Toda a Poesia
Antologia Poética
Seleção e organização
Iba Mendes
Publicada originalmente em formato digital.
Iba Mendes
(1970)
“Projeto Livro Livre”
Livro 598
Poeteiro Editor Digital
São Paulo - 2015
www.poeteiro.com
PROJETO LIVRO LIVRE
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe — que faz a palma,
É chuva — que faz o mar.
Castro Alves
O “Projeto Livro Livre” é uma iniciativa que propõe o compartilhamento, de
forma livre e gratuita, de obras literárias já em domínio público ou que tenham
a sua divulgação devidamente autorizada, especialmente o livro em seu formato
Digital.
No Brasil, segundo a Lei nº 9.610, no seu artigo 41, os direitos patrimoniais do
autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente
ao de seu falecimento. O mesmo se observa em Portugal. Segundo o Código dos
Direitos de Autor e dos Direitos Conexos, em seu capítulo IV e artigo 31º, o
direito de autor caduca, na falta de disposição especial, 70 anos após a morte
do criador intelectual, mesmo que a obra só tenha sido publicada ou divulgada
postumamente.
O nosso Projeto, que tem por único e exclusivo objetivo colaborar em prol da
divulgação do bom conhecimento na Internet, busca assim não violar nenhum
direito autoral. Todavia, caso seja encontrado algum livro que, por alguma
razão, esteja ferindo os direitos do autor, pedimos a gentileza que nos informe,
a fim de que seja devidamente suprimido de nosso acervo.
Esperamos um dia, quem sabe, que as leis que regem os direitos do autor sejam
repensadas e reformuladas, tornando a proteção da propriedade intelectual
uma ferramenta para promover o conhecimento, em vez de um temível inibidor
ao livre acesso aos bens culturais. Assim esperamos!
Até lá, daremos nossa pequena contribuição para o desenvolvimento da
educação e da cultura, mediante o compartilhamento livre e gratuito de obras
em domínio público, como esta Antologia organizada por Iba Mendes: “Toda a
Poesia – Antologia Poética”.
É isso!
Iba Mendes
[email protected]
www.poeteiro.com
ÍNDICE DOS AUTORES
ADVERTÊNCIA................................................................................................
ACÚRCIO CORREIA DA SILVA.........................................................................
ADELINO FONTOURA.....................................................................................
ADEODATO BARRETO....................................................................................
ALBERTO DE OLIVEIRA...................................................................................
ALEXANDRE HERCULANO..............................................................................
ALPHONSUS DE GUIMARAENS......................................................................
ALVARENGA PEIXOTO...................................................................................
ÁLVARES DE AZEVEDO..................................................................................
ÁLVARO FEIJÓ................................................................................................
AMADEU AMARAL.........................................................................................
AMADEU AMARAL........................................................................................
ANTERO DE QUENTAL...................................................................................
ANTÔNIO BOTTO..........................................................................................
ANTÔNIO FEIJÓ.............................................................................................
ANTONIO FELICIANO CASTILHO....................................................................
ANTÔNIO GOMES LEAL.................................................................................
ANTÔNIO NOBRE...........................................................................................
ANTÔNIO PATRÍCIO.......................................................................................
ANTÔNIO SARDINHA.....................................................................................
ARAÚJO PORTO-ALEGRE..............................................................................
ARRONCHES JUNQUEIRO.............................................................................
ARTUR AZEVEDO...........................................................................................
AUGUSTO DOS ANJOS...................................................................................
AUTA DE SOUZA............................................................................................
BERNARDINO LOPES.....................................................................................
BERNARDO DE PASSOS.................................................................................
BERNARDO GUIMARÃES..............................................................................
BOCAGE........................................................................................................
BRASÍLIO MACHADO.....................................................................................
BRUNO SEABRA.............................................................................................
CAMILO CASTELO BRANCO...........................................................................
CAMILO PESSANHA.......................................................................................
CASIMIRO DE ABREU....................................................................................
CASTRO ALVES...............................................................................................
CESÁRIO VERDE.............................................................................................
CLÁUDIO MANUEL DA COSTA.......................................................................
CRUZ E SOUZA...............................................................................................
CURVO SEMEDO............................................................................................
DELFIM GUIMARÃES.....................................................................................
DIOGO BERNARDES.......................................................................................
1
2
13
17
24
32
53
63
68
76
83
90
103
108
113
121
126
133
137
141
147
152
163
186
192
195
199
205
209
215
221
226
233
243
258
278
292
306
322
325
330
EMILIANO PERNETA......................................................................................
EMÍLIO DE MENEZES.....................................................................................
FAGUNDES VARELA.......................................................................................
FAUSTINO XAVIER DE NOVAIS.......................................................................
FAUSTO GUEDES TEIXEIRA............................................................................
FERNANDO PESSOA......................................................................................
FLORBELA ESPANCA......................................................................................
FRANCISCO JOAQUIM BINGRE......................................................................
FRANCISCO OTAVIANO.................................................................................
FRANCISCO RODRIGUES LOBO......................................................................
FREI ANTÔNIO DAS CHAGAS.........................................................................
GONÇALVES DE MAGALHÃES.......................................................................
GONÇALVES DIAS..........................................................................................
GREGÓRIO DE MATOS..................................................................................
GUILHERME DE AZEVEDO.............................................................................
GUIMARÃES JÚNIOR.....................................................................................
GUIMARÃES PASSOS.....................................................................................
JERÔNIMO BAÍA............................................................................................
JERÔNIMO CORTE-REAL...............................................................................
JOÃO DE DEUS..............................................................................................
JOÃO DE LEMOS............................................................................................
JOÃO PENHA.................................................................................................
JOÃO XAVIER DE MATOS...............................................................................
JOAQUIM SERRA...........................................................................................
JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO.....................................................................
JOSÉ BONIFÁCIO............................................................................................
JOSÉ DE ANCHIETA........................................................................................
JOSÉ DURO...................................................................................................
JOSÉ MARIA DO AMARAL..............................................................................
JUNQUEIRA FREIRE........................................................................................
LAURINDO RABELO.......................................................................................
LÚCIO DE MENDONÇA..................................................................................
LUÍS DA GAMA..............................................................................................
LUÍS DELFINO................................................................................................
LUÍS VAZ DE CAMÕES...................................................................................
MACHADO DE ASSIS.....................................................................................
MACIEL MONTEIRO......................................................................................
MANUEL BOTELHO DE OLIVEIRA...................................................................
MARIA FIRMINA DOS REIS.............................................................................
MÁRIO BEIRÃO..............................................................................................
MARIO DE ANDRADE.....................................................................................
MARTINS FONTES.........................................................................................
NICOLAU TOLENTINO DE ALMEIDA...............................................................
OLAVO BILAC.................................................................................................
337
343
349
372
375
378
386
402
404
410
412
425
435
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467
471
476
479
482
484
486
493
500
503
506
520
542
547
567
574
588
595
598
606
615
621
623
631
636
641
PAULO SETÚBAL...........................................................................................
PEDRO LUÍS...................................................................................................
PEDRO RABELO.............................................................................................
RAIMUNDO CORREIA....................................................................................
RAUL DE LEONI..............................................................................................
RONALD DE CARVALHO.................................................................................
SOUSA CALDAS..............................................................................................
SOUSÂNDRADE..............................................................................................
TEIXEIRA DE MELO........................................................................................
TEÓFILO DIAS................................................................................................
TOBIAS BARRETO..........................................................................................
TRINDADE COELHO......................................................................................
VICENTE DE CARVALHO.................................................................................
VIRGÍLIO VÁRZEA...........................................................................................
ÍNDICE DE AUTORES E POEMAS.................................................................
647
657
661
665
679
684
687
696
700
705
713
721
723
753
757
APRESENTAÇÃO
O critério para a organização dessa Antologia Poética baseia-se no “não
critério”.
Selecionamos a acaso uma vasta gama de poetas da Literatura Brasileira e
Portuguesa, muitos dos quais, por razões que vão bem além da qualidade
literária, ficaram para trás no bonde da história e, por consequência, lançados
no mar do esquecimento, sendo ainda amiúde rotulados de forma injusta de
“autores menores”, como se houvesse um critério lógico e objetivo para se
definir o que é a boa literatura e o que não deve ser aceito como “verdadeira
poesia”.
A subjetividade é parte essencial do fazer poético, daí considerar uma jiboica
estupidez as análises literárias da Poesia com a finalidade de se atribuir uma
nota. Ao submeter um aluno a uma análise do “fazer poético”, o professor
reduz ao seu próprio “ser” todo o “mistério” que guiou o poeta a desenvolver
sua “arte”, a qual não pode ser mensurada a partir do “ser objetivo”, pois é
parte de um contexto específico em que se incluiu, com toda a intensidade, o
próprio “ser” do artista.
É isso!
IBA MENDES
Abril, 2015
1
ACÚRCIO CORREIA DA SILVA
(1889—1925)
LITERATURA PORTUGUESA
OS MISERÁVEIS
Tendes olhos de ver. Olhai... — Ao fundo,
Nas bocas tenebrosas das cavernas,
Não vislumbrais um turbilhão imundo
De larvas, num grasnido gemebundo
Feito de raiva e maldições eternas?
— São os ladrões, ferozes valdevinos,
Cujo instinto são ódios e sangueiras!
Alta noite, os seus olhos de assassinos
Fosforejam bravios, reptilinos,
Entre as sarças das velhas carvalheiras...
Pelas trevas, ao som dos temporais,
Quando os ventos ululam nas florestas,
Vão agrupar-se ás portas dos casais,
Afiando os mortíferos punhais,
Coçando-os pelas mãos nervosas, lestas...
— São também vagabundos, — os ciganos,
De barbaças intonsas e nojentas,
Esguedelhados, rotos e marranos,
De testa cancerosa envolta em panos,
Escorrendo matérias fedorentas...
Coitados! Em magotes pelas praças,
Para colher esmolas miseráveis,
Esbracejam ridículas negaças
2
E rouquejam exóticas chalaças,
Retorcendo as bocarras execráveis...
Pobres ciganos! De olhos estoirados,
Pernas podres e faces caboucadas,
Lá vão a correr mundo, atormentados,
De estômago vazio e pés pisados
Dos duros pedregulhos das estradas...
São inda as torturadas das rameiras,
As pobres raparigas sem pudor,
Que se espojam nas frígidas lameiras,
Ao sol, á chuva, ás rijas ventaneiras,
Sem alma, sem destino, sem amor!
São míseros farrapos encharcados
No lodo da torpeza verminada!
Ah! homens, egoístas derrancados!
E ainda vos julgais civilizados,
Ó luxuriosa, estúpida manada!
Não lastimais as pobres meretrizes,
Que andam na lama, a chafurdar de rojo?
Chamai á dignidade as infelizes!
— Ó rapazes, tapemos os narizes;
Sigamos para cima. Isto faz nojo!
OS REBELADOS
Quedai-vos. Escutai... Eu ouço (ao certo!)
Rugidos formidáveis,
Quais se o Inferno se abrisse aqui perto
E vomitasse do bocal aberto
O brado dos tormentos infindáveis...
Já sei, já sei... — É a estranha turba-multa
Dos homens revoltados,
Que salta, brame, despedaça, insulta,
Como uma formidável catapulta
Feita de homens bravios, desvairados...
São revolucionários contorcidos
Em grossos turbilhões,
3
De olhos raivosos, trágicos, ardidos,
Agitando no ar balsões erguidos
Ao sol sangrento das rebeliões.
Filhos do ódio, filhos da desgraça,
Não tem amor nem esperança!
Esguedelhados, negros, pela praça,
Rangendo os dentes, gritam a quem passa:
— Vingança, só vingança, só vingança!
Deixá-los trovejar pelos outeiros...
Oh! Deus lhes mande a paz!
Subamos mais acima, ó companheiros...
(Outono... — Olhai que lindo tempo faz...)
CAVADORES
Ao longe — vedes? — os cavadores,
Filhos do campo, filhos da leiva,
De olhos escuros e cismadores,
Olhos ingênuos de trovadores...
— Cantam os campos, cantam as flores,
Cantam a seiva...
Por horas mortas (céu estrelado...)
Eles lá vão
Lavrar a terra, guiar o arado,
De olhar bondoso e resignado
Posto nos olhos do manso gado,
Posto no chão...
Vem as chuvadas, as inverneiras;
Rugem os rios, incham ribeiras;
Alagam campos, alagam leiras...
Vede a desgraça!
Que há de ele fazer? — De olhar dorido,
Mal almoçado, pior vestido,
Senta-se á porta, esmorecido,
A ver quem passa...
Vem o calor do sol doirado
Queimar-lhe o pão!
Que há de ele fazer, o desgraçado
4
Do lavrador? — Vai pró eirado,
De aspeto triste, de olhar pasmado,
Cismar na vida, descorçoado,
Queixo na mão...
Estala a guerra; levam-lhe o filho.
Crescem os ratos, trincam-lhe o milho...
— Oh! forte praga de ratazanas! —
Branqueja a neve, ruge a nortada...
Lá vai a telha desmantelada
Das alpendradas mais das choupanas!
Ouvide ainda maior desgraça...
Tinha uma filha, — que doce graça
De rapariga...
Nas largas noites, junto á fogueira,
Lume bendito sobre a lareira,
Ela fiava (gentil fiandeira...)
O linho branco da sua estriga...
Até ao tardo cantar do galo
— Não imaginam, — era um regalo
O pai velhinho vê-la fiar...
Rufam chuveiros fortes lá fora...
(Ai! Anjo Bento, Nossa Senhora
Seja c'os que andam a esta hora
Sobl'as águas turbas do mar!)
Ela era a vida da sua vida;
Ela era o lume do seu olhar,
— Lume bendito que n'alma brilha.
Como ele lhe queria — rola querida
Nem temos nada que admirar,
Porque era filha...
Mas sucedeu que em certo dia
(Dia aziago... Ele nem podia
Pensar em tal de olhos enxutos!)
Passou por lá um rapazão...
(Grande patife! Grande ladrão!)
Leva-lhe a sua consolação:
Rouba-lhe a filha, e em troca então
Deixou-lhe a dor, — só dor e lutos!
5
Malditos sejam os valdevinos
Que andam as jovens a desonrar!
Santos velhinhos, boas famílias,
Guardai dos lobos as vossas filhas
Dentro do lar...
Vede a desgraça enorme e crua
Do paciente do lavrador!
— Triste batalha! —
Que há de ele fazer? Que vida a sua!
Que há de ele fazer na sua dor?!
O Pai-do-Céu o ajude e valha...
***
Bons lavradores! Chorando ou rindo,
Dizem que vida assim não ha...
Vamos, rapazes, vamos subindo;
Deixai-os lá...
OS MENDIGOS
Sentados pelas orlas dos caminhos,
Olhai os lacrimosos pobrezinhos...
Doentes, velhos, rotos, corcovados,
Alforjes para os ombros, resignados,
Pernas secas, cambaias, retorcidas,
Contando-se uns aos outros suas vidas,
— Olhai que inigualáveis odisséias...
Aquelas engelhadas caras feias,
Escaveiradas, sujas, com barbaça,
Contraem-se num rictus de desgraça
Riscado pelo dedo da miséria...
Sob a abóbada azul, celeste, etéria,
Sem palácios, sem camas, sem pousadas,
Desde o sol-posto á luz das alvoradas,
Percorrem varias terras a pedir
Côdeas de pão...
Á noite vão dormir
Sobre a palha dos velhos alpendrais,
Juntamente c’os ratos e os pardais,
E c’os escrofulosos canzarrões
6
(Expulsos da cozinha p’los patrões)
Repartindo com eles das esmolas,
Que tiram lentamente das sacolas...
E comem de uma vez jantar e ceia...
Ainda assim vós não fazeis idéia
Como eles são felizes, os mendigos...
No estio vão deitar-se pelos trigos,
De bandulhos pró ar, a meditar
Nas velhas aventuras, ao luar,
Dos tempos da bizarra mocidade,
De que inda tem uns restos de saudade...
Rastejam pela terra as salamandras;
Chilreiam delambidas as calhandras,
Picando por ali o louro grão...
Que pacifica, ideal consolação
A existência deles descuidada:
— Pedir, rezar, comer, dormir... Mais nada.
Tardes mornas...
As nuvens, pelo azul,
São flotilhas, que vogam para o sul,
Em demanda das Índias encantadas
Onde vivem sereias, silfos, fadas...
No outono, passam líricas manhãs
Ferrando os dentes podres nas maçãs;
E em tardes murmurosas vão-se por
Nos ermos, murmurando com fervor
As perfumadas orações antigas
Ensinadas p’las mães (pobres mendigas,
Que o bom Deus desde há muito já lá tem...)
Oh! Nunca esquecem orações de mãe...
Chilreiam cotovias nos valados...
Nas largas noites invernais, coitados,
É que eles sofrem gelos e frieiras!
Por horas mortas, quando as ventaneiras
Lhes fogem c’os colmados das cabanas,
Abandonam a enxerga das choupanas,
E vão-se recostar pelos portais
Aonde o frio os mortifica mais!
O vento ulula rouquidões e pragas...
7
Andam no ar escuridões presagas,
Que põem calafrios na espinha...
Maldita chuva! — Quanto mais se aninha
O pobrezinho, mais se ensopa e alaga!
Ó santa primavera, Deus te traga...
Primavera! Que tardes deleitosas
Andam no ar ondulações radiosas,
Exalações miríficas das flores...
Que perfusão esplendida de cores
E os pobres, pelas tardes perfumosas,
Coroam-se de mirtos e de rosas,
E atafulham de rosas a sacola...
Santa abundância, abençoada esmola
A tua, ó primavera do Senhor...
— Alvorada de rosas e de amor...
OS POETAS
Acima companheiros!
Alegres como airadas borboletas,
Visitemos os pálidos poetas,
Que andam a cismar entre os loureiros...
Seu vulto aos céus se alteia...
Vede-os, rapazes, vede-os... — São aqueles
De olhar ardente! — Vede-os, como eles
Trazem nos olhos o clarão da idéia!
Nas faces desmaiadas
Vêem-se indícios da vigília estóica,
Que passam a cantar em rima heróica
As antigas batalhas porfiadas...
Seus olhos amoráveis
Andam tristes, vermelhos de chorar,
Em noites silenciosas, ao luar,
As desgraças dos povos miseráveis...
Espíritos do bem,
“Almas de fogo, que um vil mundo encerra”
Como os denominou quem foi na terra
Entre os maiores trovador também...
8
Ó pálidos poetas,
Eu vos saúdo, ó almas desditosas,
Cantores das batalhas ou das rosas,
Coroados de lauréis ou de violetas...
O TUBERCULOSO
Além, sentado á sombra das ramadas,
No musgo dum rochedo,
Cisma um jovem de faces desmaiadas
Tão magro que põe medo...
É o tísico. Nos olhos encovados,
Doridos de sofrer,
Vê-se a resignação dos desgraçados
Cansados de viver...
Sussurra a aragem fria pelas heras
Um canto gemebundo,
Como a música etérea das Esferas
Nos âmbitos do mundo...
Caem as folhas mortas, retorcidas,
Revelhas pela relva;
E as avezinhas calam-se, transidas
De frio, pela selva...
Desmaia ao longe o sol... — Que tardes estas
De mágoas tão profundas!
Andam no ar exalações funestas
Das rosas moribundas...
Co’as chuvas engrossaram as ribeiras.
Lá passam a gemer,
Levando os esqueletos das roseiras,
Que acabam de morrer...
Erguem-se ao ar as ramas desnudadas
Das árvores agrestes;
E as aves vão piar desconsoladas
Á sombra dos ciprestes...
Os ciprestes! — Só eles com o inverno
Não perdem o vigor...
9
Bem mostram que no mundo é sempiterno
O sofrimento, — a Dor!
A tosse (ei-lo a tossir!) rasgar-lhe o peito
Em bruscas convulsões,
Arrancando-lhe o sangue já desfeito
Dos pútridos pulmões!
A infância, a mocidade... — esperanças mortas...
Como isso já lá vai!
Assim expiram ilusões absortas
No hálito dum ai!...
Pobre tísico! — Os olhos encovados,
Doridos de sofrer,
Fitam as coisas, brandos, resignados,
Dispostos a morrer...
ORFÃOZINHOS
Crianças — olhai-as — perto,
Desmaiaditas a rir...
Nos olhos um céu aberto,
Nos lábios rosas a abrir...
Não tem mãe, não tem lume.
Sua lareira é o caminho,
— Como ninhadita implume,
Morta a mãe longe do ninho.
Crianças que não tem lar
Onde o carinho reluz
Nunca aprenderão a amar,
— São como as rosas sem luz...
Ouço dizer que as crianças
(Anjos de olhar manso e puro...)
São chilreantes esp'ranças
Dum deslumbrante futuro...
Mas estas, que a rua cria,
Magrizelas, definhadas,
— Quem me assegura que um dia
Não hão de ser desgraçadas?
10
Crianças órfãs, sem mãe,
Já nascem com sua cruz,
Como nasceu em Belém
O Deus Menino, Jesus...
— “São rosas a abrir mimosas
As criancinhas...” — Pois sim!
Só se nós chamarmos rosas
Ás florinhas do alecrim...
NOIVOS
Além cismam dois noivos,
Fitando ao longe a curva azul do céu
C’uns olhos muito tristes, como goivos
Á flor duma ilusão que já morreu...
Quem pode adivinhar
As coisas em que cismam, que mistério?
— Pensam na nostalgia do luar,
Beijocando os rosais do cemitério...
Ouvide: — Ela, a sorrir,
Pergunta com brandura:
“Quem primeiro de nós irá dormir
Naquela sepultura?...”
O BOÊMIO
Cai sobre as coisas um luar de prata,
Luar bendito, que enlanguesce, enleia...
Vem ao longe uma airada serenata,
Soluçando uma antiga melopéia...
Lá vem o tocador. É um vadio,
De guitarra chorosa ao tiracolo...
Passa as noites cantando pelo frio
Cantigas de saudade e desconsolo...
É um boêmio, dos parias desgraçados,
De olhos profundos, vagos, erradios
Que vivem a cantar pelos eirados,
E morrem afogados pelos rios...
11
É dessa raça antiga, vagabunda,
Que atravessava todas as nações
Composta de uma incrível barafunda
De cômicos, mendigos e ladrões...
Ei-lo, — o rebento dessas raças mortas,
(Esparge-se o luar na solidão...)
Cantarolando á lua, pelas portas,
Cantigas de saudade e de paixão...
12
ADELINO FONTOURA
(1859—1884)
LITERATURA BRASILEIRA
BORGHI MAMO
Ao doce timbre harmonioso e brando
Da tua voz, ó alma enamorada,
Sinto minha alma em sonhos embalada
E como que eu também fico sonhando!
Como agitava o vento, perpassando,
A harpa eólia no salgueiro alada,
Tal me agita essa voz apaixonada
Quando, ó ave de amor, surges cantando.
Ouvir-te é como ver nascer a aurora:
Tudo inunda de luz, tudo ilumina
A tua voz angélica e sonora.
Solta, pois, a volata peregrina!
Ama, geme, soluça, canta e chora,
Celeste Aída, Malibran divina!
ATRAÇÃO E REPULSÃO
Eu nada mais sonhava nem queria
Que de ti não viesse, ou não falasse;
E como a ti te amei, que alguém te amasse,
Coisa incrível até me parecia.
Uma estrela mais lúcida eu não via
Que nesta vida os passos me guiasse,
13
E tinha fé, cuidando que encontrasse,
Após tanta amargura, uma alegria.
Mas tão cedo extinguiste este risonho,
Este encantado e deleitoso engano,
Que o bem que achar supus, já não suponho.
Vejo, enfim, que és um peito desumano;
Se fui ter junto a ti de sonho em sonho,
Voltei de desengano em desengano.
ANTES DE PARTIR
Venho ensopar de lágrimas o lenço
No tristíssimo adeus de despedida;
Em breve a Pátria vou deixar perdida
Além - na curva do horizonte imenso!
Em breve sobre o mar profundo e extenso
Adejará minh'alma dolorida,
Como a gaivota errante, foragida,
Sem ter um ninho onde pousar, suspenso!
Então, senhora, hei de pensar, tristonho,
Revendo a vossa angélica bondade,
Neste ninho de amor calmo e risonho;
E triste, sobre a triste imensidade,
Como quem despertou de um ledo sonho,
Hei de chorar o pranto da saudade.
VÁCUO
Não sei se pode haver padecimento
Mais profundo, mais íntimo e que tanto
Nos ponha na alma a dor que gera o pranto,
Do que um longo e tristonho isolamento.
Não ter um bem sequer no pensamento,
Nem o calor de um lar, nem o encanto
De um amor de mulher suave e santo,
É viver sem nenhum contentamento.
Bem sei que é bom sofrer, e me parece
Que esta vida sem dor nada seria,
E que é por isso até que se padece.
Mas esta solidão contínua e fria
Chega a ser tão cruel, que a não merece
Um coração que a dor mereceria.
14
SÚPLICA
Por mais que aspire ou queira, anele ou tente
Esquecer-me de ti - jamais me esqueço,
Ó bem amado ser por quem padeço,
Por quem tanto soluço inutilmente!
Bem que eu te peça, foges de repente,
E só me fica a dor que te não peço;
E eis tudo, ó céus! eis tudo o que eu mereço,
Em paga deste amor tão puro e crente.
Se te não move, pois, um desafeto
E se te apraz ao menos consolar
A desventura amarga deste afeto,
Ilumina com teu divino olhar
Esta alma que os teus pés, anjo dileto,
Vem, banhada de lágrimas, beijar.
GAZETINHA
(No dia do seu primeiro aniversário)
Eu não venho trazer a vossa excelência
Um fantástico mimo "high-lifeano";
Possuo um coração meridiano,
Mas não vivo nas pompas da Regência.
Porém, se eu fosse um príncipe indiano,
De sangue azul e antiga descendência,
Possuindo a Golconda, essa opulência,
E os tesouros do Índico Oceano,
Nessas pequenas mãos, tímido e mudo,
Minha senhora, eu deporia tudo...
Como os brilhantes de um colar, dispersos!
Mas... se sou pobre, o que tão mal me fica,
Consinta que, sem luvas de pelica,
Venha depor-lhe aos pés estes meus versos.
DESPEDIDA
Pois que é chegada finalmente a hora
Do triste afastamento e da provança,
Venho dizer-te adeus, gentil criança,
15
Venho dizer-te adeus, pois vou-me embora.
Morreu em mim a última esperança,
Bem como um sonho bom que se evapora;
Não sei que dor maior que resta agora
Sofrer, nem que maior desesperança.
Não sei, ó sorte mísera e nefasta,
Que assim me arrancas do seu lar querido,
Que assim me roubas sua imagem casta.
Bem vês que eu tenho o coração partido,
E teu peito, inda assim, não desengasta
Um soluço, uma lágrima, um gemido.
OHS! E AIS!
Essa mulher que tantos ohs! provoca,
Essa mulher que tantos ais! arranca,
Essa mulher quem é? Por que abre a boca
O Silvestre quando a vê? - É branca?
É morena? É francesa? É carioca?
As belezas helênicas desbanca?
O seu olhar os cérebros desloca?
O seu sorriso as lágrimas estanca?
Vamos, Raimundo, tu que viste há dias
A mágica visão, o ser terrestre,
Por quem já deste uns ais! e uns ohs! eu sinto,
Tira as garras da dúvida ao Matias,
Faze valsar o Lins, rir o Silvestre
E reler os "Subsídios" o Filinto.
16
ADEODATO BARRETO
(1905—1937)
LITERATURA PORTUGUESA
AS AZINHEIRAS
São como eu aquelas azinheiras
do montado...
Como o verão alegre põe doçuras
e sorrisos no côncavo estrelado,
aprestam, em sorrisos, seu toucado
e vão erguendo ao céu os galhos novos.
Mas sob o verde-claro dos renovos
o negro da tristeza
se lhes adensa, em rama, tristemente
nos abrigos;
e quem as vê por dentro já pressente
o inverno que ameaça a Natureza:
-igual ao que se adensa na minha alma,
igual ao que não vêem meus amigos...
A PENEIRA
Aquele pobre insensato
que despreza o Permanente,
por um prazer aparente
17
só por ser imediato:
Lembra a peneira doidinha,
tão doida quanto fininha,
que, conservando o farelo,
deixa fugir a farinha...
REDENÇÃO
Goa bela!
Olha os Gates em chama!
Olha a crista revolta
que se inflama!
Andam tigres à solta
nos bosques de Bengala!
É a Índia que te fala!
É a Índia que te chama!
Olha os Gates floridos, Goa bela!
Seus píncaros parecem mil canteiros
de corolas subtis, multicolores;
nos seus desfiladeiros,
a Água se transforma em mar de leite
e o leite em mar de Flores!
Eis a Manhã de Glória, que desponta
num clarão!
Goa! Olha os Gates floridos!
Olha os reflexos da Aurora
da tua redenção!
Vês como, além, o areal palpita
e as arequeiras
suas copas virentes entrelaçam
ao seu calor?
No jangál já vê o wág se não agita,
e, alacres, despertam capoeiras,
e mil casais se enlaçam
com amor...
É o fulgor
da tua manhã de Glória que os excita!
Ó Goa bela, ouve os Gates cantando:
18
nos seus mihares
de ôllos seculares
— imensas catedrais abobadadas —
acordam as ninhadas!
A brisa do Decão traz-nos, dos ninhos,
suas canções:
parecem luz a entrar aos bocadinhos
nos corações!
Olha os Gates, ó Goa, Goa bela!
Vê como as verdes olas se espanejam
nos seus palmares;
e os bule-bules gárrulos festejam
a hora do resgate!
O coco, escrínio de oiro,
tingiu-se de mais loiro,
e nas searas das morodas
se aloira mais o bate!
Goa bela!
Eis o pólen da Vida
que Súria vem verter nos teus jardins!
Abre à Vida o teu peito:
o seu beijo fecundo redimida,
a Natureza juncará teu leito
de mogarins!...
O Mar, teu bardo antigo,
teu velho amante,
estorce-se em tuas praias suplicante,
esmolando carícias:
(blandícias
de traição...)
Mas não lhe volvas teu olhar amigo,
ó Goa bela!
O mar é um inimigo:
se te traz a monção,
também te traz procela
e já te trouxe a santa
Inquisição...
O Mar, teu velho amante?
Tola a paixão qu’inda por ele nutres!
pelos trilhos
do seu dorso gigante,
19
pombas de brancas asas,
(por dentro abutres
de goela hiante...)
vieram sobre ti banquetear-se
e te servirem fogo em vez de luz:
e mancharem teus lares
e queimarem teus filhos,
teus livros, teus tesouros, teus altares
frias, pálidas mãos alçando a Cruz!
E com os filhos queimados,
com os livros perecidos,
os altares destruídos
e os templos profanados,
os teus Deuses te deixaram,
os teus sábios morreram
as virtudes debandaram
e... os abolins feneceram...
Hoje na tua vida
tudo é monotonia:
sem ciência nem cultura, sem gênios nem poetas
vegetas...
Pobre mina exaurida!
No ritmo da ataxia
a seiva produtiva
estancou em tuas veias...
E crês-te progressiva!
E pensas iludir essa melancolia
caiando de alvaiade as faces bronzeadas,
a fingir de.... europeias!
Mas ficam furta-cores...
Águias ousadas
e inquietas,
condores
ansiosos de vida e de espaços,
teus filhos,
buscando novos trilhos
abandonam-te em triste debandada.
Uns encontram a Glória, outros a Morte:
eles, águias inquietas
20
na sua sede de vida e de espaços!
Mas tu, indiferente à sua sorte,
comes do ganho dos seus braços
e encostas-te às muletas
como uma velha trôpega e cansada!
Eis a lição,
“a exploração”,
que te legou a Europa, tua senhora:
ela explorou-te outrora,
tu exploras agora
os filhos do teu próprio coração!
Pobre Goa, tão pobre! Em que ignóbil carcaça
pôs a tua alma d´ouro, a hora da desgraça!
Teu cérebro esgotado
dormiu na inconsciência!
E, esquecido o passado,
interrupta a História,
bate em vão a alheias portas em busca da Ciência!
Vai em balde a estranhas terras à procura da Glória!
Ó Goa bela! Acorda!
Esquece-te e recorda!
Esquece os longos anos de desdita,
de miséria infinita,
de revolta, de luto, de opressão!
Esquece a Inquisição,
e o Jesuíta
que te torceu a alma,
que te deixou por arma
a hipocrisia,
e cavou mil abismos penetrantes
(fé, costumes, língua, tradição...)
entre
os filhos do teu ventre.
Esquece-te das noites horrorosas
e trágicas, de incêndios crepitantes
em que, templo após templo,
campo após campo,
se consumia
o melhor das riquezas portentosas
que no teu seio havia.
21
Ó Goa bela, acorda!
Esquece-te e recorda!
Recorda a tua História!
Folheia o Livro de Ouro do Passado!
Volve às eras de glória
em que eras grande, em que eras moça e sábia,
em que os homens do Pérsico e do Tigre
te vinham ofertar corcéis da Arábia
e tu lhes davas sândalo e gengibre;
em que os teus cinco rios,
cantados
pelas puranas santas
lavavam os pecados
e eram visitados:
rios cuja água, bebida,
era uma fonte de amor, doçura e vida!
Esses tempos passaram,
estas glórias morreram,
essas árvores d´ouro feneceram,
e as águas sagradas,
abandonadas,
se profanaram...
Jamais um batelão
de quilha donairosa
flutuou triufante à tona do Zuari;
e a flor da tradição
tremeu e, pressurosa
fugiu de ao pé de ti...
Outros povos, porém, outros ares mais puros
e reinos mais seguros
guardaram com unção
o seu botão.
Hoje, desabrochada, as pétalas estrela
e estende para ti:
E sobre o gineceu — exulta ó Goa bela! —
surge, de novo, ovante, a Deusa Lakximi!
E agora
olha a manhã de glória que desponta
num clarão:
É ela
22
— Ó Goa bela!
São os Gates floridos!
São os reflexos da Aurora
da tua redenção!
23
ALBERTO DE OLIVEIRA
(1857—1937)
LITERATURA BRASILEIRA
ASPIRAÇÃO
Ser palmeira! existir num píncaro azulado,
Vendo as nuvens mais perto e as estrelas em bando;
Dar ao sopro do mar o seio perfumado,
Ora os leques abrindo, ora os leques fechando;
Só de meu cimo, só de meu trono, os rumores
Do dia ouvir, nascendo o primeiro arrebol,
E no azul dialogar com o espírito das flores,
Que invisível ascende e vai falar ao sol;
Sentir romper do vale e a meus pés, rumorosa,
Dilatar-se a cantar a alma sonora e quente
Das árvores, que em flor abre a manhã cheirosa,
Dos rios, onde luz todo o esplendor do Oriente;
E juntando a essa voz o glorioso murmúrio
De minha fronde e abrindo ao largo espaço os véus
Ir com ela através do horizonte purpúreo
E penetrar nos céus;
Ser palmeira, depois de homem ter sido esta alma
Que vibra em mim, sentir que novamente vibra,
E eu a espalmo a tremer nas folhas, palma a palma,
E a distendo, a subir num caule, fibra a fibra:
E à noite, enquanto o luar sobre os meus leques
treme, E estranho sentimento, ou pena ou mágoa ou dó,
Tudo tem e, na sombra, ora ou soluça ou geme,
E a distendo, a subir num caule, fibra a fibra;
24
Que bom dizer então bem alto ao firmamento
O que outrora jamais — homem — dizer não pude,
Da menor sensação ao máximo tormento
Quanto passa através minha existência rude!
E, esfolhando-me ao vento, indômita e selvagem,
Quando aos arrancos vem bufando o temporal,
— Poeta — bramir então à noturna bafagem,
Meu canto triunfal!
E isto que aqui digo então dizer: —que te amo,
Mãe natureza! mas de modo tal que o entendas,
Como entendes a voz do pássaro no ramo
E o eco que têm no oceano as borrascas tremendas;
E pedir que, o uno sol, a cuja luz referves,
Ou no verme do chão ou na flor que sorri,
Mais tarde, em qualquer tempo, a minh'alma conserves,
Para que eternamente eu me lembre de til
TAÇA DE CORAL
Lícias, pastor — enquanto o sol recebe,
Mugindo, o manso armento e ao largo espraia.
Em sede abrasa, qual de amor por Febe,
— Sede também, sede maior, desmaia.
Mas aplacar-lhe vem piedosa Naia
A sede d'água: entre vinhedo e sebe
Corre uma linfa, e ele no seu de faia
De ao pé do Alfeu tarro escultado bebe.
Bebe, e a golpe e mais golpe: —"Quer ventura
(Suspira e diz) que eu mate uma ânsia louca,
E outra fique a penar, zagala ingrata!
Outra que mais me aflige e me tortura,
E não em vaso assim, mas de uma boca
Na taça de coral é que se mata".
HORAS MORTAS
Breve momento após comprido dia
De incômodos, de penas, de cansaço
Inda o corpo a sentir quebrado e lasso,
Posso a ti me entregar, doce Poesia.
25
Desta janela aberta, à luz tardia
Do luar em cheio a clarear no espaço,
Vejo-te vir, ouço-te o leve passo
Na transparência azul da noite fria.
Chegas.O ósculo teu me vivifica
Mas é tão tarde!Rápido flutuas
Tornando logo à etérea imensidade;
E na mesa em que escrevo apenas fica
Sobre o papel — rastro das asas tuas,
Um verso, um pensamento, uma saudade.
VASO GREGO
Esta de áureos relevos, trabalhada
De divas mãos, brilhante copa, um dia,
Já de aos deuses servir como cansada,
Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.
Era o poeta de Teos que o suspendia
Então, e, ora repleta ora esvasada,
A taça amiga aos dedos seus tinia,
Toda de roxas pétalas colmada.
Depois... Mas, o lavor da taça admira,
Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas
Finas hás de lhe ouvir, canora e doce,
Ignota voz, qual se da antiga lira
Fosse a encantada música das cordas,
Qual se essa voz de Anacreonte fosse.
A VINGANÇA DA PORTA
Era um hábito antigo que ele tinha:
Entrar dando com a porta nos batentes.
— Que te fez essa porta? a mulher vinha
E interrogava. Ele cerrando os dentes:
— Nada! traze o jantar! — Mas à noitinha
Calmava-se; feliz, os inocentes
Olhos revê da filha, a cabecinha
Lhe afaga, a rir, com as rudes mãos trementes.
Urna vez, ao tornar à casa, quando
Erguia a aldraba, o coração lhe fala:
Entra mais devagar...— Pára, hesitando...
26
Nisto nos gonzos range a velha porta,
Ri-se, escancara-se.E ele vê na sala,
A mulher como doida e a filha morta.
VASO CHINÊS
Estranho mimo aquele vaso! Vi-o,
Casualmente, uma vez, de um perfumado
Contador sobre o mármor luzidio,
Entre um leque e o começo de um bordado.
Fino artista chinês, enamorado,
Nele pusera o coração doentio
Em rubras flores de um sutil lavrado,
Na tinta ardente, de um calor sombrio.
Mas, talvez por contraste à desventura,
Quem o sabe?... de um velho mandarim
Também lá estava a singular figura.
Que arte em pintá-la! A gente acaso vendo-a,
Sentia um não sei quê com aquele chim
De olhos cortados à feição de amêndoa.
SOLIDÃO ESTRELADA
Eu sou da plaga infinita
A solidão estrelada.
Homem, cuja alma se agita
Sempre inquieta e atribulada,
Que tens? que dores consomem
O teu coração que, assim,
Estacas os olhos, homem,
Prendendo-os, atento, em mim?
Invejas-me acaso? ouviste
Que posso, alma desditosa,
Tornar-me feliz, eu, triste!
Eu, solidão misteriosa!
Vem até mim! vem comigo
Estupidamente olhar
Este quadro gasto e antigo
27
De nuvens, de estrelas, de ar...
Vem compartir o cansaço
Que ab aeterno, sem remédio
Me faz no enfadonho espaço
Bocejar todo o meu tédio.
Como enfara o comprimento
Desta extensão que produz
Os astros no firmamento,
Nos astros a mesma luz!
E hei de até quando estender-me,
Triste, monótona e vasta,
Sem que em mim se agite o verme
Do tempo, que tudo gasta?
Solidão, silêncio enorme,
Eis tudo o que sou. Porém,
Se amas a dor que não dorme,
A dor sem limites, - vem!
O PIOR DOS MALES
Baixando à Terra, o cofre em que guardados
Vinham os Males, indiscreta abria
Pandora. E eis deles desencadeados
À luz, o negro bando aparecia.
O Ódio, a Inveja, a Vingança, a Hipocrisia,
Todos os Vícios, todos os Pecados
Dali voaram. E desde aquele dia
Os homens se fizeram desgraçados.
Mas a Esperança, do maldito cofre
Deixara-se ficar presa no fundo,
Que é última a ficar na angústia humana...
Por que não voou também? Para quem sofre
Ela é o pior dos males que há no mundo,
Pois dentre os males é o que mais engana.
28
CHEIRO DE ESPÁDUA
"Quando a valsa acabou, veio à janela,
Sentou-se. O leque abriu. Sorria e arfava,
Eu, viração da noite, a essa hora entrava
E estaquei, vendo-a decotada e bela.
Eram os ombros, era a espádua, aquela
Carne rosada um mimo! A arder na lava
De improvisa paixão, eu, que a beijava,
Hauri sequiosa toda a essência dela!
Deixei-a, porque a vi mais tarde, oh! ciúme!
Sair velada da mantilha. A esteira
Sigo, até que a perdi, de seu perfume.
E agora, que se foi, lembrando-a ainda,
Sinto que à luz do luar nas folhas, cheira
Este ar da noite àquela espádua linda!"
SONETO
Agora é tarde para novo rumo
Dar ao sequioso espírito; outra via
Não terei de mostrar-lhe e à fantasia
Além desta em que peno e me consumo.
Aí, de sol nascente a sol a prumo,
Deste ao declínio e ao desmaiar do dia,
Tenho ido empós do ideal que me alumia,
A lidar com o que é vão, é sonho, é fumo.
Aí me hei de ficar até cansado
Cair, inda abençoando o doce e amigo
Instrumento em que canto e a alma me encerra;
Abençoando-o por sempre andar comigo
E bem ou mal, aos versos me haver dado
Um raio do esplendor de minha terra.
VESTÍGIOS DIVINOS
29
Houve deuses aqui, se não me engano;
Novo Olimpo talvez aqui fulgia;
Zeus agastava-se, Afrodite ria,
Juno toda era orgulho e ciúme insano.
Nos arredores, na montanha ou plano,
Diana caçava, Actéon a perseguia.
Espalhados na bruta serrania,
Inda há uns restos da forja de Vulcano.
Por toda esta extensíssima campina
Andaram Faunos, Náiades e as Graças,
E em banquete se uniu a grei divina.
Os convivas pagãos ainda hoje os topas
Mudados em pinheiros, como taças,
No hurra festivo erguendo no ar as copas.
DENTRO DO SONHO
Tanto de sonho lhe hão chamado a vida
Que por sonho eu a tenho e me convenço
Que tudo nela é sonho, breve ou extenso,
Pouco importa, querida.
Foi sonho aquela vez primeira que nos vimos,
A última sonho foi; sonho o primeiro abraço
Em que os dois nos unimos;
Sonho o dia em que tu entraste por meu braço
Num templo, e logo após na casa que foi nossa;
Sonho o ver-me então moço e o ver-te também moça...
Vinte anos todos de felicidade!
E de improviso tudo acaba, tudo...
Mas esta dor sem fim, esta saudade,
Aquele golpe rudo,
Tredo e medonho,
- Devo-me conformar - não passou tudo
De um sonho que sonhei dentro do grande Sonho.
A CASA DA RUA ABÍLIO
A casa que foi minha, hoje é casa de Deus.
Traz no topo uma cruz. Ali vivi com os meus,
30
Ali nasceu meu filho; ali, só, na orfandade
Fiquei de um grande amor. Às vezes a cidade
Deixo e vou vê-la em meio aos altos muros seus.
Sai de lá uma prece, elevando-se aos céus;
São as freiras rezando. Entre os ferros da grade,
Espreitando o interior, olha a minha saudade.
Um sussurro também, como esse, em sons dispersos,
Ouvia não há muito a casa. Eram meus versos.
De alguns talvez ainda os ecos falaram,
E em seu surto, a buscar o eternamente belo,
Misturados à voz das monjas do Carmelo,
Subirão até Deus nas asas da oração.
A ALMA DOS VINTE ANOS
A alma dos meus vinte anos noutro dia
Senti volver-me ao peito, e pondo fora
A outra, a enferma, que lá dentro mora,
Ria em meus lábios, em meus olhos ria.
