente (AP) e encerrada em
2.500 anos AP (curva tracejada na figura 3).
A curva proposta por Angulo e Lessa
(1996), baseada em datações de amostras de
vermetídeos para a costa brasileira e
considerando dados para o litoral paranaense
(curva traço-ponteada na figura 3).
O comportamento geral, sua forma e
tendência, é bastante semelhante para as duas
curvas. Um levantamento, publicado em 1999
(Angulo et. al. 1999), questiona estas curvas,
argumentando, entre outras coisas, a ausência
local de indicações de oscilações negativas no
NMM, e que a amplitude geral da variação, no
litoral de Laguna, parece ser menor que a
observada no resto do litoral brasileiro.
Amostras de vermetídeos, datadas, para esta
região, comprovariam estas observações.
Os autores, no entanto, não apresentaram
uma curva de variação do NMM. Uma curva
pode ser proposta, com base nos paleoníveis
obtidos neste levantamento, com as datas
calibradas pelo software Calib (Stuiver and
Reimer 1993), de modo a permitir a simulação
no modelo desenvolvido. Na figura 2, cada
dado do levantamento é representado por um
retângulo com 1m de altura, que é a incerteza
na determinação do nível, e com largura igual
à faixa calibrada de datas (2 σ).
Uma comparação com as duas outras
curvas citadas (linha sólida na figura 3), mostra
que todas compartilham a mesma tendência
geral, diferindo principalmente na amplitude.
4. A base do sambaqui de Jabuticabeira II
A determinação do que sejam base e topo
de um sambaqui é tarefa bastante complexa,
quiçá inútil, visto estudos recentes indicarem
que o sítio é uma construção intencional,
resultante de incrementos repetidamente
adicionados ao sítio. Não existiria, portanto,
uma base, mas várias bases, dos vários
componentes que se combinam para formar o
sambaqui (Fish et. al 2000).
O sambaqui de Jabuticabeira II teve vários
níveis datados, em vários perfis, desde as
camadas inferiores até as superiores. As datas
mostram uma utilização contínua, de uma área
ou outra do sambaqui, desde aproximadamente
3.200 anos cal. AP até 1.600 anos cal. AP.
A data mais antiga foi obtida numa
camada que assenta diretamente sobre
sedimentos arenosos estéreis de material
arqueológico. Em todos os perfis analisados
não existe qualquer evidência de que partes do
sambaqui
tivessem
ficado
submersas.
Considerando a natureza incremental do
sambaqui, a altitude desta camada datada pode
ser utilizada para estimar um limite superior
para a posição do nível do mar no momento de
sua deposição.
A altitude desta camada basal, medida
durante o levantamento topográfico realizado
em 2003, é de aproximadamente 1,6m.
Durante o levantamento da altitude da
base do sambaqui de Jabuticabeira II foi
medida também a altitude do nível da Lagoa da
Garopaba do Sul e do Riacho, rio que corta a
planície, passando ao sul do sambaqui,
desaguando na Lagoa da Garopaba do Sul. O
objetivo era verificar a consistência do
levantamento realizado. O nível medido para a
Lagoa foi de aproximadamente –0,16m e para
o Riacho de +0,46m. Esta configuração estava
de acordo com a situação do canal de ligação
da lagoa com o mar e das comportas do Riacho
e do rio das Congonhas, que cruza a planície
um pouco mais ao norte.
Durante o período de ocupação de
Jabuticabeira II, o NMM, segundo a curva
proposta, esteve sempre abaixo de 1m. O
abandono do sambaqui coincide com uma
queda mais acentuada no NMM, após 1.600
anos cal. AP.
5. Resultados
A simulação da movimentação do nível
médio marinho, considerando a curva de
variação proposta e o modelo de elevação
digital, está mostrada na figura 4. A 4.200 anos
cal. AP o NMM estaria 2m acima do atual, o
contorno da lagoa é aquele indicado pela linha
vermelha na figura 4a. Os sambaquis ativos do
período estão representados por pontos pretos.