Achava-me ao teu lado então, Luzia,
E da idade que tens na mesma aurora;
A tudo o que já fui, tornava agora,
Tudo o que ora não sou, me renascia.
Ressenti da paixão primeira e ardente
A febre, ressurgiu-me o amor antigo
Com os seus desvarios e com os seus enganos...
Mas ah! quando te foste, novamente
A alma de hoje tornou a ser comigo,
E foi contigo a alma dos meus vinte anos.
31
ALEXANDRE HERCULANO
(1810—1877)
LITERATURA PORTUGUESA
SEMANA SANTA
É tão suave ess'hora,
Em que nos foge o dia,
E em que suscita a Lua
Das ondas a ardentia,
Se em alcantis marinhos,
Nas rochas assentado,
O trovador medita
Em sonhos enteado!
O mar azul se encrespa
C’oa vespertina brisa,
E no casal da serra
A luz já se divisa.
E tudo em roda cala
Na praia sinuosa,
Salvo o som do remanso
Quebrando em furna algosa.
Ali folga o poeta
Nos desvarios seus,
E nessa paz que o cerca
Bendiz a mão de Deus.
32
Mas despregou seu grito
A alcíone gemente,
E nuvem pequenina
Ergueu-se no ocidente:
E sobe, e cresce, e imensa
Nos céus negra flutua,
E o vento das procelas
Já varre a fraga nua.
Turba-se o vasto oceano.
Com hórrido clamor;
Dos vagalhões nas ribas
Expira o vão furor
E do poeta a fronte
Cobriu véu de tristeza;
Calou, à luz do raio,
Seu hino à natureza.
Pela alma lhe vagava
Um negro pensamento,
Da alcíone ao gemido,
Ao sibilar do vento.
Era blasfema ideia,
Que triunfava enfim;
Mas voz soou ignota,
Que lhe dizia assim:
“Cantor, esse queixume
Da núncia das procelas,
E as nuvens, que te roubam
Miríades de estrelas,
E o frêmito dos euros,
E o estourar da vaga,
Na praia, que revolve,
Na rocha, onde se esmaga,
Onde espalhava a brisa
Sussurro harmonioso,
Enquanto do éter puro
33
Descia o Sol radioso,
Tipo da vida do homem,
É do universo a vida:
Depois do afã repouso,
Depois da paz a lida.
Se ergueste a Deus um hino
Em dias de amargura;
Se te amostraste grato
Nos dias de ventura,
Seu nome não maldigas
Quando se turba o mar:
No Deus, que é pai, confia,
Do raio ao cintilar.
Ele o mandou: a causa
Disso o universo ignora,
E mudo está. O nume,
Como o universo, adora!”
Oh, sim, torva blasfêmia
Não manchará seu canto!
Brama a procela embora;
Pese sobre ele o espanto;
Que de sua harpa os hinos
Derramará contente
Aos pés de Deus, qual óleo
Do nardo recendente.
A VOZ
É tão suave ess'hora,
Em que nos foge o dia,
E em que suscita a Lua
Das ondas a ardentia,
Se em alcantis marinhos,
Nas rochas assentado,
O trovador medita
Em sonhos enteado!
34
O mar azul se encrespa
C’oa vespertina brisa,
E no casal da serra
A luz já se divisa.
E tudo em roda cala
Na praia sinuosa,
Salvo o som do remanso
Quebrando em furna algosa.
Ali folga o poeta
Nos desvarios seus,
E nessa paz que o cerca
Bendiz a mão de Deus.
Mas despregou seu grito
A alcíone gemente,
E nuvem pequenina
Ergueu-se no ocidente:
E sobe, e cresce, e imensa
Nos céus negra flutua,
E o vento das procelas
Já varre a fraga nua.
Turba-se o vasto oceano.
Com hórrido clamor;
Dos vagalhões nas ribas
Expira o vão furor
E do poeta a fronte
Cobriu véu de tristeza;
Calou, à luz do raio,
Seu hino à natureza.
Pela alma lhe vagava
Um negro pensamento,
Da alcíone ao gemido,
Ao sibilar do vento.
Era blasfema ideia,
Que triunfava enfim;
Mas voz soou ignota,
Que lhe dizia assim:
“Cantor, esse queixume
Da núncia das procelas,
E as nuvens, que te roubam
Miríades de estrelas,
E o frêmito dos euros,
E o estourar da vaga,
Na praia, que revolve,
Na rocha, onde se esmaga,
35
Onde espalhava a brisa
Sussurro harmonioso,
Enquanto do éter puro
Descia o Sol radioso,
Tipo da vida do homem,
É do universo a vida:
Depois do afã repouso,
Depois da paz a lida.
Se ergueste a Deus um hino
Em dias de amargura;
Se te amostraste grato
Nos dias de ventura,
Seu nome não maldigas
Quando se turba o mar:
No Deus, que é pai, confia,
Do raio ao cintilar.
Ele o mandou: a causa
Disso o universo ignora,
E mudo está. O nume,
Como o universo, adora!”
Oh, sim, torva blasfêmia
Não manchará seu canto!
Brama a procela embora;
Pese sobre ele o espanto;
Que de sua harpa os hinos
Derramará contente
Aos pés de Deus, qual óleo
Do nardo recendente.
O SOLDADO
I
Veia tranquila e pura
De meu paterno rio,
Dos campos, que ele rega,
Mansíssimo armentio.
Rocio matutino,
Prados tão deleitosos,
Vales, que assombravam selvas
De sinceirais frondosos,
Terra da minha infância,
36
Teto de meus maiores,
Meu breve jardinzinho,
Minhas pendidas flores,
Harmonioso e santo
Sino do presbitério,
Cruzeiro venerando
Do humilde cemitério,
Onde os avós dormiram,
E dormirão os pais;
Onde eu talvez não durma,
Nem reze, talvez, mais,
Eu vos saúdo!, e o longo
Suspiro amargurado
Vos mando. E quanto pode
Mandar pobre soldado.
Sobre as cavadas ondas
Dos mares procelosos,
Por vós já fiz soar
Meus cantos dolorosos.
Na proa ressonante
Eu me assentava mudo,
E aspirava ansioso
O vento frio e agudo;
Porque em meu sangue ardia
A febre da saudade,
Febre que só minora
Sopro de tempestade;
Mas que se irrita, e dura
Quando é tranquilo o mar;
Quando da pátria o céu
Céu puro vem lembrar;
Quando, no extremo ocaso,
A nuvem vaporosa,
À frouxa luz da tarde,
Na cor imita a rosa;
37
Quando, do Sol vermelho
O disco ardente cresce,
E paira sobre as águas,
E enfim desaparece;
Quando no mar se estende
Manto de negro dó;
Quando, ao quebrar do vento,
Noite e silêncio é só;
Quando sussurram meigas
Ondas que a nau separa,
E a rápida ardentia
Em torno a sombra aclara.
II
Eu já ouvi, de noite,
Entre o pinhal fechado,
Um frêmito soturno
Passando o vento irado:
Assim o murmúrio
Do mar, fervendo à proa,
Com o gemer do aflito,
Sumido, acorde soa;
E o cintilar das águas
Gera amargura e dor,
Qual lâmpada, que pende
No templo do Senhor,
Lá pela madrugada,
Se o óleo lhe escasseia,
E a espaços expirando.
Afrouxa e bruxuleia.
III
Bem abundante messe
De pranto e de saudade
O foragido errante
Colhe na soledade!
Para o que a pátria perde
É o universo mudo;
38
Nada lhe ri na vida;
Mora o fastio em tudo;
No meio das procelas,
Na calma do oceano,
No sopro do galerno,
Que enfuna o largo pano.
E no entestar c’oa terra
Por abrigado esteiro,
E no pousar à sombra
Do teto do estrangeiro.
IV
E essas memórias tristes
Minha alma laceraram,
E a senda da existência
Bem agra me tornaram:
Porém nem sempre férreo
Foi meu destino escuro;
Sufocou de luz um raio
As trevas do futuro.
Do meu país querido
A praia ainda beijei,
E o velho e amigo cedro
No vale ainda abracei!
Nesta alma regelada
Surgiu ainda o gozo,
E um sonho lhe sorriu
Fugaz, mas amoroso.
Oh, foi sonho da infância
Desse momento o sonho!
Paz e esperança vinham
Ao coração tristonho.
Mas o sonhar que monta,
Se passa, e não conforta?
Minh'alma deu em terra,
Como se fosse morta.
39
Foi a esperança nuvem,
Que o vento some á tarde:
Facho de guerra aceso
Em labaredas arde!
Do fratricídio a luva
Irmão a irmão lançara,
E o grito: ai do vencido!
Nos montes retumbara.
As armas se hão cruzado:
O pó mordeu o fone;
Caiu: dorme tranquilo:
Deu-lhe repouso a morte.
Ao menos, nestes campos
Sepulcro conquistou,
E o adro dos estranhos
Seus ossos não guardou.
Ele herdará, ao menos,
Aos seus honrado nome;
Paga de curta vida
Ser-lhe-á largo renome.
V
E a bala sibilando,
E o trom da artilharia,
E a tuba clamorosa,
Que os peitos acendia,
E as ameaças torvas,
E os gritos de furor,
E desses que expiravam
Som cavo de estertor,
E as pragas do vencido,
Do vencedor o insulto.
E a palidez do morto,
Nu, sanguento, insepulto,
Eram um caos de dores
Em convulsão horrível,
Sonho de acesa febre,
40
Cena tremenda e incrível!
E suspirei: nos olhos
Me borbulhava o pranto,
E a dor, que trasbordava,
Pediu-me infernal canto.
Oh, sim!, maldisse o instante,
Em que buscar viera,
Por entre as tempestades,
A terra em que nascera.
Que é, em fraternas lides,
Um canto de vitória?
É delirar maldito;
É triunfar sem glória.
Maldito era o triunfo,
Que rodeava o horror,
Que me tingia tudo
De sanguinosa cor!
Então olhei saudoso
Para o sonoro mar;
Da nau do vagabundo
Meigo me riu o arfar.
De desespero um brado
Soltou, ímpio, o poeta,
Perdão! Chegara o mísero
Da desventura à meta.
VI
Terra infame! – de servos aprisco,
Mais chamar-me teu filho não sei;
Desterrado, mendigo serei:
De outra terra meus ossos serão!
Mas a escravo, que pugna por ferros,
Que herdará desonrada memória,
Renegando da terra sem glória,
Nunca mais darei nome de irmão!
Onde é livre tem pátria o poeta,
41
Que ao exílio condena ímpia sorte.
Sobre os plainos gelados do norte
Luz do Sol também desce do céu;
Também lá se erguem montes. e o prado
De boninas, em Maio, se veste;
Também lá se meneia o cipreste
Sobre o corpo que à terra desceu.
Que me importa o loureiro da encosta?
Que me importa da fonte o ruído?
Que me importa o saudoso gemido
Da rolinha sedenta de amor?
Que me importam outeiros cobertos
Da verdura da vinha, no Estio?
Que me importa o remanso do rio,
E, na calma, da selva o frescor?
Que me importa o perfume dos campos,
Quando passa da tarde a bafagem,
Que se embebe, na sua passagem,
Na fragrância da rosa e alecrim?
Que me importa? Pergunta insensata!
É meu berço: a minha alma está lá...
Que me importa... Esta boca o dirá?!
Minha pátria, estou louco... menti!
Eia, servos! O ferro se cruze,
Assobie o pelouro nos ares;
Estes campos convertam-se em mares,
Onde o sangue se possa beber!
Larga a vala!, que, após a peleja,
Todos nós dormiremos unidos!
Lá, vingados, e do ódio esquecidos,
Paz faremos... depois do morrer!
VII
Assim, entre amarguras,
Me delirava a mente;
E o Sol ia fugindo
No termo do Ocidente.
42
E os fortes lá jaziam
C’oa face ao céu voltada;
Sorria a noite aos monos,
Passando sossegada.
Porém, a noite deles
Não era a que passava!
Na eternidade a sua
Corria, e não findava.
Contrários ainda há pouco,
Irmãos, enfim, lá eram!
O seu tesouro de ódio,
Mordendo o pó, cederam.
No limiar da morte
Assim tudo fenece:
Inimizades calam,
E até o amor esquece!
Meus dias rodeados
Foram de amor outrora;
E nem um vão suspiro
Terei, morrendo, agora,
Nem o apertar da dextra
Ao desprender da vida,
Nem lágrima fraterna
Sobre a feral jazida!
Meu derradeiro alento
Não colherão os meus.
Por minha alma aterrada
Quem pedirá a Deus?
Ninguém! Aos pés o servo
Meus restos calcará,
E o riso ímpio, odiento,
Mofando soltará.
O sino lutuoso
Não lembrará meu fim:
Preces, que o morto afagam,
43
Não se erguerão por mim!
O filho dos desertos,
O lobo carniceiro,
Há de escutar alegre
Meu grito derradeiro!
Ó morte, o sono teu
Só é sono mais largo;
Porém, na juventude,
É o dormi-lo amargo:
Quando na vida nasce
Essa mimosa flor,
Como a cecém suave,
Delicioso amor;
Quando a mente acendida
Crê na ventura e glória;
Quando o presente é tudo.
E inda nada a memória!
Deixar a cara vida,
Então é doloroso,
E o moribundo à Terra
Lança um olhar saudoso.
A taça da existência
No fundo fezes tem;
Mas os primeiros tragos
Doces, bem doces, vem.
E eu morrerei agora
Sem abraçar os meus,
Sem jubiloso um hino
Alevantar aos Céus?
Morrer, morrer, que importa?
Final suspiro, ouvi-lo
Há de a pátria. Na terra
Irei dormir tranquilo.
Dormir? Só dorme o frio
Cadáver, que não sente;
44
A alma voa a abrigar-se
Aos pés do Onipotente.
Reclinar-me-ei à sombra
Do amplo perdão do Eterno;
Que não conheço o crime,
E erros não pune o Inferno.
E vós, entes queridos,
Entes que tanto amei,
Dando-vos liberdade
Contente acabarei.
Por mim livres chorar
Vós podereis um dia,
E às cinzas do soldado
Erguer memória pia.
A CRUZ MUTILADA
Amo-te, ó cruz, no vértice, firmada
De esplêndidas igrejas;
Amo-te quando à noite, sobre a campa,
Junto ao cipreste alvejas;
Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,
As preces te rodeiam;
Amo-te quando em préstito festivo
As multidões te hasteiam;
Amo-te erguida no cruzeiro antigo,
No adro do presbitério,
Ou quando o morto, impressa no ataúde,
Guias ao cemitério;
Amo-te, ó cruz, até, quando no vale
Negrejas triste e só,
Núncia do crime, a que deveu a terra
Do assassinado o pó:
Porém guando mais te amo,
Ó cruz do meu Senhor,
É, se te encontro à tarde,
Antes de o Sol se pôr,
Na clareira da serra,
45
Que o arvoredo assombra,
Quando à luz que fenece
Se estira a tua sombra,
E o dia últimos raios
Com o luar mistura,
E o seu hino da tarde
O pinheiral murmura.
***
E eu te encontrei, num alcantil agreste,
Meia quebrada, ó cruz. Sozinha estavas
Ao pôr do Sol, e ao elevar-se a Lua
Detrás do calvo cerro. A soledade
Não te pôde valer contra a mão ímpia,
Que te feriu sem dó. As linhas puras
De teu perfil, falhadas, tortuosas,
Ó mutilada cruz, falam de um crime
Sacrílego, brutal e ao ímpio inútil!
A tua sombra estampa-se no solo,
Como a sombra de antigo monumento,
Que o tempo quase derrocou, truncada.
No pedestal musgoso, em que te ergueram
Nossos avós, eu me assentei. Ao longe,
Do presbitério rústico mandava
O sino os simples sons pelas quebradas
Da cordilheira, anunciando o instante
Da ave-maria; da oração singela,
Mas solene, mas santa, em que a voz do homem
Se mistura nos cânticos saudosos,
Que a natureza envia ao Céu no extremo
Raio de sol, pasmado fugitivo
Na tangente deste orbe, ao qual trouxeste
Liberdade e progresso, e que te paga
Com a injúria e o desprezo, e que te inveja
Até, na solidão, o esquecimento!
***
Foi da ciência incrédula o sectário,
Acaso, ó cruz da serra, o que na face
Afrontas te gravou com mão profusa?
Não! Foi o homem do povo, a quem consolo
46
Na miséria e na dor constante hás sido
Por bem dezoito séculos: foi esse
Por cujo amor surgias qual remorso
Nos sonhos do abastado ou do tirano.
Bradando – esmola! a um; piedade! ao outro.
Ó cruz, se desde o Gólgota não foras
Símbolo eterno de urna crença eterna;
Se a nossa fé em ti fosse mentida,
Dos opressos de outrora os livres netos
Por sua ingratidão dignos de opróbrio,
Se não te amassem, ainda assim seriam.
Mas és núncia do Céu, e eles te insultam,
Esquecidos das lágrimas perenes
Por trinta gerações, que guarda a campa.
Vertidas a teus pés nos dias torvos
Do seu viver d'escravidão! Deslembram-se
De que. se a paz doméstica, a pureza
Do leito conjugal bruta violência
Não vai contaminar, se a filha virgem
Do humilde camponês não é ludíbrio
Do opulento, do nobre, ó Cruz. to devem;
Que por ti o cultor de férteis campos
Colhe tranquilo da fadiga o prêmio,
Sem que a voz de um senhor, qual dantes, dura
Lhe diga: “É meu, e és meu! A mim deleites,
Liberdade, abundância: a ti, escravo,
O trabalho. a miséria unido à terra,
Que o suor dessa fronte fertiliza,
Enquanto, em dia de furor ou tédio,
Não me apraz com teus restos fecundá-la.”
Quando calada a humanidade ouvia
Este atroz blasfemar, tu te elevaste
Lá do Oriente, ó Cruz, envolta em glória,
E bradaste, tremenda, ao forte, ao rico:
“Mentira!”, e o servo alevantou os olhos,
Onde a esperança cintilava, a medo,
E viu as faces do senhor retintas
Em palidez mortal, e errar-lhe a vista
Trépida, vaga. A cruz no céu do Oriente
Da liberdade anunciara a vinda.
47
Cansado, o ancião guerreiro, que a existência
Desgastou no volver de cem combates,
Ao ver que, enfim, o seu país querido
Já não ousam calcar os pés d'estranhos,
Vem assentar-se à luz meiga da tarde,
Na tarde do viver, junto do teixo
Da montanha natal. Na fronte calva,
Que o sol tostou e que enrugaram anos,
Há um como fulgor sereno e santo.
Da aldeia semideus, devem-lhe todos
D teto, a liberdade, e a honra e vida.
Ao perpassar do veterano, os velhos
A mão que os protegeu apertam gratos;
Com amorosa timidez os moços
Saúdam-no qual pai. Nus largas noites
Da gelada estação, sobre a lareira
Nunca lhe falta o cepo incendiado;
Sobre a mesa frugal nunca, no estio,
Refrigerante pomo. Assim do velho
Pelejador os derradeiros dias
Derivam para o túmulo suaves,
Rodeados de afeto, e quando à terra
A mão do tempo gastador o guia,
Sobre a lousa a saudade ainda lhe esparze
Flores, lágrimas, bênçãos, que consolem
Do defensor do fraco as cinzas frias.
Pobre cruz! Pelejaste mil combates,
Os gigantes combates dos tiranos,
E venceste. No solo libertado,
Que pediste? Um retiro no deserto,
Um píncaro granítico, açoutado
Pelas asas do vento e enegrecido
Por chuvas e por sóis. Para ameigar-te
Este ar úmido e gélido a segure
Não foi ferir do bosque o rei. Do Estio
No ardor canicular nunca disseste:
“Dai-me, sequer, do bravo medronheiro
O desprezado fruto!” O teu vestido
Era o musgo, que tece a mão do Inverno
E Deus criou para trajar as rochas.
Filha do céu, o céu era o seu teto,
Teu escabelo o dorso da montanha.
Tempo houve em que esses braços te adornava
48
C'roa viçosa de gentis boninas,
E o pedestal te rodeavam preces.
Ficaste em breve só, e a voz humana
Fez, pouco a pouco, junto a ti silêncio.
Que te importava? As árvores da encosta
Curvavam-se a saudar-te, e revoando
As aves vinham circundar-te de hinos.
Afagava-te o raio derradeiro,
Frouxo do Sul ao mergulhar nos mares.
E esperavas o túmulo. O teu túmulo
Devera ser o seio destas serras,
Quando, em Gênesis novo, à voz do Eterno,
Do orbe ao núcleo fervente, que as gerara,
Elas nus fauces dos bolcões descessem.
Então para essa campa flores, bênçãos,
Ou é saudade lágrimas vertidas,
Qual do velho soldado a lousa pede,
Não pediras à ingrata raça humana,
Ao pé de ti no seu sudário envolta.
***
Este longo esperar do dia extremo,
No esquecimento do ermo abandonada,
Foi duro de sofrer aos teus remidos,
Ó redentora cruz. Eras, acaso,
Como um remorso e acusação perene
No teu rochedo alpestre, onde te viam
Pousar tristonha e só? Acaso, à noite,
Quando a procela no pinhal rugia,
Criam ouvir-te a voz acusadora
Sobreelevar à voz da tempestade?
Que lhes dizias tu? De Deus falavas,
E do seu Cristo, do divino mártir,
Que a ti, suplício e afronta, a ti maldita
Ergueu, purificou, clamando ao servo,
No seu transe: “Ergue-te, escravo!
És livre, como é pura a cruz da infâmia.
Ela vil e tu vil, santos, sublimes
Sereis ante meu Pai. Ergue-te, escravo!
Abraça tua irmã: segue-a sem susto
No caminho dos séculos. Da Terra
Pertence-lhe o porvir, e o seu triunfo
Trará da tua liberdade o dia.”
49
Eis porque teus irmãos te arrojam pedras,
Ao perpassar, ó cruz! Pensam ouvir-te
Nos rumores da noite, a antiga história
Recontando do Gólgota, lembrando-lhes
Que só ao Cristo a liberdade devem,
E que ímpio o povo ser é ser infame.
Mutilado por ele, a pouco e pouco,
Tu em fragmentos tombarás do cerro,
Símbolo sacrossanto. Hão de os humanos
Aos pés pisar-te; e esquecerás no mundo.
Da gratidão a dívida não paga
Ficará, ó tremenda acusadora,
Sem que as faces lhes tinja a cor do pejo;
Sem que o remorso os corações lhes rasgue.
Do Cristo o nome passará na Terra.
***
Não! Quando, em pó desfeita, a cruz divina
Deixar de ser perene testemunha
Da avita crença, os montes, a espessura,
O mar, a Lua, o murmurar da fonte,
Da natureza as vagas harmonias,
Da cruz em nome, falarão do Verbo.
Dela no pedestal, então deserto,
Do deserto no seio, ainda o poeta
Virá, talvez, ao pôr do Sol sentar-se;
E a voz da selva lhe dirá que é santo
Este rochedo nu, e um hino pio
A solidão lhe ensinará e a noite.
Do cântico futuro unta toada
Não sentes vir, ó cruz, de além dos tempos
Da brisa do crepúsculo nus asas?
É o porvir que te proclama eterna;
É a voz do poeta a saudar-te.
***
Montanha do Oriente,
Que, sobre as nuvens elevando o cume,
Divisas logo o Sol, surgindo a aurora,
50
E que, lá no Ocidente,
Última vez seu radioso lume,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.
Rochedo, que descansas
No promontório nu e solitário,
Como atalaia que o oceano explora,
Alheio ás mil mudanças
Que o mundo agitam turbulento e vário,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.
Sobros, robles frondentes,
Cuja sombra procura o viandante,
Fugindo ao Sol a prumo que o devora,
Nesses dias ardentes
Em que o Leão nos céus passa radiante,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.
Ó mato variado,
De rosmaninho e murta entretecido,
De cujas ténues flores se evapora
Aroma delicado,
Quando és por leve aragem sacudido,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.
Ó mar, que vais quebrando
Rolo após rolo pela praia fria,
E fremes som de paz consoladora,
Dormente murmurando
Na caverna marítima sombria,
Em li minha alma a eterna cruz adora.
Ó Lua silenciosa,
Que em perpétuo volver. seguindo a Terra,
Esparzes tua luz ameigadora
Pela serra formosa,
E pelos lagos que em seu seio encerra,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.
Debalde o servo ingrato
No pó te derribou
E os restos te insultou,
Ó veneranda cruz:
51
Embora eu te não veja
Neste ermo pedestal;
És santa, és imortal;
Tu és a minha luz!
Nas almas generosas
Gravou-te a mão de Deus,
E, à noite, fez nos céus
Teu vulto cintilar.
Os raios das estrelas
Cruzam o seu fulgor;
Nas horas do furor
As vagas cruza o mar.
Os ramos enlaçados
Do roble, choupo e til
Cruzando em modos mil,
Se vão entretecer.
Ferido, abre-o guerreiro
Os braços, solta um ai,
Pára, vacila, e cai
Para não mais se erguer.
Cruzado aperta ao seio
A mãe o filho seu,
Que busca, mal nasceu,
Fontes da vida e amor.
Surges; símbolo eterno,
No Céu, na Terra e mar,
Do forte no expirar,
E do viver no alvor!
52
ALPHONSUS DE GUIMARAENS
(1870—1921)
LITERATURA BRASILEIRA
ISMÁLIA
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...
E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...
53
OSSA MEA
Mãos de finada, aquelas mãos de neve,
De tons marfíneos, de ossatura rica,
Pairando no ar, num gesto brando e leve,
Que parece ordenar mas que suplica.
Erguem-se ao longe como se as eleve
Alguém que ante os altares sacrifica:
Mãos que consagram, mãos que partem breve,
Mas cuja sombra nos meus olhos fica...
Mãos de esperança para as almas loucas,
Brumosas mãos que vêm brancas, distantes,
Fechar ao mesmo tempo tantas bocas...
Sinto-as agora, ao luar, descendo juntas,
Grandes, magoadas, pálidas, tateantes,
Cerrando os olhos das visões defuntas...
PULCHRA UT LUNA
Celeste... É assim, divina, que te chamas.
Belo nome tu tens, Dona Celeste...
Que outro terias entre humanas damas,
Tu que embora na terra do céu vieste?
Celeste... E como tu és do céu não amas:
Forma imortal que o espírito reveste
De luz, não temes sol, não temes chamas,
Porque és sol, porque és luar, sendo celeste.
Incoercível como a melancolia,
Andas em tudo: o sol no poente vasto
Pede-te a mágoa do findar do dia.
E a lua, em meio à noite constelada,
Pede-te o luar indefinido e casto
Da tua palidez de hóstia sagrada.
54
ÁRIAS E CANÇÕES
A suave castelã das horas mortas
Assoma à torre do castelo. As portas,
Que o rubro ocaso em onda ensanguentara,
Brilham do luar à luz celeste e clara.
Como em órbitas de fatias caveiras
Olhos que fossem de defuntas freiras,
Os astros morrem pelo céu pressago...
São como círios a tombar num lago.
E o céu, diante de mim, todo escurece...
E eu que nem sei de cor uma só prece!
Pobre alma, que me queres, que me queres?
São assim todas, todas as mulheres.
TERCEIRA DOR
É Sião que dorme ao luar. Vozes diletas
Modulam salmos de visões contritas...
E a sombra sacrossanta dos Profetas
Melancoliza o canto dos levitas.
As torres brancas, terminando em setas,
Onde velam, nas noites infinitas,
Mil guerreiros sombrios como ascetas,
Erguem ao Céu as cúpulas benditas.
As virgens de Israel as negras comas
Aromatizam com os unguentos brancos
Dos nigromantes de mortais aromas...
Jerusalém, em meio às Doze Portas,
Dorme: e o luar que lhe vem beijar os flancos
Evoca ruínas de cidades mortas.
CISNES BRANCOS
55
Ó cisnes brancos, cisnes brancos,
Porque viestes, se era tão tarde?
O sol não beija mais os flancos
Da Montanha onde mora a tarde.
Ó cisnes brancos, dolorida
Minh’alma sente dores novas.
Cheguei à terra prometida:
É um deserto cheio de covas.
Voai para outras risonhas plagas,
Cisnes brancos! Sede felizes...
Deixai-me só com as minhas chagas,
E só com as minhas cicatrizes.
Venham as aves agoireiras,
De risada que esfria os ossos...
Minh’alma, cheia de caveiras,
Está branca de padre-nossos.
Queimando a carne como brasas,
Venham as tentações daninhas,
Que eu lhes porei, bem sob asas,
A alma cheia de ladainhas.
Ó cisnes brancos, cisnes brancos,
Doce afago da alva plumagem!
Minh’alma morre aos solavancos
Nesta medonha carruagem...
Quando chegaste, os violoncelos
Que andam no ar cantaram no hinos.
Estrelaram-se todos os castelos,
E até nas nuvens repicaram sinos.
Foram-se as brancas horas sem rumo,
Tanto sonhadas! Ainda, ainda
Hoje os meus pobres versos perfumo
Com os beijos santos da tua vinda.
Quando te foste, estalaram cordas
Nos violoncelos e nas harpas...
E anjos disseram: — Não mais acordas,
Lírio nascido nas escarpas!
56
Sinos dobraram no céu e escuto
Dobres eternos na minha ermida.
E os pobres versos ainda hoje enluto
Com os beijos santos da despedida.
A CATEDRAL
Entre brumas ao longe surge a aurora,
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu risonho
Toda branca de sol.
E o sino canta em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a bênção de Jesus.
E o sino clama em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Põe-se a luz a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu tristonho
Toda branca de luar.
E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
O céu e todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem acoitar o rosto meu.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
57
Como um astro que já morreu.
E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
COMO SE MOÇO E NÃO BEM VELHO EU FOSSE
Como se moço e não bem velho eu fosse,
Uma nova ilusão veio animar-me,
Na minh’alma floriu um novo carme,
O meu ser para o céu alcandorou-se.
Ouvi gritos em mim como um alarme.
E o meu olhar, outrora suave e doce,
Nas ânsias de escalar o azul, tornou-se
Todo em raios, que vinham desolar-me.
Vi-me no cimo eterno da montanha
Tentando unir ao peito a luz dos círios
Que brilhavam na paz da noite estranha.
Acordei do áureo sonho em sobressalto;
Do céu tombei ao caos dos meus martírios,
Sem saber para que subi tão alto...
HÃO DE CHORAR POR ELA OS CINAMOMOS...
Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.
As estrelas dirão — "Ai! nada somos,
Pois ela se morreu silente e fria... "
E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.
A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.
Os meus sonhos de amor serão defuntos...
58
E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: —"Por que não vieram juntos?"
SONETO
Encontrei-te. Era o mês... Que importa o mês? Agosto,
Setembro, outubro, maio, abril, janeiro ou março,
Brilhasse o luar que importa? ou fosse o sol já posto,
No teu olhar todo o meu sonho andava esparso.
Que saudades de amor na aurora do teu rosto!
Que horizonte de fé, no olhar tranquilo e garço!
Nunca mais me lembrei se era no mês de agosto,
Setembro, outubro, abril, maio, janeiro, ou março.
Encontrei-te. Depois... depois tudo se some
Desfaz-se o teu olhar em nuvens de ouro e poeira.
Era o dia... Que importa o dia, um simples nome?
Ou sábado sem luz, domingo sem conforto,
Segunda, terça ou quarta, ou quinta ou sexta-feira,
Brilhasse o sol que importa? ou fosse o luar já morto?
CANTEM OUTROS A CLARA COR VIRENTE
Cantem outros a clara cor virente
Do bosque em flor e a luz do dia eterno...
Envoltos nos clarões fulvos do oriente,
Cantem a primavera: eu canto o inverno.
Para muitos o imoto céu clemente
É um manto de carinho suave e terno:
Cantam a vida, e nenhum deles sente
Que decantando vai o próprio inferno.
Cantem esta mansão, onde entre prantos
Cada um espera o sepulcral punhado
De úmido pó que há de abafar-lhe os cantos...
Cada um de nós é a bússola sem norte.
Sempre o presente pior do que o passado.
Cantem outros a vida: eu canto a morte...
59
SETE DAMAS
Sete Damas por mim passaram.
E todas sete me beijaram.
E quer eu queira quer não queira.
Elas vêm cada sexta-feira.
Sei que plantaram sete ciprestes.
Nas remotas solidões agrestes.
Deixaram-me como um mendigo…
Se elas vão acabar comigo!
Todas, rezando os Sete Salmos.
No chão cavaram sete palmos.
À MEIA-NOITE
A Aug. de Viana do Castelo
Cheguei à meia-noite em ponto.
O caso deu-se como eu conto.
Cheio de lúgubre mistério…
Pois ela disse: “Ao cemitério
Vamos à meia-noite em ponto.”
E eu respondi-lhe: “Conto, conto
Contigo à meia-noite em ponto.”
Como eu sabia, ela outro amante
Tivera em tempo não distante.
Era já morto: eu uma esposa
Tinha também sob uma lousa.
E ela sabia desse amante.
Jaziam um do outro distante
O amante dela e a minha amante.
Bem não chegamos, os ciprestes
Agitaram as verdes vestes
Como arrojando-se de bruços…
Que ais de tristeza e que soluços
Gemeram tão verdes ciprestes.
Gemia o vento pelas vestes.
Verdes dos vírides ciprestes.
Paramos de repente à porta:
Eu era um morta, ela uma morta.
Tal foi a cena branca e nua
Que nós, clareados pela lua,
60
Olhamos bem ao pé da porta.
Eu era um morto, ela uma morta,
Sem movimento junto à porta.
Diante de nós, em frente, diante,
O amante dela e minha amante,
Espectros vis num mesmo quadro,
Vinham vagar, hirtos, pelo adro,
Diante de nós, em frente, diante…
O amante dela e a minha amante.
Riram, passando para diante.
OCASO
(Impressões de véspera de finados)
Perdido como estou nesta grande charneca,
Cheio de sede, cheio de fome,
Disse-se Deus: “Sê bom!” E o Diabo diz-me: “Peca!”
E os anjos e demônios repetem o meu nome.
O cemitério está, nas glórias deste ocaso,
Cheio de leitos como um hospital.
Eu sonho que estou morto e sonho que me caso…
Vou vestido de noivo e coberto de cal.
Eis o que vejo além nas glórias deste ocaso:
Mulheres velhas e mulheres novas,
Homens e crianças vão levando flores.
Não há coroas para tantas covas,
E nem pranto para tantas dores.
Se este padre vai para o meu enterro,
Deixai-o caminhar bem devagar.
O cemitério está no alto daquele cerro…
Que ele não possa, ó Deus, nunca mais lá chegar!
Se este carpinteiro que me segue,
Apronta as tábuas do meu caixão,
Fazei, Senhor me Deus, como que ele cegue
Antes de aprontar meu caixão.
Se estes senhores de tão negras calças
E de sobrecasacas tão modernas,
Querem pegar, tristíssimos, nas alças
(Pois se olham de tal modo quando eu passo),
Fazei, Senhor Meu Deus, como que suas pernas
Não possam dar mais passo.
(Alguém agita sudários no poente.)
Se este coveiro agora mesmo
61
Cavava minha cova inexistente,
Cantando e soluçando,
Fazei, Senhor meu Deus, com que ele agora mesmo
Caia na cova que está cavando.
Se a costureira que ali trabalha,
Em vez de camisa de noivado,
Vem oferecer-me esta mortalha,
Que ela não tenha, ó Deus, no leito em que repousa,
Nem a camisa branca do noivado,
Nem um noivo que a queira por esposa.
Se estes sinos vão dobrar por mim,
Se este é o momento do meu enterro,
Fiquem os sinos a esperar por mim…
Que eu nunca alcance, ó Deus, o alto daquele cerro!
62
ALVARENGA PEIXOTO
(1742/1744—1792/1793)
LITERATURA BRASILEIRA
ESTELA E NISE
Eu vi a linda Estela, e namorado
Fiz logo eterno voto de querê-la;
Mas vi depois a Nise, e é tão bela,
Que merece igualmente o meu cuidado.
A qual escolherei, se neste estado
Não posso distinguir Nise d'Estela?
Se Nise vir aqui, morro por ela;
Se Estela agora vir, fico abrasado.
Mas, ah! que aquela me despreza amante,
Pois sabe que estou preso em outros braços,
E esta não me quer por inconstante.
Vem, Cupido, soltar-me destes laços,
Ou faz de dois semblantes um semblante,
Ou divide o meu peito em dois pedaços!
A LÁSTIMA
Na masmorra da Ilha das Cobras,
lembrando-se da família
Eu não lastimo o próximo perigo,
Nem a escura prisão estreita e forte;
Lastimo os caros filhos e a consorte,
A perda irreparável de um amigo.
A prisão não lastimo, outra vez digo,
Nem o ver iminente o duro corte;
É ventura também achar a morte
Quando a vida só serve de castigo.
Ah! quão depressa então acabar vira
63
Este sonho, este enredo, esta quimera,
Que passa por verdade e é mentira.
Se filhos e consorte não tivera,
E do amigo as virtudes possuíra,
Só de vida um momento não quisera.
A MARIA IFIGÊNIA
Amada filha, é já chegado o dia,
Em que a luz da razão, qual tocha acesa,
Vem conduzir a simples natureza:
— É hoje que teu mundo principia.
A mão que te gerou, teus passos guia;
Despreza ofertas de uma vã beleza,
E sacrifica as honras e a riqueza
Às santas leis do Filho de Maria.
Estampa na tu alma a Caridade,
Que amar a Deus, amar aos semelhantes,
São eternos preceitos de verdade;
Tudo o mais são idéias delirantes;
Procura ser feliz na Eternidade,
Que o mundo são brevíssimos instantes.
À D. BÁRBARA HELIODORA
Bárbara bela, Do Norte estrela,
Que o meu destino Sabes guiar,
De ti ausente Triste somente
As horas passo A suspirar.
Por entre as penhas De incultas brenhas
Cansa-me a vista De te buscar;
Porém não vejo Mais que o desejo,
Sem esperança De te encontrar.
Eu bem queria A noite e o dia
Sempre contigo Poder passar;
Mas orgulhosa Sorte invejosa,
64
Desta fortuna Me quer privar.
Tu, entre os braços, Ternos abraços
Da filha amada Podes gozar;
Priva-me a estrela De ti e dela,
Busca dous modos De me matar!
DE AÇUCENAS E ROSAS MISTURADAS
De açucenas e rosas misturadas
não se adornam as vossas faces belas,
nem as formosas tranças são daquelas
que dos raios do sol foram forjadas.
As meninas dos olhos delicadas,
verde, preto ou azul não brilha nelas;
mas o autor soberano das estrelas
nenhumas fez a elas comparadas.
Ah, Jônia, as açucenas e as rosas,
a cor dos olhos e as tranças d'oiro
podem fazer mil Ninfas melindrosas;
Porém quanto é caduco esse tesoiro:
vós, sobre a sorte toda das formosas,
inda ostentais na sábia frente o loiro!
SONETO
Ao mundo esconde o Sol seus resplendores,
e a mão da Noite embrulha os horizontes;
não cantam aves, não murmuram fontes,
não fala Pã na boca dos pastores.
Atam as Ninfas, em lugar de flores,
mortais ciprestes sobre as tristes frontes;
erram chorando nos desertos montes,
sem arcos, sem aljavas, os Amores.
Vênus, Palas e as filhas da Memória,
deixando os grandes templos esquecidos,
não se lembram de altares nem de glória.
65
Andam os elementos confundidos:
ah, Jônia, Jônia, dia de vitória
sempre o mais triste foi para os vencidos!
À ESTÁTUA EQUESTRE
A América sujeita, Ásia vencida,
África escrava, Europa respeitosa;
Restaurada mais rica e mais formosa
A fundação de Ulisses destruída;
São a base em que vemos erigida
A colossal estátua majestosa,
Que d'el-rei à memória gloriosa
Consagrou Luzitania agradecida.
Mas como a glória do monarca justo
É bem que àquele herói se comunique,
Que a fama canta, que eterniza o busto,
Pombal junto a José eterno fique,
Qual o famoso Agripa junto a Augusto,
Como Sully ao pé do grande Henrique.
A SAUDADE
Não me aflige do potro a viva quina;
Da férrea maça o golpe não me ofende;
Sobre as chamas a mão se não estende;
Não sofro do agulhete a ponta fina.
Grilhão pesado os passos não domina;
Cruel arroxo a testa me não fende;
A força a perna ou braço se não rende;
Longa cadeia o colo não me inclina.
Água e pomo faminto não procuro;
Grossa pedra não cansa a humanidade;
O pássaro voraz eu não aturo.
Este males não sinto; é bem verdade;
66
Porém sinto outro mal inda mais duro:
— Sinta da esposa e filhos a saudade!
AOS ANOS DE UMA ILUSTRE SENHORA
Nem fizera a discórdia o desatino
Que urdiu funesta liga a gente humana,
Nem soberba a república romana
Poria ao mundo inteiro um freio indino.
Ó Ásia, ó Grécia, ó Roma, o teu destino
Fora feliz só com nascer Joana;
Respeitos no peito a ação profana
Sufocaria o bárbaro Tarquino.
Ela das deusas três as graças goza,
Ela só os sublimes dons encerra
De rainha, de sábia e de formosa.
Ah! Se Joana então honrasse a terra!
ò esposa romana, ó grega esposa,
Não fora a formosura a mãe da guerra!
À MORTE DO REI D. JOSÉ I
Do claro Tejo a escura foz do Nilo,
E do bárbaro Araxe ao Tibre vago,
A fama, o susto e o marcial estrago,
Rompa a fama os clarins em repeti-lo.
Mas não podem achar seguro asilo
Fora das margens do estígio lago
Os assombros de Roma e de Cartago,
Aníbal, Cipião, Fábio e Camilo.
Os grandes ossos cobre a terra dura,
E a morte desenrola o negro manto
Sobre o pio José na sepultura.
Injusta morte, sofre o nosso pranto,
Que ainda que és lei a toda a criatura,
Parece não devias poder tanto.
67
ÁLVARES DE AZEVEDO
(1831—1852)
LITERATURA BRASILEIRA
AMOR
Amemos! Quero de amor
Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!
Na tu’alma, em teus encantos
E na tua palidez
E nos teus ardentes prantos
Suspirar de languidez!
Quero em teus lábio beber
Os teus amores do céu,
Quero em teu seio morrer
No enlevo do seio teu!
Quero viver d’esperança,
Quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança
Quero sonhar e dormir!
Vem, anjo, minha donzela,
Minha’alma, meu coração!
Que noite, que noite bela!
Como é doce a viração!
E entre os suspiros do vento
Da noite ao mole frescor,
Quero viver um momento,
68
Morrer contigo de amor!
LEMBRANÇAS DE MORRER
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro,
- Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
Como o desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade - é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.
Só levo uma saudade - é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas.
De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
Que por minha tristeza te definhas!
Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei, que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!
Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores.
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.
Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo.
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!
Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta - sonhou - e amou na vida.
SE EU MORRESSE AMANHÃ
Se eu morresse amanhã, viria ao menos
69
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!
Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que amanhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!
Que sol! que céu azul! que doce n'alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!
Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o doloroso afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!
PÁLIDA INOCÊNCIA
Por que, pálida inocência,
Os olhos teus em dormência
A medo lanças em mim?
No aperto de minha mão
Que sonho do coração
Tremeu-te os seios assim?
E tuas falas divinas
Em que amor lânguida afinas
Em que lânguido sonhar?
E dormindo sem receio
Por que geme no teu seio
Ansioso suspirar?
Inocência! quem dissera
De tua azul primavera
As tuas brisas de amor!
Oh! quem teus lábios sentira
E que trêmulo te abrira
Dos sonhos a tua flor!
Quem te dera a esperança
70
De tua alma de criança,
Que perfuma teu dormir!
Quem dos sonhos te acordasse,
Que num beijo t’embalasse
Desmaiada no sentir!
Quem te amasse! e um momento
Respirando o teu alento
Recendesse os lábios seus!
Quem lera, divina e bela,
Teu romance de donzela
Cheio de amor e de Deus!
VAGABUNDO
Eat, drink, and love; what can the rest avail us?
BYRON. Don Juan.
Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso;
Nas noites de verão namoro estrelas;
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!
Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;
Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas,
E quem vive de amor não tem pobreza.
Não invejo ninguém, nem ouço a raiva
Nas cavernas do peito, sufocante,
Quando a noite na treva em mim se entornam
Os reflexos do baile fascinante.
Namoro e sou feliz nos seus amores
Sou garboso e rapaz... Uma criada
Abrasada de amor por um soneto
Já um beijo me deu subindo a escada...
Oito dias lá vão que ando cismado
Na donzela que ali defronte mora.
Ela ao ver-me sorri tão docemente!
Desconfio que a moça me namora!...
71
Tenho meu por meu palácio as longas ruas;
Passeio a gosto e durmo sem temores;
Quando bebo, sou rei como um poeta,
E o vinho faz sonhar com os amores.
O degrau das igrejas é meu trono,
Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta,
E a preguiça a mulher por quem suspiro.
Escrevo na parede as minhas rimas,
De painéis a carvão adorno a rua;
Como as aves do céu e as flores puras
Abro meu peito ao sol e durmo à lua.
Sinto-me um coração de lazzaroni;
Sou filho do calor, odeio o frio,
Não creio no diabo nem nos santos...
Rezo a Nossa Senhora e sou vadio!
Ora, se por aí alguma bela
Bem doirada e amante da preguiça
Quiser a nívea mão se unir à minha,
Há de achar-me na Sé, domingo, à Missa.
SAUDADES
Tis vain to struggle - let me perish young
BYRON
Foi por ti que num sonho de ventura
A flor da mocidade consumi...
E às primaveras disse adeus tão cedo
E na idade do amor envelheci!
Vinte anos! derramei-os gota a gota
Num abismo de dor e esquecimento...
De fogosas visões nutri meu peito...
Vinte anos!... sem viver um só momento!
Contudo, no passado uma esperança
Tanto amor e ventura prometia...
E uma virgem tão doce, tão divina,
72
Nos sonhos junto a mim adormecia!
***
Quando eu lia com ela... e no romance
Suspirava melhor ardente nota...
E Jocelyn sonhava com Laurence
Ou Werther se morria por Carlota...
Eu sentia a tremer e a transluzir-lhe
Nos olhos negros a alma inocentinha...
E uma furtiva lágrima rolando
Da face dela umedecer a minha!
E quantas vezes o luar tardio
Não viu nossos amores inocentes?
Não embalou-se da morena virgem
No suspirar, nos cânticos ardentes?
E quantas vezes não dormi sonhando
Eterno amor, eternas as venturas...
E que o céu ia abrir-se... e entre os anjos
Eu ia despertar em noites puras?
Foi esse o amor primeiro! requeimou-me
As artérias febris de juventude,
Acordou-me dos sonhos da existência
Na harmonia primeira do alaúde.
***
Meu Deus! e quantas eu amei... Contudo
Das noites voluptuosas da existência
Só restam-me saudades dessas horas
Que iluminou tua alma d'inocência.
Foram três noites só... três noites belas
De lua e de verão, no val saudoso...
Que eu pensava existir... sentindo o peito
Sobre teu coração morrer de gozo.
E por três noites padeci três anos,
Na vida cheia de saudade infinda...
Três anos de esperança e de martírio...
73
Três anos de sofrer - e espero ainda!
A ti se ergueram meus doridos versos,
Reflexos sem calor de um sol intenso,
Votei-os à imagem dos amores
Pra velá-la nos sonhos como incenso.
Eu sonhei tanto amor, tantas venturas,
Tantas noites de febre e d'esperança...
Mas hoje o coração parado e frio,
Do meu peito no túmulo descansa.
Pálida sombra dos amores santos!
Passa quando eu morrer no meu jazigo,
Ajoelha ao luar e entoa um canto...
Que lá na morte eu sonharei contigo.
SE EU MORRESSE AMANHÃ
Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!
Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!
Que sol! que céu azul! que doce n'alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!
Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!
MINHA DESGRAÇA
Minha desgraça, não, não é ser poeta,
74
Nem na terra de amor não ter um eco,
E meu anjo de Deus, o meu planeta
Tratar-me como trata-se um boneco...
Não é andar de cotovelos rotos,
Ter duro como pedra o travesseiro...
Eu sei... O mundo é um lodaçal perdido
Cujo sol (quem mo dera!) é o dinheiro...
Minha desgraça, ó cândida donzela,
O que faz que o meu peito assim blasfema,
É ter para escrever todo um poema,
E não ter um vintém para uma vela.
LUAR DE VERÃO
O que vês, trovador? - Eu vejo a lua
Que sem lavar a face ali passeia;
No azul do firmamento inda é mais pálida
Que em cinzas do fogão uma candeia.
O que vês, trovador? - No esguio tronco
Vejo erguer-se o chinó de uma nogueira...
além se encontra a luz sobre um rochedo
Tão liso como um pau de cabeleira.
Nas praias lisas a maré enchente
S'espraia cintilante d'ardentia...
Em vez de aromas as doiradas ondas
Respiram efluviosa maresia!
O que vês, trovador? - No céu formoso
Ao sopro dos favônios feiticeiros
Eu vejo - e tremo de paixão ao vê-las As nuvens a dormir, como carneiros.
E vejo além, na sombra do horizonte,
Como viúva moça envolta em luto,
Brilhando em nuvem negra estrela viva
Como na treva a ponta de um charuto.
Teu romantismo bebo, ó minha lua,
A teus raios divinos me abandono,
75
Torno-me vaporoso... e só de ver-te
Eu sinto os lábios meus se abrirem de sono.
MEU DESEJO
Meu desejo? era ser a luva branca
Que essa tua gentil mãozinha aperta:
A camélia que murcha no teu seio,
O anjo que por te ver do céu deserta....
Meu desejo? era ser o sapatinho
Que teu mimoso pé no baile encerra....
A esperança que sonhas no futuro,
As saudades que tens aqui na terra....
Meu desejo? era ser o cortinado
Que não conta os mistérios do teu leito;
Era de teu colar de negra seda
Ser a cruz com que dormes sobre o peito.
Meu desejo? era ser o teu espelho
Que mais bela te vê quando deslaças
Do baile as roupas de escomilha e flores
E mira-te amoroso as nuas graças!
Meu desejo? era ser desse teu leito
De cambraia o lençol, o travesseiro
Com que velas o seio, onde repousas,
Solto o cabelo, o rosto feiticeiro....
Meu desejo? era ser a voz da terra
Que da estrela do céu ouvisse amor!
Ser o amante que sonhas, que desejas
Nas cismas encantadas de langor!
76
ÁLVARO FEIJÓ
(1916—1941)
LITERATURA PORTUGUESA
NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO
O altar as vagas
o dossel a espuma!
Missas rezadas pelo vento,
ora pelos fiéis defuntos que se foram
noutras vagas.
Ora pelas barcaças que, uma a uma,
buscaram as sereias na distância
e se foram com elas.
Sobre o altar, entre círios, que não são
os círios murchos das igrejas velhas
mas o lume de estrelas,
ELA,
Nossa Senhora da Apresentação.
Aquela
que não tem mantos da cor do céu,
nem fios doiro nos cabelos,
nem anéis nos dedos;
aquela
que não traz um menino nos seus braços
porque os seios mirraram
e já não têm pão para lhe dar;
aquela
que tem o corpo negro e sujo
e os ossos a saltar
da pele
77
e dos rasgões da saia e do corpete;
Nossa Senhora da Apresentação
da Beira-Mar,
que tem capelas
em cada peito de marinheiro,
que morre e, num instante,
se renova
e que anda
quer nos engaços do sargaceiro
ou nas gamelas do pilado
e palhabotes da Terra Nova.
Aquela
a quem todos adoram.
Dos meninos
feitos nos intervalos das campanhas,
aos bichanos que limpam de cabeças
e tripas de pescado
as muralhas do cais.
O dossel a espuma.
O altar das vagas
— e que altar enorme! —
Entre círios de estrelas,
Nossa Senhora da Apresentação
e Justificação
— a Fome!
OS DOIS SONETOS DE AMOR DA HORA TRISTE
I
Quando eu morrer — e hei de morrer primeiro
Do que tu — não deixes de fechar-me os olhos
Meu Amor. Continua a espelhar-te nos meus olhos
E ver-te-ás de corpo inteiro.
Como quando sorrias no meu colo.
E, ao veres que tenho toda a tua imagem
Dentro de mim, se, então, tiveres coragem,
Fecha-me os olhos com um beijo.
(Eu, Marco Póli)
Farei a nebulosa travessia
78
E o rastro da minha barca
Segui-los-á em pensamento. Abarca
Nele o mar inteiro, o porto, a ria...
E, se me vires chegar ao cais dos céus,
Ver-me-ás, debruçado sobre as ondas, para dizer-te adeus,
II
Não um adeus distante
Ou um adeus de quem não torna cá,
Nem espera tornar. Um adeus de até já,
Como a alguém que se espera a cada instante.
Que eu voltarei. Eu sei que hei de voltar
De novo para ti, no mesmo barco
Sem remos e sem velas, pelo charco
Azul do céu, cansado de lá estar.
E viverei em ti como um eflúvio, uma recordação.
E não quero que chores para fora,
Amor, que tu bem sabes que quem chora
Assim, mente. E, se quiseres partir e o coração
To peça, diz-mo. A travessia é longa... Não atino
Talvez na rota. Que nos importa, aos dois, ir sem destino?
A NAU PERDIDA
Pobre, lá vai! Que rombo no costado!
Como a água a penetra aos borbotões!
Açoita-a, em fúria, o Mar. Adorna ao lado.
Anda à mercê das vagas, dos tufões!
Mas segue, segue em frente. O vento a ajuda!
Galga nas ondas, que doidinha, olhai!...
Julga-se, ainda, a nau que dantes era,
por levar, no porão, uma quimera,
por ir, do vento na refrega aguda,
ovante e sem saber per'onde vai!
Julga-se, ainda, a nau que dantes era...
– o que passa não torna..
Na pobre nau perdida
a água entra e a adorna.
79
Vai sendo, aos poucos, pelo mar sorvida.
Na agonia estrebucha. Num desejo
de vida e luz, arfante, desesperada,
busca furtar-se ao comprimente beijo
do Mar que a envolve. – Após, é o Mar e nada...
Doirado como um astro,
haste esquecida em campo onde as mondas
colheram tudo, o topo do seu mastro
fica esperando ainda sobre as ondas.
Na rota pelo mundo
– ao deus-dará na vaga azul e infinda –
nós vamos – nau perdida em Mar profundo –
joguetes do tufão;
mas conservando, ainda,
na última Esperança a última Ilusão.
VARINA
Eu mudei de pincel e de paleta
— embora seja a mesma a tinta com que escrevo —
mas mudei, que, de repente,
surgiste diante de mim.
Não é que me perturbes, mas eu sinto
que alguma coisa me comove ao ver-te.
Não é que te examine, porque sei
que me é quase impossível,
que me é mesmo impossível descrever-te.
A tua história, sim? A história que se repete
e é sempre nova porque há sempre gente
que nunca a ouviu
ou que não a quis ouvir.
O cais viu-te nascer!
Corrias, loucamente, pelas retas
intermináveis dos paredões
de cimento e granito,
e em caixotes com cheiro de sardinha
fazias tabogan das linguetas
— o tabogan dos parques infantis
que não pudeste ver.
Assim, faminta e seminua
80
mas livre como os peixes
fizeste-te mulher!
Depois foi o correr das ruas da cidade,
enrouquecendo a gritar:
— "Quem merca os camarões"...
Depois um que voltou da Terra Nova
e te olhou como fera sequiosa
de carne,
quando o lugre, ao chegar, entrou na doca.
Depois o inevitável!
O luar...
A Senhora d’Agonia...
A quentura de Agosto...
E, então,
não era só o peso da canastra,
era o peso dum filho
e a fome de dois para matar,
até que o lugre voltasse
e se esquecesse
o calvário da luta...
Um dia no intervalo da campanha
o sexo falou mais alto
e o coração calou.
Foste dum outro homem e, depois,
de dois,
de três.
Quando ele voltou
encontrou-te perdida
e tu perdeste-o.
Hoje, num outro porto, ainda gritas
o teu pregão.
Quando um homem te encontra fora de horas,
para ele foi sempre um bom encontro...
e... "até mais ver"...
Vês! Eu sei a tua história...
(Há tantos que a não sabem!)
E, no entanto,
Dum homem só ou de cem,
num porto do meu país ou num porto de Islândia
Tu surgiste aos meus olhos
como a mesma mulher.
***
81
Senhor! De que Valeu o Sacrifício?
Quantos desejam, Senhor,
na calma de uns seios brandos
ter sonhos e ter amor...
Os que mendigam na vida
anseiam por ser meninos
e aninhar-se
— depois da faina de um dia, cansados já de ser homens —
junto dos seios de alguém.
Senhor! De que valeu o sacrifício,
se os seios não se abriram
nem se deram a ninguém!
82
AMADEU AMARAL
(1875—1929)
LITERATURA BRASILEIRA
VOZ ÍNTIMA
Fecha-te, sofredor, na alva túnica ondeante
Dos sonhos!E caminha, e prossegue, embebido,
Muito embora, na dor de um fiei celebrante
De um estranho ritual desdenhado e esquecido!
Deixa ressoar em torno o bárbaro alarido,
Deixa que voe o pó da terra em torno... Adiante!
Vai tu só, calmo e bom, calmo e triste, envolvido
Nessa túnica ideal de sonhos, alvejante.
Sê, nesta escuridão do mundo, o paradigma
De um desolado espectro, uma sombra, um enigma,
Perpassando sem ruído a caminho do Além.
E só deixes na terra uma reminiscência:
A de alguém que assistiu à luta da existência,
Triste e só, sem fazer nenhum mal a ninguém.
A VIDA
Impressão do Moisés, de Menotti del Picchia
Eis a Vida: seguir umas quimeras vagas,
lançando a mão em sangue aos cardos e aos espinhos;
rolar no pó; gemer; deixar pelos caminhos
mil farrapos de carne e o sangue de mil chagas;
83
sorver o horrendo fel que anda em todos os vinhos,
o veneno que jaz em todas as teriagas;
persistir, todavia, entre as chufas e as pragas
dos que vão, a ulular, por trilhos convizinhos;
chegar, enfim, exausto, ao fastígio da idade,
ver desfeito o jardim de encanto que sonhamos,
cair desfalecido e — supremo revés —
olhando para trás, ver que a felicidade
ficou além, no vale, onde, espectros, passamos,
ficou além, na flor que calcamos aos pés...
PALAVRAS, NEM SEMPRE AS LEVA O VENTO
Manda o costume devolver o insulto
com outro insulto igual, senão melhor.
Não procedais assim, que é baixo e estulto.
Temeis o mal? Pois evitai o pior.
Cada palavra que dizeis de vulto,
como o som de um violino anda em redor,
depois de vos revoar no ser oculto,
por onde a ressonância a fez maior.
O violino, porém, não se recorda
do som que um dia lhe vibrou na corda,
e o vosso coração fica a fremir;
e, às vezes, a palavra, além, se esquece,
enquanto em vosso peito permanece,
como pedra que a um lago foi cair.
CREPÚSCULO SERTANEJO
Cai a noite. Um rubor fulge atrás da colina,
cuja sombra se alonga a pouco e pouco, enorme.
A velha árvore, além, verde nuvem, se inclina
para o chão, balançando o vulto desconforme.
É uma nota profunda a vibrar na surdina
84
das cores e da luz, no amplo vale que dorme.
No silêncio feral, que é uma vaga neblina
de sons, passa-lhe a voz como um borrão informe.
Sob a copa uma forma em cinza se desmancha.
Um boi cansado busca a figueira cansada;
muge, e deita-se, em paz, numa violácea alfombra.
Muge. A fronde e o animal fazem uma só mancha;
o mugido e o rumor da fronde, a mesma zoada.
Manchas de som... Zoadas de cor... Silêncio. Sombra.
RIOS
A Adalgiso Pereira
Almas contemplativas! Vão rolando
por esta vida, como os rios quietos...
Rolam os rios, — árvores e tetos,
céus e terras, tranquilos, espelhando;
vão refletindo todos os aspectos,
num serpentear indiferente e brando;
espreguiçam-se, límpidos, cantando,
no remanso dos sítios prediletos;
fecundam plantações, movem engenhos,
dão de beber, sustentam pescadores,
suportam barcos e carreiam lenhos...
Lá se vão, num rolar manso e tristonho,
cumprindo o seu destino sem clamores
e sonhando consigo um grande sonho.
A UM MANANCIAL DE ÁGUA PURA
No alto da escarpa, além, escorre e brilha
um leve, pequenino manancial:
é, entre rochas, uma fina estilha
de prata com sonidos de cristal.
Filha do morro, a fonte, boa filha,
agarra-se teimosa ao chão natal,
85
à trama das raízes, à escumilha
das ervas, aos farpões do pedregal.
Doce água! Aquele que a tomasse à fonte,
após lenta ascensão por duro monte,
esse a pudera bem julgar, enfim;
mas, não merece tanto esforço: escorre
abandonada e no abandono morre...
Dentro de nós há mananciais assim.
NUVENS
Sobre a lâmina azul de um céu todo bonança
passa uma nuvem clara em curvas franjas de onda,
— vaga que adormeceu num mar que não estronda,
nas mudas convulsões de uma tormenta mansa...
Bruma, sonho da terra, ergueu-se; e enquanto avança,
busca a forma fugaz, que se esboça e esbarronda;
aqui se esgarça, ali descai, além, redonda,
bóia ao sol que a redoira e ao vento que a embalança.
Sonhos, bruma secreta, entre anseios e dores,
sobem-nos da alma assim, livres, espaço em fora,
na lenta indecisão dos informes vapores...
Possam os meus pairar na luz por um momento,
ser a nuvem que arrasta o olhar perdido — embora
suceda a cada esboço um desmoronamento!
JAMAIS
A Gastão Bousquet
Jamais, jamais encontrarei aquela
que eu procurava pelo mundo outrora,
como quem mira um céu que não se estrela,
um véu de névoa que não se evapora.
Jamais, jamais. E, solitária vela,
vai-se a Esperança, Desalento em fora.
Jamais há de cessar esta procela,
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jamais há de raiar aquela aurora.
Há de morrer esta vontade pura
(o coração aniquilado diz-mo)
na intimidade das secretas mágoas.
E este imenso tesouro de ternura
será como um regato num abismo,
rolando oculto as cristalinas águas.
TAPERA
Numa curva da estrada, onde a luz reverbera
num tanque entre ervaçais, aparece uma casa.
Pombas voejam no oitão, sobre a cumeeira rasa.
Tudo ali tem um ar de quem convida, e espera.
Sigo. Chego ao pomar: o capim prolifera;
a guaxima no juá bravo, alta e rija, se casa.
Silêncio. E, no silêncio, o som mole de uma asa
e o fremente chiar da cigarra. É a tapera.
Bato à porta. Ninguém. Olho por uma fresta:
tudo escuro; e no escuro, a descer do telhado,
longas fitas de sol. Nada mais ali resta.
A velha casa morre. Apenas, sobre as lombas
do teto a desabar caminham sem cuidado,
nos pequeninos pés, turturinando, as pombas.
SOBRE OS DESENGANOS
Desenganos da vida! Se eu ouvia
falar, outrora, nos seus negros danos,
enfadado exclamava: “Ora! mania,
que a muitos vem com o desfiar dos anos!”
A minha nau, porém, abrindo os panos,
lançou-se ao largo mar com galhardia.
E logo pude ver que os desenganos
são mais cruéis do que eu pensei um dia.
87
Hoje, as lamentações, que ouvi outrora
com profano desdém, causam-me espanto:
o humano coração bem pouco chora!
Quão fracamente seu queixume exala!
quanto resiste, em seu calvário! E quanto
é desgraçado, porque não estala!
EM QUE SE CONSIDERA A VIDA COMO SEMELHANTE À LAVRA DA TERRA
A terra é dura; o sol é bravo; a geada,
destruidora; aves más e más formigas
assolam tudo, e a planta acarinhada
mal resiste a essas forças inimiga.
Que importa! Lavra sempre. Não maldigas
a terra ingrata. Não maldigas nada.
Talvez um dia o preço das fadigas
brote do sulco da robusta enxada.
Mas, quanto mais a terra é ingrata, e bravo
o sol, e as aves são cruéis e o resto,
mais valor mostrarás em continuar!.
Que é gentileza não viver escravo
da ganância, e plantar só pelo gesto
religioso e sereno de plantar.
NEC MERGITUR
A sorte, muita vez, é bem amarga.
Vai-se, corrente abaixo, sem sentir,
e eis, de repente, o passo nos embarga
um cachão de água brava a refluir.
Eis a piroga a corcovar de ilharga,
a vela a estremeer, a ir, a vir;
eis que rolou por água abaixo a carga,
eis a água pelas bordas a subir.
Mas tenhamos paciência! Ao menos esta
não soçobre aos boleus da sorte infesta,
88
para todo o perdido recompor;
e, se o não recompõe, ao menos, diga:
— Raivaik, águas! Raivai, sorte inimiga!
exijo inteiro o meu quinhão de dor.
VOZ ÍNTIMA
Fecha-te, sofredor, na alva túnica ondeante
Dos sonhos!E caminha, e prossegue, embebido,
Muito embora, na dor de um fiei celebrante
De um estranho ritual desdenhado e esquecido!
Deixa ressoar em torno o bárbaro alarido,
Deixa que voe o pó da terra em torno... Adiante!
Vai tu só, calmo e bom, calmo e triste, envolvido
Nessa túnica ideal de sonhos, alvejante.
Sê, nesta escuridão do mundo, o paradigma
De um desolado espectro, uma sombra, um enigma,
Perpassando sem ruído a caminho do Além.
E só deixes na terra uma reminiscência:
A de alguém que assistiu à luta da existência,
Triste e só, sem fazer nenhum mal a ninguém.
89
ANTERO DE QUENTAL
(1842—1891)
LITERATURA PORTUGUESA
AS FADAS
As fadas… eu creio nelas!
Umas são moças e belas,
Outras, velhas de pasmar…
Umas vivem nos rochedos,
Outras, pelos arvoredos,
Outras, à beira do mar…
Algumas em fonte fria
Escondem-se, enquanto é dia,
Saem só ao escurecer…
Outras, debaixo da terra,
Nas grutas verdes da serra,
É que se vão esconder…
O vestir… são tais riquezas,
Que rainhas, nem princesas
Nenhuma assim se vestiu!
Porque as riquezas das fadas
São sabidas, celebradas
Por toda a gente que as viu…
Quando a noite é clara e amena
E a lua vai mais serena,
Qualquer as pode espreitar,
Fazendo rodas, ocupadas
90
Em dobar suas meadas
De ouro e de prata, ao luar.
O luar é os seus amores!
Sentadinhas entre as flores
Horas se ficam sem fim,
Cantando suas cantigas,
Fiando suas estrigas,
Em roca de oiro e marfim.
Eu sei os nomes de algumas:
Viviana ama as espumas
Das ondas nos areais,
Vive junto ao mar, sozinha,
Mas costuma ser madrinha
Nos batizados reais.
Morgana é muito enganosa;
Às vezes, moça e formosa,
E outras, velha, a rir, a rir…
Ora festiva, ora grave,
E voa como uma ave,
Se a gente lhe quer bulir.
Que direi de Melusina?
De Titânia, a pequenina,
Que dorme sobre um jasmim?
De cem outras, cuja glória
Enche as páginas da história
Dos reinos de el-rei Merlin?
Umas têm mando nos ares;
Outras, na terra, nos mares;
E todas trazem na mão
Aquela vara famosa,
A vara maravilhosa,
A varinha de condão.
O que elas querem, num pronto,
Fez-se ali!parece um conto…
Mesmo de fadas… eu sei!
São condões que dão à gente,
Ou dinheiro reluzente
Ou joias, que nem um rei!
91
A mais pobre criancinha
Se quis ser sua madrinha,
Uma fada… ai, que feliz!
São palácios, num momento…
Beleza, que é um portento…
Riqueza, que nem se diz…
Ou então, prendas, talento,
Ciência, discernimento,
Graças, chiste, discrição…
Vê-se o pobre inocentinho
Feito um sábio, um adivinho,
Que aos mais sábios vai à mão!
Mas, com tudo isto, as fadas
São muito desconfiadas;
Quem as vê não há de rir.
Querem elas que as respeitem,
E não gostam que as espreitem,
Nem se lhes há de mentir.
Quem as ofende… Cautela!
A mais risonha, a mais bela,
Torna-se logo tão má,
Tão cruel, tão vingativa!
É inimiga agressiva,
É serpente que ali está!
E têm vinganças terríveis!
Semeiam coisas horríveis,
Que nascem logo no chão…
Línguas de fogo que estalam!
Sapos com asas que falam!
Um anão preto! Um dragão!
Ou deitam sortes na gente…
O nariz faz-se serpente,
A dar pulos, a crescer…
É-se morcego ou veado…
E anda-se assim encantado,
Enquanto a fada quiser!
Por isso quem por estradas
92
For, de noite, e vir as fadas
Nos altos mirando o céu,
Deve com jeito falar-lhes
Muito cortês e tirar-lhes
Até ao chão o chapéu.
Porque a fortuna da gente
Está às vezes somente
Numa palavra que diz;
Por uma palavra, engraça
Uma fada com quem passa,
E torna-o logo feliz.
Quantas vezes já deitado,
Mas sem sono, inda acordado
Me ponho a considerar
Que condão eu pediria,
Se uma fada, um belo dia,
Me quisesse a mim fadar…
O que seria? Um tesouro?
Um reino? Um vestido de ouro?
Ou um leito de marfim?
Ou um palácio encantado,
Com seu lago prateado
E com pavões no jardim?
Ou podia, se eu quisesse,
Pedir também que me desse
Um condão, para falar
A língua dos passarinhos,
Que conversam nos seus ninhos…
Ou então, saber voar!
Oh, se esta noite sonhando,
Alguma fada, engraçando
Comigo (podia ser!)
Me tocasse da varinha,
E fosse minha madrinha
Mesmo a dormir, sem a ver…
E que amanhã acordasse
E me achasse… eu sei? Me achasse
Feito um príncipe, um emir!…
93
Até já, imaginando,
Se estão meus olhos fechando…
Deixa-me já, já dormir!
MÃE
Mãe - que adormente este viver dorido,
E me vele esta noite de tal frio,
E com as mãos piedosas até o fio
Do meu pobre existir, meio partido...
Que me leve consigo, adormecido,
Ao passar pelo sítio mais sombrio...
Me banhe e lave a alma lá no rio
Da clara luz do seu olhar querido...
Eu dava o meu orgulho de homem - dava
Minha estéril ciência, sem receio,
E em débil criancinha me tornava,
Descuidada, feliz, dócil também,
Se eu pudesse dormir sobre o teu seio,
Se tu fosses, querida, a minha mãe!
NIRVANA
Viver assim: sem ciúmes, sem saudades,
Sem amor, sem anseios, sem carinhos,
Livre de angústias e felicidades,
Deixando pelo chão rosas e espinhos;
Poder viver em todas as idades;
Poder andar por todos os caminhos;
Indiferente ao bem e às falsidades,
Confundindo chacais e passarinhos;
Passear pela terra, e achar tristonho
Tudo que em torno se vê, nela espalhado;
A vida olhar como através de um sonho;
Chegar onde eu cheguei, subir à altura
Onde agora me encontro - é ter chegado
94
Aos extremos da Paz e da Ventura!
SONHO ORIENTAL
Sonho-me às vezes rei, nalguma ilha,
Muito longe, nos mares do Oriente,
Onde a noite é balsâmica e fulgente
E a lua cheia sobre as águas brilha...
O aroma da magnólia e da baunilha
Paira no ar diáfano e dormente...
Lambe a orla dos bosques, vagamente,
O mar com finas ondas de escumilha...
E enquanto eu na varanda de marfim
Me encosto, absorto n'um cismar sem fim,
Tu, meu amor, divagas ao luar,
Do profundo jardim pelas clareiras,
Ou descansas debaixo das palmeiras,
Tendo aos pés um leão familiar.
CONTEMPLAÇÃO
Sonho de olhos abertos, caminhando
Não entre as formas já e as aparências,
Mas vendo a face imóvel das essências,
Entre ideias e espíritos pairando...
Que é o Mundo ante mim? fumo ondeando,
Visões sem ser, fragmentos de existências...
Uma névoa de enganos e impotências
Sobre vácuo insondável rastejando...
E dentre a névoa e a sombra universais
Só me chega um murmúrio, feito de ais...
É a queixa, o profundíssimo gemido
Das coisas, que procuram cegamente
Na sua noite e dolorosamente
Outra luz, outro fim só pressentindo...
95
HINO À RAZÃO
Razão, irmã do Amor e da Justiça,
Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz dum coração que te apetece,
Duma alma livre, só a ti submissa.
Por ti é que a poeira movediça
De astros e sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.
Por ti, na arena trágica, as nações
Buscam a liberdade, entre clarões;
E os que olham o futuro e cismam, mudos
Por ti, podem sofrer e não se abatem,
Mãe dos filhos robustos, que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!
A UM POETA
Surge et ambula!
Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno,
Acorda! é tempo! O sol, já alto e pleno,
Afugentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares,
Um mundo novo espera só um aceno...
Escuta! é a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! são canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!
Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!
96
TESE E ANTÍTESE
I
Já não sei o que vale a nova ideia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspecto, à luz da barricada,
Como bacante após lúbrica ceia!
Sanguinolento o olhar se lhe incendeia...
Respira fumo e fogo embriagada...
A deusa de alma vasta e sossegada
Ei-la presa das fúrias de Medeia!
Um século irritado e truculento
Chama à epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obus...
Mas a ideia é num mundo inalterável,
Num cristalino Céu, que vive estável...
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!
II
Num Céu intemerato e cristalino
Pode habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O Ser, como espetáculo divino:
Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou, vive e agita-se incessante...
Enche o ar da terra o seu pulmão possante...
Cá da terra blasfema ou ergue um hino...
A ideia encarna em peitos que palpitam:
O seu pulsar são chamas que crepitam,
Paixões ardentes como vivos sóis!
Combatei pois na terra árida e bruta,
‘Té que a revolva o remoinhar da luta,
‘Té que fecunde o sangue dos heróis.
MAIS LUZ!
97
Amem a noite os magros crapulosos,
E os que sonham com virgens impossíveis,
E os que se inclinam, mudos e impassíveis,
À borda dos abismos silenciosos...
Tu, Lua, com teus raios vaporosos,
Cobre-os, tapa-os e torna-os insensíveis,
Tanto aos vícios cruéis e inextinguíveis,
Como aos longos cuidados dolorosos!
Eu amarei a santa madrugada,
E o meio-dia, em vida refervendo,
E a tarde rumorosa e repousada.
Viva e trabalhe em plena luz: depois,
Seja-me dado ainda ver, morrendo,
O claro Sol, amigo dos heróis!
A UM CRUCIFIXO
Não se perdeu teu sangue generoso,
Nem padeceste em vão, quem quer que foste,
Plebeu antigo, que amarrado ao poste
Morreste como vil e faccioso.
Desse sangue maldito e ignominioso
Surgiu armada uma invencível hoste...
Paz aos homens e guerra aos deuses! - pôs-te
Em vão sobre um altar o vulgo ocioso...
Do pobre que protesta foste a imagem:
Um povo em ti começa, um homem novo:
De ti data essa trágica linhagem.
Por isso nós, a Plebe, ao pensar nisto,
Lembraremos, herdeiros desse povo,
Que entre nossos avós se conta Cristo.
HINO À RAZÃO
Razão, irmã do Amor e da Justiça,
Mais uma vez escuta a minha prece,
98
É a voz dum coração que te apetece,
Duma alma livre, só a ti submissa.
Por ti é que a poeira movediça
De astros e sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.
Por ti, na arena trágica, as nações
Buscam a liberdade, entre clarões,
E os que olham o futuro e cismam, mudos,
Por ti, podem sofrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos, que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!
LAMENTO
Um dilúvio de luz cai da montanha:
Eis o dia! eis o Sol! o esposo amado!
Onde há por toda a Terra um só cuidado
Que não dissipe a luz que o Mundo banha?
Flor a custo medrada em erma penha,
Revolto mar ou golfo congelado,
Aonde há ser de Deus tão olvidado
Para quem paz e alívio o Céu não tenha?
Deus é Pai! Pai de toda a criatura:
E a todo o ser o seu amor assiste:
De seus filhos o mal sempre é lembrado...
Ah! se Deus a seus filhos dá ventura
Nesta hora santa... e eu só posso ser triste...
Serei filho, mas filho abandonado!
MEA CULPA
Não duvido que o Mundo no seu eixo
Gire suspenso e volva em harmonia;
Que o homem suba e vá da noite ao dia,
E a homem vá subindo inseto e seixo.
99
Não chamo a Deus tirano, nem me queixo,
Nem chamo ao céu da vida noite fria;
Não chamo à existência hora sombria;
Acaso à ordem; nem à lei desleixo.
A Natureza é minha mãe ainda...
É minha mãe... Ah, se eu à face linda
Não sei sorrir; se estou desesperado;
Se nada há que me aqueça esta frieza;
Se estou cheio de fel e de tristeza...
É de crer que só eu seja o culpado!
CONSULTA
Chamei em volta do meu frio leito
as memórias melhores de outra idade,
Formas vagas, que às noites, com piedade,
Se inclinam, a espreitar, sobre meu peito...
E disse-lhes: - No mundo imenso e estreito
Valia a pena, acaso, em ansiedade
Ter nascido? dizei-mo com verdade,
Pobres memórias que eu ao seio estreito...
Mas elas perturbaram-se - coitadas!
E empalideceram, contristadas,
Ainda a mais feliz, a mais serena...
E cada uma delas, lentamente,
Com um sorriso mórbido, pungente,
Me respondeu: - Não, não valia a pena!
A UM CRUCIFIXO
Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
E clamaste da cruz: “Há Deus!” e olhaste, ó crente,
O horizonte futuro e viste, em tua mente,
Um alvor ideal banhar esses espaços!
Porque morreu sem eco o eco de teus passos,
100
E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?
Morreste... ah! dorme em paz! não volvas, que descrente
Arrojaras de novo à campa os membros lassos...
Agora, como então, na mesma terra erma,
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo Céu, frio como um sudário...
E agora, como então, viras o Mundo exangue
E ouviras perguntar: “De que serviu o sangue
Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário?”
ENQUANTO OUTROS COMBATEM
Empunhasse eu a espada dos valentes!
Impelisse-me a ação, embriagado,
Por esses campos onde a Morte e o Fado
Dão a lei aos reis trêmulos e às gentes!
Respirariam meus pulmões contentes
O ar de fogo do circo ensanguentado...
Ou caíra radioso, amortalhado
Na fulva luz dos gládios reluzentes!
Já não veria dissipar-se a aurora
De meus inúteis anos, sem uma hora
Viver mais que de sonhos e ansiedade!
Já não veria em minhas mãos piedosas
Desfolhar-se, uma a uma, as tristes rosas
Desta pálida e estéril mocidade!
NO CIRCO
Muito longe daqui, nem eu sei quando,
Nem onde era esse Mundo em que eu vivia...
Mas tão longe... que até dizer podia
Que enquanto lá andei, andei sonhando...
Porque era tudo ali aéreo e brando,
E lúcida a existência amanhecia...
E eu... leve como a luz... até que um dia
101
Um vento me tomou e vim rolando...
Caí e achei-me, de repente, envolto
Em luta bestial, na arena fera,
Onde um bruto furor bramia solto.
Senti um monstro em mim nascer nessa hora,
E achei-me de improviso feito fera...
- É assim que rujo entre leões agora!
102
ANTÔNIO BOTTO
(1897—1959)
LITERATURA PORTUGUESA
BEIJEMO-NOS, APENAS
Não. Beijemo-nos, apenas,
Nesta agonia da tarde.
Guarda
Para um momento melhor
Teu viril corpo trigueiro.
O meu desejo não arde;
E a convivência contigo
Modificou-me - sou outro...
A névoa da noite cai.
Já mal distingo a cor fulva
Dosa teus cabelos - És lindo!
A morte,
devia ser
Uma vaga fantasia!
Dá-me o teu braço: - não ponhas
Esse desmaio na voz.
Sim, beijemo-nos apenas,
Que mais precisamos nós?
103
OUVE, MEU ANJO
Ouve, meu anjo:
Se eu beijasse a tua pele?
Se eu beijasse a tua boca
Onde a saliva é mel?
Tentou, severo, afastar-se
Num sorriso desdenhoso;
Mas aí!,
A carne do assassino
É como a do virtuoso.
Numa atitude elegante,
Misterioso, gentil,
Deu-me o seu corpo doirado
Que eu beijei quase febril.
Na vidraça da janela,
A chuva, leve, tinia...
Ele apertou-me cerrando
Os olhos para sonhar E eu lentamente morria
Como um perfume no ar!
SE DUVIDAS QUE TEU CORPO
Se duvidas que teu corpo
Possa estremecer comigo –
E sentir
O mesmo amplexo carnal,
– desnuda-o inteiramente,
Deixa-o cair nos meus braços,
E não me fales,
Não digas seja o que for,
Porque o silêncio das almas
Dá mais liberdade
às coisas do amor.
104
Se o que vês no meu olhar
Ainda é pouco
Para te dar a certeza
Deste desejo sentido,
Pede-me a vida,
Leva-me tudo que eu tenha –
Se tanto for necessário
Para ser compreendido.
ANDAVA A LUA NOS CÉUS
Andava a lua nos céus
Com o seu bando de estrelas
Na minha alcova
Ardiam velas
Em candelabros de bronza
Pelo chão em desalinho
Os veludos pareciam
Ondas de sangue e ondas de vinho
Ele, olhava-me cismando;
E eu,
Placidamente, fumava,
Vendo a lua branca e nua
Que pelos céus caminhava.
Aproximou-se; e em delírio
Procurou avidamente
E avidamente beijou
A minha boca de cravo
Que a beijar se recusou.
Arrastou-me para ele,
E encostado ao meu ombro
Falou-me de um pagem loiro
Que morrera de saudade
À beira-mar, a cantar...
Olhei o céu!
Agora, a lua, fugia,
105
Entre nuvens que tornavam
A inda noite sombria.
Deram-se as bocas num beijo,
Um beijo nervoso e lento...
O homem cede ao desejo
Como a nuvem cede ao vento
Vinha longe a madrugada.
Por fim,
Largando esse corpo
Que adormecera cansado
E que eu beijara, loucamente,
Sem sentir,
Bebia vinho, perdidamente
Bebia vinha..., até cair.
Á MEMÓRIA DE FERNANDO PESSOA
Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão
- Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida - esta boemia
Coberta de farrapos e de estrelas
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma:
Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio da descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
- Autênticos patifes bem falantes...
E a mesma intriga; as horas, os minutos,
106
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver
- Sem estímulo, sem fé, sem convicção...
Poetas, escutai-me: transformemos
A nossa natural angústia de pensar
- Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!
ANDA VEM
Anda vem..., porque te negas,
Carne morena, toda perfume?
Porque te calas,
Porque esmoreces,
Boca vermelha - rosa de lume?
Se a luz do dia
Te cobre de pejo,
Esperemos a noite presos num beijo.
Dá-me o infinito gozo
De contigo adormecer
Devagarinho, sentindo
O aroma e o calor
Da tua carne, meu amor!
E ouve, mancebo alado:
Entrega-te, sê contente!
- Nem todo o prazer
Tem vileza ou tem pecado!
Anda, vem!... Dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos...
Tenho saudades da vida!
Tenho sede dos teus beijos!
107
ANTÔNIO FEIJÓ
(1859—1917)
LITERATURA PORTUGUESA
FLOR DE PESSEGUEIRO
A melindrosa flor de pessegueiro
Deixei-a, como dádiva de amores,
A essa que tem o rosto feiticeiro
E os lábios cor das purpurinas flores.
E a tímida andorinha, de asas quietas,
Dei-a também como lembrança minha,
A essa que tem as sobrancelhas pretas,
Iguais às asas da andorinha.
No dia imediato a flor morria,
E a andorinha voava, entre esplendores,
Sobre a Grande Montana onde vivia
O Gênio oculto que preside às flores.
Mas nos seus lábios, como a flor abrindo,
Conserva a mesma carnação,
E não voaram, pelo azul fugindo
As asas negras dos seus olhos, não!
PÁLIDA E LOIRA
Morreu. Deitada num caixão estreito,
pálida e loira, muito loira e fria,
108
o seu lábio tristíssimo sorria
como num sonho virginal desfeito.
Lírio que murcha ao despontar do dia,
foi descansar no derradeiro leito,
as mãos de neve erguidas, sobre o peito,
pálida e loira, muito loira e fria.
Tinha a cor da rainha das baladas
e das monjas antigas maceradas
no pequenino esquife em que dormia.
Levou-a a morte em sua garra adunca,
e eu nunca mais pude esquecê-la, nunca!
pálida e loira, muito loira e fria.
A UMA MULHER FORMOSA
Nas límpidas canções que me inspiraste
ao som da flauta d'ébano cantadas,
narrava as minhas mágoas desoladas,
mas tu não me escutaste!
Depois compus estâncias primorosas,
que leste em carinho e sem ternura,
lançando ao rio as páginas formosas
onde eu cantava a tua formosura.
Quis ser então mais fino e mais amável:
dei-te um presente fabuloso e raro,
uma enorme safira comparável
a um céu noturno imensamente claro.
E em paga d'essa joia deslumbrante,
d'esse primor, d'uma riqueza louca,
mostraste-me, sorrindo um só instante,
as pequeninas pérolas da boca.
SALGUEIRO
Adoro esta mulher moça e formosa,
Que à janela, a sonhar, vejo esquecida,
109
Não por ter uma casa suntuosa
Junto ao Rio Amarelo construída…
- Amo-a porque uma folha melindrosa
Deixou cair nas águas distraída.
Também adoro a brisa do Levante
Não por trazer a essência virginal
Do pessegueiro que floriu distante,
No pendor da Montanha Oriental…
- Amo-a porque impeliu a folha errante
Ao meu batel no lago de cristal.
E adoro a folha, não por ter lembrado
A nova primavera que rompeu,
Mas por causa de um nome idolatrado
Que essa jovem mulher n’ela escreveu
Com a doirada agulha do bordado…
E esse nome… era o meu!
FÁBULA ANTIGA
No princípio do mundo o Amor não era cego;
Via mesmo através da escuridão cerrada
Com pupilas de Lince em olhos de Morcego.
Mas um dia, brincando, a Demência, irritada,
Num ímpeto de fúria os seus olhos vazou;
Foi a Demência logo às feras condenada,
Mas Júpiter, sorrindo, a pena comutou.
A Demência ficou apenas obrigada
A acompanhar o Amor, visto que ela o cegou,
Como um pobre que leva um cego pela estrada.
Unidos desde então por invisíveis laços
Quando a Amor empreende a mais simples jornada,
Vai a Demência adiante a conduzir-lhe os passos.
IDEAL
Onde moras? Onde moras?
Se adivinhasse onde moras
- Em frente da tua porta,
110
Olhando a tua janela,
Veria passar as horas,
As minhas últimas horas.
Sem ti a vida que importa?
A vida, nem penso nela...
Veria passar as horas,
As minhas últimas horas,
Em frente da tua porta,
Olhando a tua janela...
Onde moras? Onde moras?
É num castelo roqueiro?
Se é num castelo roqueiro,
Erguido na penedia,
Sobre o rochedo mais alto
À beira-mar sobranceiro,
Com a minha fantasia
Irei tomá-lo de assalto,
Esse castelo roqueiro,
Erguido na penedia,
Sobre o rochedo mais alto,
À beira-mar sobranceiro...
É nos abismos do mar?
Se é nos abismos do mar,
Sob a múrmura corrente,
No teu leito de amaranto
Irei também descansar,
Ficando perpetuamente
Naquele perpétuo encanto
Do Rei Harald Horfagar...
No teu leito de amaranto
Irei também descansar,
Naquele perpétuo encanto
Do Rei Hárald Horfagar.
É numa estrela, ilha de ouro?
Se é numa estrela, ilha de ouro,
- A Via-láctea é uma ponte,
Subirei por ela ao céu...
Para achar o meu tesouro
Não há remoto horizonte,
111
Nem Sagitário ou Perseu...
Onde moras? Onde moras?
Se adivinhasse onde moras
- Em frente da tua porta,
Olhando a tua janela,
Veria passar as horas,
As minhas últimas horas.
Sem ti a vida que importa?
A vida, nem penso nela...
Veria passar as horas,
As minhas últimas horas,
Em frente da tua porta,
Olhando a tua janela
Numa extasiada emoção.
Dize-me pois onde moras,
Se porventura não moras
Dentro do meu coração...
112
ANTÔNIO FELICIANO CASTILHO
(1800—1875)
LITERATURA PORTUGUESA
CONVITE PARA A FELICIDADE
Ditoso, Júlia, ditoso,
quem livre de inquietação
come os frutos que semeia,
e dorme no seu torrão;
que desconhece das cortes
intriga, esperança e receios,
que julga acabar-se o mundo,
onde acabam seus passeios.