Nesta época os sambaquis se localizam sobre a
barreira que separa a paleolaguna do mar,
próximos à praia, ao redor da paleolaguna ou
sobre dunas. Uma rápida queda traz o NMM
para 1,5m acima do atual, em 3.700 anos cal.
AP (contorno em verde no mapa da figura 7b).
Segue um longo período de estabilidade,
caracterizado por sambaquis de grande porte
(Carniça I, Garopaba do Sul, Jabuticabeira II,
são alguns que foram datados deste período),
onde o NMM permanece aproximadamente 1m
acima do atual (contorno azul na figura 4c), até
pouco depois de 2.000 anos cal. AP, quando
começa a cair mais rapidamente. A partir deste
momento os sambaquis são menores e pouco
depois a cultura sambaquieira parece ter
desaparecido (o contorno em amarelo no mapa
da figura 4d traz uma estimativa do contorno
da paleolaguna quando o NMM estava 0,5m
acima do atual)
6. Conclusões
A simulação, apesar da simplicidade do
modelo, e a curva proposta parecem descrever
a dinâmica da ocupação da região pela cultura
sambaquieira. Um modelo mais realista deve
levar em consideração aspectos diferenciais no
processo de redução da extensão lagunar,
durante a descida do NMM.
7. Referências
ANGULO RJ, GIANNINI PC, SUGUIO K
and PESSENDA LC. 1999. Relative
sea-level changes in the last 5500 years
in southern Brazil (Laguna-Imbituba
region, Santa Catarina State) based on
vermetid 14C ages. Marine Geology, v.
159, p. 323–339.
ANGULO RJ and LESSA G. 1996. The
brazilian sea level curves: a critical
review with emphasis on the curves
from Paranaguá e Cananéia regions.
Anais do XXXIX Congresso Brasileiro
de Geologia, Simpósios, Salvador,
Bahia, 5: 285–288.
CARUSO JR F. 1995. Mapa geológico e de
recursos minerais do sudeste de Santa
Catarina. In: Programa cartas de síntese
e estudos de integração geológica.
[S.l.]: DNPM/MME, v. 1.
FISH SK, DE BLASIS PAD, GASPAR MD
and FISH PR. 2000. Eventos
incrementais
na
construção
de
sambaquis, litoral sul do Estado de
Santa Catarina. Revista do Museu de
Arqueologia e Etnologia, 10: 69–87.
USP, São Paulo.
GIANNINI PCF. 1993. Sistemas deposicionais
no quaternário costeiro entre Jaguaruna
e Imbituba, SC. 439 p. Tese
(Doutorado)
—
Instituto
de
Geociências, Universidade de São
Paulo, São Paulo.
KNEIP, A. 2004. O Povo da Lagoa: uso do
SIG para modelamento e simulação na
área arqueológica do Camacho. Tese
(Doutorado) — Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas - USP, São
Paulo.
STUIVER M and REIMER PJ. 1993.
Extended 14C database and revised
CALIB
radiocarbon
calibration
program. Radiocarbon, 35: 215–230.
SUGUIO K, MARTIN L, BITTENCOURT A,
DOMINGUEZ J, FLEXOR J.-M and
AZEVEDO A. 1985. Flutuações do
nível relativo do mar durante o
quaternário superior ao longo do litoral
brasileiro e suas implicações na
sedimentação
costeira.
Revista
Brasileira de Geociências, 5: 273–286.
Fig. 1. Mapa de localização dos sambaquis do Camacho. Os sambaquis estão representados por
círculos vermelhos.
Fig. 2. Curva proposta com base no levantamento em Angulo et. al. (1996).
Fig. 3. Comparação entre as diferentes curvas de variação do nível médio marinho para a região.
Fig. 4. Contorno da paleolaguna em 4.200 anos cal. AP (a), 3.700 anos cal. AP (b), 3.200 anos cal.
AP (c) e 2.000 anos cal. AP (d).
Download

a arqueologia na construção e na calibração de curvas