Penúria e riqueza ignora,
dois escolhos da virtude,
e tira do seu trabalho
bens, prazer, vigor, saúde.
De iguais rodeado vive,
e só tem por superior
seu Criador no outro mundo,
na paróquia o seu pastor.
As aras jamais incensa
de Astreia, Minerva ou Marte,
mas Baco e Pomona e Ceres
lhe riem de toda a parte.
113
Mais apertado não vive
na avita cabana herdada,
que o rico em salões de estuque,
de alta, soberba fachada.
Em vez de jardins estéreis,
faz consistir seu prazer
em lhe à porta verdejarem
as couves que fez nascer.
Dorme em colmo um sono inteiro,
enquanto, em doirado leito,
o nobre se volve, e geme,
de aflição ralado o peito.
Ao lado lhe dorme a esposa,
fiel, inocente e bela;
o filhinho, imagem sua,
dorme em paz ao seio dela.
Se ela lhe diz: – eu te adoro,
eu te amarei toda a vida! –
de ser verdade o que escuta
nem um momento duvida.
Sabe que a fé, que a virtude,
virtude pura, ilibada,
dons mais belos que a beleza,
são numes da sua amada.
Ela não vive no meio
da corrupta mocidade,
que adorna, envenena, empesta,
das cortes a sociedade.
Não quer brilhar nos passeios,
nem de mil adoradores
vai disputar nos teatros
os suspiros e os louvores.
Passa a noite ao pé do esposo,
entre os filhos passa o dia,
o trabalho a ocupa sempre:
ser infiel poderia?
114
Da sua família é toda,
nela concentra a afeição,
que as damas à intriga, às festas,
ao jogo, aos enfeites dão.
Quer-se ornar nos santos dias?
Não se assenta ao toucador
em vez de jóias brilhantes
procura singela flor.
Para arranjar seus cabelos,
nem corre ao cristal da fonte;
não carece de outro espelho,
tem seu consorte defronte.
Ele lhe ensina a maneira
por que lhe ficam melhor;
ele lhe diz em que sítio,
e como lhe ajusta a flor.
Se lhe agrada, está contente;
e vai de inocência cheia
entrar com ele nas festas,
nas festas simples da aldeia.
Ah, Júlia! Que sorte a de ambos!
Sem longas filosofias,
sabem melhor do que os sábios
desfrutar serenos dias.
Os princípios, os sistemas,
sonhos de estéril vaidade,
jamais tornaram ditosa
a mesquinha humanidade.
Se existe o bem sobre a terra,
se queres, Júlia, este bem,
uma aldeia... uma cabana...
ternura... inocência... Ah, vem!
DEFENSA DE UM INCONSTANTE
(Cançoneta)
115
Desterra teus vãos ciúmes,
festejo a quantas são belas
mas sempre a rainha delas
és tu, Armânia cruel.
De teu semblante as lindezas
adoro noutros semblantes:
são meus passos inconstantes,
é meu coração fiel.
Não to nego, com Armia
falo às vezes em segredo;
não to nego, este arvoredo
viu-me com Lília brincar:
Porém com Lília só brinco,
por ter nos brincos teus modos;
de Armia os segredos todos
os teus me fazem lembrar.
..........................................
Se a Ismene pedi cabelo,
foi só por também ser louro;
fui rico do teu tesouro,
sem o obter da tua mão.
Amo em Gertrúria o teu riso,
amo os teus olhos em Jônia,
preso nas cartas de Aônia
tua escrita e discrição.
Um só coração me coube,
e tu és a flor das belas!
Nem mesmo entre os braços delas
te fora infiel jamais.
Por distração tenho às outras
vezes mil teu nome dado;
e até hoje inda a teu lado
não tive enganos iguais!
Meu pensamento amoroso
é qual Fovônio entre as flores,
que, a mil sussurrando amores,
116
elege a rosa entre mil;
Por todo um jardim vagueia,
mas guarda a afeição saudosa;
passa, e lembra-nos da rosa,
da rosa ingênua e gentil.
Quanto mais julgas, ingrata,
perder a tua conquista,
tanto mais se aumenta a lista
dos teus triunfos sem par.
De meu coração te queixas
serem sem conto as rainhas!
São escravas, que não tinhas,
que vão teu carro puxar.
Dez Análias te abandono,
Jônias duas, seis Temires,
e após estas quantas vires
de semblante encantador.
Armânia, sobre áureas rodas,
por tuas rivais tirada,
sobe, de mirto coroada,
ao Capitólio de amor!
Lá, sobre as aras do nume,
jura um prêmio aos meus ardores.
Quanto amará teus favores
quem tanto os desdéns te amou!
Depois, sofre que ame sempre
em teu sexo a todos grato
os pedaços de um retrato
que a natureza quebrou.
OS TREZE ANOS
(Cantilena)
Já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro:
Madrinha, casai-me com
117
Pedro Gaiteiro.
Já sou mulherzinha,
já trago sombreiro,
já bailo ao domingo
com as mais no terreiro.
Já não sou Anita,
como era primeiro;
sou a Senhora Ana,
que mora no outeiro.
Nos serões já canto,
nas feiras já feiro,
já não me dá beijos
qualquer passageiro.
Quando levo as patas,
e as deito ao ribeiro,
olho tudo à roda,
de cima do outeiro.
E só se não vejo
ninguém pelo arneiro,
me banho com as patas
ao pé do salgueiro.
Miro-me nas águas,
rostinho trigueiro,
que mata de amores
a muito vaqueiro.
Miro-me, olhos pretos
e um riso fagueiro,
que diz a cantiga
que são cativeiro.
Em tudo, madrinha,
já por derradeiro
me vejo mui outra
da que era primeiro.
O meu gibão largo,
de arminho e cordeiro,
118
já o dei à neta
do Brás cabaneiro,
Dizendo-lhe: “Toma
gibão, domingueiro,
de ilhoses de prata,
de arminho e cordeiro.
A mim já me aperta,
e a ti te é laceiro;
tu brincas com as outras,
e eu danço em terreiro”.
Já sou mulherzinha,
já trago sombreiro,
já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro.
Já não sou Anita,
sou a Ana do outeiro;
Madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.
Não quero o sargento,
que é muito guerreiro,
de barbas mui feras
e olhar sobranceiro.
O mineiro é velho;
não quero o mineiro:
Mais valem treze anos
que todo o dinheiro.
Tão-pouco me agrado
do pobre moleiro,
que vive na azenha
como um prisioneiro.
Marido pretendo
de humor galhofeiro,
que vive por festas,
que brilhe em terreiro.
Que em ele assomando
119
com o tamborileiro,
logo se alvorote
o lugar inteiro.
Que todos acorram
por vê-lo primeiro,
e todas perguntem
se ainda é solteiro.
E eu sempre com ele,
romeira e romeiro,
vivendo de bodas,
bailando ao pandeiro.
Ai, vida de gostos!
Ai, céu verdadeiro!
Ai, páscoa florida,
que dura ano inteiro!
Da parte, Madrinha,
de Deus vos requeiro:
Casai-me hoje mesmo com
Pedro Gaiteiro.
120
ANTÔNIO GOMES LEAL
(1848—1921)
LITERATURA PORTUGUESA
CARTA ÀS ESTRELAS
Ninguém soletra mais vossos mistérios
Grandes letras da Noute! sem cessar...
Ó tecidos de luz! rios etéreos,
Olhos azuis que amoleceis o Mar!...
O que fazeis dispersas pelo ar?!...
E há que tempos há já, fogos sidéreos,
Que ides assim como uns brandões funéreos
Que levais o Deus Padre a sepultar?!
Há que tempos, dizei! - Há muitos anos?...
E, com tudo, astros santos, desumanos,
A vossa luz é sempre clara e igual!
Há muito, que sois bons, castos, brilhantes!...
— Mas, também... ó cruéis! sempre distantes...
Como dos nossos braços o Ideal!
"EPITÁFIOS"
De uma cocotte
Como era bom pompear, em carros a Daumont,
sensacionais chapéus!
121
Mas lá no céu cristão que falta de bom-tom!
Não se usa lá carmim, pó-de-arroz, nem lorgnon,
nem se bebe Bordéus!...
De uma mundana
Rainha dos salões, mais formosas que as lendas
feéricas do Erin!
O que te há de afligir nestas horas tremendas
é aparecer a Deus sem peignoir de rendas
e sem pôr o teu carmim.
Da Rigolboche
Deusa do bacanal, foste a amável Naná,
ruidosa do bom tom.
E se acaso, nos céus, se baila como cá,
decerto já piscaste um olho a Jeová,
dançando o cotillon.
ROMANTISMO
Quando ergue o transparente da janela,
Ou que o seu quarto se inundou de luz,
Eu amo vê-la, sedutora e bela,
— Longos cabelos sobre os ombros nus.
Oh como é bela! e como a fico a olhar,
Dos seus cabelos desatando a fita!...
Lembram-me as virgens que do austero Ermita
Vinham as noites de orações tentar.
Oh como é bela! - Tem na luz do olhar
Quais violetas quando as fecha o sono,
Não sei que doce e lânguido abandono,
Não sei que vago que nos faz cismar!...
Como eu a espreito, palpitante o seio,
Como eu a sigo nos seus gestos vários,
Naquele quarto, aquele ninho cheio
Da doce voz dos joviais canários!...
Como eu quisera ser, nos sonhos dela,
122
Um rei das lendas, o fatal D. Juan,
pirata mouro, em galeões à vela
Como minaretes sob o céu do Iran!...
Como eu quisera - e que vontade intensa!Só pelo brilho dessa longa trança,
Ser cavaleiro de invencível lança,
Ou rei normando duma ilha imensa!...
Como eu quisera, no seu pensamento,
Ser o rei bardo no rochedo duro,
E ambos, fugindo, recortar o vento,
Sobre a garupa dum cavalo escuro!...
Se me morresse, que comprido choro!
Como vergara sob a cruz de Malta!
Como eu deitara a minha trança d’Ouro,
Por causa dela, duma torre alta!...
***
E assim por ela fico preso, enquanto
O sol se esconde no ocidente triste...
Um cravo murcha, numa jarra, a um canto,
- E as aves voam, debicando o alpiste.
AUTÓPSIA DO AMOR
O Amor — essa paixão romanesca e fagueira —
que os vates têm cantado em bemol comovido,
é, na forma, uma coisa assaz brusca e grosseira,
como o assalto da fera e o ataque do bandido.
Tal e qual como o lobo ataca uma cordeira,
a empolga e lhe crava o colmilho atrevido,
assim ataca o Amor. — São da mesma maneira
o Espasmo, a Fúria, o Uivo, o Estertor, o Rugido.
Nas contorções do Cio e os seus enlaçamentos,
há o ardor da Serpente, a enroscar-se nas preias,
e a estrangular o touro enorme e mugidor.
E quer cheire ao sertão, ou da Lais aos unguentos,
123
Nos rosais, num covil, ou de Nero nas ceias,
— são sempre os mesmos ais, o Pranto, o Espasmo, a Dor.
A CIDADE
Em vão busco na velha e hostil Cidade,
Beata amante, de gangrenas cheia,
As dispersas raízes da Verdade,
Como uma flor, num pátio de cadeia.
Quando, alta noite, D. Juan passeia,
Ela põe-lhe em leilão a mocidade...
Tratada com a mística ansiedade,
Com que um sábio cultiva a flor da Ideia.
Mas, contudo, ninguém receia tanto
O áspero Deus e o lenho sacrossanto
Da dorida tragédia do Calvário...
E, ó D. Juan, às luzes das estrelas,
Tu bem sabes se encontras, nas ruelas,
Mais de uma vez, perdido algum rosário!...
NOITES DE CHUVA
Eu não sei, ó meu bem, cheio de graças!
Se tu amas no Outono — já sem rosas —
A longa e lenta chuva nas vidraças,
E as noites glaciais e pluviosas!...
Nessas noites sem luz, que — visionários —
Temos quimeras místicas, celestes,
E cismamos nos pobres solitários
Que tiritam debaixo dos ciprestes!
Que evocamos os líricos passados,
As quimeras, e as horas infelizes,
Os velhos casos tristes olvidados
E os mortos corações sob as raízes!...
Nessas noites, meu bem, em que desfeito
cai o frio granizo nas estradas,
124
E tanto apraz sonhando, sobre o leito,
Ouvir a longa chuva nas calçadas;
Nessas noites, elétricas, nervosas,
Todas cheias de aromas outonais,
Que a tristeza tem formas monstruosas,
Como, num sonho, os pórticos claustrais;
Noites só em que o sábio acha prazeres,
— Tão ignorados dos cruéis profanos; —
E em que as nervosas, místicas, mulheres,
Desfalecem chorando, nos pianos;
Nessas noites, meu bem! é que os poetas
Têm às vezes seus sonhos mais brilhantes,
Folheiam suas obras prediletas...
— evocam rostos... e visões distantes!
125
ANTÔNIO NOBRE
(1867—1900)
LITERATURA PORTUGUESA
SONETO
Meus dias de rapaz, de adolescente,
Abrem a boca a bocejar, sombrios:
Deslizam vagarosos, como os Rios,
Sucedem-se uns aos outros, igualmente.
Nunca desperto de manhã, contente.
Pálido sempre com os lábios frios,
Ora, desfiando os meus rosários pios...
Fora melhor dormir, eternamente!
Mas não ter eu aspirações vivazes,
E não ter como têm os mais rapazes,
Olhos boiados em sol, lábio vermelho!
Quero viver, eu sinto-o, mas não posso:
E não sei, sendo assim enquanto moço,
O que serei, então, depois de velho.
VOU SOBRE O OCEANO
Vou sobre o Oceano (o luar, de doce, enleva!)
Por este mar de Glória, em plena paz.
Terra da Pátria somem-se na treva,
126
Águas de Portugal ficam, atrás.
Onde vou eu? Meu fado onde me leva?
António, onde vais tu, doido rapaz?
Não sei. Mas o Vapor, quando se eleva,
Lembra o meu coração, na ânsia em que jaz.
Ó Lusitânia que te vais à vela!
Adeus! que eu parto (rezarei por ela)
Na minha Nau Catrineta, adeus!
Paquete, meu Paquete, anda ligeiro,
Sobe depressa à gávea, Marinheiro,
E grita, França! pelo amor de Deus!
Teu coração dentro do meu descansa,
Teu coração, desde que lá entro:
E tem tão bom dormir essa criança!
Deitou-se, ali caiu, ali ficou.
Dorme, menino! dorme, dorme, dorme!
O que te importa o que no mundo vai?
Ao acordares desse sono enorme,
Tu julgarás que se passou num ai.
Dorme, criança! dorme sossegada
Teus sonhos brancos ainda por abrir:
Depois a morte não te custa nada,
Porque a ela habituaste-te a dormir...
Dorme, meu anjo! (a noite é tão comprida!)
Que doces sonhos tu não hás-de ter!
Depois, com o hábito de os ter na vida,
Continuarás depois de falecer...
Dorme, meu filho! Cheio de sossego,
Esquece-te de tudo e até de mim!
Depois... de olhos fechados, és um cego,
Tu nada vês, meu filho! e antes assim...
Dorme os teus sonhos, dorme, e não mos digas,
Dorme, filhinho, dorme “ó-ó...”
Dorme, minha alma canta-te cantigas,
Que ela é velhinha como a tua avó!
127
Nenhuma ama tem um pequenino
Tão bom, tão meigo; que feliz eu sou!
E tem tão bom dormir esse menino...
Deitou-se, ali caiu, ali ficou.
Vou sobre o oceano (o luar, de doce, enleva!)
Por este mar de glória, em plena paz.
Terras da Pátria somem-se na treva
Águas de Portugal ficam, atrás.
Onde vou eu? Meu fado onde me leva?
António, onde vais tu, doido rapaz?
Não sei. Mas o vapor, quando se eleva,
Lembra o meu coração, na ânsia em que jaz.
Ó Lusitânia que te vais à vela!
Adeus! que eu parto (rezarei por ela)
Na minha Nau Catarineta, adeus!
Paquete, meu paquete, anda ligeiro,
Sobe depressa à gávea, marinheiro,
E grita, França! pelo amor de Deus!
ELEGIA
Ó virgens que passais, ao sol poente,
Pelas estradas ermas, a cantar:
Eu quero ouvir uma canção ardente
Que me recorde as afeições do lar.
Cantai-me, n´essa voz omnipotente,
O sol que tomba, aureolando o mar,
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a graça, a formosura, o luar!
Cantai, cantai as límpidas cantigas!
Das ruínas do meu lar desenterrai
Todas aquelas ilusões antigas
Que eu vi morrer n- um sonho como um ai...
Ó suaves e frescas raparigas,
Adormecei-me n´essa voz... Cantai!
128
O MEU CONDADO
No campo azul da alada fantasia
Edifiquei outr´ora, por meu mal,
Castelos de oiro, esmalte e pedraria,
Torres de lápis-lázuli e coral.
N´uma extensão de léguas, não havia
Quem possuísse outro domínio igual:
Tão belo, assim tão belo, parecia
O território de um senhor feudal...
Um dia (não sei quando, nem dei d´onde),
Um vento agreste de indiferença e spleen
Lançou por terra, ao pó que tudo esconde,
O meu condado — o meu condado, sim!
Porque eu já fui um poderoso conde,
N´aquela idade em que se é conde assim...
SÉ DE PEDRA
Não reparaste nunca? Pela aldeia,
Nos fios telegráficos da estrada,
Cantam as aves, desde que o sol nada,
E, à noite, se faz sol a luz cheia...
No entanto, pelo arame que as tonteia,
Quanta tortura vai, n´uma ânsia alada!
O ministro que joga uma cartada,
Alma que, às vezes, d´além-mar anseia:
—Revolução — Inútil. — Cem feridos,
Setenta mortos. — Beijo9-te! — Perdidos!
—Enfim, feliz! —! — Desesperado. — Vem!
E as lindas aves, bem se importam elas!
Continuam cantando, tagarelas:
Assim, António, deves ser também.
129
MENINO E MOÇO
Tombou da haste a flor da minha infância alada.
Murchou na jarra de oiro o pudico jasmim:
Voou aos altos céus a pomba enamorada
Que dantes estendia as asas sobre mim.
Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada,
E que era sempre dia, e nunca tinha fim
Essa visão de luar que vivia encantada,
Num castelo com torres de marfim!
Mas, hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância,
Que me enchiam de lua o coração, outrora,
Partiram e no céu evolam-se à distancia!
Debalde clamo e choro, erguendo aos céus meus ais:
Voltam na asa do vento os aias que a alma chora,
Elas, porém, senhor, elas não voltam mais...
POBRE TÍSICA
Quando ela passa à minha porta,
Magra, lívida, quase morta,
E vai até à beira-mar,
Lábios brancos, olhos pisados:
Meu coração dobra a finados,
Meu coração põe-se a chorar.
Perpassa leve como a folha,
E, suspirando, às vezes olha
Para as gaivotas, para o Ar:
E, assim, as suas pupilas negras
Parecem duas toutinegras,
Tentando as asas para voar!
Veste um hábito cor de leite,
Saiinha lisa, sem enfeite,
Boina maruja, toda luar:
Por isso, mal na praia alveja,
As mais suspiram com inveja:
“Noiva feliz, que vais casar...”
130
Triste, acompanha-a um "Terra Nova"
Que, dentro em pouco, à fria cova
A irá de vez acompanhar...
O chão desnuda com cautela,
Que "Boy" conhece o estado dela:
Qunado ela tosse, põe-se a uivar!
E, assim, sozinha com a aia,
Ao Sol, se assenta sobre a praia,
Entre os bebés, que é o seu lugar.
E o Oceano, trêmulo avozinho,
Cofiando as barbas cor de linho,
Vai ter com ela a conversar.
Falam de sonhos, de anjos, e ele
Fala damor, fala daquele
Que tanto e tanto a faz penar...
E o coração parte-se todo,
Quando a sorrir, com tão bom modo,
O Mar lhe diz: “Há-de sarar...”
Sarar? Misérrima esperança!
Padres! ungi essa criança,
Podeis sua alma encomendar:
Corpinho danjo, casto e inerme,
Vai ser amada pelo verme,
Os bichos vão-na desfrutar.
Sarar? Da cor dos alvos linhos,
Parecem fusos seus dedinhos,
Seu corpo é roca de fiar...
E, ao ouvir-lhe a tosse seca e fina,
Eu julgo ouvir numa oficina
Tábuas do seu caixão pregar!
Sarar? Magrita como o junco,
O seu nariz (que é grego e adunco)
Começa aos poucos de afilar,
Seus olhos lançam ígneas chamas:
Ó pobre mãe, que tanto a amas,
Cautela! O Outono está a chegar...
LADAINHA
Teu coração
131
dentro do meu descansa,
Teu coraçãop, desde que lá entrou
Tem tão bom dormir essa criança,
Deitou-se, ali caiu, ali ficou.
Dorme, menino! Dorme..dorme...
O que te importa o que no mundo vai?
Ao acordares desse sono enorme
Tu julgarás que se passou num ai.
Dorme, criança! Dorme sossegada,
Teus sonos brancos ainda por abrir:
Depois, a morte não te custa nada,
Porque a ela te habituaste a dormir...
Dorme, meu anjo (anoite é tão comprida)
Que doces sonhos tu não hás-de Ter!
Assim, com o hábito de os Ter na vida
Continuarás depois de falecer....
Dorme, meu filho! Cheio de sossego
Esquece-te de tudo e até de mim.
Depois...de olhos fechados, és um cego,
Tu nada vês, meu filho e antes assim.
Dorme os teus sonhos, dorme e não mos digas,
Dorme, filhinho! Dorme, dorme "ó-ó"....
Dorme, a minha alma canta-te cantigas
Que ela é velhinha como a tua avó!
Nenhuma ama tem um pequenino
Tão bom, tão meigo; que feliz eu sou!
E tem tão bom dormir esse menino...
Deitou-se, ali caiu, ali ficou.
132
ANTÔNIO PATRÍCIO
(1878—1930)
LITERATURA PORTUGUESA
DE QUE ME RIO EU?
De que me rio eu?... Eu rio horas e horas
só para me esquecer, para me não sentir.
Eu rio a olhar o mar, as noites e as auroras;
passo a vida febril inquietantemente a rir.
Eu rio porque tenho medo, um terror vago
de me sentir a sós e de me interrogar;
rio pra não ouvir a voz do mar pressago
nem a das coisas mudas a chorar.
Rio pra não ouvir a voz que grita dentro de mim
o mistério de tudo o que me cerca
e a dor de não saber porque vivo assim.
UMA MANHÃ, NO GOLFO DE CORINTO…
Uma manhã, no golfo de Corinto,
comemos grandes cachos-moscatel.
O mar, de leite e azul, tinha veios de absinto;
e o teu corpo, ao sol, como um sabor a mel.
Enlaçamo-nos nus entre loureiros-rosas,
róseos e brancos, alternando, até à praia.
— Não tornam mais a vir as horas dolorosas:
133
sumiram-se ao cair subtil da tua saia.
E boca contra boca, a sorver bagos de âmbar,
bem brunidos de sol, e sempre a arder em sede,
assim ficamos nós até que veio a tarde
deitar-nos devagar sua mística rede.
Mostraste-me a sorrir, no golfo, uma medusa:
“Queria viver assim, disseste, a vida toda.”
Tínhamos vinho com resina numa infusa,
e bebemo-lo os dois para acabar a boda.
Fomos nadar depois: a água era tão densa,
que nos trazia mornamente, ao colo,
num puro flutuar, beatitude imensa,
entre reflexos, a arrolar, de rolo em rolo…
A noite veio enfim: estendidos na areia,
pusemo-nos então a entristecer calados.
Como dois mármores: um tritão e uma sereia
que o golfo adormecia em soluços velhos.
VILANCETE
Não mais bate à minha porta
aquela que nos sorria...
Coração: a amiga é morta.
Entra agora fluidamente
por onde quer, como quer;
com suas mãos de mulher
não bate: truz, truz! tremente.
Aparece irrealmente:
vem agora que está morta
sem bater à minha porta.
Como um perfume no escuro,
como na alma um perdão,
surge assim no coração
que por ela se fez puro.
Não há janela nem muro
que resista à amiga morta:
134
abre, sem abrir, a porta.
Vem sentar-se à minha mesa,
sonha ao canto da lareira,
só por ela a noite inteira
a candeia fica acesa.
Que eu já não tenho surpresa.
quando ela vem, doce morte,
sem bater à minha porta.
Se o luar doira a vidraça,
ficamos juntos a ver
como a lua vem benzer
a cada coisa que passa.
Assim a noite esvoaça...
E por fim a amiga morta
sai sem nunca abrir a porta.
A REDENÇÃO
A divina emoção que tu me deste,
Já m´a deu uma árvore ao poente...
Não é só teu encanto que te veste:
A seiva e o sangue rezam irmãmente.
Às vezes nuvens, mares, areais,
Dão-me mais sonho do que os olhos teus...
É como se eles fossem meus iguais,
Tendo nós todos fé no mesmo Deus...
Não será isto o instinto, a profecia,
De que desfeitos e transfigurados
Viveremos num só, numa harmonia?...
Sim, deve se: amor, sonho, emoção,
São esforços febris d´encarcerados
Para quem a Unidade é a redenção.
SAUDADE DO TEU CORPO
Tenho saudades do teu corpo: ouviste
correr-te toda a carne e toda a alma
135
o meu desejo – como um anjo triste
que enlaça nuvens pela noite calma?...
Anda a saudade do teu corpo (sentes?...)
Sempre comigo: deita-se ao meu lado,
dizendo e redizendo que não mentes
quando me escreves: “vem, meu todo amado...”
É o teu corpo em sombra esta saudade...
Beijo-lhe as mãos, os pés, os seios-sombra:
a luz do seu olhar é escuridade...
Fecho os olhos ao sol para estar contigo.
É de noite este corpo que me assombra...
Vês?! A saudade é um escultor antigo!
UNGE-ME DE PERFUMES
“Gosto tanto de ti...”, dizes. É pouco.
É das tuas mãos erguidas que eu preciso.
Vê bem, Amor: não é orgulho louco.
Para os outros eu sou apenas riso.
Unge-me de perfumes, minha amada,
Como certa Maria de Magdala,
Ungiu os pés d’Aquele cuja estrada
Só começou para além da vala.
Ama-me mais ainda, ó meu amor
Como aquela mulher ungiu o Cristo,
Unge o meu corpo todo, a minha dor...
Ela ungiu-o p´ra o túmulo, p´ra a Cruz.
Unge-me teu, p´ra o Sol por quem existo:
Viver é ir morrendo a beijar luz.
136
ANTÔNIO SARDINHA
(1887—1925)
LITERATURA PORTUGUESA
VERSOS DO TRINCO DA PORTA
Versos do trinco da porta,
- Louvado seja o Senhor!
A casa é Deus quem ma guarda,
Ninguém a guarda melhor!
Batem os pobres à porta,
- Batem com ar de humildade.
"Eu sei que é pouco irmãozinho!
É pouco, mas de vontade!"
Quem é que a porta abriria,
Com modos de atrevimento?
São coisas da criadagem!
Não foi ninguém, - é o vento!
Mexem no trinco da porta.
- "Levante, faça favor!"
A entrada nunca se nega
Seja a visita quem for!
Não vês a porta batendo?
Que aragem essa que corta!
Em toda a volta do dia,
Não para o trinco da porta!
137
Trinco da porta caindo
Sobre a partida de alguém...
Oh, quantos vão e não voltam?!
São os que a morte lá tem!
NO DESERTO
Chegaram os camelos junto ao poço,
Quando Rebeca tinha a urna cheia.
Foram momentos esses de alvoroço,
Bem raros de encontrar em terra alheia.
Também meu coração, menino moço,
Nos cardos do caminho se golpeia.
Ouço-te os passos, dentro de alma eu ouço
O eco dos teus passos sobre a areia.
Busquei-te no deserto longamente...
Como Rebeca outrora, condoída,
Surgiste, calma, na poeira ardente.
De ânfora baixa, à boca da cisterna,
Ficaste assim, para toda a tua vida,
Matando a minha sede, que é eterna!
VELHO MOTIVO
Soneto de Jacob, pastor antigo,
– soneto de Raquel, serrana bela...
Oh! quantas vezes o relembro e digo,
pensando em ti, como se foras Ela!
O que eu servira para viver contigo,
– tão doce, tão airosa e tão singela!
Assim, distante do teu rosto amigo,
em torturar-me a ausência se desvela!
E vou sofrendo a minha pena amarga,
– pena que não me deixa nem me larga,
bem mais cruel que a de Jacob pastor!
Raquel não era dele, e sempre a via,
enquanto que eu não vejo, noite e dia,
aquela que me tem por seu senhor!
138
LETREIRO
Tudo o que sou o sou por obra e graça
da comoção rural que está comigo.
Foi a virtude lírica da Raça
a herança que eu herdei do sangue antigo.
Foi esta voz que em minhas veias passa
e atrás da qual, maravilhado eu sigo.
Como um licor de encanto numa taça,
assim se quer esse condão comigo.
Olhai-me: - Eu vim de honrados lavradores.
De avós e netos, sempre os meus Maiores
fitaram o horizonte que hoje eu fito.
“O que estaria além da curva estreita?”
- E da pergunta, a cada instante feita.
nasceu em mim a ânsia p'ra o Infinito.
A OLIVENÇA, A PERDIDA
Fiel ao sangue, nossa irmã germana,
chora Olivença as suas horas más
junto do rio que tornou atrás,
quando soou a trompa castelhana.
Ó Casa de Antre Tejo-e-Guadiana,
lembra-te dela que entre ferros jaz!
Não a dobrou a guerra nem a paz,
- fiel ao sangue, o sangue a ti a irmana!
E todo aquele em quem ainda viva
o ardor da Raça e a voz que nele anseia,
se for p'ra além da raia alguma vez,
é Olivença, nossa irmã cativa
lá onde com surpresa a gente alheia
oiça dizer adeus em português!
DEUS NA PLANÍCIE
139
O espírito de Deus flutua e erra
por todo este côncavo profundo.
Assim errava Ele sobre a terra
quando pensou na criação do Mundo.
É noite. Aqui não há mar nem serra.
Há o infinito, o vago. E cá no fundo
minh'alma que se excede e que se aterra,
ó Hálito-Supremo em que eu me inundo!
Ó Hálito-Supremo!... É noite escura.
E o Criador no enlevo em que eu me alago
domina e empolga a Sua criatura.
Sucumbe em mim o bicho vil da terra
E como no Princípio sobre o vago
O Espírito de Deus flutua e erra.
MEMÓRIA
Meu coração de lusitano antigo
bateu às portas de Toledo, a estranha.
Mais roto e ensanguentado que um mendigo.
só a saudade as passos lhe acompanha.
Pois a saudade ali me deu abrigo.
ao pé do Tejo que a Toledo banha.
Levava os dias a falar comigo,
como um pastor com outro na montanha.
Em todo o mundo há terra portuguesa,
desde que a alma a tenha na lembrança
e a sirva sempre com fervor igual.
Talvez por isso, em horas de tristeza,
eu pude à sua amada semelhança
criar p'ra mim um novo Portugal!
140
ARAÚJO PORTO-ALEGRE
(1806—1879)
LITERATURA BRASILEIRA
FALA DE BOADBIL
Mais desvaira a fortuna!.. Estava escrito,
Escrito estava, oh Rei! Na casa de Hércules,
Desde o berço da Ibéria, mão oculta
Fatídico papiro aferrolhara,
Em que Alá prescreveu nossas conquistas.
Não foi o braço humano, não decerto,
Quem do céu despejou centos de raios,
Que o pó e cinzas com assombro do orbe
O templo reduziram! Foi Rodrigo,
O pecador que surdo à voz celeste,
Insano profanou com ímpia destra
Esse altar onde os evos ocultavam
O aresto que fez ruir seu trono,
Seu plaustro deseixar-se, e o cetro avito
Quebrar-se eternamente sobre as margens
Do rico Guadalete, em face a Xeres.
Stava escrito!... Não foram vossas armas
Que meu trono abateram; foi o fado!
Aben-Hassan, meu pai, Deus o ampare,
Viu a par da derrota a estrela mesta
Do infortúnio pousar sobre o meu berço,
Predisse o céu meu fim; fatal decreto
Da morada de Alá baixou à terra.
Aqui mesmo, Senhor, nesta atalaia,
Berço e sepulcro da grandeza humana,
Uma horrenda visão teve ele um dia,
141
Dia nefasto dos anais da hégira.
"Mergulhava no mar o limbo ardente
O sol; suave tarde a primavera
De andaluzas delícias revestia;
Sobre o bafo de meiga e fresca brisa
De nardo e lume um oceano etéreo
Vinha os lábios ungir de almos encantos
E o astro do profeta a prumo ao cimo
Desta imensa guarita das vigias,
Brilhava puro e calmo, como a face
Da Huri que nectariza eternamente
Os lábios do escolhido. De repente
O céu se enluta, e as cândidas estrelas
Em verdes flamas se convertem, cruzam,
Trovejando no espaço ronco horrendo!
Mais vermelho que o sol da terra surge
Um rompente leão! Lança-se ao astro,
E o devora de um trago! A natureza
Parecia reentrar no caos informe,
E em trevas sepultar-se!.. Só a imagem
No céu se via da medonha fera
Sacudindo da juba ensanguentada
Um granizo de fogo sobre os tetos
Desta infausta cidade!... Meu pai, trêmulo,
Sentiu da morte a mão premer-lhe o seio,
E ardente desfiar-se de seus olhos
Sobre a nívea marlota sangue em bagas
Horrorizado foge, titubeante,
E o pátio dos leões assim varando,
Ouve um gemido que lhe vara o peito.
Da bacia de marmor, que no centro
Espadanas de sangue trasbordava
Sobre o dorso marmóreo dessas feras,
Já com sangue cristão assás banhadas,
Um espectro fosfórico o assalta!
Como ardentes carvões chameja a larva
Em muda exprobação olhar satânico!
Tira do seio ensanguentada espada,
E nos lábios cruéis a limpa, e cospe
No rosto de meu pai mancha indelével...
Convulsivo sacode a fronte hirsuta,
E com ela lhe atira espedaçada
A coroa augusta de Granada às plantas;
E após sumiu-se o agoureiro espectro!..
142
Como um ébrio que vê fundir-lhe o raio
A taça de ouro, que emborcava aos lábios
Em louca libação, gelado fica.
Assim ficou meu pai!... Soa um vagido
Nos régios aposentos, que o desperta!
Outro soa maior! foge, e procura
Lenitivo ao terror no casto seio
De minha terna mãe; e o que ele encontra?!
Era eu, vindo à luz naquele instante!
Era eu, que à desgraça destinado,
Vinha ao mundo da dor, do desengano!
Era eu, que dos olhos desprendia
A lágrima primeira, e nela ao vivo,
De um círio à luz que o tálamo aclarava,
Viu meu pai com assombro refletir-se
A imagem pavorosa das exéquias
Do trono de Granada!... Estava escrito!
Os braços granadis ora algemados,
Aos braços dos cristãos em força igualam,
E as águas do Genil dão gume ao ferro
Para o ferro cortar de vossas armas...
Alá foi quem venceu!... Ante meus olhos
Julianos e Oppas, refratários
Às juras do corão, patentes vejo!
Nem a esposa me resta, que o mau fado
Me fez repudiar, cobrir de opróbrio,
Negando seu amor!... Sangue, só sangue,
Avancerrage sangue em toda a parte
Minha esperança para sempre afoga!
Nasci em dia aziago... Eis vossas chaves.
Uma graça, Senhor! sede piedoso:
Tolerai o corão: ele é do Mouro
Um roteiro do céu. Inda outra graça:
Mandei que um alvanel a porta mure
Por onde Boadbil desceu do trono."
Disse: e o despeito brota-lhe nos lábios
Espessa espuma. Não lhe verga o ânimo
Da despegada esposa o riso odioso,
Nem as faces traidoras dos escravos
Que nele viam perecer a pátria;
Antes, rolando os inflamados olhos,
Um por um os confunde, e rei se mostra!
143
FERNANDO E ISABEL
Convulsivo tremor a face augusta
Da formosa Isabel percorre, e estampa
Em seu terno semblante a piedade.
Fernando, ao lado dela, oculta o júbilo
Que em seu peito referve; e os olhos fitos
Na alcantilada torre, aguarda ansioso
Ver erguido o sinal, a cruz argêntea
Na mão de Talavera, e glorioso
Engolfar-se nos brados da vitória.
"Santo lago!" do alto da atalaia
Três vezes brada o bispo; e Santo Iago!
Vezes três pela veiga inda reboa
Em prolongado som, que dobra em força.
Como a onda que os flancos arremessa
Em lisa praia, e recuando engrossa
Em marouço, que estoura reboando.
"Castela e Aragão!" grita o rei d’armas,
Floreando três vezes o estandarte
Do Apóstolo guerreiro, cujo nome
A fé robora, e acende o amor da glória.
Responde a artilharia, rufam caixas,
E no campo flutuam férreas massas,
Dardos de fogo rutilando em nuvens.
Fernando beija a terra; ao som das harpas
Grave Te Deum se entoa, a que respondem
Toda a corte, guerreiros, e cantores.
FUGA DE BOADBIL
Ei-lo, o fero Boadbil, sobre alto monte,
Fugindo desses hinos que concutem
Em seus tristes ouvidos sons funéreos,
E o sólio avito num saudário envolvem
De fumo e sangue. Em vão turbando intenta
Prender-se à doce imagem fugitiva
Da finada grandeza: é tudo baldo!
Nunca em seus olhos a amorosa Alhambra
Mais bela se estampou, nem sobre a terra
Granada alardeou tantos primores!
Sereno estava o céu, como o respiro
144
De puro infante, adormecido aos mimos
Da carinhosa mãe. E ele não via,
Nesses desejos da desgraça extrema,
Rolando os olhos no horizonte pátrio,
Erguer-se um fumo lampejando estrondos,
Sublevarem-se os seus, tinirem armas,
Romper-se a cruz ibéria, e novamente
O crescente raiar nos rotos muros,
Como um astro propício... Ah! nem via
Abrir-se a terra e submergir Granada,
Ferver em seu sepulcro um negro lago
Exalando mortíferos vapores.
Pela última vez sua alma adeja
Em seus olhos, e diz enternecida
Saudoso adeus à pátria escravizada,
Saudoso adeus ao trono, ao mando, e à glória;
Um suspiro o acompanha, longo, intenso,
Suspiro que concentra um reino, um mundo:
E após o suspirar viu-se em seus olhos
Do infortúnio rolar a fria lágrima...
Para ele volvendo a vista ardente,
Então a mãe que muda o acompanhava,
Com despeitoso orgulho assim lhe fala:
"Como fraca mulher, Príncipe, choras
O teu reino perdido?... Sim, pranteia-o,
Já que homem tu não foste em defendê-lo.
Inda há pouco teu vulto enchia a Espanha
De assombro e majestade! Ora abatido,
Nega-te a própria terra um canto, um pouso
Em que possas dormir!... E tu sabias
Que o manto de um plebeu não cobre a espadoa
Que um império sustenta; e tu me ouviste
Desde o berço dizer-te esta verdade:
Que não é rei quem rei morrer não sabe!"
Qual se adunco cilício o repassasse,
Ou se um raio estrugisse em seus ouvidos,
A voz apaixonada da Sultana
Fere sua alma, e lhe desnuda o mundo.
Um ermo tenebroso, áridas sirtes
Entre vagas que o céu fulmina irado,
A terra lhe parece. Amor do berço,
Delícias do consórcio, e a majestade
Em voragens profundas desparecem;
A morte é seu porvir, sua esperança!
145
Da pátria a terra e o céu infaustos cercam
Seu ser real proscrito. Encara os mares,
E nas rubras caligens africanas
Renasce-lhe a existência. Solta as rédeas
Ao fogoso corcel, e afasta os olhos
Do aflitivo painel que o dilacera.
ALHAMBRA
Penetram nas formosas galerias
Da encantadora Alhambra os vencedores;
O fero trote dos frisões recresce
Nas sonoras abóbadas. Fernando
Não pode clausurar num vão silêncio
A insólita impressão:
"Ah! vale o sangue
De meus nobres guerreiros esta régia
Tão bela e grandiosa, que escurece
Quantas conheço na afamada Espanha!
Por ela inda mais sangue eu verteria."
146
ARRONCHES JUNQUEIRO
(1868—1940)
LITERATURA PORTUGUESA
NOITE DE INVERNO
O vento rosna nas frinchas
das portas. Um pingo cai
compassado
a chorar
do beiral do meu telhado
E pela vastidão da noite escura
misteriosa
angustiosa,
ecoa a sinfonia da procela.
Enfurecido,
com braço vigoroso de bandido
o vento vem forçar-me os vidros da janela.
A luz
à minha cabeceira, oscila e treme.
Sinto um calafrio a repelar-me,
e olho a vida em doidas espirais…
parece uma bandeira a acenar-me,
a fazer-me sinais.
Lá fora há uivos, gritos, estertores
de árvores a gemer,
numa miséria trágica de dores…
147
Troncos estalando,
folhas doidejando,
na luta colossal de querer viver.
O vento, como um deus louco e potente
em fúrias singulares,
rugindo como fera onipotente
sacode e torce, em crises de demente
os troncos seculares
Alta noite.
O bandido cansou-se. Reina o silêncio
Apenas um pingo cai
Compassado,
Espaçado,
A chorar
dos beirais do meu telhado.
LENDA DE SANTA MARIA DA ARRÁBIDA
Quisera escrever c'o a luz
dum luar suave e belo,
no livro, todo doirado
do brilhante setestrelo
esta lenda, iluminando
espaço a espaço, a história amena
com poeiras d'ouro e prata,
das azas d'uma falena.
Mas não posso. Embora! Embora!
É loucura o meu pensar.
Quem descreve a cor da aurora?...
Quem entende a voz do mar?...
Vou contar a santa lenda
desta serra. Ouvi, Ouvi:
É tão bela esta legenda,
que outra igual, eu nunca vi.
vou contar a santa lenda,
d'esta serra. Ouvi, Ouvi:
"Haildebrant, o mercador,
148
Senhor de grande riqueza,
demandava, com ardor,
a capital portuguesa.
E, junto ao ouro, trazia
na sua barca, também,
a Virgem Santa Maria.
- Aurora branca do Bem Singrava a barca. E o vento
crescendo de intensidade,
foi acordar, num momento,
as iras da tempestade.
O céu toldou-se. Só quando
brilhava o raio nos céus,
via-se a barca lutando
envolta em mil escarcéus.
Era negro o céu. O vento
açoutava a terra e mar
no luto do firmamento
nem uma estrela a brilha.
Nem uma estrela a brilhar
sorria lá na amplidão.
Iroso rugia o mar.
Bramia, em fúria, o tufão.
E n'essa barca perdida,
perdida no vendaval,
não há esp'ranças na vida...
- joguete do temporal E a escuma branca, tão leve,
pelas ondas a marchar,
Como fantasmas de neve,
correndo, por sobre o mar,
cercavam todo o navio
rugindo, como metralhas.
Era o cortejo sombrio,
a procissão das mortalhas.
Desceram todos a orar
149
à Virgem Nossa Senhora,
Milagre! Serena o mar!...
Milagre! Milagre! a aurora!
E sobre a serra altaneira
uma luz branca raiou.
Então a barca veleira
de novo o rumo marcou.
Procuraram ansiosos
no navio, a Protetora.
Não acharam. Desgostosos
voltam a ver essa aurora,
Essa cor nevada e bela
que sobre a serra apar'ceu
bem diferente era d'aquela
que mais tarde, além, nasceu
***
Nasce o dia, azul, formoso.
Dia calmo! Dia lindo!..
Até o mato cheiroso
parece que 'stá sorrindo.
Saltam em terra, e buscando
o sítio aonde raiou
o clarão suave e brando,
que a barca tão bem guiou,
sobem a serra, os fraguedos.
Vêm, com grande alegria,
firmada sobre uns rochedos,
a Virgem Santa Maria.
E Haidebrant conheceu,
ao ver aquele lugar,
que a Virgem Santa escolheu
aquela serra p'ra altar.
E ali ficou adorando
a sua Virgem Senhora,
150
até que um dia, voando,
foi-se nos raios da aurora..."
Eis aqui a Santa lenda
d'esta serra que sorri.
É tão bela esta legenda,
que outra igual eu nunca vi.
Eis aqui a santa lenda
d'esta serra que sorri.
151
ARTUR AZEVEDO
(1855—1908)
LITERATURA BRASILEIRA
À MINHA NOIVA
"Tu és flor; as tuas pétalas
orvalho lúbrico molha;
eu sou flor que se desfolha
no verde chão do jardim."
Têm por moda agora os líricos
versos fazer neste estilo...
— Tu és isso, eu sou aquilo,
tu és assado, eu assim...
Às negaças deste gênero,
Carlotinha, não resisto:
vou dizer que tu és isto,
que aquilo sou vou dizer;
tu és um pé de camélia,
eu sou triste pé de alface,
tu és a aurora que nasce,
eu sou fogueira a morrer.
Tu és a vaga pacífica,
eu sou a onda encrespada,
tu és tudo, eu não sou nada,
nem por descuido doutor;
tu és de Deus uma lágrima,
eu sou de suor um pingo,
eu sou no amor o gardingo,
tu Hermengarda no amor.
Os fatos restabeleçam-se,
ó dona dos pés pequenos:
152
eu sou homem — nada menos,
tu és mulher — nada mais;
eu sou funcionário público,
tu minha esposa bem cedo,
eu sou Artur Azevedo,
tu és Carlota Morais.
POR DECORO
Quando me esperas, palpitando amores,
E os lábios grossos e úmidos me estendes,
E do teu corpo cálido desprendes
Desconhecido olor de estranhas flores;
Quando, toda suspiros e fervores,
Nesta prisão de músculos te prendes,
E aos meus beijos de sátiro te rendes,
Furtando às rosas as purpúreas cores;
Os olhos teus, inexpressivamente,
Entrefechados, lânguidos, tranquilos,
Olham, meu doce amor, de tal maneira,
Que, se olhassem assim, publicamente,
Deveria, perdoa-me, cobri-los
Uma discreta folha de parreira.
UMA OBSERVAÇÃO
A moça está sentada. O moço amado
Para uma contradança vai “tirá-la”:
— “Da-me a honra?” — Pois não- E pela sala
Ei-los a passear de braço dado.
De amor quanto protesto alambicado
Daqueles meigos corações se exala,
Te que as palmas batendo o mestre-sala,
Toma lugar o par apaixonado!
Começa a dança. A mão do moço, esperta,
Bole, mexe, comprime, apalpa, aperta,
Durante uns turbulentos balances,
153
E uma senhora, que não é criança,
Sentada a um canto observa que na dança
Hoje trabalham mais as mãos que os pés.
IMPRESSÕES DE TEATRO
Que dramalhão! Um intrigante ousado,
Vendo chegar de longa ausência o conde,
Diz-lhe que a pobre da condessa esconde
No seio o fruto de um amor culpado.
Naturalmente o conde fica irado
— O pai que é? Pergunta — Eu lhe responde
Um jovem que entra. —Um duelo! — Sim! Quando? Onde? —
No encontro morre o amante desgraçado.
Folga o intrigante... Porém surge um mano
E, vendo morto o irmão, perde a cabeça:
Crava um punhal no peito do tirano.
É preso o mano, mata-se a condessa,
Endoidece o marido, e cai o pano,
Antes que outra catástrofe aconteça.
CONSEQUÊNCIA
Há cinco meses já que estão casados.
Da lua de mel os últimos lempejos
Gozam, trocando aborrecidos beijos,
Numa larga poltrona acomodados.
Falam do tempo em que eram namorados...
Tempo menos de amor que dos desejos...
Separam-se, afinal e entre bocejos,
Ella fuma... ela borda... ambos calados.
De repente ela se ergue e o rosto esconde,
Soltando um grito estrídulo, indiscreto,
Ao que o eco da sala responde.
Ele interroga-a pálido, inquieto...
154
Ela trêmula e rubra lhe responde...
Sente no seio remexer-se um feto.
LINDAS CENAS
É na varanda a cena, onde o trabalho
Ocupa três morenas,
Rosas do mesmo galho,
A quem desponta apenas
Um sol de primavera.
Que lindo! ai, quem me dera
Saber reproduzir tão lindas cenas:
A primeira uma saia finaliza,
E a outra um cós pesponta,
E a terceira marcando uma camisa
Está, que já das mãos lhe saiu pronta.
Na pobre meassaba
(O canapé da mísera vivenda)
Das morenas a mãe ligeira acaba
Algumas varas de engenhosa renda.
Trabalho de encomenda.
A velha mão cansada
Dos bilros no vaivém parece nova,
Acompanhando a lânguida toada,
A invariável trova,
Entre dentes cantada.
De vez em quando cessa a cantilena,
E ao taquari sorvendo umas fumaças,
A velha mãe ordena
Mais ativo trabalho àquelas graças.
Meu Deus! que linda cena l
E que pintor pintá-la poderia!
A primeira das três, toda alegria,
Tem a feição brejeira;
A segunda é não menos prazenteira;
Mas que melancolia
155
Entenebrece o rosto da terceira!
A primeira, da mãe severa e dura
A distração aguarda,
Pois em baixo dos panos da costura
A Moreninha, de Macedo, guarda,
E, em rápido relance,
Fundo e furtivo olhar manda ao romance.
A segunda parece mais sensata:
As vistas em redor jamais espaça,
Mas a mana maltrata
Um beliscão que é dado em ar de graça
Si a felicidade só no rir consiste,
Que são felizes todas ires diviso;
Mas a terceira ri de um rir tão triste...
As lágrimas prefiro àquele riso.
Em vão simula calma...
Deixa dos dedos lhe cair a agulha.
Aquela cândida alma
Acaso se mergulha
Nalguma dor sincera?
Que lindo! ai, quem me dera
Saber reproduzir tão linda cena!
A velha está serena.
— Que tens, sinhá, que tens? Te desconheço I
Tu bem sabes, pequena:
Quando eu te vejo triste, me entristeço J —
Disfarça a moça a comoção, o enleio,
Partindo a linha co'os formosos dentes,
Mas desfolha no seio
um rosário de lágrimas ardentes.
Desse modo acusada,
Ergue-se envergonhada,
E no eólio materno, abrigo santo,
Tenta esconder o resto do seu pranto.
As outras duas moreninhas bellas,
156
Erguidas logo, serenar procuram
A dolorida irmã, bem sabem elas
Que são artes do amor que assim misturam
As lágrimas aos risos
Tristes, amargurados, indecisos:
Mas não sabem da missa nem metade...
Com que meiga piedade
Em beijos degenera
Aquela doce pena!
Que lindo! ai, quem me dera
Saber reproduzir tão linda cena
A porta da varanda se escancara
E no lumiar a cara
De um velho se apresenta.
Carregando garboso os seus sessenta.
Dá-lhe um solene, venerando aspeito,
A barba branca que lhe cobre o peito.
Não está só o ancião: traz ao seu lado
Um bonito rapaz, tipo de poeta,
E vem acompanhado
Por um cão agitando a cauda inquieta.
Dirigindo-se a velha
Que, surpreendida, franze a sobrancelha,
— Minha senhora, diz o velho, queira
Perdoar-me entrar aqui desta maneira,
Sem me fazer anunciar; urgente
Caso me traz humilde e reverente:
Este moço é meu filho;
Saiu-me, por desgraça, um peralvilho!
De uma destas meninas
Alcançou entrevistas clandestinas.
E fugiu dela, calculando, injusto,
Que eu, que sou velho honrado, me oporia
Ao casamento. Só a muito custo
Me revelou essa patifaria,
Da qual me prevenira um bom amigo
Senhora, aqui o tem, trouxe-o comigo,
E peco-lhe, para este bigorrilha,
Com o seu perdão, a mão de sua filha,
157
Si o julga digno de casar com ela.
Nesta pálida tela
Não ponho, que o pincel me não ajuda,
A longa cena muda
Que se passou; da velha o grande espanto,
E da culpada o pranto,
E a surpresa das manas, e o enleio
Do sedutor, parado ali, no meio
Da casa, cabisbaixo, e o pai sisudo,
De barbas brancas e figura austera,
E o cão curioso, farejando tudo,
Indiferente à sorte da pequena.
Que lindo! ai, quem me dera
Saber reproduzir tão linda cena!
Quando a velha, passado o espanto imenso,
Lançou à moça um longo olhar magoado,
Esta, mordendo o lenço,
De lágrimas lavado,
— Mamãe, perdoa... murmurou apenas.
Ai, quem me dera, em verso aprimorado
Saber reproduzir tão lindas cenas l
INFANTILIDADE
Que reboliço vai em casa de Marieta!
É que fugiu Mignonne, a gata favorita,
E tanto chora e chora a pobre pequenita,
Que o papai manda pôr anúncio na gazeta.
Da vizinhança alguém, com olho na gorjeta,
A trânsfuga encontrou, que andava de visita
Ao demo de um maltês filósofo que habita
De um canto de fogão a cálida saleta.
Marieta, ao ver Mignonne, estende-lhe os bracinhos.
Dá-lhe um banho de amor em beijos e carinhos,
Nervosa, a soluçar, e, ao mesmo tempo, a rir.
E entre afagos lhe diz: "Senhora, foi preciso
158
Pôr um anúncio! Veja o que é não ter juízo!"
E todo o anúncio lê para Mignonne ouvir...
AS ESTÁTUAS
No dia em que na terra te sumiram,
Eu fui ver-te defunta sobre a eça,
Fechados para sempre — oh, sorte avessa!
Aqueles olhos que me seduziram.
À luz do sol uma janela abriram,
E o jardim avistei onde, oh, condessa,
Uma noite perdemos a cabeça,
E as estátuas de mármore sorriram...
Saíste por aquela mesma porta
Onde outrora os teus lábios me esperaram,
Cheios do amor que ainda me conforta.
Quando o jardim saudoso atravessaram
Seis homens com o esquife em que ias morta,
As estátuas de mármore choraram!
TERTULIANO, O PASPALHÃO
Tertuliano, frívolo peralta,
Que foi um paspalhão desde fedelho,
Tipo incapaz de ouvir um bom conselho,
Tipo que, morto, não faria falta;
Lá um dia deixou de andar à malta
E, indo à casa do pai, honrado velho,
A sós na sala, diante de um espelho,
À própria imagem disse em voz bem alta:
— Tertuliano, és um rapaz formoso!
És simpático, és rico, és talentoso!
Que mais no mundo se te faz preciso?
Penetrando na sala, o pai sisudo,
Que por trás da cortina ouvira tudo,
Severamente respondeu: —Juízo!
159
MUTAÇÃO
Batel sem norte, o espírito naufraga
Neste medonho pélago de ciúme,
Que os suplícios do amor todos resume,
E as vítimas do amor todas alaga:
Quando entram n'alma as sombras do azedume,
Quando nasce no peito hedionda chaga;
Sofre-se... curte-se uma dor que esmaga,
E não se exala ao menos um queixume...
Mas, de repente — delicioso instante! —
Uma doce cartinha, inesperada,
Torna feliz um coração amante!
Dor... azedume... isso não vale nada!
Todos os males se dissipam diante
Das garatujas da mulher amada!
SONETO DRAMÁTICO
"O Incesto". Drama em 3 atos. Ato primeiro:
Jardim. Velho castelo iluminado ao fundo.
O cavaleiro jura um casto amor profundo,
E a castelã resiste... Um fâmulo matreiro
Vem dizer que o barão suspeita o cavaleiro...
Ele foge, ela grita... — Apito! — Ato segundo:
Um salão do castelo. O barão, iracundo,
Sabe de tudo... Horror! Vingança! — Ato terceiro:
Em casa do galã, que, sentado, trabalha,
Entra o barão armado e diz: "Morre, tirano,
Que me roubaste a honra e me roubaste o amor!"
O mancebo descobre o peito. —"Uma medalha!
Quem ta deu?!" — "Minha mãe!" — "Meu filho!" Cai o pano...
À cena o autor! à cena o autor! à cena o autor!
160
O RELÓGIO
Quando não vens, formosa desumana,
E, saudoso de ti, sem ti me deito,
Fica tão esperançoso o nosso leito,
Que me parece o campo de Sant'Ana!
Quando não vens, oh, pálida tirana,
Torna-se lúgubre o quartinho estreito!
Com muitas flores, flor, debalde o enfeito:
Falta-lhe a flor das flores soberana.
Se vens, é natural que isso me apraza;
Mas, se não vens, quanta amargura, quanta!
As próprias coisas sentem n'esta casa!
É o relógio, porém, que mais me espanta,
Pois, se não vens, o mísero se atrasa,
E, se vens, o ditoso se adianta!
33 GRAUS À SOMBRA
Calor que os colarinhos me descolas,
Vê como tenho as roupas ensopadas!
Já tomei não sei quantas cajuadas!
Já gastei não sei quantas ventarolas!
Canícula que a toda a gente amolas
E me privas de algumas namoradas.
As pobres ficam; as remediadas,
Perseguidas por ti, vão dando as solas!
Do nosso "high-life" as pálidas donzelas,
Como um bando travesso de andorinhas
Para as montanhas vão, batendo as asas...
Sem me dizer adeus, voou com elas
A mais gentil das namoradas minhas!
Dize, meu anjo, é certo que te casas?
A LUÍS DELFINO
161
Há no teu livro longas cavalgadas
De versos, cavaleiros arrogantes,
Nervosos, prontos a levar os guantes
Às valorosas, ínclitas espadas;
Imagens as mais belas, reclinadas
No dorso de pesados elefantes,
Tendo nos lábios beijos sussurrantes
E nos olhos a luz das madrugadas;
Tropos, também montados em ginetes,
Fazendo mil fantásticos corcovos,
Brandindo no ar os nítidos floretes;
E finalmente multidões e povos
De Adjetivos, os rúbidos valetes,
Ledos, alegres, elegantes, novos.
O MURO
Com justa maldição já te não falto,
Desalmado pedreiro, que tão alto
Fizeste o muro de jardim que cerca,
A habitação da minha namorada!
Baldado esforço! Qual o quê! Não salto!
Não quero espapaçar-me neste asfalto!
Fortuna, amor, prazer, tudo se perca!
Ah, maldito pedreiro, alma danada!
Furioso diante das paredes altas,
Consolação debalde vos procuro,
Peito que saltas, perna que não saltas!
Que lamente, que chore o fado escuro,
Quem fora o mais ditoso dos peraltas,
Se não fosse tão alto aquele muro!
162
AUGUSTO DOS ANJOS
(1884—1914)
LITERATURA BRASILEIRA
PSICOLOGIA DE UM VENCIDO
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Produndissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
SOLITÁRIO
Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!
163
Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos contorta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!
Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
- Velho caixão a carregar destroços Levando apenas na tumba carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!
VERSOS ÍNTIMOS
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
SONETO
Ao meu primeiro filho nascido morto com 7 meses incompletos.
2 fevereiro 1911.
Agregado infeliz de sangue e cal,
Fruto rubro de carne agonizante,
Filho da grande força fecundante
De minha brônzea trama neuronial,
164
Que poder embriológico fatal
Destruiu, com a sinergia de um gigante,
Em tua morfogênese de infante,
A minha morfogênese ancestral?!
Porção de minha plásmica substância,
Em que lugar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?!...
Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,
Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!
AGONIA DE UM FILÓSOFO
Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nele tolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!
Assisto agora à morte de um inseto!...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo
O ideal de Anaximandro de Mileto!
No hierático areópago heterogêneo
Das idéas, percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...
Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo, igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!
IDEALISMO
Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isso que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.
O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
165
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!
Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
— Alavanca desviada do seu fulcro —
E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!
POEMA NEGRO
A Santos Neto
Para iludir minha desgraça, estudo.
Intimamente sei que não me iludo.
Para onde vou (o mundo inteiro o nota)
Nos meus olhares fúnebres, carrego
A indiferença estúpida de um cego
E o ar indolente de um chinês idiota!
A passagem dos séculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
— Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me um sonho a realidade.
Em vão com o grito do meu peito impreco!
Dos brados meus ouvindo apenas o eco,
Eu torço os braços numa angústia douda
E muita vez, à meia-noite, rio
Sinistramente, vendo o verme frio
Que há de comer a minha carne toda!
É a Morte — esta carnívora assanhada —
Serpente má de língua envenenada
Que tudo que acha no caminho, come...
— Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro,
Sai para assassinar o mundo inteiro,
E o mundo inteiro não lhe mata a fome!
166
Nesta sombria análise das cousas,
Corro. Arranco os cadáveres das lousas
E as suas partes podres examino...
Mas de repente, ouvindo um grande estrondo,
Na podridão daquele embrulho hediondo
Reconheço assombrado o meu Destino!
Surpreendo-me, sozinho, numa cova.
Então meu desvario se renova...
Como que, abrindo todos os jazigos,
A Morte, em trajos pretos e amarelos,
Levanta contra mim grandes cutelos
E as baionetas dos dragões antigos!
E quando vi que aquilo vinha vindo
Eu fui caindo como um sol caindo
De declínio em declínio; e de declínio
Em declínio, como a gula de uma fera,
Quis ver o que era, e quando vi o que era,
Vi que era pó, vi que era esterquilínio!
Chegou a tua vez, oh! Natureza!
Eu desafio agora essa grandeza,
Perante a qual meus olhos se extasiam.
Eu desafio, desta cova escura,
No histerismo danado da tortura
Todos os monstros que os teus peitos criam.
Tu não és minha mãe, velha nefasta!
Com o teu chicote frio de madrasta
Tu me açoitaste vinte e duas vezes...
Por tua causa apodreci nas cruzes,
Em que pregas os filhos que produzes
Durante os desgraçados nove meses!
Semeadora terrível de defuntos,
Contra a agressão dos teus contrastes juntos
A besta, que em mim dorme, acorda em berros
Acorda, e após gritar a última injúria,
Chocalha os dentes com medonha fúria
Como se fosse o atrito de dois ferros!
Pois bem! Chegou minha hora de vingança.
Tu mataste o meu tempo de criança
167
E de segunda-feira até domingo,
Amarrado no horror de tua rede,
Deste-me fogo quando eu tinha sede...
Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo!
Súbito outra visão negra me espanta!
Estou em Roma. É Sexta-feira Santa.
A treva invade o obscuro orbe terrestre.
No Vaticano, em grupos prosternados,
Com as longas fardas rubras, os soldados
Guardam o corpo do Divino Mestre.
Como as estalactites da caverna,
Cai no silêncio da Cidade Eterna
A água da chuva em largos fios grossos...
De Jesus Cristo resta unicamente
Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente
Sente vontade de abraçar-lhe os ossos!
Não há ninguém na estrada da Ripetta.
Dentro da Igreja de São Pedro, quieta,
As luzes funerais arquejam fracas...
O vento entoa cânticos de morte.
Roma estremece! Além, num rumor forte,
Recomeça o barulho das matracas.
A desagregação da minha idéia
Aumenta. Como as chagas da morféia
O medo, o desalento e o desconforto
Paralisam-se os círculos motores.
Na Eternidade, os ventos gemedores
Estão dizendo que Jesus é morto!
Não! Jesus não morreu! Vive na serra
Da Borborema, no ar de minha terra,
Na molécula e no átomo... Resume
A espiritualidade da matéria
E ele é que embala o corpo da miséria
E faz da cloaca uma urna de perfume.
Na agonia de tantos pesadelos
Uma dor bruta puxa-me os cabelos,
Desperto. É tão vazia a minha vida!
No pensamento desconexo e falho
168
Trago as cartas confusas de um baralho
E um pedaço de cera derretida!
Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme.
Eu, somente eu, com a minha dor enorme
Os olhos ensanguento na vigília!
E observo, enquanto o horror me corta a fala,
O aspecto sepulcral da austera sala
E a impassibilidade da mobília.
Meu coração, como um cristal, se quebre
O termômetro negue minha febre,
Torne-se gelo o sangue que me abrasa,
E eu me converta na cegonha triste
Que das ruínas duma casa assiste
Ao desmoronamento de outra casa!
Ao terminar este sentido poema
Onde vazei a minha dor suprema
Tenho os olhos em lágrimas imersos...
Rola-me na cabeça o cérebro oco.
Por ventura, meu Deus, estarei louco?!
Daqui por diante não farei mais versos.
AS CISMAS DO DESTINO
I
Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!
Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.
Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!
A noite fecundava o ovo dos vícios
169
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!
Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!
Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.
E aprofundando o raciocínio obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro.
Livres de microscópios e escalpelos,
Dançavam, parodiando saraus cínicos,
Biliões de centrosomas apolínicos
Na câmara promíscua do vitellus.
Mas, a irritar-me os globos oculares,
Apregoando e alardeando a cor nojenta,
Fetos magros, ainda na placenta,
Estendiam-me as mãos rudimentares!
Mostravam-me o apriorismo incognoscível
Dessa fatalidade igualitária,
Que fez minha família originária
Do antro daquela fábrica terrível!
A corrente atmosférica mais forte
Zunia. E, na ígnea crosta do Cruzeiro,
Julgava eu ver o fúnebre candeeiro
Que há de me alumiar na hora da morte.
Ninguém compreendia o meu soluço,
Nem mesmo Deus! Da roupa pelas brechas,
O vento bravo me atirava flechas
E aplicações hiemais de gelo russo.
170
A vingança dos mundos astronômicos
Enviava à terra extraordinária faca,
Posta em rija adesão de goma laca
Sobre os meus elementos anatômicos.
Ah! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!
Mas o vento cessara por instantes
Ou, pelo menos, o ignis sapiens do Orco
Abafava-me o peito arqueado e porco
Num núcleo de substâncias abrasantes.
É bem possível que eu um dia cegue.
No ardor desta letal tórrida zona,
A cor do sangue é a cor que me impressiona
E a que mais neste mundo me persegue!
Essa obsessão cromática me abate.
Não sei por que me vêm sempre à lembrança
O estômago esfaqueado de uma criança
E um pedaço de víscera escarlate.
Quisera qualquer coisa provisória
Que a minha cerebral caverna entrasse,
E até ao fim, cortasse e recortasse
A faculdade aziaga da memória.
Na ascensão barométrica da calma,
Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,
Que uma população doente do peito
Tossia sem remédio na minh'alma!
E o cuspo que essa hereditária tosse
Golfava, à guisa de ácido resíduo,
Não era o cuspo só de um indivíduo
Minado pela tísica precoce.
Não! Não era o meu cuspo, com certeza
Era a expectoração pútrida e crassa
Dos brônquios pulmonares de uma raça
Que violou as leis da Natureza!
171
Era antes uma tosse ubíqua, estranha,
Igual ao ruído de um calhau redondo
Arremessado no apogeu do estrondo,
Pelos fundibulários da montanha!
E a saliva daqueles infelizes
Inchava, em minha boca, de tal arte,
Que eu, para não cuspir por toda a parte,
Ia engolindo, aos poucos, a hemoptises!
Na alta alucinação de minhas cismas
O microcosmos líquido da gota
Tinha a abundância de uma artéria rota,
Arrebentada pelos aneurismas.
Chegou-me o estado máximo da mágoa!
Duas, três, quatro, cinco, seis e sete
Vezes que eu me furei com um canivete,
A hemoglobina vinha cheia de água!
Cuspo, cujas caudais meus beiços regam,
Sob a forma de mínimas camândulas,
Benditas sejam todas essas glândulas,
Que, quotidianamente, te segregam!
Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do Cristianismo!
Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam
Eu não deixasse o meu cuspo carrasco,
Jamais exprimiria o acérrimo asco
Que os canalhas do mundo me provocam!
II
Foi no horror dessa noite tão funérea
Que eu descobri, maior talvez que Vinci,
Com a força visualística do lince,
A falta de unidade na matéria!
Os esqueletos desarticulados,
Livres do acre fedor das carnes mortas,
172
Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas,
Numa dança de números quebrados!
Todas as divindades malfazejas,
Siva e Arimã, os duendes, o In e os trasgos,
Imitando o barulho dos engasgos,
Davam pancadas no adro das igrejas.
Nessa hora de monólogos sublimes,
A companhia dos ladrões da noite,
Buscando uma taverna que os acoite,
Vai pela escuridão pensando crimes.
Perpetravam-se os atos mais funestos,
E o luar, da cor de um doente de icterícia,
Iluminava, a rir, sem pudicícia,
A camisa vermelha dos incestos.
Ninguém, de certo, estava ali, a espiar-me,
Mas um lampião, lembrava ante o meu rosto,
Um sugestionador olho, ali posto
De propósito, para hipnotizar-me!
Em tudo, então, meus olhos distinguiram
Da miniatura singular de uma aspa,
À anatomia mínima da caspa,
Embriões de mundos que não progrediram!
Pois quem não vê aí, em qualquer rua,
Com a fina nitidez de um claro jorro,
Na paciência budista do cachorro
A alma embrionária que não continua?!
Ser cachorro! Ganir incompreendidos
Verbos! Querer dizer-nos que não finge,
E a palavra embrulhar-se no laringe,
Escapando-se apenas em latidos!
Despir a putrescível forma tosca,
Na atra dissolução que tudo inverte,
Deixar cair sobre a barriga inerte
O apetite necrófago da mosca!
A alma dos animais! Pego-a, distingo-a,
173
Acho-a nesse interior duelo secreto
Entre a ânsia de um vocábulo completo
E uma expressão que não chegou à língua!
Surpreendo-a em quatriliões de corpos vivos,
Nos antiperistálticos abalos
Que produzem nos bois e nos cavalos
A contração dos gritos instintivos!
Tempo viria, em que, daquele horrendo
Caos de corpos orgânicos disformes
Rebentariam cérebros enormes,
Como bolhas febris de água, fervendo!
Nessa época que os sábios não ensinam,
A pedra dura, os montes argilosos
Criariam feixes de cordões nervosos
E o neuroplasma dos que raciocinam!
Almas pigméias! Deus subjuga-as, cinge-as
À imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-o,
E o meu sonho crescia no silêncio,
Maior que as epopéias carolíngias!
Era a revolta trágica dos tipos
Ontogênicos mais elementares,
Desde os foraminíferos dos mares
À grei liliputiana dos pólipos.
Todos os personagens da tragédia,
Cansados de viver na paz de Buda,
Pareciam pedir com a boca muda
A ganglionária célula intermédia.
A planta que a canícula ígnea torra,
E as coisas inorgânicas mais nulas
Apregoavam encéfalos, medulas
Na alegria guerreira da desforra!
Os protistas e o obscuro acervo rijo
Dos espongiários e dos infusórios
Recebiam com os seus órgãos sensórios
O triunfo emocional do regozijo!
174
E apesar de já ser assim tão tarde,
Aquela humanidade parasita,
Como um bicho inferior, berrava, aflita,
No meu temperamento de covarde!
Mas, refletindo, a sós, sobre o meu caso,
Vi que, igual a um aniota subterrâneo,
Jazia atravessada no meu crânio
A intercessão fatídica do atraso!
A hipótese genial do microzima
Me estrangulava o pensamento guapo,
E eu me encolhia todo como um sapo
Que tem um peso incômodo por cima!
Nas agonias do delirium-tremens,
Os bêbedos alvares que me olhavam,
Com os copos cheios esterilizavam
A substância prolífica dos semens!
Enterrem as mãos dentro das goelas,
E sacudidos de um tremor indômito
Expeliam, na dor forte do vômito,
Um conjunto de gosmas amarelas.
Iam depois dormir nos lupanares
Onde, na glória da concupiscência,
Depositavam quase sem consciência
As derradeiras forças musculares.
Fabricavam destarte os blastodermas,
Em cujo repugnante receptáculo
Minha perscrutação via o espetáculo
De uma progênie idiota de palermas.
Prostituição ou outro qualquer nome,
Por tua causa, embora o homem te aceite,
É que as mulheres ruins ficam sem leite
E os meninos sem pai morrem de fome!
Por que há de haver aqui tantos enterros?
Lá no "Engenho" também, a morte é ingrata...
Há o malvado carbúnculo que mata
A sociedade infante dos bezerros!
175
Quantas moças que o túmulo reclama!
E após a podridão de tantas moças,
Os porcos esponjando-se nas poças
Da virgindade reduzida à lama!
Morte, ponto final da última cena,
Forma difusa da matéria embele,
Minha filosofia te repele,
Meu raciocínio enorme te condena!
Diante de ti, nas catedrais mais ricas,
Rolam sem eficácia os amuletos,
Oh! Senhora dos nossos esqueletos
E das caveiras diárias que fabricas!
E eu desejava ter, numa ânsia rara,
Ao pensar nas pessoas que perdera,
A inconsciência das máscaras de cera
Que a gente prega, com um cordão, na cara!
Era um sonho ladrão de submergir-me
Na vida universal, e, em tudo imerso,
Fazer da parte abstrata do Universo,
Minha morada equilibrada e firme!
Nisto, pior que o remorso do assassino,
Reboou, tal qual, num fundo de caverna,
Numa impressionadora voz interna,
O eco particular do meu Destino:
III
"Homem! por mais que a Idéia desintegres,
Nessas perquisições que não têm pausa,
Jamais, magro homem, saberás a causa
De todos os fenômenos alegres!
Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas
A estéril terra, e a hialina lâmpada oca,
Trazes, por perscrutar (oh! ciência louca!)
O conteúdo das lágrimas hediondas.
Negro e sem fim é esse em que te mergulhas
Lugar do Cosmos, onde a dor infrene
176
É feita como é feito o querosene
Nos recôncavos úmidos das hulhas!
Porque, para que a Dor perscrutes, fora
Mister que, não como és, em síntese, antes
Fosses, a refletir teus semelhantes,
A própria humanidade sofredora!
A universal complexidade é que Ela
Compreende. E se, por vezes, se divide,
Mesmo ainda assim, seu todo não reside
No quociente isolado da parcela!
Ah! Como o ar imortal a Dor não finda!
Das papilas nervosas que há nos tatos
Veio e vai desde os tempos mais transatos
Para outros tempos que hão de vir ainda!
Como o machucamento das insônias
Te estraga, quando toda a estuada Idéia
Dás ao sôfrego estudo da ninféia
E de outras plantas dicotiledôneas!
A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua
Que da ígnea flama bruta, estriada, espirra;
A formação molecular da mirra,
O cordeiro simbólico da Páscoa;
As rebeladas cóleras que rugem
No homem civilizado, e a ele se prendem
Como às pulseiras que os mascates vendem
A aderência teimosa da ferrugem;
O orbe feraz que bastos tojos acres
Produz; a rebelião que, na batalha,
Deixa os homens deitados, sem mortalha,
Na sangueira concreta dos massacres;
Os sanguinolentíssimos chicotes
Da hemorragia; as nódoas mais espessas,
O achatamento ignóbil das cabeças,
Que ainda degrada os povos hotentotes;
O Amor e a Fome, a fera ultriz que o fojo
177
Entra, à espera que a mansa vítima o entre,
— Tudo que gera no materno ventre
A causa fisiológica do nojo;
As pálpebras inchadas na vigília,
As aves moças que perderam a asa,
O fogão apagado de uma casa,
Onde morreu o chefe da família;
O trem particular que um corpo arrasta
Sinistramente pela via-férrea,
A cristalização da massa térrea,
O tecido da roupa que se gasta;
A água arbitrária que hiulcos caules grossos
Carrega e come; as negras formas feias
Dos aracnídeos e das centopéias,
O fogo-fátuo que ilumina os ossos;
As projeções flamívomas que ofuscam,
Como uma pincelada rembrandtesca,
A sensação que uma coalhada fresca
Transmite às mãos nervosas dos que a buscam;
O antagonismo de Tifon e Osíris,
O homem grande oprimindo o homem pequeno,
A lua falsa de um parasseleno,
A mentira mateórica do arco-íris;
Os terremotos que, abalando os solos,
Lembram paióis de pólvora explodindo,
A rotação dos fluidos produzindo
A depressão geológica dos pólos;
O instinto de procriar, a ânsia legítima
Da alma, afrontando ovante aziagos riscos,
O juramento dos guerreiros priscos
Metendo as mãos nas glândulas da vítima;
As diferenciações que o psicoplasma
Humano sofre na mania mística,
A pesada opressão característica
Dos dez minutos de um acesso de asma;
178
E, (conquanto contra isto ódios regougues)
A utilidade fúnebre da corda
Que arrasta a rês, depois que a rês engorda,
A morte desgraçada dos açougues...
Tudo isto que o terráqueo abismo encerra
Forma a complicação desse barulho
Travado entre o dragão do humano orgulho
E as forças inorgânicas da terra!
Por descobrir tudo isso, embalde cansas!
Ignoto é o gérmen dessa força ativa
Que engendra, em cada célula passiva,
A heterogeneidade das mudanças!
Poeta, feto malsão, criado com os sucos
De um leite mau, carnívoro asqueroso,
Gerado no atavismo monstruoso
Da alma desordenada dos malucos;
Última das criaturas inferiores
Governada por átomos mesquinhos,
Teu pé mata a uberdade dos caminhos
E esteriliza os ventres geradores!
O áspero mal que a tudo, em torno, trazes,
Análogo é ao que, negro e a seu turno,
Traz o ávido filóstomo noturno,
Ao sangue dos mamíferos vorazes!
Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes
A perfeição dos seres existentes,
Hás de mostrar a cárie dos teus dentes
Na anatomia horrenda dos detalhes!
O Espaço — esta abstração spenceriana
Que abrange as relações de coexistência
É só! Não tem nenhuma dependência
Com as vértebras mortais da espécie humana!
As radiantes elipses que as estrelas
Traçam, e ao espectador falsas se antolham
São verdades de luz que os homens olham
Sem poder, no entretanto, compreendê-las.
179
Em vão, com a mão corrupta, outro éter pedes
Que essa mão, de esqueléticas falanges,
Dentro dessa água que com a vista abranges,
Também prova o princípio de Arquimedes!
A fadiga feroz que te esbordoa
Há de deixar-te essa medonha marca,
Que, nos corpos inchados de anasarca,
Deixam os dedos de qualquer pessoa!
Nem terás no trabalho que tiveste
A misericordiosa toalha amiga,
Que afaga os homens doentes de bexiga
E enxuga, à noite, as pústulas da peste!
Quando chegar depois a hora tranquila,
Tu serás arrastado, na carreira,
Como um cepo inconsciente de madeira
Na evolução orgânica da argila!
Um dia comparado com um milênio
Seja, pois, o teu último Evangelho...
E a evolução do novo para o velho
E do homogêneo para o heterogêneo!
Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo
A apodrecer!... És poeira, e embalde vibras!
O corvo que comer as tuas fibras
Há de achar nelas um sabor amargo!"
IV
Calou-se a voz. A noite era funesta.
E os queixos, a exibir trismos danados,
Eu puxava os cabelos desgrenhados
Como o Rei Lear, no meio da floresta!
Maldizia, com apóstrofes veementes,
No estentorde mil línguas insurrectas,
O convencionalismo das Pandectas
E os textos maus dos códigos recentes!
Minha imaginação atormentada
Paria absurdos... Como diabos juntos,
180
Perseguiam-me os olhos dos defuntos
Com a carne da esclerótica esverdeada.
Secara a clorofila das lavouras.
Igual aos sostenidos de uma endeixa,
Vinha me às cordas glóticas a queixa
Das coletividades sofredoras.
O mundo resignava-se invertido
Nas forças principais do seu trabalho...
A gravidade era um princípio falho,
A análise espectral tinha mentido!
O Estado, a Associação, os Municípios
Eram mortos. De todo aquele mundo
Restava um mecanismo moribundo
E uma teleologia sem princípios.
Eu queria correr, ir para o inferno,
Para que, da psique no oculto jogo,
Morressem sufocadas pelo fogo
Todas as impressões do mundo externo!
Mas a Terra negava-me o equilíbrio...
Na Natureza, uma mulher de luto
Cantava, espiando as árvores sem fruto,
A canção prostituta do ludíbrio!
O MORCEGO
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
"Vou mandar levantar outra parede..."
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
181
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
O MEU NIRVANA
No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero
Encontrei, afinal, o meu Nirvana!
Nessa manumissão schopenhauereana,
Onde a Vida do humano aspeto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Idéia Soberana!
Destruída a sensação que oriunda fora
Do tato — ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebéias —
Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Idéias!
AMOR E CRENÇA
Sabes que é Deus?! Esse infinito e santo
Ser que preside e rege os outros seres,
Que os encantos e a força dos poderes
Reúne tudo em si, num só encanto?
Esse mistério eterno e sacrossanto,
Essa sublime adoração do crente,
Esse manto de amor doce e clemente
Que lava as dores e que enxuga o pranto?!
Ah! Se queres saber a sua grandeza,
Estende o teu olhar à Natureza,
Fita a cúp’la do Céu santa e infinita!
Deus é o templo do Bem. Na altura Imensa,
182
O amor é a hóstia que bendiz a Crença,
ama, pois, crê em Deus, e... sê bendita!
SONETO
Canta teu riso esplêndido sonata,
E há, no teu riso de anjos encantados,
Como que um doce tilintar de prata
E a vibração de mil cristais quebrados.
Bendito o riso assim que se desata
- Citara suave dos apaixonados,
Sonorizando os sonhos já passados,
Cantando sempre em trínula volata!
Aurora ideal dos dias meus risonhos,
Quando, úmido de beijos em ressábios
Teu riso esponta, despertando sonhos...
Ah! Num delíquio de ventura louca,
Vai-se minh'alma toda nos teus beijos,
Ri-se o meu coração na tua boca!
ECOS D'ALMA
Oh! madrugada de ilusões, santíssima,
Sombra perdida lá do meu Passado,
Vinde entornar a clâmide puríssima
Da luz que fulge no ideal sagrado!
Longe das tristes noites tumulares
Quem me dera viver entre quimeras,
Por entre o resplendor das Primaveras
Oh! madrugada azul dos meus sonhares.
Mas quando vibrar a última balada
Da tarde e se calar a passarada
Na bruma sepulcral que o céu embaça
Quem me dera morrer então risonho
Fitando a nebulosa do meu sonho
E a Via-Látea da Ilusão que passa!
183
A ESPERANÇA
A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença,
Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Voltam sonhos nas asas da Esperança.
Muita gente infeliz assim não pensa;
No entanto o mundo é uma ilusão completa,
E não é a Esperança por sentença
Este laço que ao mundo nos manieta?
Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a Crença do fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro - avança!
E eu, que vivo atrelado ao desalento,
Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da Morte a me bradar; descansa!
O COVEIRO
Uma tarde de abril suave e pura
Visitava eu somente ao derradeiro
Lar; tinha ido ver a sepultura
De um ente caro, amigo verdadeiro.
Lá encontrei um pálido coveiro
Com a cabeça para o chão pendida;
Eu senti a minh’alma entristecida
E interroguei-o: "Eterno companheiro
Da morte, que matou-te o coração?"
Ele apontou para uma cruz no chão,
Ali jazia o seu amor primeiro!
Depois, tomando a enxada gravemente,
Balbuciou, sorrindo tristemente: "Ai! Foi por isso que me fiz coveiro!"
184
INFELIZ
Alma viúva das paixões da vida,
Tu que, na estrada da existência em fora,
Cantaste e riste, e na existência agora
Triste soluças a ilusão perdida;
Oh! Tu, que na grinalda emurchecida
De teu passado de felicidade
Foste juntar os goivos da Saudade
Às flores da Esperança enlanguescida;
Se nada te aniquila o desalento
Que te invade, e o pesar negro e profundo,
Esconde à Natureza o sofrimento,
E fica no teu ermo entristecida,
Alma arrancada do prazer do mundo,
Alma viúva das paixões da vida.
185
AUTA DE SOUZA
(1876—1901)
LITERATURA BRASILEIRA
AO CAIR DA NOITE
Não sei que paz imensa
Envolve a Natureza,
N’ess’hora de tristeza,
De dor e de pesar.
Minh’alma, rindo, pensa
Que a sombra é um grande véu
Que a Virgem traz do Céu
Num raio de luar.
Eu junto as mãos, serena,
A murmurar contrita,
A saudação bendita
Do Anjo do Senhor;
Enquanto a lua plena
No azul, formosa e casta,
Um longo manto arrasta
De lúrido esplendor.
Minhas saudades todas
Se vão mudando em astros...
A mágoa vai de rastros
Morrer na escuridão...
As amarguras doidas
Fogem como um lamento
Longe do Pensamento,
186
Longe do Coração.
E a noite desce, desce
Como um sorriso doce,
Que em sonhos desfolhou-se
Na voz cheia de amor,
Da mãe que ensina a Prece
Ao filho pequenino,
De olhar meigo e divino
E lábio aberto em flor.
Ah! como a Noite encanta!
Parece um Santuário,
Com o lindo lampadário
De estrelas que ela tem!
Recorda-me a luz santa,
Imaculada e pura,
Da grande noite escura
Do olhar de minha mãe!
Ó noite embalsamada
De castas ambrósias...
No mar das harmonias
Meu ser deixa boiar.
Afasta, ó noite amada,
A dúvida e o receio,
Embala-me no seio
E deixa-me sonhar!
AO MEU BOM ANJO
Dizem que a vida não é mais que um sonho,
Meu Deus, quero sonhar!
Empresta-me, anjo bom, as tuas asas,
Guarda no seio a minha fronte em brasas,
Ensina-me a rezar!
Vamos, vamos, além... foge comigo!
Procuremos bem longe um doce abrigo,
Na pátria dos arcanjos...
A vida é sonho e como um sonho passa...
Pois bem! vamos viver no Céu da graça,
Meu Deus, como dois anjos!
187
Quero fugir do mundo tenebroso,
Labirinto de dores...
Mensageiro divino, vem comigo,
Quero sonhar, viver, sorrir contigo,
No Éden há só flores!
Minh’alma, casta rola abandonada,
Desfalece sozinha pela estrada,
Não pode mais voar...
Empresta-lhe, anjo bom, as tuas asas:
Sinto estalar-me o coração em brasas,
Cansado de chorar.
Assim voando pelo espaço em fora
E vendo-te a meu lado a toda hora,
Quero - fugindo d’este mundo agreste,
Unida ao seio teu,
Embalada por ti, anjo celeste! Buscar meu ninho pelo azul do Céu!
AO PÉ DO TÚMULO
Eis o descanso eterno, o doce abrigo
Das almas tristes e despedaçadas;
Eis o repouso, enfim; e o sono amigo
Já vem cerrar-me as pálpebras cansadas.
Amarguras da terra! eu me desligo
Para sempre de vós... Almas amadas
Que soluças por mim, eu vos bendigo,
Ó almas de minh’alma abençoadas.
Quando eu d’aqui me for, anjos da guarda,
Quando vier a morte que não tarda
Roubar-me a vida para nunca mais...
Em pranto escrevam sobre a minha lousa:
"Longe da mágoa, enfim, no céu repousa
Quem sofreu muito e quem amou demais".
ALGUÉM NA ESTRADA
188
Alguém te espera o amor, estrada afora,
Seja o dia translúcido ou cinzento,
Para extinguir a sobra e o sofrimento,
Nas empedradas trilhas de quem chora!...
Não te detenhas!... Vem!... O tempo é agora,
Há quem te arrase ao temporal violento,
E corações ao frio, à noite e ao vento
Ante a descrença que se desarvora...
Vem à estrada do mundo!... Ampara e ama!...
Esclarece e consola, alça por chama,
O próprio coração fraterno e amigo!...
Esse alguém é Jesus que te abençoa!...
Trabalha, serve, esquece-te, perdoa
E o Mestre Amado seguirá contigo!...
ANO BOM
Hoje começa o ano. Na alegria
De nívea pomba quando nasce a aurora,
Deixa, minh’alma, a tua fantasia
Subir, cantando, pelo espaço a fora...
Deixa-a sumir-se além, rompendo gazas,
Subindo em busca de ideais queridos:
Há de trazer nas pequeninas asas
Todo o perfume dos meus dias idos!
Há de trazer o sonho transparente
Da inocência feliz (quanto eu sonhava!)
E o eco virginal da voz dolente
Que o meu sono de arcanjo acalentava.
E o meu sorriso e as minhas esperanças,
Essas ingênuas ilusões de um dia,
Toda essa luz que as almas das crianças
Num raio de luar acaricia...
Que tudo venha sobre mim cantando
O salmo doce da recordação.
189
Qual se pousesse um luminoso bando
De passarinhos no meu coração...
ABENÇOA SENHOR
Abençoa, Senhor esta Casa singela,
Onde a luz do Evangelho esplende, soberana,
E onde encontra guarida a imensa caravana
Dos tristes corações que a prova desmantela.
Neste pouso de paz onde a fé nos irmana,
Em torno do ideal que ao mundo se revela,
A Caridade é sempre atenta sentinela,
Estendendo os seus braços à penúria humana.
Neste recanto amigo, à margem do caminho,
Ninguém procura em vão o conforto e o carinho,
Cansado de bater, chorando, porta em porta...
Porquanto a Tua voz na voz de quem ensina,
A mensagem de amor da Celeste Doutrina,
A renovar no bem a vida nos exorta!...
A MORTE DE HELENA
"Eu não quero morrer," dizia a pobre Helena,
E a fronte, a soluçar, caiu no travesseiro...
(Ai! recordava assim a pálida açucena
Ou, do galho a pender, a flor do jasmineiro!)
“Não me deixem morrer assim na primavera:
Esconde-me no seio, ó minha mãe querida!
A morte como é triste! e o noivo que me espera
Há de chamar por mim... Quem restitui-me a vida?
E se pôs a chorar: mas, chegando o delírio,
Esqueceu-se da morte e começou a rir...
Pobre noiva do amor! Pobre folha de lírio!
Ela os olhos cerrou, como quem vai dormir.
Misérrima criança! Estava ali bem perto
A morte, a se abeirar do seu leito sagrado,
190
Para arrastar-lhe o corpo ao túmulo deserto,
Onde não brilha o Sol e nem o Riso amado.
E, quando despertou daquele doce encanto,
Conheceu que morria e, cheia de pavor,
Suplicou a Jesus, por seu martírio santo,
Que a deixasse na terra ao pé de seu amor.
"Mas, sei que parto sempre", acrescentou chorando.
"Mostrou-se-me da crença o doloroso véu...
Minha mãe vem comigo, a noite vai chegando
E eu talvez possa errar o caminho do céu!”
E nessa mesma noite escura, tenebrosa,
Deixou a doce Helena a terra, pobre goivo!
Mas tinha para ungir-lhe a campa lutuosa
Uma prece de mãe e as lágrimas do noivo.
191
BASÍLIO DA GAMA
(1741—1795)
LITERATURA BRASILEIRA
À NAU SERPENTE
Por ocasião de cair ao mar no Rio de Janeiro
em 8 de fevereiro de 1767
Já do lenho as prisões se desataram
E assustada serpente as águas trilha,
Já ondeia no mar a instável ilha,
E já no fundo as âncoras pegaram.
Os ventos sobre as asas se firmaram
Por ver de perto a nova maravilha,
E ao vasto peso da disforme quilha,
Gemeu Netuno, e as ondas s’encurvaram.
Verdes Ninfas azuis do pego undoso,
Conduzi pelos úmidos lugares
Esse errante edifício majestoso:
E entre tantas empresas singulares,
Veja o mundo qual é mais glorioso,
Dar leis à terra, se pôr freio aos mares.
A UMA SENHORA
Natural do Rio de Janeiro, onde se achava
então o Autor
Já, Marfiza cruel, me não maltrata
Saber que usas comigo de cautelas,
Qu’inda te espero ver, por causa d’elas,
Arrependida de ter sido ingrata.
192
Com o tempo, que tudo desbarata,
Teus olhos deixarão de ser estrelas;
Verás murchar no rosto as faces belas,
E as tranças d’oiro converter-se em prata.
Pois se sabes que a tua formosura
Por força há de sofrer da idade os danos,
Por que me negas hoje esta ventura?
Guarda para seu tempo os desenganos,
Gozemo-nos agora, enquanto dura,
Já que dura tão pouco a flor dos anos.
A RESIGNAÇÃO
Por ocasião do ser o autor condenado pelo
Tribunal da Inconfidência ao degredo
de África.
Temam embora a morte os que aferrados
Aos grossos cabedais, que possuíam,
Nunca tão de repente presumiam
Que lhes fossem das mãos arrebatados.
Sintam deixar co’a vida os começados
Muros d’altos palácios, que erigiam;
A cara esposa, os filhos, que cresciam;
Os brandos leitos; os tremós dourados.
Que eu sem bens e sem casa, vagabundo,
Mal coberto c’o manto da indigência,
Já não temo da morte o horror profundo.
No que me tira não me faz violência,
Que o melhor modo de sair do mundo
É cheio ou de miséria ou de inocência.
AO MARQUÊS DE POMBAL
Não temas, não, marquês, que o povo injusto
De teus grandes serviços esquecido,
Pelos gritos da inveja enfurecido
Solicite abolir teu nobre busto.
Para ser imortal teu nome augusto
Não depende do bronze derretido;
Em mais firmes padrões fica insculpido
Teu nome excelso, teu valor robusto.
Lisboa restaurada, o Reino ornado
193
De ciência, de indústria e de cultura,
De política e comércio apropriado:
A tropa regulada, a fé segura,
O tesouro provido, o mar guardado:
Eis aqui do teu gênio a cópia pura.
194
BERNARDINO LOPES
(1859—1916)
LITERATURA BRASILEIRA
O CANÁRIO
I
Na choupana de um velho proletário,
Entre a ramagem múrmure e sombria
De virente pomar,
Apresentando um rústico cenário:
Às vezes em fragrante eflorescência,
Vistoso e a balouçar,
Outras — de fruto
Os ramos a pender no solo bruto,
Como quem cai em lânguida dormência,
Cantava todo o dia.
Um aflautado e trêmulo canário.
II
Quem toma, acaso, a travessia curta
Daquele sitio, esmeraldino prado
De rescendente murta
E bananeira agreste, que a fragrância
Percebe-se a distância
Do cachopo escarlate e azul-ferrete,
Na ribanceira hirsuta, entre gungis,
Que marchetam selvático tapete,
Escuta-o, embevecido,
Sentado ao cepo do indaiá partido
195
Do ribeirão ao lado,
E mais, mais retirado,
O barulho de ariscas juritis.
III
No caminho há festões de escura sombra,
Com mil flores em cacho;
E a água do riacho,
Que à superfície é como um claro espelho,
Atravessando o leito do caminho
Vai se esconder nos côncavos da alfombra
Da chácara do velho.
Tão mole escorre e rumoreja a fonte
Por debaixo da ponte,
Que a descansar convida-nos baixinho...
IV
Tão fresca que ela é! Tons anilados
Na profundeza escura e transparente
Da múrmure corrente;
Uma pétala curva, a flor de lima,
A folha verde e limpa do arvoredo
Em delíquio e brinquedo
Escorregando vai...
É um barquinho frágil que se anima...
Some-se! a gente espera:
Dentre a sombra fantástica dos matos
A veia d’água sai,
A deslizar-se-lhe, outra vez, por cima,
Talvez... uma quimera!
Talvez que a pluma branca, alva dos patos,
Como uma nuvem na azulada esfera!
V
E é tempo. O caminheiro o ponche enrola,
Depois que, o sol medindo, se levanta
Para seguir viagem.
Mas o canário canta
No grubapê flexível da gaiola
Ao lado do oitão
Da Sombria choupana, alegre, entanto,
Por trás dos ramos da limeira — oculta,
Ao dote requebrar daquele canto,
— Silvestre idílio de uma letra inculta —
196
Mas filho e pai entendem-lhe a linguagem,
Como a bradar — coragem!!
VI
Tinha um filho pequeno o proletário.
Era o gentil e trêfego Joãozinho,
Fruto do seu amor. No seu caminho
Da vida transitória
Achara uma consorte e, solitário,
Deitava luto em si, dela em memória.
Agora viúvo e pobre,
E triste como um funerário dobre,
Ama o pequeno e dá-lhe bons conselhos,
Quando assentado o tem sobre os joelhos.
VII
Mandava o filho de manhã à escola.
VIII
O que a este entretinha era a gaiola,
De grubapê e cana,
Dependurada ao caibro da choupana,
Onde cantava alegre o seu canário.
Era um pássaro belo,
Pequenino, gentil todo amarelo!
Quando voltava do arraial, sozinho,
Com o cajado ao ombro,
Sem mostras de temor, sequer de assombro,
Pelo deserto e rústico caminho;
Na bolsa os livros, o calçado à mão,
Calça ao joelho, em desafio ao chão,
Despida a jaquetinha, o peito aberto,
Cantando uma cantiga
De sertanejo e antiga
E do velho casebre já bem perto,
Conhecia o canário a voz do amigo
E punha-se a cantar, cantar, cantar,
Com a cabacinha junto do postigo...
O menino corria pressuroso,
Mal chegava no lar,
Do seu canário à rústica prisão...
Nadava em pranto o carinhoso olhar!
De júbilo, coitado!
E acariciava-o tanto,
197
Que o passarinho transformava o canto
Em torrente de célere trinado!
X
Embora fronte branca e veneranda
Do trêmulo ancião
Pousasse, acabrunhada, sobre a mão
Trigueira e descarnada,
Assim como quem anda
A imaginar a morte muito perto,
Ele sorria sempre, — rir incerto!
Dando ao semblante uma expressão, um brilho,
Como luz de relâmpago em sudário,
Ao infantil espírito do filho,
Ao requebro mavioso do canário!
Tanto que, se achava na gaiola
Mudo e arrepiado,
Quando voltava do labor diário,
Ia chorar o velho na viola
Um lânguido estribilho...
E o bom cantor erguia o bico aberto!
Melancólico, então, era o concerto!
***
Depois de uma orfandade,
De álgida e lutulenta viuvez,
Estava a felicidade,
A alegria do albergue solitário,
Do bom filho, do honrado proletário,
Em rústica prisão de grubapês.
198
BERNARDO GUIMARÃES
(1825—1884)
LITERATURA BRASILEIRA
HINO À AURORA
E já no campo azul do firmamento
A noite extingue os círios palejantes,
E em silêncio arrastando a fímbria escura
Do tenebroso manto
Transpõe do ocaso os montes derradeiros.
A terra, de entre as sombras ressurgindo
Do mole sono lânguida desperta
E qual noiva gentil, que o esposo aguarda,
De galas se adereça.
Rósea filha do sol, eu te saúdo!
Formosa virgem de cabelos d'ouro,
Que prazenteira os passos antecedes
Do rei do firmamento,
Em seus caminhos flores despargindo!
Salve, aurora! - quão donosa surges
Nos azulados topes do oriente
Desfraldando o teu manto aurirrosado!
Qual cândida princesa
Que em desalinho lânguida se erguera
Do brando leito, em que sonhou venturas,
Tu lá no etéreo trono vaporoso
Entre cantos e aromas festejada,
Sorrindo escutas os melífluos quebros
Das mil canções com que saúda a terra
O teu raiar sereno.
199
Também tu choras, pois em minha fronte
Sinto teu pranto, e o vejo em gotas límpidas
A cintilar na trêmula folhagem:
Assim no rosto da formosa virgem
- Efeito às vezes de amoroso enleio Brilha através das lágrimas o riso.
Bendiz o viajor extraviado
Tua luz benigna que a vereda aclara,
E mostra ao longe fumegando os tetos
De alvergue hospitaleiro.
Pobre colono alegre te saúda,
Por ver em torno do singelo colmo
Sorrir-se vicejante a natureza,
Manso rebanho retouçar contente,
Crescer a messe, as flores desbrocharem;
E unindo a voz aos cânticos da terra,
Aos céus envia sua humilde prece.
E o desditoso, que entre angustias vela
No inquieto leito sôfrego volvendo-se,
Espia ansioso o teu fulgor primeiro,
Que lhe derrama nas feridas d'alma
Celeste refrigério.
A ave canora para ti reserva
De seu cantar as mais suaves notas:
E a flor, que expande o cálix orvalhado
As estremes primícias te consagra
De seu brando perfume...
Vem, casta virgem, vem com teu sorriso,
Teus perfumes, teu hálito amoroso,
Esta cuidosa fronte bafejar-me;
Orvalho e fresquidão piedosa verte
Nos ardentes delírios de minh'alma,
E desvanece estas visões sombrias,
Funestos sonhos da penada noite!
Vem, ó formosa... Mas que é feito dela?...
O sol já mostra na brilhante esfera
O disco ardente e a linda moça etérea
Que inda há pouco entre flores reclinada
Sorria-se amorosa no horizonte,
Enquanto a saudava com meus hinos
- Imagem do prazer, que breve dura, Se esvaeceu nos ares...
Adeus, esquiva ninfa,
Fugitiva ilusão, aérea fada!
200
Adeus também, canções enamoradas,
Adeus, rosas de amor, adeus, sorrisos...
PRELÚDIO
Neste alaúde, que a saudade afina,
Apraz-me às vezes descantar lembranças
De um tempo mais ditoso;
De um tempo em que entre sonhos de ventura
Minha alma repousava adormecida
Nos braços da esperança.
Eu amo essas lembranças, como o cisne
Ama seu lago azul, ou como a pomba
Do bosque as sombras ama.
Eu amo essas lembranças; deixam n'alma
Um quê de vago e triste, que mitiga
Da vida os amargores.
Assim de um belo dia, que esvaiu-se,
Longo tempo nas margens do ocidente
Repousa a luz saudosa.
Eu amo essas lembranças; são grinaldas
Que o prazer desfolhou, murchas relíquias
De esplêndido festim;
Tristes flores sem viço! - mas um resto
Inda conservam do suave aroma
Que outrora enfeitiçou-nos.
Quando o presente corre árido e triste,
E no céu do porvir pairam sinistras
As nuvens da incerteza,
Só no passado doce abrigo achamos
E nos apraz fitar saudosos olhos
Na senda decorrida;
Assim de novo um pouco se respira
Uma aura das venturas já fruídas,
Assim revive ainda
201
O coração que angústias já murcharam,
Bem como a flor ceifada em vasos d'água
Revive alguns instantes.
EU VI DOIS PÓLOS
Eu vi dos pólos o gigante alado
Sobre um montão de pálidos coriscos,
Sem fazer caso dos bulcões ariscos
Devorando em silêncio a mão do fado.
Cinco fatias de tufão gelado,
Figuravam na mesa entre os petiscos,
Envolto em crepe de fatais rabisco
Campeava o sofisma ensanguentado.
Quem és? Que assim me cercas de episódios
Lhe perguntei com voz de silogismo,
Brandindo um facho de trovões serôdios!
Eu sou, me disse, aquele anacronismo
Que a vil caterva de sulfúricos ódios,
Nas trevas sepultei de um solecismo.
NARIZ PERANTE OS POETAS
Cantem outros os olhos, os cabelos
E mil cousas gentis
Das belas suas: eu de minha amada
Cantar quero o nariz
Não sei que fado mísero e mesquinho
É este do nariz
Que poeta nenhum em prosa ou verso
Cantá-lo jamais quis.
ILUSÃO DESFEITA
Acabou-se o ardor antigo,
Tenho o peito sossegado;
Nem para fingir-me irado
202
Acho agora em mim paixão.
(Tradução de Metastásio)
"Oh! acredita, nunca olhar de virgem
Coou-me n'alma tanto ardor assim;
Nunca amor me sorriu com tanta graça
Em lábios de carmim!
"Tu és o anjo sonhado que minha alma
Aos céus pedia; - a flor que em meus caminhos
Encontrei a sorrir pura e fragrante
Do mundo entre os espinhos.
"Pio romeiro, irei aos pés depor-te
Oferenda singela, porém fida;
A ti a lira e o coração do bardo!...
A ti a minha vida.
"Cantar-te as graças, e mandar teu nome
Unido ao meu aos séculos vindouros,
Seria para mim melhor que um trono,
Melhor que mil tesouros.
"Porém passar meus dias a teu lado,
Ouvir-te as falas, contemplar-te o riso,
Gozar teus mimos, fora para esta alma
Melhor que o paraíso!"
***
Assim dizia-te eu naquele dia,
- O mais doce talvez da minha vida,
Em que na meiga luz desses teus olhos
Minha alma vi perdida.
Foi um sonho fugaz; - breve delírio.
De novo tenho o coração vazio;
E se no peito meu a mão pousares,
Achá-lo-ás bem frio!..
Caíste enfim da região de encantos,
A que meus puros sonhos te elevaram;
Desfez-se o talismã; - foram-se enganos,
Que outrora me embalaram.
203
Perdeste um coração que te adorava...
Porém que importa? se por um, que esfria,
Mil outros corações após teus risos
Vão correndo à porfia.
Mas não receies que eu maldiga aquela
Que num momento a vida me dourara;
E que num pego de emoções bem doces
Outrora me entranhara.
Oh! não receies, não, que eu te maldiga;
Graças a ti, aprendo hoje por fim
A não crer tanto nos fagueiros risos
De uns lábios de rubim.
Proveitosa lição nos fica n'alma,
Quando a ilusão se esvai:
Deixa um fruto no ramo, em que nascera
A flor, que murcha e cai.
204
BERNARDO DE PASSOS
(1876—1930)
LITERATURA PORTUGUESA
QUADRAS SOLTAS
Pra mentira ser segura
E atingir profundidade,
Tem que trazer à mistura
Qualquer coisa de verdade.
O rato mete o focinho
Sem pensar que faz asneira
Depois, ou larga o toucinho,
Ou fica na ratoeira.
Há pessoas muito altas
De nome ilustrado e sério
Porque o oiro tapa as faltas
Da moral e do critério.
Enquanto o homem pensar
Que vale mais que outro homem,
São como os cães a ladrar,
Não deixam comer, nem comem.
Quantas sedas aí vão,
Quantos brancos colarinhos,
São pedacinhos de pão,
Roubados aos pobrezinhos!
205
Sem que o discurso eu pedisse,
Ele falou; e eu escutei.
Gostei do que ele não disse;
Do que disse não gostei.
GLOSAS
Morre o pobre e nem caixão
Vai no esquife, que desgraça!
Para o cemitério passa
Sem padre nem sacristão!...
Quem fará esta exceção?...
Se é Deus que rege os destinos
Dos grandes e pequeninos,
E todos são filhos seus...
Pra desmentir esse Deus,
Morre o rico, dobram sinos.
Diz, padre, que leis são essas
Que servem pra ti somente...
Tu confessas toda a gente
E à gente não te confessas...
Diz por que tanto te interessas
Nesses segredos que encobres,
Porque é que não te descobres
Nos jornais ou num sermão,
Dizendo porque razão
Morre o pobre e não há dobres?
Só os ricos são gerados,
Dessa Virgem, desse Deus?...
Só eles são filhos seus
E os pobres são enteados?...
Padre, tu só tens cuidados
Com os ricos, teus compadres,
Que deixam ir as comadres
Esmolinhas oferecer
A Deus, sem ninguém saber...
Que Deus é esse dos Padres?...
Qual é o Deus que autoriza,
Ao rico, mil esplendores,
E aos pobres trabalhadores,
206
Nem pão, nem lar, nem camisa?...
Manda, pra quem não precisa,
O oiro, a prata e os cobres,
Palácios, honras de nobres!...
E eu, triste farrapo humano,
Julgo esse Deus um tirano,
Que não faz caso dos pobres
SAUDADES
Saudades de amor, são penas
Que nascem do coração...
E como as penas das aves,
Quantas mais, mais brandas são!
Meu coração fez um ninho
Como o das aves perfeito,
Juntando todas as penas
De que ele me encheu o peito...
E nesse ninho, a sonhar
Dorme, assim, horas serenas,
Como dorme um passarinho
Sobre o seu ninho de penas.
DESENCANTO
Teus olhos, cuja luz
Já me envolveu d'amor o coração
E doirou minha cruz
Do seu divino e mágico clarão...
Teus olhos, cuja graça
Já em risos passou por sobre mim,
Como pelo ermo passa
A Luz a desfolhar-se, - alvo jasmim...
Teus olhos, cujo pranto
Por mim já derramaste, quando ausente,
Cheia de dor e encanto,
Choravas de saudade, aflitamente...
207
Teus olhos, esses sóis
que eu adorava como o persa adora
O sol entre arrebois...
- O meu Norte, o meu Dia, a minha Aurora!
Teus olhos... porque os vi
Fitando uns outros que não são os meus,
De todo os esqueci...
E assim manchaste tu esses dois céus!...
SONETO
Tão triste eu ando já, e descontente,
Que meus olhos de todo se fecharam
A visão radiosa que sonharam...
- Um lar, um ninho, e um amor ardente...
Gastei a Mocidade loucamente,
E a alma, ou a perdi, ou m'alevaram,
Enquanto a delirar juntos andaram
Cantando amores, coração e mente...
E andando assim da Fé tão apartado,
E tão sozinho nesta solidão
De quem descrente vive do que amou.
Sou qual um tú'mlo vazio e abandonado,
só encerrando a mesma escuridão...
Sepulcro de mim próprio, eis o que sou.
208
BOCAGE
(1765–1805)
LITERATURA PORTUGUESA
SONETO DE TODAS AS PUTAS
Não lamentes, ó Nize, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putíssimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas têm reinado;
Dido foi puta, e puta de um soldado;
Cleópatra por puta alcançou a coroa;
Tu, Lucrécia, com toda a tua proa,
O teu cono não passa por honrado: (cona)
Essa da Rússia imperatriz famosa,
Que ainda há pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil piças expirou vaidosa;
Todas no mundo dão a sua greta;
Não fiques pois, ó Nize, duvidosa
Que isso de virgem e honra é tudo peta.
SONETO DE TODOS OS CORNOS
Não lamentes, Alcino, o teu estado,
Corno tem sido muita gente boa;
Corníssimos fidalgos tem Lisboa,
Milhões de vezes cornos têm reinado.
209
Siceu foi corno, e corno de um soldado;
Marco António por corno perdeu coroa;
Anfitrião com toda a sua proa
Na fábula não passa por honrado;
Um rei Fernando foi cabrão famoso
(Segundo a antiga letra da gazeta)
E entre mil cornos expirou vaidoso;
Tudo no mundo está sujeito à greta;
Não fiques mais, Alcino, duvidoso,
Pois isto de ser corno é tudo peta.
SONETO DA COPULA CANINA
Quando no estado natural vivia
Metida pelo mato a espécie humana,
Ai da gentil menina desumana,
Que à força a greta virginal abria!
Entrou o estado social um dia;
Mandou a lei que o irmão não foda a mana,
É crime até chuchar uma sacana,
E pesa a excomunhão na sodomia;
Quanto, lascivos cães, sois mais ditosos!
Se na igreja gostais de uma cachorra,
Lá mesmo, perante o altar, fodeis gostosos;
Enquanto a linda moça, feita zorra,
Voltando a custo os olhos voluptuosos,
Põe num altar a vista, a ideia em porra.
SONETO DO CARALHO DECADENTE
Com quem magoas o não digo! Eu nem te vejo,
Meu caralho infeliz! Tu, que algum dia
Na gaiteira amorosa filistria
Foste o regalo do meu pátrio Tejo!
Sem te importar o feminino pejo,
Atrás da mimosa virgem, que fugia,
210
Ficando a terna, fadigada Armia,
Lhe pegavas no coninho um beijo.
Hoje, canal de fétida remela,
O misantropo do país das bimbas,
Apenas olha a cândida donzela!
Deitado dos colhões sobre as tarimbas,
Só com a memória em feminil canela
Às vezes pívia casual cachimbas.
SONETO DA DAMA A CAGAR
Cagando estava a dama mais formosa,
E nunca se viu cu de tanta alvura;
Porém ver cagar a formosura
Mete nojo à vontade mais gulosa!
Ela a massa expulsou fedentinosa
Com algum custo, porque estava dura;
Uma carta de amor de limpadura
Serviu àquela parte malcheirosa;
Ora mandem à moça mais bonita
Um escrito de amor que lisonjeiro
Afetos move, corações incita;
Para o ir ver servir de reposteiro
À porta, onde o fedor, e a trampa habita,
Do sombrio palácio do alcatreiro!
SONETO DO VELHO ESCANDALOSO
Tu, ó demente velho descarado,
Escândalo do sexo masculino,
Que por alta justiça do Destino
Tens o impotente membro decepado!
Tu, que, em torpe furor incendiado
Sofres de ímpia paixão ardor maligno,
E a consorte gentil, de que és indigno,
Entregas a infrutífero castrado!
211
Tu, que tendo bebido o menstruo imundo,
Esse amor indiscreto te não gasta
De ímpia mulher o orgulho furibundo!
Em castigo do vício, que te arrasta,
Saiba a ínclita Lísia, e todo o mundo
Que és vil por gênio, que és cabrão, e basta.
SONETO DA DONZELA ANSIOSA
Deitada donzela em fofo leito,
Deixando erguer a virginal camisa,
Sobre as roliças coxas se divisa
Entre sombras subtis, o pachacho estreito.
De louro pelo um círculo imperfeito
Os papudos beicinhos lhe matiza;
E a branca crica, nacarada e lisa,
Em pingos verte alvo licor desfeito.
A voraz piça as guelras encrespando
Arruma a focinheira, e entre gemidos
A moça treme, os olhos requebrados.
Como é ainda boçal, perde os sentidos.
Porém vai com tal ânsia trabalhando,
Que os homens é que vêm a ser fodidos.
SONETO DA ESCULTURA ESCANDALOSA
Um esquentado frisão, brutal masmarro
Girava em Santarém na pobre feira;
Eis que olha ao longe em Couva Ceira
Os seus bons irmãos seráficos de barro;
O bruto, que atira um boi de carro
Na carranca feroz, parte à carreira,
Os sagrados bonecos escaqueira,
E arranca de ufania um longo escarro.
Na alma o santo furor lhe arqueja, e berra;
212
Mas vós enchei-vos de íntimo alvoroço,
Povos, que do frio sofreis a guerra;
Que dos bonzos de barro o vil destroço
É presságio talvez de irem por terra
Membrudos fradalhões de carne e osso!
SONETO DA COPULA ESCULPIDA
Nesta, cuja memória esquece à Fama,
Feira, que de Santarém vem de ano em ano,
Jazia com uma freira um franciscano;
Eram de barro os dois, de barro a cama;
Com a mão, que à virgindade injúrias trama,
Pretendia o cabrão ferrar-lhe o pano;
Eis que um negro barrasco, um tal Frei Tutano
O espetáculo vê, e os rins lhe inflama;
"Irra! Vens-me atiçar, gente danada!
Não basta a felpa dos buréis opacos,
Com que a carne rebelde anda ralada?"
"Fora, vis tentações, fora, velhacos!..."
Disse, e ao ríspido som de atroz patada
O escandaloso par converte-se em cacos.
SONETO DO PRAZER MAIOR
Amar dentro do peito uma donzela;
Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;
Falar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia-noite na janela.
Fazê-la vir abaixo, e com cautela
Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertá-la nos braços casta e bela;
Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,
E a boca, com prazer o mais jucundo,
Apalpar-lhe de leve os dois pimpolhos;
213
Vê-la rendida enfim a Amor fecundo;
Ditoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto que há no mundo.
214
BRASÍLIO MACHADO
(1848—1919)
LITERATURA BRASILEIRA
FLOR NO GELO
Pobre criança! entre espinhos
tua inocência agoniza:
o viajante repisa
a morta flor dos caminhos.
Deixaste em noite sombria
tua grinalda ao relento...
Das flores... nem sabe o vento
que uma a uma as partia!
Enquanto em languido riso
teus lábios puros se abriam
aos sonhos que reviviam
delícias do paraíso,
tu nem cismavas, criança,
que quando a virgem fenece,
a estrela que desaparece
leva consigo a esperança!
Pobre! na alegre devesa
daquela casinha branca
onde tu' irmã, na barranca
do rio, chora em tristeza,
o campo flor não promete,
tudo na dor se consome;
215
e o eco esquece teu nome...
nem tua mãe o repete!
A mãe! que noites sem sono!
que mágoas naqueles dias!
que terríveis agonias
na dor d’aquele abandono!
Mas, oh! não voltes... O inverno
queimou-te as azas depressa:
e onde a irmãzinha adormeça
no casto seio materno,
não deves buscar asilo;
porque a ramagem do espinho
pode estreitar o berçinho
que se balança tranquilo!
Bem sei: — há quedas imensas
que uma lágrima resgata;
mas não sei, pobre insensata,
se revivem mortas crenças...
Se assim for, chora, criança!
talvez do pranto que caia
Deus forme a flor d'onde saia
o aroma de uma esperança!
AVE DOURADA
(N. MARTIN, Mariska)
Um pássaro cantava
sobre um ramo que flórido alvejava.
Era uma ave tão de ouro
que disseram-na — filha peregrina
do sol, o amante louro.
Como ao toque uma lamina que vibra,
á sua voz cristalina
tremia o coração, fibra por fibra.
E á minh'alma a esperança intumescia
216
de sonhos... mas o encanto se esvaía.
Ai! quando o verei mais, funda saudade!
o pássaro de luz da mocidade!
NA VALSA
(MÉRY)
— Uma hora.
— A pêndula mente,
meia-noite vai soar.
— Que baile este atraente!
— Soberba festa, senhora,
festa completa, nesta hora
em que estamos a valsar.
— Acha a toilette — brilhante
daquela loura mulher?
— Oh! neste suave instante
não se desprendem, sequer,
meus olhos de uma valsante
que é formosa a mais não ser.
— Não agradou-lhe o romance
cantado tão bem aqui?
— Só vivo quando valsamos...
portanto nada eu ouvi.
— Esta valsa que dançamos
é de Strauss?
— Talvez... depois
toda a valsa é tão bonita!
marca o tempo só p'ra dois!
— Neste inverno há muitos bailes...
— Eu não não frequento, não:
passo a noite ou nos teatros
ou no lar junto ao fogão.
— Tão moço! e já de neve
a mocidade cobris?
217
— Tenho trint'anos. Passada
a primavera dourada,
apenas cai-me esfolhada
alguma hora feliz.
— A idéia é nova!
— Tenho outra
que é também nova p'ra mim.
— Não é segredo?
— Suspeito
que vós sois viúva...
— Sim.
— E desde quando?
— há dois anos.
— E gosta da viuvez?
— Sim.
— Porque é repelente
um laço eterno, talvez...
O esposo é pouco indulgente...
— Pensai-o, se assim quereis.
— Não, a viuvez não lhe agrada;
seu sorriso assim m'o diz...
— Também só, me custa a vida:
podemos, pois, de dois males
formar destino feliz.
Assim, dá-me a sua mão?
— A minha?
— Sim; nosso estado
não impede uma união.
Seus pais...
— São vivos.
— Qu'importa?
eles jamais poderão
contrariar o destino.
Vivos, na morte eles 'stão.
— Foi seu pedido — apressado!
— Não estamos no país
da Escócia; e todo noivado
de Lamermoor é infeliz...
Não faremos festa alguma
de esponsais: — em bons caminhos
218
não ponho o pé nos espinhos.
Casaremos amanhã...
— Amanhã?
— Ou nunca!
— Estranho
caso igual inda não vi.
— Que tem? é cousa mais simples
que pôr um ponto no i.
— Como se chama?
— Meu nome?
Pedro ou Paulo, qual quiser.
Qu'importa o nome de um moço?
sem ter um, mais posso ter.
Sou rico. Minha fortuna
não é mesquinha, nem van:
consta de ações e de apólices...
Findou a valsa.
— Amanhã.
REMINISCÊNCIAS
Oh! não toqueis assim nesse piano...
Essa música é triste como a morte:
as notas se desprendem, como a lágrima
goteja sobre um túmulo.
A corda chora, e no contacto sente
uma outra mão que não a dele... morto.
E ao retrair-se deixa um som que é lúgubre,
ou um gemido trêmulo.
Foi seu canto de cisne... Pobre amigo!
nunca pensara desfolhar tão cedo
o risonho porvir, e cedo á glória
prender um laço fúnebre.
Não pensara deixar tão cedo a estrada
cuja poeira os louros escondiam,
e trocar as grinaldas estelíferas
pelos goivos funéreos.
219
Não evoqueis a sombra! no cipreste
a rola da saudade geme ainda.
A aza do tempo sobre o mármore gélido
não apagou seu dístico.
E é tão doída essa saudade imensa,
que eu vos peço, senhora: do piano
não arranqueis esse gemido extremo.
Não aperteis a cicatriz que doe-me
contra a laje de um túmulo!
220
BRUNO SEABRA
(1837—1876)
LITERATURA BRASILEIRA
ÀS RAPARIGAS
Travessas, formosas, gentis raparigas,
Meus lindos romances atentas ouvi:
Nasci sobre as ondas das águas do norte,
E as verdes florestas do norte corri.
Do rio — gigante — que tira o seu nome
Daquelas guerreiras dos tempos d'além,
À margem virente colhi muitos frutos,
E flores, e riscos, e... beijos também!
Aos pés das cascatas, em tardes serenas,
Ao som dos ruídos das águas, — cismei;
Que cismas de crenças! que sóis d’esperanças!
Que ar de baunilha que ali respirei!
Corri pelas veigas atrás dos galheiros,
Os méis das abelhas nos montes bebi;
E à sombra dos cedros altivos, copados,
As sestas, saudosas, nas redes dormi.
Ao pino e aos raios do sol que mais queima,
Perdido nas brenhas de incultos sertões,
Lutei braço a braço co’as onças feroces,
Mais bravas, mais feras que os próprios leões!
221
Delgado, flexível, meu corpo mimoso,
Nas tardes calmosas do sol do Equador,
Nos lagos, nos rios nadava boiando,
Por entre as gaivotas, das águas à flor.
Em noites de lua, ao lar das choupanas,
Ouvi dos sertanos as rudes canções;
E as lendas de amores das filhas das selvas,
E os ternos segredos de seus corações.
Nas matas, mirei-me nas águas das fontes,
Que imagem faceira nas águas sorria!...
Atentas ouvi-me, gentis raparigas,
Dizei-me, travessas, se o espelho mentia.
Meus olhos castanhos, sisudos, traquinas,
Têm fogo, têm brilho, têm lhana expressão!
Audaces, medrosos, esquivos, quietos...
Meus olhos, dizei-me: formosos não são?
Meus lábios... meus lábios pequenos, risonhos,
Uns longes tirando da cor do carmim,
Dos méis e perfumes das flores sedentos...
Pois há muitos lábios mimosos assim!...
E os negros cabelos, e as faces de jambo,
E os buços macios abrindo-se em flor?
E uns traços de triste que eu tenho na fronte,
E o sangue nas veias coando em fervor?...
E a boca tão breve... e as doces palavras,
E a idade viçosa as meiga estação?
E as minhas cantigas, e um peito que é terno,
E os muitos desejos do meu coração?...
Dizei-me, travessas, gentis raparigas,
Dizei-me, formosas, se o espelho mentia?
Tão cheio de dotes e os dotes tão raros,
Não era galante o retrato que via?
Pois bem; das florestas, das matas virentes,
A mão da ventura me trouxe até aqui;
Perdido entre as gentes, perdi-me de amores,
Por todos os olhos das moças que vi...
222
E eu ando perdido com os dotes que tenho...
Que sina! que pena! que triste condão!
Se dentre vós uma quisesse se noiva...
Que noivo eu dera, e aí, que noivo então!...
É tempo, e inda há tempo! — é fero destino
Perderem-se dotes tão raros assim!
Se dentre vós — uma quiser um marido,
Me escreva uma carta dizendo — que sim.
O CALOTE
(Imitação do francês)
Saí da oficina
Inda não era o sol posto:
Em meio ao caminho encontrei
Trigueira, gentil menina
Toda inteira de meu gosto:
Fui — junto dela parei.
Tomei-lhe as mãos trigueirinhas,
(Que macias mãos aquelas!)
Beijei-as com frenesi...
— De todas as moreninhas,
Lhe disse, de todas elas
És a mais linda que vi!
— Vamos aos bosques, morena?
Vamos ver os arvoredos,
Que muitos há para ver!
A tarde vai tão serena...
E eu tenho tantos segredos
Que t’os queria dizer...
Fui-lhe do braço travando,
Sem mostrar constrangimento,
Que eu a levasse deixou;
Porém, aos bosques chegando,
Com ares de sofrimento,
Em pranto se desatou.
— Que tens, por que choras, bela?
223
Eu não te fiz resistência,
Tu mesma o podes dizer?...
— Ai! soluçou, pobre dela!
Eu choro a minha inocência...
Que vais deitar a perder...—
— Esta bem, por Deus, não chores!
Não tocarei a inocência
que Deus manda respeitar;
Tornemos ao campo: as flores
Vai colher da adolescência,
Vai pelos campos saltar.
— Livre’stás, podes agora,
Lhe disse ao campo chegando,
Podes rir, podes brincar;
Vai ela, com voz sonora,
Negros olhos requebrando
Pôs-se zombando a cantar.
— Que tens p’ra cantar, trigueira?
Responde, por vida minha,
Que tens para assim cantar?
Respondeu: — A sua asneira!
Teve entre as mãos a galinha
E não soube depenar!...
MAL DE UM BEIJO
— Dá-me um beijo! pode um beijo
Deixar-me acaso senão?
Eu sei beijar tão leve...
Dá-me o beijo, Lídia?
— Não.
Mesquinha! pródigas outras
Quantos beijos aí dão?...
Não sejas pródiga, emb’ora,
Mas... um beijo ao menos?
— Não.
— Não te peço um sacrifício
Em paga d’este vulcão,
224
Que trago dentro do peito,
Dá-me um beijo em paga?
— Não.
— Inferno! Que amante és Lídia,
Pois sempre a dizer-me não,
Quando um beijo te suplico
Nos ardores da paixão?...
— Que me pedes para prova
De minha extrema paixão?
Vai dizendo, verás, Lídia,
Que não sei dizer-te — Não.
— Há de compor um romance,
Que fale somente em mim,
Que acima das moças todas
Me punha em beleza?
— Sim.
— Não há de deixar que eu viva
Por muitos meses assim
Aborreço o meu estado...
— Sim, Lídia, três vezes sim.
É toda a minha ventura
Casar-me, meu serafim;
Assim queiras... queres?
— Quero!
— Está dito... beijo?
— Sim!
***
E beijei-a... Mas o beijo
Arrefeceu-me a paixão...
Hei de compor-lhe o romance;
Mas casar com Lídia? — Não.
225
CAMILO CASTELO BRANCO
(1825—1890)
LITERATURA PORTUGUESA
A MAIOR DOR HUMANA
Que imensas agonias se formaram
sob os olhos de Deus! Sinistra hora
em que o homem surgiu! Que negra aurora,
que amargas condições o escravizaram!
As mãos, que um filho amado amortalharam,
erguidas buscam Deus. A Fé implora...
E o céu, que respondeu? As mãos baixaram
para abraçar a filha morta agora.
Depois um pai em trevas vai sonhando,
e apalpa as sombras deles onde os viu
nascer, florir, morrer! Desastre infando!
Ao teu abismo, pai, não vão confortos...
És coração que a dor empederniu,
sepulcro vivo de dois filhos mortos.
ALMA ATRIBULADA
O' alma atribulada, corta o laço
da torva angústia que te cinge à vida!
Vai, foge para Deus, ou para o espaço...
Ou nada ou Deus, que importa? eis-te remida.
226
Não tiveste na vida um dia escasso
de paz e de alegria! Escurecida
te foi sempre a existência, desvalida,
e cortada de abismos, passo a passo.
Vai! Não leves saudades do que deixas.
Se a fé em melhor mundo te preluz,
alma gemente, por que assim te queixas?
Desprende-te, a sorrir, da horrenda cruz
em que tanto penaste! Os olhos fechas?
Abre os d'alma, e verás que infinda luz.
ANEL
Dá-me um anel; mas que seja
Como o anel em que cingida
Tem gemido toda a minha vida.
Dá-me um anel; mas de ferro,
Negro, bem negro, da cor
Desta minha acerba dor,
Deste meu negro desterro!
Dá-me um anel; mas de ferro...
Sempre comigo hei-de tê-lo;
Há-de ser o negro elo,
Que me prenda à sepultura.
Quero-o negro...seja o estigma,
que decifre o escuro enigma,
Duma grande desventura.
Dá-me um anel; mas de ferro,
Que resista mais que os ossos
Dum cadáver aos destroços
Do roaz verme do pó.
Entre as cinzas alvacentas,
como espólio das tormentas
Apareça o ferro só.
E o teu nome impresso nele,
Falará dum grande amor,
Nutrido em ânsias de dor,
227
Pelo fel da sociedade...
Que teu nome nele escrito,
Nesse padrão infinito,
Vá comigo à Eternidade.
O SEGREDO DE SALVAR-ME PELO AMOR
Quem há aí que possa o cálix
De meus lábios apartar?
Quem, nesta vida de penas,
Poderá mudar as cenas
Que ninguém pôde mudar?
Quem possui na alma o segredo
De salvar-me pelo amor?
Quem me dará gota de água
Nesta angustiosa frágua
De um deserto abrasador?
Se alguém existe na terra
Que tanto possa, és tu só!
Tu só, mulher, que eu adoro,
Quando a Deus piedade imploro,
E a ti peço amor e dó.
Se soubesses que tristeza
Enluta meu coração,
Terias nobre vaidade
Em me dar felicidade,
Que eu busquei no mundo em vão.
Busquei-a em tudo na terra,
Tudo na terra mentiu!
Essa estrela carinhosa
Que luz à infância ditosa
Para mim nunca luziu.
Infeliz desde criança
Nem me foi risonha a fé;
Quando a terra nos maltrata,
Caprichosa, acerba e ingrata,
Céu e esperança nada é.
228
Pois a ventura busquei-a
No vivo anseio do amor,
Era ardente a minha alma;
Conquistei mais de uma palma
À custa de muita dor.
Mas estas palmas tais eram
Que, postas no coração,
Fundas raízes lançavam,
E nas lágrimas medravam
Com frutos de maldição.
Em ânsias de alma, a ventura
Nos dons da ciência busquei.
Tudo mentira! A ciência
Era um sinal de impotência
Da vã Razão que invoquei…
Era um brado, um testemunho
Do nada que o mundo é.
Quanto a minha mente erguia
Tudo por terra caía,
Só ficava Deus e a fé.
Lancei-me aos braços do Eterno
Com o fervor de infeliz;
Senti mais fundas as dores,
Mais agros os dissabores…
O próprio Deus não me quis!
Depois, no mundo, cercado
Só de angustias, divaguei
De um abismo a outro abismo
Pedindo ao louco cinismo
O prazer que não achei.
Tristes correram meus anos
Na infância que em todos é
Bela de crenças e amores,
Terna de risos e flores
Santa de esperança e de fé.
Assim negra me era a vida
Quando, ó luz da alma, te vi
229
Baixar do céu, onde outrora
Te busquei, mão redentora,
Procurando amparo em ti.
Serás tu a mão piedosa,
Que se estende entre escarcéus
Ao perdido naufragado?
Serás tu, ser adorado,
Um prêmio vindo dos céus?
E eu mereço-te, que imenso
Tem já sido o meu quinhão
De torturas não sabidas,
Com resignação sofridas
Nos seios do coração.
Que ternura e amor e afagos
Toda a vida te darei!
Com que jubilo e delírio,
Nova dor, novo martírio,
De ti vindo, aceitarei!
Se na terra um céu desejas
Como o céu que eu tanto quis,
Se d’um anjo a glória queres,
Serás anjo, se fizeres,
Contra o destino, um feliz.
Faz que eu veja nestas trevas
Um relâmpago de amor,
Que eu não morra sem que diga:
“Tive no mundo uma amiga,
Que entendeu a minha dor.
Deu-me ela o estro grande
Das memoráveis canções;
Acendeu-me a extinta chama
Da inspiração que inflama
Regelados corações.
Os segredos dos afetos
Que mais puros Deus nos deu,
Ensinou-mos ela um dia
230
Que de entre arcanjos descia
Com linguagem do céu.
Os mimosos pensamentos
Que, de mim soberbo, leio,
Inspirou-mos, deu-mos ela
Recostando a fronte bela
Sobre o meu ardente seio.
Morta estava a fantasia
Que o gelo da alma esfriou;
Tinha o espírito dormente,
Só no peito um fogo ardente,
Quando o céu me a deparou.
Agora morro no gozo
De uma saudade imortal.
Foi ditosa a minha sorte;
Amei, vivi: venha a morte,
Que morte ou vida é-me igual.
Igual, sim, que o amor profundo,
Como foi na terra o meu,
Não expira, é sempre vivo,
Sempre ardente e progressivo
Em perpétuo amor do céu”.
Assim, querida, meus lábios,
Já moribundos, dirão,
Nas agonias supremas,
Essas palavras extremas
Do meu ao teu coração.
Sabes quem é, neste mundo,
Quase igual ao Redentor?
É quem diz: “Sou adorada
Pela alma resgatada,
Por mim, das ânsias da dor.”
COMÉDIA HUMANA
Literatos! Chorai-me, que eu sou digno
Da vossa gemebunda e velha táctica!
231
Se acaso tendes crimes em gramática,
Farei que vos perdoe o Deus benigno.
Demais conheço a prosa inflada, enfática,
Com que chorais os mortos; e o maligno
Desafeto aos que vivem… Não me indigno…
Sei o que sois em teoria e em prática.
Quando o avô desta vã literatura
Garret, era levado á sepultura,
Viu-se a imprensa verter prantos sem fim…
Pois seis dos literatos mais magoados,
Saíram, nessa noite embriagados,
Da crapulosa tasca do Penim.
A OUTRA METADE
Quando este corpo meu esfacelado
Baixar á leiva úmida da cova,
Hão de os jornais carpir a infausta nova,
Taxando-me de sábio consumado.
Estalará na imprensa enorme brado,
Pedindo a ressurgência d’um Canova
Que a morta face em mármore renova
Para insculpir meu busto laureado.
E algum dos imbecis necrologistas,
Com soluçantes vozes de saudade,
Dirá em ricas frases nunca vistas:
“Esse gênio imortal, rei dos artistas,
No céu pede ao Senhor que a outra metade
Reparta por vocês, ó jornalistas!”
232
CAMILO PESSANHA
(1867—1926)
LITERATURA PORTUGUESA
NA CADEIA
na cadeia os bandidos presos!
o seu ar de contemplativos!
que é das feras de olhos acesos?!
pobres dos seus olhos cativos
passeiam mudos entre as grades,
parecem peixes num aquário.
- campo florido das saudades,
porque rebentas tumultuário?
serenos... serenos... serenos...
trouxe-os algemados a escolta.
- estranha taça de venenos
meu coração sempre em revolta.
coração, quietinho... quietinho...
porque te insurges e blasfemas?
pschiu... não batas... devagarinho...
olha os soldados, as algemas!
EU VI A LUZ EM UM PAÍS PERDIDO
Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
233
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...
AO LONGE OS BARCOS DE FLORES
(A Ovídio de Alpoim)
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
- Perdida voz que de entre as mais se exila,
- Festões de som dissimulando a hora
Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.
E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?
Só, incessante, um som de flauta chora...
CREPUSCULAR
Há no ambiente um murmúrio de queixume,
De desejos de amor, dais comprimidos...
Uma ternura esparsa de balidos,
Sente-se esmorecer como um perfume.
As madressilvas murcham nos silvados
E o aroma que exalam pelo espaço,
Tem delíquios de gozo e de cansaço,
Nervosos, femininos, delicados.
Sentem-se espasmos, agonias dave,
Inapreensíveis, mínimas, serenas...
- Tenho entre as mãos as tuas mãos pequenas,
O meu olhar no teu olhar suave.
As tuas mãos tão brancas danemia...
Os teus olhos tão meigos de tristeza...
234
- É este enlanguescer da natureza,
Este vago sofrer do fim do dia.
ESTÁTUA
Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, - frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.
Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.
E o meu ósculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre o mármore correcto
Desse entreaberto lábio gelado...
Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélago quieto.
VIDA
Choveu! E logo da terra humosa
Irrompe o campo das liliáceas.
Foi bem fecunda, a estação pluviosa!
Que vigor no campo das liliáceas!
Calquem. Recal-quem, não o afogam.
Deixem. Não calquem. Que tudo invadam.
Não as extinguem. Porque as degradam?
Para que as calcam? Não as afogam.
Olhem o fogo que anda na serra.
É a queimada... Que lumaréu!
Podem calcá-lo, deitar-lhe terra,
Que não apagam o lumaréu.
Deixem! Não calquem! Deixem arder.
Se aqui o pisam, rebenta além.
235
- E se arde tudo? - Isso que tem?
Deitam-lhe fogo, é para arder...
QUEM POLUIU
Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
Onde esperei morrer - meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?
Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear - tábua tosca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
- Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...
Ó minha pobre mãe!... Nem te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.
Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais,
Alma da minha mãe... Não andes mais à neve,
De noite a mendigar às portas dos casais.
INSCRIÇÃO
Eu vi a luz num país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Ó! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...
INTERROGAÇÃO
Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.
Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do Cântico dos Cânticos.
236
Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de Inverno.
Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro o olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.
Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.
EM UM RETRATO
De sob o cômoro quadrangular
Da terra fresca que me há de inumar,
E depois de já muito ter chovido,
Quando a erva alastrar com o olvido,
Ainda, amigo, o mesmo meu olhar
Há de ir humilde, atravessando o mar,
Envolver-te de preito enternecido,
Como o de um pobre cão agradecido.
VIOLA CHINESA
(A Wenceslau de Moraes)
Ao longo da viola morosa
Vai adormecendo a parlenda,
Sem que, amadornado, eu atenda
A lengalenga fastidiosa.
Sem que o meu coração se prenda,
Enquanto, nasal, minuciosa,
Ao longo da viola morosa,
Vai adormecendo a parlenda.
237
Mas que cicatriz melindrosa
Há nele, que essa viola ofenda
E faz que as asitas distenda
Numa agitação dolorosa?
Ao longo da viola, morosa...
PASSOU O OUTONO
(A Abel Aníbal de Azevedo)
Passou o outono já, já torna o frio...
- Outono de seu riso magoado.
Álgido inverno! Oblíquo o sol, gelado...
- O sol, e as águas límpidas do rio.
Águas claras do rio! Águas do rio,
Fugindo sob o meu olhar cansado,
Para onde me levais meu vão cuidado?
Aonde vais, meu coração vazio?
Ficai, cabelos dela, flutuando,
E, debaixo das águas fugidias,
Os seus olhos abertos e cismando...
Onde ides a correr, melancolias?
- E, refratadas, longamente ondeando,
As suas mãos translúcidas e frias...
PAISAGENS DE INVERNO
(A Alberto Osório de Castro)
Ó meu coração, torna para traz.
Onde vais a correr desatinado?
Meus olhos incendidos que o pecado
Queimou! Volvei, longas noites de paz.
Vergam da neve os olmos dos caminhos.
A cinza arrefeceu sobre o brasido.
Noites da serra, o casebre transido...
Cismai, meus olhos, como uns velhinhos.
Extintas primaveras, evocai-as.
238
Já vai florir o pomar das maceiras.
Hemos de enfeitar os chapéus de maias.
Sossegai, esfriai, olhos febris...
Hemos de ir a cantar nas derradeiras
Ladainhas...Doces vozes senis.
FLORIRAM POR ENGANO AS ROSAS BRAVAS
Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?
Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que num momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!
E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...
Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze - quanta flor! - do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?
VIOLONCELO
(A Carlos Amaro)
Chorai, arcadas
Do violoncelo,
Convulsionadas.
Pontes aladas
De pesadelo...
De que esvoaçam,
Brancos, os arcos.
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio os barcos.
239
Fundas, soluçam
Caudais de choro.
Que ruínas, ouçam...
Se se debruçam,
Que sorvedouro!
Lívidos astros,
Soidões lacustres...
Lemes e mastros...
E os alabastros
Dos balaústres!
Urnas quebradas.
Blocos de gelo!
Chorai, arcadas
Do violoncelo,
Despedaçadas...
QUEDA
(A João P. Vasco)
O meu coração desce,
Um balão apagado.
Melhor fora que ardesse
Nas trevas incendiado.
Na bruma fastidienta...
Como à cova um caixão.
Porque antes não rebenta
Rubro, numa explosão?
Que apego inda o sustem?
Atono, miserando.
Que o esmagasse o trem
De um comboio arquejando.
O inane, vil despojo.
Ó alma egoísta e fraca...
Trouxesse-o o mar de rojo.
240
Levasse-o na ressaca.
QUANDO?
Quando se erguerão as seteiras,
Outra vez, do castelo em ruína?
E haverá gritos e bandeiras
Na fria aragem matutina?
Se ouvirá tocar a rebate,
- Sobre a planície abandonada?
E partiremos ao combate,
De cota, e elmo, e a longa espada?
Quando iremos, tristes e sérios,
Nas prolixas e vãs contendas,
Lançando juras, impropérios,
Pelas divisas e legendas?
E voltaremos, - os antigos,
Os puríssimos lidadores,Quantos trabalhos e perigos!
Quase mortos e vencedores?
E quando, ó Doce Infanta Real,
Nos sorrirás do belveder?
Magra figura de vitral
Por quem nós fomos combater.
FONÓGRAFO
Vai declamando um cômico defunto.
Uma platéia ri, perdidamente,
Do bom jarreta... E há um odor no ambiente
A cripta e a pó, - do anacrônico assunto.
Muda o registro, eis uma barcarola:
Lírios, lírios, águas do rio, a lua.
Ante o Seu corpo o sonho meu flutua
Sobre um paul, - extática corola.
Muda outra vez: gorjeios, estribilhos
Dum clarim de oiro - o cheiro de junquilhos,
241
Vivido e agro! - tocando a alvorada...
Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas
Quebra-se agora orvalhada e velada.
Primavera. Manhã. Que eflúvio de violetas!
242
CASIMIRO DE ABREU
(1839—1860)
LITERATURA BRASILEIRA
NA REDE
Nas horas ardentes do pino do dia
Aos bosques corri;
E qual linda imagem dos castos amores,
Dormindo e sonhando cercada de flores
Nos bosques a vi!
Dormia deitada na rede de penas
- O céu por dossel,
De leve embalada no quieto balanço
Qual nauta cismando num lago bem manso
Num leve batel!
Dormia e sonhava - no rosto serena
Qual um serafim;
Os cílios pendidos nos olhos tão belos,
E a brisa brincando nos soltos cabelos
De fino cetim!
Dormia e sonhava - formosa embebida
No doce sonhar,
E doce e sereno num mágico anseio
Debaixo das roupas batia -lhe o seio
No seu palpitar!
Dormia e sonhava - a boca entreaberta,
O lábio a sorrir;
No peito cruzados os braços dormentes,
Compridos e lisos quais brancas serpentes
No colo a dormir!
243
Dormia e sonhava - no sonho de amores
Chamava por mim,
E a voz suspirosa nos lábios morria
Tão terna e tão meiga qual vaga harmonia
De algum bandolim!
Dormia e sonhava - de manso cheguei-me
Sem leve rumor;
Pendi-me tremendo e qual fraco vagido,
Qual sopro da brisa, baixinho ao ouvido
Falei-lhe de amor!
Ao hálito ardente o peito palpita...
Mas sem despertar;
E como nas ânsias dum sonho que é lindo,
A virgem na rede corando e sorrindo...
Beijou-me - a sonhar!
PRIMAVERAS
Primavera! juventud del anno,
Mocidad! primavera della vita.
METASTASIO
I
A primavera é a estação dos risos,
Deus fita o mundo com celeste afago,
Tremem as folhas e palpita o lago
Da brisa louca aos amorosos frisos.
Na primavera tudo é viço e gala,
Trinam as aves a canção de amores,
E doce e bela no tapiz das flores
Melhor perfume a violeta exala.
Na primavera tudo é riso e festa,
Brotam aromas do vergel florido,
E o ramo verde de manhã colhido
Enfeita a fronte da aldeã modesta.
A natureza se desperta rindo,
Um hino imenso a criação modula,
Canta a calhandra, a juriti arrula,
O mar é calmo porque o céu é lindo.
Alegre e verde se balança o galho,
Suspira a fonte na linguagem meiga,
Murmura a brisa: - Como é linda a veiga!
Responde a rosa: - Como é doce o orvalho!
244
II
Mas como às vezes sobre o céu sereno
Corre uma nuvem que a tormenta guia,
Também a lira alguma vez sombria
Solta gemendo de amargura um treno.
São flores murchas; - o jasmim fenece,
Mas bafejado s’erguerá de novo
Bem como o galho do gentil renovo
Durante a noite, quando o orvalho desce.
Se um amargo de ironia cheio
Treme nos lábios do cantor mancebo,
Em breve a virgem do seu casto enlevo
Dá-lhe um sorriso e lhe intumesce o seio.
Na primavera - na manhã da vida Deus às tristezas o sorriso enlaça,
E a tempestade se dissipa e passa
À voz mimosa da mulher querida.
Na mocidade, na estação fogosa,
Ama-se a vida a mocidade é crença,
E a alma virgem nesta festa imensa
Canta, palpita, s’extasia e goza.
AMOR E MEDO
I
Quando eu te fujo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, oh! bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
"Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!"
Como te enganas! meu amor é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela eu moço; tens amor eu medo!...
Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz da sombra, do silêncio ou vozes,
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.
O véu da noite me atormenta em dores,
A luz da aurora me intumesce os seios,
E ao vento fresco do cair das tardes
Eu me estremeço de cruéis receios.
É que esse vento que na várzea ao longe,
245
Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!
Ai! se abrasado crepitasse o cedro,
Cedendo ao raio que a tormenta envia,
Diz: que seria da plantinha humilde
Que à sombra dele tão feliz crescia?
A labareda que se enrosca ao tronco
Torrara a planta qual queimara o galho,
E a pobre nunca reviver pudera,
Chovesse embora paternal orvalho!
II
Ai! se eu te visse no calor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Soltos cabelos nas espáduas nuas!...
Ai! se eu te visse, Madalena pura,
Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos palpitante o seio!...
Ai! se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala a protestar baixinho...
Vermelha a boca, soluçando um beijo!...
Diz: que seria da pureza d’anjo,
Das vestes alvas, do cantor das asas?
Tu te queimaras, a pisar descalça,
Criança louca, sobre um chão de brasas!
No fogo vivo eu me abrasara inteiro!
Ébrio e sedento na fugaz vertigem
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!
Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço
Anjo enlodado nos pauís da terra.
Depois... desperta no febril delírio,
Olhos pisados como um vão lamento,
Tu perguntaras: qu’é da minha c’roa?...
Eu te diria: desfolhou - a o vento!...
***
246
Oh! não me chames coração de gelo!
Bem vês: traí - me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito,
És bela eu moço; tens amor, eu medo!...
DESEJO
Se eu soubesse que no mundo
Existia um coração,
Que só' por mim palpitasse
De amor em terna expansão;
Do peito calara as mágoas,
Bem feliz eu era então!
Se essa mulher fosse linda
Como os anjos lindos são,
Se tivesse quinze anos,
Se fosse rosa em botão,
Se inda brincasse inocente
Descuidosa no gazão;
Se tivesse a tez morena,
Os olhos com expressão,
Negros, negros, que matassem,
Que morressem de paixão,
Impondo sempre tiranos
Um jugo de sedução;
Se as tranças fossem escuras,
Lá castanhas é que não,
E que caíssem formosas
Ao sopro da viração,
Sobre uns ombros torneados,
Em amável confusão;
Se a fronte pura e serena
Brilhasse d'inspiração,
Se o tronco fosse flexível
Como a rama do chorão,
Se tivesse os lábios rubros,
Pé pequeno e linda mão;
Se a voz fosse harmoniosa
247
Como d'harpa a vibração,
Suave como a da rola
Que geme na solidão,
Apaixonada e sentida
Como do bardo a canção;
E se o peito lhe ondulasse
Em suave ondulação,
Ocultando em brancas vestes
Na mais branda comoção
Tesouros de seios virgens,
Dois pomos de tentação;
E se essa mulher formosa
Que me aparece em visão,
Possuísse uma alma ardente,
Fosse de amor um vulcão;
Por ela tudo daria...
— A vida, o céu, a razão!
POESIA E AMOR
A tarde que expira,
A flor que suspira,
O canto da lira,
Da lua o clarão;
Dos mares na raia
A luz que desmaia,
E as ondas na praia
Lambendo-lhe o chão;
Da noite a harmonia
Melhor que a do dia,
E a viva ardentia
Das águas do mar;
A virgem incauta,
As vozes da flauta,
E o canto do nauta
Chorando o seu lar;
Os trêmulos lumes,
Da fonte os queixumes,
E os meigos perfumes
248
Que solta o vergel;
As noites brilhantes,
E os doces instantes
Dos noivos amantes
Na lua de mel;
Do templo nas naves
As notas suaves,
E o trino das aves
Saudando o arrebol;
As tardes estivas,
E as rosas lascivas
Erguendo-se altivas
Aos raios do sol;
A gota de orvalho
Tremendo no galho
Do velho carvalho,
Nas folhas do ingá;
O bater do seio,
Dos bosques no meio
O doce gorjeio
Dalgum sabiá;
A órfã que chora,
A flor que se cora
Aos raios da aurora,
No albor da manhã;
Os sonhos eternos,
Os gozos mais ternos,
Os beijos maternos
E as vozes de irmã;
O sino da torre
Carpindo quem morre,
E o rio que corre
Banhando o chorão;
O triste que vela
Cantando à donzela
A trova singela
Do seu coração;
A luz da alvorada,
E a nuvem dourada
249
Qual berço de fada
Num céu todo azul;
No lago e nos brejos
Os férvidos beijos
E os loucos bafejos
Das brisas do sul;
Toda essa ternura
Que a rica natura
Soletra e murmura
Nos hálitos seus,
Da terra os encantos,
Das noites os prantos,
São hinos, são cantos
Que sobem a Deus!
Os trêmulos lumes,
Da veiga os perfumes,
Da fonte os queixumes,
Dos prados a flor,
Do mar a ardentia
Da noite a harmonia,
Tudo isso é - poesia!
Tudo isso é - amor!
QUANDO TU CHORAS
Quando tu choras, meu amor, teu rosto
Brilha formoso com mais doce encanto,
E as leves sombras de infantil desgosto
Tornam mais belo o cristalino pranto.
Oh! nessa idade da paixão lasciva
Como o prazer, é o chorar preciso:
Mas breve passa - qual a chuva estiva E quase ao pranto se mistura o riso.
É doce o pranto de gentil donzela,
É sempre belo quando a virgem chora:
- Semelha a rosa pudibunda e bela
Toda banhada do orvalhar da aurora.
Da noite o pranto, que tão pouco dura,
250
Brilha nas folhas como um rir celeste,
E a mesma gota transparente e pura
Treme na relva que a campina veste.
Depois o sol, como sultão brilhante,
De luz inunda o seu gentil serralho,
E às flores todas - tão feliz amante Cioso sorve o matutino orvalho.
Assim, se choras, inda és mais formosa,
Brilha teu rosto com mais doce encanto:
- Serei o sol e tu serás a rosa...
Chora, meu anjo, - beberei teu pranto!
SAUDADES
Nas horas mortas da noite
Como é doce o meditar
Quando as estrelas cintilam
Nas ondas quietas do mar;
Quando a lua majestosa
Surgindo linda e formosa,
Como donzela vaidosa
Nas águas se vai mirar!
Nessas horas de silêncio,
De tristezas e de amor,
Eu gosto de ouvir ao longe,
Cheio de mágoa e de dor,
O sino do campanário
Que fala tão solitário
Com esse som mortuário
Que nos enche de pavor.
Então — proscrito e sozinho —
Eu solto aos ecos da serra
Suspiros dessa saudade
Que no meu peito se encerra.
Esses prantos de amargores
São prantos cheios de dores:
— Saudades — dos meus amores,
— Saudades — da minha terra!
251
SONHANDO
Um dia, oh linda, embalada
Ao canto do gondoleiro,
Adormeceste inocente
No teu delírio primeiro,
- Por leito o berço das ondas,
Meu colo por travesseiro!
Eu, pensativo, cismava
Nalgum remoto desgosto,
Avivado na tristeza
Que a tarde tem, ao sol-posto,
E ora mirava as nuvens,
Ora fitava teu rosto.
Sonhavas então, querida,
E presa de vago anseio
Debaixo das roupas brancas
Senti bater o teu seio,
E meu nome num soluço
À flor dos lábios te veio!
Tremeste como a tulipa
Batida do vento frio...
Suspiraste como a folha
Da brisa ao doce cicio...
E abriste os olhos sorrindo
Às águas quietas do rio!
Depois - uma vez - sentados
Sob a copa do arvoredo,
Falei-te desse soluço
Que os lábios abriu-te a medo...
- Mas tu, fugindo, guardaste
Daquele sonho o segredo!...
UMA HISTÓRIA
A brisa dizia à rosa:
- "Dá, formosa,
Dá-me, linda, o teu amor;
252
Deixa eu dormir no teu seio
Sem receio,
Sem receio minha flor!
Da tarde virei da selva
Sobre a relva
Os meus suspiros te dar;
E de noite na corrente
Mansamente
Mansamente te embalar!" E a rosa dizia à brisa:
- "Não precisa
Meu seio dos beijos teus;
Não te adoro... és inconstante...
Outro amante,
Outro amante aos sonhos meus!
Tu passas de noite e dia
Sem poesia
A repetir-me os teus ais;
Não te adoro... quero o Norte
Que é mais forte
Que é mais forte e eu amo mais!" No outro dia a pobre rosa
Tão vaidosa
No hastil se debruçou;
Pobre dela! - Teve a morte
Porque o Norte
Porque o Norte a desfolhou!...
CLARA
Não sabes, Clara, que pena
eu teria se — morena
tu fosses em vez de clara!
Talvez... quem sabe... não digo...
mas refletindo comigo
talvez nem tanto te amara!
A tua cor é mimosa,
brilha mais da face a rosa
253
tem mais graça a boca breve.
O teu sorriso é delírio...
És alva da cor do lírio,
és clara da cor da neve!
A morena é predileta,
mas a clara é do poeta:
assim se pintam arcanjos.
Qualquer, encantos encerra,
mas a morena é da terra
enquanto a clara é dos anjos!
Mulher morena é ardente:
prende o amante demente
nos fios do seu cabelo;
— A clara é sempre mais fria,
mas dá-me licença um dia
que eu vou arder no teu gelo!
A cor morena é bonita,
mas nada, nada te imita
nem mesmo sequer de leve.
— O teu sorriso é delírio...
És alva da cor do lírio,
és clara da cor da neve!
EU NASCI ALÉM DOS MARES
Eu nasci além dos mares:
Os meus lares,
Meus amores ficam lá!
— Onde canta nos retiros
Seus suspiros,
Suspiros o sabiá!
Oh que céu, que terra aquela,
Rica e bela
Como o céu de claro anil!
Que seiva, que luz, que galas,
Não exalas
Não exalas, meu Brasil!
Oh! que saudades tamanhas
254
Das montanhas,
Daqueles campos natais!
Daquele céu de safira
Que se mira,
Que se mira nos cristais!
Não amo a terra do exílio,
Sou bom filho,
Quero a pátria, o meu país,
Quero a terra das mangueiras
E as palmeiras,
E as palmeiras tão gentis!
Como a ave dos palmares
Pelos ares
Fugindo do caçador;
Eu vivo longe do ninho,
Sem carinho;
Sem carinho e sem amor!
Debalde eu olho e procuro...
Tudo escuro
Só vejo em roda de mim!
Falta a luz do lar paterno
Doce e terno,
Doce e terno para mim.
Distante do solo amado
— Desterrado —
A vida não é feliz.
Nessa eterna primavera
Quem me dera,
Quem me dera o meu país!
O QUE É - SIMPATIA
(A uma menina)
Simpatia - é o sentimento
Que nasce num só momento,
Sincero, no coração;
São dois olhares acesos
Bem juntos, unidos, presos
Numa mágica atração.
255
Simpatia - são dois galhos
Banhados de bons orvalhos
Nas mangueiras do jardim;
Bem longe às vezes nascidos,
Mas que se juntam crescidos
E que se abraçam por fim.
São duas almas bem gêmeas
Que riem no mesmo riso,
Que choram nos mesmos ais;
São vozes de dois amantes,
Duas liras semelhantes,
Ou dois poemas iguais.
Simpatia - meu anjinho,
É o canto do passarinho,
É o doce aroma da flor;
São nuvens dum céu d'Agosto,
É o que m'inspira teu rosto...
- Simpatia - é - quase amor!
MEUS OITO ANOS
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
— Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é — lago sereno,
O céu — um manto azulado,
O mundo — um sonho dourado,
A vida — um hino d'amor!
Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
256
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!
Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
— Pés descalços, braços nus
— Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!
................................
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
— Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
A sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!
257
CASTRO ALVES
(1847—1871)
LITERATURA BRASILEIRA
AS DUAS FLORES
São duas flores unidas
São duas rosas nascidas
Talvez do mesmo arrebol,
Vivendo,no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penas
das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.
Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
258
Na verde rama do amor!
AMAR E SER AMADO
Amar e ser amado! Com que anelo
Com quanto ardor este adorado sonho
Acalentei em meu delírio ardente
Por essas doces noites de desvelo!
Ser amado por ti, o teu alento
A bafejar-me a abrasadora frente!
Em teus olhos mirar meu pensamento,
Sentir em mim tu’alma, ter só vida
P’ra tão puro e celeste sentimento
Ver nossas vidas quais dois mansos rios,
Juntos, juntos perderem-se no oceano,
Beijar teus labios em delírio insano
Nossas almas unidas, nosso alento,
Confundido também, amante, amado
Como um anjo feliz... que pensamento!?
O LAÇO DE FITA
Não sabes, criança? 'Stou louco de amores...
Prendi meus afetos, formosa Pepita.
Mas onde? No templo, no espaço, nas névoas?!
Não rias, prendi-me
Num laço de fita.
Na selva sombria de tuas madeixas,
Nos negros cabelos da moça bonita,
Fingindo a serpente qu'enlaça a folhagem,
Formoso enroscava-se
O laço de fita.
Meu ser, que voava nas luzes da festa,
Qual pássaro bravo, que os ares agita,
Eu vi de repente cativo, submisso
Rolar prisioneiro
Num laço de fita.
E agora enleada na tênue cadeia
Debalde minh'alma se embate, se irrita...
259
O braço, que rompe cadeias de ferro,
Não quebra teus elos,
Ó laço de fita!
Meu Deus! As falenas têm asas de opala,
Os astros se libram na plaga infinita.
Os anjos repousam nas penas brilhantes...
Mas tu... tens por asas
Um laço de fita.
Há pouco voavas na célere valsa,
Na valsa que anseia, que estua e palpita.
Por que é que tremeste? Não eram meus lábios...
Beijava-te apenas...
Teu laço de fita.
Mas ai! findo o baile, despindo os adornos
N'alcova onde a vela ciosa... crepita,
Talvez da cadeia libertes as tranças
Mas eu... fico preso
No laço de fita.
Pois bem! Quando um dia na sombra do vale
Abrirem-me a cova... formosa Pepital
Ao menos arranca meus louros da fronte,
E dá-me por c'roa...
Teu laço de fita.
O "ADEUS" DE TERESA
A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus
E amamos juntos E depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala
E ela, corando, murmurou-me: "adeus."
Uma noite entreabriu-se um reposteiro...
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus
Era eu Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa
260
E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"
Passaram tempos séc'los de delírio
Prazeres divinais gozos do Empíreo
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse - "Voltarei! descansa!... "
Ela, chorando mais que uma criança,
Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"
Quando voltei era o palácio em festa!
E a voz d'Ela e de um homem lá na orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei! Ela me olhou branca surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!
E ela arquejando murmurou-me: "adeus!"
A CANÇÃO DO AFRICANO
Lá na úmida senzala,
Sentado na estreita sala,
Junto ao braseiro, no chão,
Entoa o escravo o seu canto,
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão...
De um lado, uma negra escrava
Os olhos no filho crava,
Que tem no colo a embalar...
E à meia voz lá responde
Ao canto, e o filhinho esconde,
Talvez pra não o escutar!
"Minha terra é lá bem longe,
Das bandas de onde o sol vem;
Esta terra é mais bonita,
Mas à outra eu quero bem!
"O sol faz lá tudo em fogo,
Faz em brasa toda a areia;
Ninguém sabe como é belo
261
Ver de tarde a papa-ceia!
"Aquelas terras tão grandes,
Tão compridas como o mar,
Com suas poucas palmeiras
Dão vontade de pensar...
"Lá todos vivem felizes,
Todos dançam no terreiro;
A gente lá não se vende
Como aqui, só por dinheiro".
O escravo calou a fala,
Porque na úmida sala
O fogo estava a apagar;
E a escrava acabou seu canto,
Pra não acordar com o pranto
O seu filhinho a sonhar!
***
O escravo então foi deitar-se,
Pois tinha de levantar-se
Bem antes do sol nascer,
E se tardasse, coitado,
Teria de ser surrado,
Pois bastava escravo ser.
E a cativa desgraçada
Deita seu filho, calada,
E põe-se triste a beijá-lo,
Talvez temendo que o dono
Não viesse, em meio do sono,
De seus braços arrancá-lo!
MATER DOLOROSA
Meu Filho, dorme, dorme o sono eterno
No berço imenso, que se chama - o céu.
Pede às estrelas um olhar materno,
Um seio quente, como o seio meu.
Ai! borboleta, na gentil crisálida,
262
As asas de ouro vais além abrir.
Ai! rosa branca no matiz tão pálida,
Longe, tão longe vais de mim florir.
Meu filho, dorme Como ruge o norte
Nas folhas secas do sombrio chão!
Folha dest'alma como dar-te à sorte?
É tredo, horrível o feral tufão!
Não me maldigas... Num amor sem termo
Bebi a força de matar-te a mim
Viva eu cativa a soluçar num ermo
Filho, sê livre... Sou feliz assim...
- Ave - te espera da lufada o açoite,
- Estrela - guia-te uma luz falaz.
- Aurora minha - só te aguarda a noite,
- Pobre inocente - já maldito estás.
Perdão, meu filho... se matar-te é crime
Deus me perdoa... me perdoa já.
A fera enchente quebraria o vime...
Velem-te os anjos e te cuidem lá.
Meu filho dorme... dorme o sono eterno
No berço imenso, que se chama o céu.
Pede às estrelas um olhar materno,
Um seio quente, como o seio meu.
O NAVIO NEGREIRO
(TRAGÉDIA NO MAR)
‘Stamos em pleno mar… Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm… cansam
Como turba de infantes inquieta.
‘Stamos em pleno mar… Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro…
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro…
‘Stamos em pleno mar… Dois infinitos
263
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes…
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?…
‘Stamos em pleno mar... Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas…
Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.
Bem feliz quem ali pode nest’hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento…
E no mar e no céu — a imensidade!
Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!
Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!
Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia,
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia…
***
Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!
Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviatã do espaço,
264
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.
II
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.
Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!
O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir...
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!
Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu…
Nautas de todas as plagas,
265
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu!…
III
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais … inda mais… não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí… Que quadro d’amarguras!
É canto funeral! … Que tétricas figuras! …
Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!
IV
Era um sonho dantesco… o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros… estalar de açoite…
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar…
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais …
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos… o chicote estala.
E voam mais e mais…
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
266
“Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!…”
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais…
Qual um sonho dantesco as sombras voam!…
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!…
V
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?…
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa…
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!…
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus…
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão…
267
São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe… bem longe vêm…
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N’alma — lágrimas e fel…
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis…
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus …
…Adeus, ó choça do monte,
…Adeus, palmeiras da fonte!…
…Adeus, amores… adeus!…
Depois, o areal extenso…
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos… desertos só…
E a fome, o cansaço, a sede…
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p’ra não mais s’erguer!…
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d’amplidão!
Hoje… o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar…
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar…
268
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder…
Hoje… cúm’lo de maldade,
Nem são livres p’ra morrer..
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute… Irrisão!…
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!…
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!…
VI
Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa… chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!…
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!…
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
269
Mas é infâmia demais! … Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!
A ATRIZ EUGÊNIA CÂMARA
No dia seguinte ao de uma vaia
sofrida no Teatro Santa Isabel, no
Recife.
Hoje estamos unidos a adorar-te
Tu és a nossa glória, a nossa fé,
Gravitar para ti é levantar-se,
Cair-te às plantas é ficar de pé!...
Ontem a infâmia te cobria de lama
Mas pra insultar-te se cobriu de pó!...
Miseráveis que ferem a fraqueza
De uma pobre mulher inerme, só!
Tu és tão grande como é grande o gênio
És tão brilhante como a própria luz,
Dentre os infames do calvário d'arte,
Tu foste o Cristo, foi o palco a cruz!...
Mas estamos unidos a adorar-te!
Tu és a nossa glória, a nossa fé!
Gravitar para ti é levantar-se,
Cair-te às plantas é ficar de pé!
NOITE DE AMOR
(RECITATIVO)
Passava a lua pelo azul do espaço
De teu regaço
A namorar o alvor!
Como era tema no seu brando lume...
Tive ciúme
De ver tanto amor.
Como de um cisne alvinitentes plumas
270
Iam as brumas
A vagar nos céus,
Gemia a brisa — perfumando a rosa —
Terna, queixosa
Nos cabelos teus.
Que noite santa! Sempre o lábio mudo
A dizer tudo
A suspirar paixão
De espaço a espaço — um fervoroso beijo
E após o beijo
E tu dizias — "Não!... "
Eu fui a brisa, tu me foste a rosa,
Fui mariposa
— Tu me foste a luz!
Brisa — beijei-te; mariposa — ardi-me,
E hoje me oprime
Do martírio a cruz
E agora quando na montanha o vento
Geme lamento
De infinito amor,
Buscando debalde te escutar as juras
Não mais venturas...
Só me resta a dor.
Seria um sonho aquela noite errante?...
Diz, minha amante!...
Foi real... bem sei...
Ai! não me negues... Diz-me a lua, o vento
Diz-me o tormento...
Que por ti penei!
O POVO AO PODER
Quando nas praças s'eleva
Do povo a sublime voz...
Um raio ilumina a treva
O Cristo assombra o algoz...
Que o gigante da calçada
Com pé sobre a barricada
Desgrenhado, enorme, e nu,
271
Em Roma é Catão ou Mário,
É Jesus sobre o Calvário,
É Garibaldi ou Kossuth.
A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor.
Senhor!... pois quereis a praça?
Desgraçada a populaça
Só tem a rua de seu...
Ninguém vos rouba os castelos
Tendes palácios tão belos...
Deixai a terra ao Anteu.
Na tortura, na fogueira...
Nas tocas da inquisição
Chiava o ferro na carne
Porém gritava a aflição.
Pois bem... nest’hora poluta
Nós bebemos a cicuta
Sufocados no estertor;
Deixai-nos soltar um grito
Que topando no infinito
Talvez desperte o Senhor.
A palavra! vós roubais-la
Aos lábios da multidão
Dizeis, senhores, à lava
Que não rompa do vulcão.
Mas qu'infâmia! Ai, velha Roma,
Ai, cidade de Vendoma,
Ai, mundos de cem heróis,
Dizei, cidades de pedra,
Onde a liberdade medra
Do porvir aos arrebóis.
Dizei, quando a voz dos Gracos
Tapou a destra da lei?
Onde a toga tribunícia
Foi calcada aos pés do rei?
Fala, soberba Inglaterra,
Do sul ao teu pobre irmão;
Dos teus tribunos que é feito?
272
Tu guarda-os no largo peito
Não no lodo da prisão.
No entanto em sombras tremendas
Descansa extinta a nação
Fria e treda como o morto.
E vós, que sentis-lhe o pulso
Apenas tremer convulso
Nas extremas contorções...
Não deixais que o filho louco
Grite "oh! Mãe, descansa um pouco
Sobre os nossos corações".
Mas embalde... Que o direito
Não é pasto do punhal.
Nem a patas de cavalos
Se faz um crime legal...
Ah! não há muitos setembros
Da plebe doem os membros
No chicote do poder,
E o momento é malfadado
Quando o povo ensanguentado
Diz: já não posso sofrer.
Pois bem! Nós que caminhamos
Do futuro para a luz,
Nós que o Calvário escalamos
Levando nos ombros a cruz,
Que do presente no escuro
Só temos fé no futuro,
Como alvorada do bem,
Como Laocoonte esmagado
Morreremos coroado
Erguendo os olhos além.
Irmãos da terra da América,
Filhos do solo da cruz,
Erguei as frontes altivas,
Bebei torrentes de luz...
Ai! soberba populaça,
Rebentos da velha raça
Dos nossos velhos Catões,
Lançai um protesto, é povo,
Protesto que o mundo novo
273
Manda aos tronos e às nações.
AMÉRICA
Acorda a pátria e vê que é pesadelo
O sonho da ignomínia que ela sonha!
Tomás Ribeiro
À Tépida sombra das matas gigantes,
Da América ardente nos pampas do Sul,
Ao canto dos ventos nas palmas brilhantes,
À luz transparente de um céu todo azul,
A filha das matas — cabocla morena —
Se inclina indolente sonhando talvez!
A fronte nos Andes reclina serena.
E o Atlântico humilde se estende a seus pés.
As brisas dos cerros ainda lhe ondulam
Nas plumas vermelhas do arco de avós,
Lembrando o passado seus seios pululam,
Se a onça ligeira buliu nos cipós.
São vagas lembranças de um tempo que teve!...
Palpita-lhe o seio por sob uma cruz.
E em cisma doirada — qual garça de neve —
Sua alma revolve-se em ondas de luz.
Embalam-lhe os sonhos, na tarde saudosa,
Os cheiros agrestes do vasto sertão,
E a triste araponga que geme chorosa
E a voz dos tropeiros em terna canção.
Se o gênio da noite no espaço flutua
Que negros mistérios a selva contém!
Se a ilha de prata, se a pálida lua
Clareia o levante, que amores não tem!
Parece que os astros são anjos pendidos
Das frouxas neblinas da abóbada azul,
Que miram, que adoram ardentes, perdidos,
A filha morena dos pampas do Sul.
Se aponta a alvorada por entre as cascatas,
274
Que estrelas no orvalho que a noite verteu!
As flores são aves que pousam nas matas,
As aves são flores que voam no céu!
***
Ó pátria, desperta... Não curves a fronte
Que enxuga-te os prantos o Sol do Equador.
Não miras na fímbria do vasto horizonte
A luz da alvorada de um dia melhor?
Já falta bem pouco. Sacode a cadeia
Que chamam riquezas... que nódoas te são!
Não manches a folha de tua epopéia
No sangue do escravo, no imundo balcão.
Sê pobre, que importa? Sê livre... és gigante,
Bem como os condores dos píncaros teus!
Arranca este peso das costas do Atlante,
Levanta o madeiro dos ombros de Deus.
O VOLUNTÁRIO DO SERTÃO
(Fragmento)
ERA AO CAIR do sol no viso das montanhas!
Era ao chegar da noite as legiões estranhas...,
Ao farfalhar das sombras — a tribo sussurrante —
Aves da escuridão que descem do levante.
Do vale no turíbulo embala-se a neblina...
Soam no bosque as harpas em trêmula surdina.
Como nas mãos do padre, o monte que transluz
No braço ergue o sol — hóstia imensa de luz.
Ouve-se um desdobrar de telas e de véus...
No espaço arma-se a noite — A tenda azul de Deus.
Era ao cair do sol! Por íngreme caminho
Em fundo refletir, a galopar sozinho,
Eu subia de um cerro o cimo alcantilado
275
Donde melhor se avista a aldeia... o campo... o prado.
Ali a Pronta Aguda o espaço invade franca!
Ergue-se calcinada ao longe a Pedra Branca.
Lá vai monte após monte... o olhar vaga perdido
Nessas ondas titães de um mar arrefecido...
Que outrora as sacudiu como bordas macedônicas
Ao estridor das forças ignívomas, plutônicas,
Quando ainda a lutar rebelde alçava um combro
De um ciclone tombado a mão o braço o ombro!
REMORSOS
Em que pensa Carlota após a valsa,
No tapete
Atirando o bournous quando descalça...
Ou melhor... quando rompe a luva, a fita,
Se a presilha, o colchete,
Em leve resistência a mão lhe irrita...
Em que pensa Carlota após a valsa?
Em que sonha Carlota à madrugada,
Quando aperta
Ao travesseiro a boca perfumada.
E afoga o seio sob a cruz de prata,
Pela camisa aberta,
Que um movimento lânguido desata...
Em que sonha Carlota à madrugada?
Com quem fala Carlota ao sol poente,
Na sombria alameda,
Quando os cisnes se arrufam na corente...
E o vento pelas grutas cochichando
Uns noivos arremeda,
Que estão como dois pombos arrulando...
Com quem fala Carlota ao sol poente?
Por que chora Carlota ao meio-dia,
Quando nua de adorno,
Cobrindo os pés... co’a trança luzidia,
276
Entrega o corpo ao vacilar da rede,
E olhando o campo morno,
Os lábios morde... pr’a matar a sede.
Por que chora Carlota oa meio-dia?
O que cisma, o que sente, por quem chora
A soberba Carlota?
A rainha das salas já descora...
Foge o cetro do leque aos dedos frouxos,
E a turba alegre nota
O fundo circ’lo de seus olhos roxos.
Que não diz o que cisma e porque chora...
Quem te mata, Carlota, são remorsos
De algum divino crime?
São ciúmes que escondem teus esforços?
Tens vergonha talvez deste rosário
Que tua mão comprime,
Porque um sopro roçou no relicário?
E desmaias, Carlota, de remorsos?!
Se é por isso não pises tanto os olhos...
Formosa criatura!
O mundo é um mar de pérfidos escolhos,
Quem te pode lançar primeiro a pedra?
Amor! e formosura!
Deus não corta a roseira porque medra...
Se é por isso não pises tanto os olhos!
Mas não! Chora! Teu mal é sem remédio...
Serás mártir sem palma,
Pregada numa cruz... na cruz do tédio!
Fria Carlota! Cobre-te de pejo...
Mataste à sede um’alma!
Fizeste o crime... de negar um beijo!
Chora! Que este remorso é sem remédio!!...
277
CESÁRIO VERDE
(1855—1886)
LITERATURA PORTUGUESA
NAS NOSSAS RUAS, AO ANOITECER
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer
EU QUE SOU FEIO, SÓLIDO, LEAL
Eu que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.
Sentado à mesa de um café devasso,
Ao avistar-te, há pouco fraca e loura,
Nesta babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.
E, quando socorrestes um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, sudável.
“Ela aí vem!” disse eu para os demais;
E pus me a olhar, vexado e suspirando,
278
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.
Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez que não o suspeites! Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.
***
Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar o teu peito.
Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.
“Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!”
De repente, parastes embaraçada
Ao pé de um numeroso ajuntamento,
E eu, que urdia estes frágeis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Um pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.
E foi, então que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és tênue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.
E, ENORME, NESTA MASSA IRREGULAR
E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés de fel como um sinistro mar!
279
DE TARDE
Naquele “pic-nic” de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampamos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas.
DESLUMBRAMENTOS
Milady, é perigoso contemplá-la
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, senguindo-lhes as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!…
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
Ah! Como me estonteia e me fascina…
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…
280
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demônio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!
EU E ELA
Cobertos de folhagem, na verdura,
O teu braço ao redor do meu pescoço,
O teu fato sem ter um só destroço,
O meu braço apertando-te a cintura;
Num mimoso jardim, ó pomba mansa,
Sobre um banco de mármore assentados.
Na sombra dos arbustos, que abraçados,
Beijarão meigamente a tua trança.
281
Nós havemos de estar ambos unidos,
Sem gozos sensuais, sem más ideias,
Esquecendo para sempre as nossas ceias,
E a loucura dos vinhos atrevidos.
Nós teremos então sobre os joelhos
Um livro que nos diga muitas cousas
Dos mistérios que estão para além das lousas,
Onde havemos de entrar antes de velhos.
Outras vezes buscando distração,
Leremos bons romances galhofeiros,
Gozaremos assim dias inteiros,
Formando unicamente um coração.
Beatos ou pagãos, vida à paxá,
Nós leremos, aceita este meu voto,
O Flos-Sanctorum místico e devoto
E o laxo Cavalheiro de Flaublas...
EU, QUE SOU FEIO
Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.
Sentado à mesa dum café devasso.
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura.
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.
E, quando socorreste um miserável,
Eu que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.
“Ela aí vem!” disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.
Via-te pela porta envidraçada;
282
E invejava, - talvez não o suspeites!Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.
Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.
Adorável! Tu muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.
MANIAS!
O mundo é velha cena ensanguentada,
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.
Eu sei um bom rapaz, - hoje uma ossada, Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância quixotesca.
Aos domingos a deia já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa,
Na sujeição canina mais submissa,
Levava na tremente mão nervosa,
O livro com que a amante ia ouvir missa!
VAIDOSA
Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.
Contam que tens um modo altivo e sério,
283
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério.
Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
a déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração como as estátuas.
E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.
Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces
És tão loira e doirada como as messes
E possuis muito amor... muito "amor próprio".
CONTRARIEDADES
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.
Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve conta à botica!
Mal ganha para sopas...
O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
284
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.
Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais uma redação, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.
A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
Vale um desdém solene.
Com raras exceções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
Diverte-se na lama.
Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.
Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua "coterie";
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.
A adulaçãao repugna aos sentimento finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
Os meus alexandrinos...
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
E fina-se ao desprezo!
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
285
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!
Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?
Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a "réclame", a intriga, o anúncio, a "blague",
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras...
E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!
SARDENTA
Tu, nesse corpo completo,
Ó láctea virgem doirada!
Tens o linfático aspecto
Duma camélia melada.
CINISMOS
Eu hei de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.
Hei de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.
Hei de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
E desvendar-lhe a vida, o mundo, o gozo,
Como um velho filósofo lendário.
Hei de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
286
E hei de olhá-la dum modo tão nervoso,
Que ela há de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há de chorar, chorar enternecida!
E eu hei de, então, soltar uma risada.
CABELOS
Ó vagas de cabelos esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escuridão dum largo e negro mar;
Cabelos torrenciais daquela que me enleva,
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilações e meigos céus de luz.
Deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre de tufões,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões.
Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos
Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom
Como um licor renano a fermentar nos copos,
Abismo que se espraia em rendas de Alençon!
E ó mágica mulher, ó minha Inigualável,
Que tens o imenso bem de ter cabelos tais,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,
Entre o rumor banal do hinos triunfais;
Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um pobre sonhador.
Eu sei que tu possuis balsâmicos desejos,
E vais na direção constante do querer,
Mas ouço, ao ver-te andar, melódicos harpejos,
Que fazem mansamente amar e enlanguescer.
287
E a tua cabeleira, errante pelas costas,
Suponho que te serve, em noites de Verão,
De flácido espaldar aonde te recostas
Se sentes o abandono e a morna prostração.
E ela há de, ela há de, um dia, em turbilhões insanos,
Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor
Que antigamente deu, nos circos dos romanos,
Um óleo para ungir o corpo ao gladiador.
................................................
................................................
Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio,
Na vossa vastidão posso talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio
E quero asfixiar-me em ondas de prazer.
ESPLÊNDIDA
Ei-la! Como vai bela! Os esplendores
Do lúbrico Versailles do Rei-Sol
Aumenta-os com retoques sedutores,
É como o refulgir dum arrebol
Em sedas multicolores.
Deita-se com langor no azul celeste
Do seu "landau" forrado de cetim;
E esses negros corcéis, que a espuma veste,
Sobem a trote a rua do Alecrim,
Velozes como a peste.
É fidalga e soberba. As incensadas
Dubarry, Montespan e Maintenon,
Se a vissem ficariam ofuscadas.
Tem a altivez magnética e o bom tom
Das cortes depravadas.
É clara como os "pós à marechala"
E as mãos, que o Jock Clube embálsamou,
Entre peles de tigres as regala;
De tigres que por ela apunhalou,
288
Um amante, em Bengala.
É ducalmente esplêndida! A carruagem
Vai agora subindo devagar;
Ela, no brilhantismo da equipagem,
Ela, de olhos cerrados, a cismar,
Atrai como a voragem!
Os lacaios vão firmes na almofada;
E a doce brisa dá-lhes de través
Nas capas de borracha esbranquiçada,
Nos chapéus com roseta, e nas librés
De forma aprimorada.
E eu vou acaopanhando-a, corcovado.
No "trottoir", como um doido, em convulsões
Febril, de colarinho amarrotado,
Desejando o lugar dos seus truões,
Sinistro e mal trajado.
E daria, contente e voluntário,
A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
Teu pobre trintanário.
E aos almoços magníficos do Mata
Preferiria ir, fardado, aí,
Ostentando galões de velha prata,
E de costas voltadas para ti,
Formosa aristocrata!
LÚBRICA
Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás de por mim morrer,
Morrer muito contente.
Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!
289
Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!
Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:
Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.
Teus olhos sensuais
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.
As grandes comoções
Tu, neles, sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...
Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais,
Que muitas bibliotecas!
ARROJOS
Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.
Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos "mignonnes" e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.
290
Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos noturnos.
Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.
Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.
Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.
Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.
E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.
291
CLÁUDIO MANUEL DA COSTA
(1729—1789)
LITERATURA BRASILEIRA
FÁBULA DO RIBEIRÃO DO CARMO
SONETO
A vós, canoras Ninfas, que no amado
Berço viveis do plácido Mondego,
Que sois da minha lira doce emprego,
Inda quando de vós apartado;
A vós do pátrio Rio em vão cantado
O sucesso infeliz eu vos entrego;
E a vítima estrangeira, com que chego,
Em seus braços acolha o vosso agrado.
Vede a história infeliz, que Amor ordena,
Jamais de Fauno, ou de Pastor ouvida,
Jamais cantada na silvestre avena.
Se ela vos desagrada, por sentida,
Sabei que outra mais feia em minha pena
Se vê entre estas serras escondida.
Aonde levantado
Gigante, a quem tocara,
Por decreto fatal de Jove irado,
A parte extrema e rara
Desta inculta região, vive Itamonte,
Parto da terra, transformado em monte;
De uma penha, que esposa
Foi do invicto Gigante,
Apagando Lucina a luminosa,
292
A lâmpada brilhante,
Nasci; tendo em meu mal logo tão dura,
Como em meu nascimento, a desventura.
Fui da florente idade
Pela cândida estrada
Os pés movendo com gentil vaidade,
E a pompa imaginada
De toda a minha glória num só dia
Trocou de meu destino a aleivosia.
Pela floresta e prado
Bem polido mancebo,
Girava em meu poder tão confiado,
Que até do mesmo Febo
Imaginava o trono peregrino
Ajoelhado aos pés do meu destino.
Não ficou tronco, ou penha,
Que não desse tributo
A meu braço feliz; que já desdenha,
Despótico, absoluto,
As tenras flores, as mimosas plantas
Em rendimentos mil, em glórias tantas,
Mas ah! Que Amor tirano
No tempo, em que a alegria
Se aproveitava mais do meu engano;
Por aleivosa via
Introduziu cruel a desventura,
Que houve de ser mortal, por não ter cura.
Vizinho ao berço caro,
Aonde a Pátria tive,
Vivia Eulina, esse prodígio raro,
Que não sei se inda vive,
Para brasão eterno da beleza,
Para injúria fatal da natureza.
Era Eulina de Aucolo
A mais prezada filha;
Aucolo tão feliz, que o mesmo Apolo
Se lhe prostra, se humilha
Na cópia da riqueza florescente,
Destro na lira, no cantar ciente.
De seus primeiros anos
Na beleza nativa,
Humilde Aucolo, em ritos não profanos,
A bela Ninfa esquiva
Em voto ao sacro Apolo consagrara;
293
E dele em prêmio tantos dons herdara.
Três lustros, todos d’ouro,
A gentil formosura,
Vinha tocando apenas, quando o louro,
Brilhante Deus procura
Acreditar do Pai o culto atento,
Na grata aceitação do rendimento.
Mais formosa de Eulina
Respirava a beleza;
De ouro a madeixa rica, e peregrina
Dos corações faz presa;
A cândida porção da neve bela
Entre as rosadas faces se congela.
Mas inda que a ventura
Lhe foi tão generosa,
Permite o meu destino que uma dura
Condição rigorosa
Ou mais aumente enfim, ou mais ateie
Tanto esplendor, para que mais me enleie.
Não sabe o culto ardente
De tantos sacrifícios
Abrandar o seu Nume: a dor veemente,
Tecendo precipícios,
Já quase me chegava a extremo tanto,
Que o menor mal era o mortal quebranto.
Vendo inútil o empenho
De render-lhe a fereza,
Busquei na minha indústria o meu despenho:
Com ingrata destreza
Fiei de um roubo (oh mísero delito!)
A ventura de um bem, que era infinito.
Sabia eu como tinha
Eulina por costume,
(Quando o maior planeta quase vinha
Já desmaiando o lume,
Para dourar de luz outro horizonte)
Banhar-se nas correntes de uma fonte.
A fugir destinado
Com o furto precioso
Desde a Pátria, onde tive o berço amado;
Recolhi numeroso
Tesouro, que roubara diligente
A meu Pai, que de nada era ciente,
Assim pois prevenido
294
De um bosque à fonte perto,
Esperava o portento apetecido
Da Ninfa; e descoberto
Me foi apenas, quando (oh dura empresa!)
Chego; abraço a mais rara gentileza.
Quis gritar; oprimida
A voz entre a garganta
Apolo? diz, Apol... a voz partida
Lhe nega força tanta
Mas ah! Eu não sei como, de repente
Densa nuvem me põe do bem ausente.
Inutilmente ao vento
Vou estendendo os braços:
Buscar nas sombras o meu bem intento:
Onde a meus ternos laços...!
Onde te escondes, digo, amada Eulina?
Quem tanto estrago contra mim fulmina?
Mais ia por diante;
Quando entre a nuvem densa
Aparecendo o corpo mais brilhante,
Eu vejo (oh dor imensa!)
Passar a bela Ninfa, já roubada
Do Numen, a quem fora consagrada.
Em seus braços a tinha
O louro Apolo presa;
E já ludíbrio da fadiga minha,
Por amorosa empresa,
Era despojo da Deidade ingrata
O bem, que de meus olhos me arrebata,
Então já da paciência
As rédeas desatadas,
Toco de meus delírios a inclemência;
E de todo apagadas
Do acerto as luzes, busco a morte ímpia,
De um agudo punhal na ponta fria.
As entranhas rasgando,
E sobre mim caindo,
Na funesta lembrança soluçando,
De todo confundindo
Vou à verde campina; e quase exangue
Entro a banhar as flores de meu sangue.
Inda não satisfeito
O Numen soberano,
Quer vingar ultrajado o seu respeito;
295
Permitindo em meu dano,
Que em pequena corrente convertido
Corra por estes campos estendido.
E para que a lembrança
De minha desventura
Triunfe sobre a trágica mudança
Dos anos, sempre pura,
Do sangue que exalei, ó bela Eulina,
A cor inda conservo peregrina.
Porém o ódio triste
De Apolo mais se acende;
E sobre o mesmo estrago, que me assiste,
Maior ruína empreende:
Que chegando a ser ímpia uma Deidade,
Excede toda a humana crueldade.
Por mais desgraça minha,
Dos tesouros preciosos
Chegou notícia, que eu roubado tinha
Aos homens ambiciosos;
E crendo em mim riquezas tão estranhas,
Me estão rasgando as míseras entranhas.
Polido o ferro duro
Na abrasadora chama
Sobre os meus ombros bate tão seguro,
Que nem a dor, que clama,
Nem o estéril desvelo da porfia
Desengana a ambiciosa tirania.
Ah Mortais! Até quando
Vos cega o pensamento!
Que máquinas estais edificando
Sobre tão louco intento?
Como nem inda no seu Reino imundo
Vive seguro o Báratro profundo!
Idolatrando a ruína
Lá penetrais o centro,
Que Apolo não banhou, nem viu Lucina;
E das entranhas dentro
Da profanada terra;
Buscais o desconcerto, a fúria, a guerra.
Que exemplos vos não dita
Do ambicioso empenho
De Polidoro a mísera desdita!
Que perigos o lenho,
Que entregastes primeiro ao mar salgado,
296
Que desenganos vos não tem custado!
Enfim sem esperança,
Que alívios me permita,
Aqui chorando estou minha mudança;
E a enganadora dita,
Para que eu viva sempre descontente,
Na muda fantasia está presente.
Um murmurar sonoro
Apenas se me escuta;
Que até das mesmas lágrimas que choro,
A Deidade absoluta
Não consente ao clamor, se esforce tanto,
Que mova à compaixão meu terno pranto.
Daqui vou descobrindo
A fábrica eminente
De um grande Cidade; aqui polindo
A desgrenhada frente,
Maior espaço ocupo dilatado,
Por dar mais desafogo a meu cuidado.
Competir não pretendo
Contigo, ó cristalino
Tejo, que mansamente vais correndo:
Meu ingrato destino
Me nega a prateada majestade,
Que os muros banha da maior Cidade.
As Ninfas generosas,
Que em tuas praias giram,
Ó plácido Mondego, rigorosas
De ouvir-me se retiram;
Que de sangue a corrente turva, e feia
Teme Ericina, Aglaura, e Deiopéia.
Não se escuta a harmonia
Da temperada avena
Nas margens minhas; que a fatal porfia
Da humana sede ordena,
Se atenda apenas o ruído horrendo
Do tosco ferro, que me vai rompendo.
Porém se Apolo ingrato
Foi causa deste enleio,
Que muito, que da Musa o belo trato
Se ausente de meu seio,
Se o Deus, que o temperado coro tece,
Me foge, me castiga, e me aborrece!
Enfim sou, qual te digo,
297
O Ribeirão prezado,
De meus Engenhos a fortuna sigo;
Comigo sepultado
Eu choro o meu despenho; eles sem cura
Choram também a sua desventura.
POLIFEMO
ÉCLOGA
Ó linda Galatéia,
Que tantas vezes quantas
Essa úmida morada busca Febo,
Fazes por esta areia,
Que adore as tuas plantas
O meu fiel cuidado: já que Erebo
As sombras descarrega sobre o mundo,
Deixa o reino profundo:
Vem, ó Ninfa, a meus braços;
Que neles tece Amor mais ternos laços.
Vem, ó Ninfa adorada;
Que Ácis enamorado,
Para lograr teu rosto precioso,
Bem que tanto te agrada,
Tem menos o cuidado,
Menos sente a fadiga, e o rigoroso,
Implacável rumor, que eu n'alma alento.
Nele o merecimento.
Minha dita assegura;
Mas ah! que ele de mais tem a ventura.
Esta frondosa faia
A qualquer hora (ai triste!)
Me observa neste sítio vigilante:
Vizinho a esta praia
Em uma gruta assiste,
Quem não pode viver de ti distante.
Pois de noite, e de dia
Ao mar, ao vento às feras desafia
A voz do meu lamento:
Ouvem-me as feras, ouve o mar, e o vento.
Não sei, que mais pretendes.
Desprezas meu desvelo;
298
E excedendo o rigor da crueldade,
Com a chama do zelo
O coração me acendes:
Não é assim cruel a divindade.
Abranda extremo tanto;
Vem a viver nos mares do meu pranto:
Talvez sua ternura
Te faça a natureza menos dura.
E se não basta o excesso
De amor para abrandar-te,
Quanto rebanho vês cobrir o monte,
Tudo, tudo ofereço;
Esta obra do divino Alcimedonte,
Este branco novilho,
Daquela parda ovelha tenro filho,
De dar-te se contenta,
Quem guarda amor, e zelos apascenta.
LISE
ROMANCE
Pescadores do Mondego,
Que girais por essa praia,
Se vós enganais o peixe,
Também Lise vos engana.
Vós ambos sois pescadores;
Mas com diferença tanta,
Vós ao peixe armais com redes,
Ela co'olhos vos arma.
Vós rompeis o mar undoso:
Para assegurar a caça;
Ela aqui no porto espera,
Para lograr a filada.
Vós dissimulais o enredo,
Fingindo no anzol a traça;
Ela vos expõe patentes
As redes, com que vos mata.
Vós perdeis a noite, e dia
299
Em contínua vigilância;
Ela em um só breve instante
Consegue a presa mais alta.
Guardai-vos, pois, pescadores,
Dos olhos dessa tirana;
Que para troféus de Lise
Despojos de Alcemo bastam.
Enquanto as ondas ligeiras
Desta corrente tão clara
Inundarem mansamente
Estes álamos, que banham;
Eu espero, que a memória
O conserve nestas águas,
Por padrão dos desenganos,
Por triunfo de uma ingrata.
E na frondosa ribeira
Deste rio, triste a alma
Girará sempre avisando,
Quem lhe soube ser tão falsa.
ANTANDRA
ROMANCE
Pastora do branco arminho,
Não me sejas tão ingrata:
Que quem veste de inocente,
Não se emprega em matar almas.
Deixa o gado, que conduzes;
Não o guies à montanha:
Porque em poder de uma fera,
Não pode haver segurança.
Mas ah! Que o teu privilégio,
É louco, quem não repara:
Pois suavizando o martírio,
Obrigas mais, do que matas.
Eu fugirei; eu, pastora,
300
Tomarei somente as armas;
E hão de conspirar comigo
Todo o campo, toda a praia.
Tenras ovelhas,
Fugi de Antandra;
Que é flor fingida,
Que áspides cria, que venenos guarda.
ALTÉIA
ROMANCE
Aquele pastor amante,
Que nas úmidas ribeiras
Deste cristalino rio
Guiava as brancas ovelhas;
Aquele, que muitas vezes
Afinando a doce avena,
Parou as ligeiras águas,
Moveu as bárbaras penhas;
Sobre uma rocha sentado
Caladamente se queixa:
Que para formar as vozes,
Teme, que o ar as perceba.
Os olhos levanta, e busca
Desde o tosco assento aquela
Distancia, aonde, discorro,
Que tem a origem da pena:
E depois que esmorecidos
Da dor os olhos, na imensa
Explicação do tormento,
Sufocada a luz, se cegam;
Só às lágrimas recorre,
Deixando-se ouvir apenas
Daquelas árvores mudas,
Daquela mimosa relva!
Com torpe aborrecimento
301
A companhia despreza
Dos pastores, e das ninfas;
Nada quer; tudo o molesta.
Erguido sabre o penhasco
Já vê, se é grande a eminência:
Por que busque o fim da vida,
Na violência de uma queda.
Já louco se precipita;
E já se suspende: a mesma
Apetência do tormento
Maior tormento lhe ordena.
Pastores, vede a Daliso;
Vede o estado qual seja
De um pastor, que em outro tempo
Glória destes montes era:
Vede, como sem cuidado
Pastar pelos montes deixa
As ovelhas oferecidas
As iras de qualquer fera.
Vede, como desta rama,
Que fúnebre está, suspensa
Deixou a lira, que há pouco,
Pulsava pela floresta.
Vede, como já não gosta
Da barra, dança, e carreira;
E ao pastoril exercício
De todo já se rebela.
Segundo o volto, que neste
Rústico penedo ostenta,
Cuido, que o fizeram louco
Desprezos da bela Altéia.
ANARDA
ROMANCE
Aonde levas, pastora,
302
Essas tenras ovelhinhas?
Que para seu mal lhes basta
O seres tu, quem as guia.
Acaso vão para o vale,
Ou para a serra vizinha?
Vão acaso para o monte,
Que lá mais distante fica?
Vão porventura, pastora,
A beber as cristalinas,
Doces águas, que discorrem
Por entre estas verdes silvas?
Ah! Quem sabe, triste gado,
Onde a maior homicida
Dos corações, e das almas,
Convosco agora caminha!
Presumir, que cuidadosa
Vos conduz à serra altiva,
Imaginar, que à ribeira
Vos vai levando propícia;
Não o posso, não o posso;
Quando a conjetura avisa,
Que mal as ovelhas guarda;
Quem as almas traz perdidas.
Porém se a vossa ventura
De mais nobre se acredita,
Se podeis vencer de Anarda
***
A condição sempre esquiva;
Ela vos conduza: os passos
Segui da minha inimiga;
Enquanto para cantá-la
Meu instrumento se afina.
Mais que Títiro suave,
Aqui sentado à sombria
303
Copa desta verde faia,
Chorarei as penas minhas.
Farei, com que soe o bosque
A seu nome: esta campina,
Vereis, como só de Anarda
A doce glória respira;
Essas árvores, e troncos
Concorrendo à harmonia
Do meu canto, Orfeu nos vales,
Cuidarão, que ressuscita.
Eu repetirei contente
A cantilena, que tinha
Com Alcimedon composto,
Quando no monte vivia.
Direi aquelas cadências,
Que à casca de uma cortiça
Encomendou meu cuidado,
De meu sangue com a tinta.
Pastora (se bem me lembra
Assim meu verso dizia),
Mais branca, que a mesma nove,
Mais bela, do que a bonina;
Eu sou, quem estas ribeiras,
Sou, quem estes campos pisa,
Atrás de uma alma, que roubas,
Tão presa, como rendida.
Não te peco, que ma entregues:
Porque quem ta sacrifica,
De meu voluntário culto
Faz ostentação mais fina:
Quero só, que ma não deixes,
Que a não desampares; inda
Quando de Letes saudoso
Vires a margem sombria.
Mais seguro, e mais constante,
304
Que aquela mimosa ninfa,
Que no côncavo das penhas,
Por lei do destino, habita.
Eco serei destas rochas,
Aonde os clamores firam
Dos corações, que se queixam,
Das almas, que se lastimam.
Assim, cândidas ovelhas,
Assim clamarei: sozinhas
Correi embora contentes
O vale, o monte, a campina.
305
CRUZ E SOUZA
(1861—1898)
LITERATURA BRASILEIRA
INEFÁVEL
Nada há que me domine e que me vença
Quando a minha alma mudamente acorda...
Ela rebenta em flor, ela transborda
Nos alvoroços da emoção imensa.
Sou como um Réu de celestial sentença,
Condenado do Amor, que se recorda
Do Amor e sempre no Silêncio borda
De estrelas todo o céu em que erra e pensa.
Claros, meus olhos tornam-se mais claros
E tudo vejo dos encantos raros
E de outras mais serenas madrugadas!
Todas as vozes que procuro e chamo
Ouço-as dentro de mim porque eu as amo
Na minha alma volteando arrebatadas
ANTÍFONA
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras
Formas do Amor, constelarmante puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
306
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas...
Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...
Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...
Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.
Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, todas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.
Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.
Forças originais, essência, graça
De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas e áureas correntezas...
Cristais diluídos de clarões alacres,
Desejos, vibrações, ânsias, alentos
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...
Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...
Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,
307
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...
SIDERAÇÕES
Para as Estrelas de cristais gelados
As ânsias e os desejos vão subindo,
Galgando azuis e siderais noivados
De nuvens brancas a amplidão vestindo...
Num cortejo de cânticos alados
Os arcanjos, as cítaras ferindo,
Passam, das vestes nos troféus prateados,
As asas de ouro finamente abrindo...
Dos etéreos turíbulos de neve
Claro incenso aromal, límpido e leve,
Ondas nevoentas de Visões levanta...
E as ânsias e os desejos infinitos
Vão com os arcanjos formulando ritos
Da Eternidade que nos Astros canta...
O BOTÃO DE ROSA
O campo abrira o seio às expansões frementes
das árvores senis, dos galhos viridentes.
Caía a tarde fresca
Loira, gentil, vivaz como a canção tudesca.
A iluminada esfera
Calma, profunda, azul como um sonhar de virgem,
Dava um brilho-cetim às verdes folhas d'hera.
No ar uma harmonia avigorada e casta,
No crânio uma vertigem
Duma idéia viril, duma eloquência vasta.
Tardes formosíssimas,
Ó grande livro aberto aos geniais artistas,
Como tanto alargais as crenças panteístas,
Como tanto esplendeis e como sois riquíssimas.
Quanta vitalidade indefinida, quanta,
308
Na pequenina planta,
No doce verde-mar dos trêmulos arbustos,
Que misticismo, justos,
Bebia a alma inteira ao devassar o arcano
Das árvores titãs, das árvores fecundas
Que tinham, como o oceano,
Febris palpitações intérminas, profundas.
Esplêndidas paisagens,
Opunha o largo campo às vistas deslumbradas.
As múrmuras ramagens,
À luz serena e terna, à luz do sol - que espadas
De fogo arremessava, em frêmitos nervosos,
Pelo côncavo azul dos céus esplendorosos,
Tinham falas de amor, segredos vacilantes
Finos como os brilhantes.
A música das aves
Cortava o éter calmo, em notas multiformes,
Límpidas e graves
Que estouravam no ar em convulsões enormes.
Aqui e além um rio
Serpejava na sombra, em meio de um rochedo
Áspero e sombrio.
O olhar perscrutador, o grande olhar, sem medo
E o espírito mudo,
Como um herói gigante avassalavam tudo...
Nuns madrigais risonhos
Abria-se o país fantástico dos sonhos.
Alavam-se os aromas
Leais, inexauríveis
Das largas e invisíveis Selváticas redomas.
A seiva rebentava
Em ondas - irrompia
Na doce e maviosa e plácida alegria
De uma ave que cantava,
Dos belos roseirais
Que ostentavam a flux as rosas virginais.
E as jubilosas franças
Dos arvoredos altos,
Rígidos, atléticos,
309
Derramavam no campo uns fluidos magnéticos
Dumas vontades mansas.
A doce alacridade ia explosindo aos saltos.
E toda a natureza
Robusta de saúde e estrênua de grandeza
Libérrima e vital,
Erguia-se pujante, audaz e redentora,
No gérmen material da força criadora,
Dentre a vida selvagem, mística, animal...
Dos roseirais preciosos
Nos renques primorosos,
Numa linda roseira abria castamente,
Como um sonho de luz numa cabeça ardente,
O mais belo, o mais puro entre os botões de rosa.
Tinha essa cor formosa,
Tinha essa cor da aurora,
Quando ensanguenta em rubro a vastidão sonora.
Era um botão feliz
Sorrindo para o Azul, zombando da matéria.
Tinha o leve quebranto e a maciez etérea
Que uma estrofe não diz.
Das pétalas macias,
Das pétalas sanguíneas,
Doces como harmonias
Brandas e velutíneas
Uns perfumes sutis se espiralavam, raros,
Pela mansão do Bem, pelos espaços claros.
Perfumes excelentes,
Perfumes dos melhores
Perfumes bons de incógnitos Orientes.
Matéria, não deplores
O viver natural dos vegetais alegres;
Eles são mais ditosos
Que os nababos e reis nos seus coxins pomposos;
E por mais que tu regres
O matéria fatal, a tua vida inteira,
No rigor da higiene;
E por mais que a maneira
Do teu grande existir, desse existir - perene
De ironias e pasmos,
310
Explosões de sarcasmos
Tu completes, matéria - ó humanidade ousada
Com a ciência altanada;
E por mais que no século,
Tu mergulhes a idéia, o prodigioso espéculo,
Será sempre maior e exuberante e forte,
Ó matéria fatal,
Essa vida tão rica
Que se corporifica
Na valente coorte
Do poder vegetal.
Era um botão feliz,
Cuia roseira, impávida,
Ébria de aromas bons, ébria de orgulhos - ávida
De completa fragrância,
Palpitava com ânsia
Desde a própria raiz.
E entanto o sol tombara e triunfantemente
Como um supremo Rubens,
Jorrando à curvidade etérea do poente,
O ouro e o escarlate, aprimorando as nuvens,
Numa distribuição simpática de cores,
De tintas e de luzes
De galas e fulgores
Rubros como o estourar dos férvidos obuses.
O cérebro em nevrose,
No pasmo que precede a augusta apoteose
De uma excelsa visão perfeitamente bela,
De uma excelsa visão em límpidos dosséis,
Exaltava o acabado artístico da Tela
E o gosto dos pincéis.
Caíam da amplidão em névoas singulares
Os pálidos crepúsculos.
Os fúlgidos altares
Do homem primitivo - a relva, o prado, o campo
Onde ele ia buscar a força de uma crença
Que então lhe iluminasse a alma escura e densa,
Morriam de clarões - os poderosos músculos
Da fértil mãe de tudo - a natureza ingente Deixavam de bater. - O olhar do pirilampo
311
Oscilava, tremia - azul, fosforescente.
As sombras vinham, vinham,
Lembrando um batalhão d'espectros que caminham
E a casta nitidez sintética das cousas
Tomava a proporção das funerárias lousas.
Completara-se então o mais extraordinário,
O mais extravagante,
Dos fenômenos todos:
A noite. - Enfim descera a treva do Calvário,
A treva que envolveu o Cristo agonizante.
Coaxavam negras rãs nos charcos e nos lodos.
A abóbada espaçosa, a física amplitude,
Mostrava a profundez da angústia de ataúde
De um operário pobre,
Quando se escuta o dobre
Amplíssimo e funéreo,
Sinistro e compassado,
Rolar pela mansão gloriosa do mistério,
Assim com um soluço aflito, estrangulado.
Devia ser, devia
Por uma noite assim,
Como esta noite igual,
Que derramou Maria
A lágrima da dor, - que o célebre Caim
Sentiu dentro do crânio as convulsões do Mal.
Mas o botão de rosa,
Traído pelo estranho zéfiro da sorte,
Rolou como uma cisma
Intensa e luminosa
Ardente e jovial em que a razão se abisma
E foi cair, cair no pélago da morte,
Em um dos mais raivosos,
Em um dos mais atrozes
Rios impetuosos,
Cheios de surdas vozes,
Sozinho, em desamparo, assim como um proscrito,
Em meio à placidez
Dos astros no infinito
E à mesma irracional e fúnebre mudez.
312
Depois e além de tudo,
Além do grave aspecto inteiramente mudo,
Ao tempo que morria
O cândido botão - em um dos tantos galhos
Virentes da roseira - alegre no ar se abria
Um outro que ostentava as pétalas sedosas,
As pétalas gracis de cores deliciosas,
De cores ideais.
As auras musicais
Passavam-lhe de leve,
Nos tímidos rumores,
De um ósculo mais breve.
E dentre a exposição das delicadas flores,
Das rosas - o botão
Aberto ultimamente às cúpulas austeras,
Às plagas da esperança, a irmã das primaveras,
Pendido um quase nada, esbelto na roseira,
Mostrava aquela unção,
A ínclita maneira
De quem se glorifica
Subindo ao céu azul da majestade pura,
Da eterna exuberância,
Da fonte sempre rica,
Da esplêndida fartura
Da luz imaculada - a egrégia substância
Que faz das almas claras
Pela fecundidade olímpica do amor, Magníficas searas,
De onde se difunde à vida sempiterna,
À vida essencial, à lei que nos governa,
À idéia varonil do poeta sonhador.
A arte especialmente, esse prodígio, atriz,
Como o botão de rosa
Tão meigo e tão feliz,
Pode ser arrojada e brutalmente, ao pego,
Na treva silenciosa,
Onde o espírito vai, atordoado e cego,
Cair, entre soluços,
Como um colosso ideal tombado ao chão de bruços,
Ou pode equilibrar-se em admirável base
Estética e profunda,
Assim, bem como o outro, à mais radiosa altura.
313
Deves sondá-la bem nesta segunda fase.
Precisas para isso uma alma mais fecunda.
Precisas de sentir a artística loucura...
AO DECÊNIO DE CASTRO ALVES
Quem sempre vence é o porvir!
No espadanar das espumas
Que vão à praia saltar!
Nos ecos das tempestades
Da bela aurora ao raiar,
Um brado enorme, profundo,
Que faz tremer todo o mundo
Se deixa logo sentir!
É como o brado solene,
Ingente, Celso, perene,
É como o brado: - Porvir!
Pergunta a onda: - Quem é?..,
Responde o brado: - Sou eu!
Eu sou a Fama, que venho
C'roar o vate, o Criseu!
Dormi, meu Deus, por dez anos
E da natura os arcanos
Não posso todos saber!
Mas como ouvisse louvores
De glória, gritos, clamores,
Também vim louros trazer.
Fatalidade! - Desgraça!
Fatalidade, meu Deus!
Passou-se um gênio tão cedo,
Sumiu-se um astro nos céus!
As catadupas d'idéias,
De pensamento epopéias
Rolaram todas no chão!
Saindo a alma pra glória
Bradou pra pátria - vitória!
Já sou de vultos irmãos!
Foi Deus que disse: - Poeta,
Vem decantar a meus pés.
314
Na eternidade há mais luz,
Dão mais valor ao que és.
Se lá na terra tens louros,
Receberás cá tesouros
De muitas glórias até!
Terás a lira adorada
C'o divo plectro afinada
De Dante, Tasso e Garret!
Então na terra sentiu-se
UM grande acorde final!
O belo vate brasílio
Pendeu a fronte imortal!
O negro espaço rasgou-se
E aquele gênio internou-se
Na sempiterna mansão.
A sua fronte brilhava
E o áureo livro apertava
Sereno e ledo na mão...
E o mundo então sobre os eixos
Ouviu-se logo rodar!
É que ele mesmo estremece
A ver um vulto tombar.
É que na queda dos entes
Que são na vida potentes,
Que têm nas veias ardor,
Há cataclismos medonhos
Que só sentimos em sonhos
Mas que nos causam terror!...
E o coração s'estortega
E s'entibia a razão!
No peito o sangue enregela
E logo a história diz: - Não!
Não chore a pátria esse filho,
Se procurou outro trilho
Também mais glória me deu!
E quando os séculos passarem
Se hão de tristes curvarem
Enquanto alegre só eu?...
Oh! Basta! Basta! Silêncio!
315
Repousa, vate, nos Céus!
Que muito além dos espaços
Os cantos subam dos teus!
Se nesta vida d'enganos
Não são bastante os humanos
Pra te render ovações!
Perdoa os fracos, ó gênio,
Que pra cantar teu decênio
Somente Elmano ou Camões!
BRAÇOS
Braços nervosos, brancas opulências,
brumais brancuras, fúlgidas brancuras,
alvuras castas, virginais alvuras,
latescências das raras latescências.
As fascinantes, mórbidas dormências
dos teus abraços de letais flexuras,
produzem sensações de agres torturas,
dos desejos as mornas florescências.
Braços nervosos, tentadoras serpes
que prendem, tetanizam como os herpes,
dos delírios na trêmula coorte...
Pompa de carnes tépidas e flóreas,
braços de estranhas correções marmóreas,
abertos para o Amor e para a Morte!
ENCARNAÇÃO
Carnais, sejam carnais tantos desejos,
carnais, sejam carnais tantos anseios,
palpitações e frêmitos e enleios,
das harpas da emoção tantos arpejos...
Sonhos, que vão, por trêmulos adejos,
à noite, ao luar, intumescer os seios
láteos, de finos e azulados veios
de virgindade, de pudor, de pejos...
Sejam carnais todos os sonhos brumos
316
de estranhos, vagos, estrelados rumos
onde as Visões do amor dormem geladas...
Sonhos, palpitações, desejos e ânsias
formem, com claridades e fragrâncias,
a encarnação das lívidas Amadas!
VELHAS TRISTEZAS
Diluências de luz, velhas tristezas
das almas que morreram para a luta!
Sois as sombras amadas de belezas
hoje mais frias do que a pedra bruta.
Murmúrios incógnitos de gruta
onde o Mar canta os salmos e as rudezas
de obscuras religiões — voz impoluta
de todas as titânicas grandezas.
Passai, lembrando as sensações antigas,
paixões que foram já dóceis amigas,
na luz de eternos sóis glorificadas.
Alegrias de há tempos! E hoje e agora,
velhas tristezas que se vão embora
no poente da Saudade amortalhadas!...
DANÇA DO VENTRE
Torva, febril, torcicolosamente,
numa espiral de elétricos volteios,
na cabeça, nos olhos e nos seios
fluíam-lhe os venenos da serpente.
Ah! que agonia tenebrosa e ardente!
que convulsões, que lúbricos anseios,
quanta volúpia e quantos bamboleios,
que brusco e horrível sensualismo quente.
O ventre, em pinchos, empinava todo
como réptil abjeto sobre o lodo,
espolinhando e retorcido em fúria.
Era a dança macabra e multiforme
317
de um verme estranho, colossal, enorme,
do demônio sangrento da luxúria!
FLOR DO MAR
És da origem do mar, vens do secreto,
do estranho mar espumaroso e frio
que põe rede de sonhos ao navio
e o deixa balouçar, na vaga, inquieto.
Possuis do mar o deslumbrante afeto,
as dormências nervosas e o sombrio
e torvo aspecto aterrador, bravio
das ondas no atro e proceloso aspecto.
Num fundo ideal de púrpuras e rosas
surges das águas mucilaginosas
como a lua entre a névoa dos espaços...
Trazes na carne o eflorescer das vinhas,
auroras, virgens músicas marinhas,
acres aromas de algas e sargaços...
DILACERAÇÕES
Ó carnes que eu amei sangrentamente,
ó volúpias letais e dolorosas,
essências de heliotropos e de rosas
de essência morna, tropical, dolente...
Carnes, virgens e tépidas do Oriente
do Sonho e das Estrelas fabulosas,
carnes acerbas e maravilhosas,
tentadoras do sol intensamente...
Passai, dilaceradas pelos zelos,
através dos profundos pesadelos
que me apunhalam de mortais horrores...
Passai, passai, desfeitas em tormentos,
em lágrimas, em prantos, em lamentos
em ais, em luto, em convulsões, em dores...
SINFONIAS DO OCASO
318
Musselinosas como brumas diurnas
descem do ocaso as sombras harmoniosas,
sombras veladas e musselinosas
para as profundas solidões noturnas.
Sacrários virgens, sacrossantas urnas,
os céus resplendem de sidéreas rosas,
da Lua e das Estrelas majestosas
iluminando a escuridão das furnas.
Ah! por estes sinfônicos ocasos
a terra exala aromas de áureos vasos,
incensos de turíbulos divinos.
Os plenilúnios mórbidos vaporam...
E como que no Azul plangem e choram
cítaras, harpas, bandolins, violinos...
ACROBATA DA DOR
Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.
Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta...
Pedem-se bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d'aço...
E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.
MÚSICA DA MORTE
A música da Morte, a nebulosa,
estranha, imensa música sombria,
passa a tremer pela minh'alma e fria
gela, fica a tremer, maravilhosa...
Onda nervosa e atroz, onda nervosa,
letes sinistro e torvo da agonia,
319
recresce a lancinante sinfonia
sobe, numa volúpia dolorosa...
Sobe, recresce, tumultuando e amarga,
tremenda, absurda, imponderada e larga,
de pavores e trevas alucina...
E alucinando e em trevas delirando,
como um ópio letal, vertiginando,
os meus nervos, letárgica, fascina...
TRISTEZA DO INFINITO
Anda em mim, soturnamente,
uma tristeza ociosa,
sem objetivo, latente,
vaga, indecisa, medrosa.
Como ave torva e sem rumo,
ondula, vagueia, oscila
e sobe em nuvens de fumo
e na minh'alma se asila.
Uma tristeza que eu, mudo,
fico nela meditando
e meditando, por tudo
e em toda a parte sonhando.
Tristeza de não sei donde,
de não sei quando nem como...
flor mortal, que dentro esconde
sementes de um mago pomo.
Dessas tristezas incertas,
esparsas, indefinidas...
como almas vagas, desertas
no rumo eterno das vidas.
Tristeza sem causa forte,
diversa de outras tristezas,
nem da vida nem da morte
gerada nas correntezas...
Tristeza de outros espaços,
320
de outros céus, de outras esferas,
de outros límpidos abraços,
de outras castas primaveras.
Dessas tristezas que vagam
com volúpias tão sombrias
que as nossas almas alagam
de estranhas melancolias.
Dessas tristezas sem fundo,
sem origens prolongadas,
sem saudades deste mundo,
sem noites, sem alvoradas.
Que principiam no sonho
e acabam na Realidade,
através do mar tristonho
desta absurda Imensidade.
Certa tristeza indizível,
abstrata, como se fosse
a grande alma do Sensível
magoada, mística, doce.
Ah! tristeza imponderável,
abismo, mistério, aflito,
torturante, formidável...
ah! tristeza do Infinito!
321
CURVO SEMEDO
(1766—1838)
LITERATURA PORTUGUESA
O GALO E A PÉROLA
Num monturo, engravatando,
Formoso galo aguerrido
Acha uma pérola fina
Qu'havia um nobre perdido.
Por três vezes a escoucinha
Sem nela querer pegar;
À quarta, erguendo-a no bico,
Se põe a cacarejar.
Vêm logo algumas galinhas
Cuidando qu'era algum grão;
Mas vendo a pérola, tristes
Vão-se, deixando-a no chão.
Acaso passa um ourives,
E, apanhando-a, alegre diz:
"É uma pérola fina!
Que belo achado que fiz!"
"Homem", lhe pergunta o galo,
"Tanto essa joia merece?
Pois eu, por um grão de milho
Te dera mil, se as tivesse".
Pérola em poder de galo,
Que lhe não sabe o valor,
É como entre as mãos dum néscio
322
As obras de um sábio autor.
A LEBRE E A TARTARUGA
(FÁBULA)
“Apostemos, disse à lebre
A tartaruga matreira,
Que eu chego primeiro ao alvo
Do que tu, que és tão ligeira!”
Dado o sinal da partida,
Estando as duas a par,
A tartaruga começa
Lentamente a caminhar.
A lebre tendo vergonha
De correr diante dela,
Tratando uma tal vitória
De peta ou de bagatela,
Deita-se, e dorme o seu pouco;
Ergue-se, e põe-se a observar
De que parte corre o vento,
E depois entra a pastar;
Eis deita uma vista de olhos
Sobre a caminhante sorna,
Inda a vê longe da meta,
E a pastar de novo torna.
Olha; e depois que a vê perto,
Começa a sua carreira;
Mas então apressa os passos
A tartaruga matreira.
À meta chega primeiro,
Apanha o prêmio apressada,
Pregando à lebre vencida
Uma grande surriada.
Não basta só haver posses
Para obter o que intentamos;
É preciso pôr-lhe os meios,
323
Quando não, atrás ficamos.
O contendor não desprezes
Por fraco, se te investir;
Porque um anão acordado
Mata um gigante a dormir.
MORREU BOCAGE, SEPULTOU-SE EM GOA
Morreu Bocage, sepultou-se em Goa!
Chorai, moças venais, chorai, pedantes,
O insulso estragador dos consoantes.
Que tantos tempos aturdiu Lisboa!
Por aventuras mil obteve a c′roa
Que a fronte cinge dos heróis andantes;
Inda veio de climas tão distantes
Á toa vegetar, versar á toa:
Este que vês, com olhos macerados,
Não é Bocage, não, rei dos brejeiros.
São apenas seus olhos descarnados:
Fugiu do cemitério aos companheiros;
Anda agora purgando seus pecados
Glosando aos cagaçais pelos outeiros.
324
DELFIM GUIMARÃES
(1872—1933)
LITERATURA PORTUGUESA
Traduções de Charles Baudelaire
A BELEZA
De um sonho escultural tenho a beleza rara,
E o meu seio, — jardim onde cultivo a dor,
Faz despertar no Poeta um vivo e intenso amor,
Com a eterna mudez do marmor' de Carrara
Sou esfinge subtil no Azul a dominar,
Da brancura do cisne e com a neve fria;
Detesto o movimento, e estremeço a harmonia;
Nunca soube o que é rir, nem sei o que é chorar.
O Poeta, se me vê nas atitudes fátuas
Que pareço copiar das mais nobres estátuas,
Consome noite e dia em estudos ingentes..
Tenho, p'ra fascinar o meu dócil amante,
Espelhos de cristal, que tornaram deslumbrante
A própria imperfeição: — os meus olhos ardentes!
O AZAR
Com peso tal, não me ajeito;
Dá-me, Sísifo, vigor!
Embora eu tenha valor,
A Arte é larga e o Tempo Estreito.
325
Longe dos mortos lembrados,
A um obscuro cemitério,
Minh'alma , tambor funéreo,
Vai rufar trechos magoados.
— Há muitas jóias ocultas
Na terra fria, sepulturas
Onde não chega o alvião;
Muita flor exala a medo
Seus perfumes no degredo
Da profunda solidão
A MUSA ENFERMA
Ó minha musa, então! que tens tu, meu amor?
Que descorada estás! No teu olhar sombrio
Passam fulgurações de loucura e terror;
Percorre-te a epiderme em fogo um suor frio.
Esverdeado gnomo ou duende tentador,
Em teu corpo infiltrou, acaso, um amavio?
Foi algum sonho mal, visão cheia de terror,
Que assim te magoou o teu olhar macio?
Eu quisera que tu, saudável e contente.
Só nobres idéias abrigasses na mente,
E que o sangue cristão, ritmado, te pulsara
Como do silabálirio antigo os sons variados,
Onde reinam, o par, os deuses decantados;
Febo, pai das canções, e Pã — senhor da seara!
O IDEAL
Nunca poderá ser pálida bonequinha,
Produto sem frescor qual manequim de molas,
Pés para borzeguins, dedos p'ra castanholas,
Que há de satisfazer almas como esta minha.
Eu deixo a Gavarni, poeta de enfermaria,
326
Seu rebanho gentil de belezas cloróticas,
Porque nunca encontrei n'essas plantes exóticas
A rubra flor que anhela a minha fantasia.
Meu torvo coração, na angústia que o oprime,
Sonha Lady Macbeth, alma fadada ao crime,
Pesadelo infernal que um Ésquilo criou;
E contigo também, ó Noite grandiosa,
Filha de Miguel-Anjo, esfinge misteriosa,
Sereia colossal que algum Titã gerou!
A MÁSCARA
Contempla esse perfil de graças florentinas;
Na sóbria ondulação do corpo musculoso
Excedem Força e Proporção, irmãs divinas.
Essa mulher, fração de um ser miraculoso,
Divinamente forte, amavelmente pobre,
Criada foi para no leito arder em gozo,
Saciando os ócios de um pontífice ou de um nobre.
- Repara-lhe o sorriso fino e voluptuoso
onde a vaidade aflora e em êxtase perdura;
Esse lânguido olhar oblíquo e desdenhoso,
Esse rosto sutil, na gaze da moldura,
Cujos traços nos dizem com ar vitorioso:
"A Volúpia me chama e o Amor cinge-me a testa!"
Ao ser que esplende assim com lúbrica realeza
Vê que encanto febril a formosura empresta!
Chega mais próximo e circunda-lhe a beleza.
Ó que blasfêmia da arte! Ó que assombro fatal!
A divina mulher, que ao prazer nos enlaça,
Lá no alto se transmuda em monstro bifrontal!
- Não! É uma máscara, uma sórdida trapaça,
Essa face torcida e de esquisito aspecto,
E, repara, também crispada ferozmente,
A cabeça concreta, o rosto circunspecto
Oculto por detrás do semblante que mente.
Ó mísera beleza! O magnífico rio
De teu pranto deságua ao pá de meus abrolhos;
327
Teu embuste me embriaga, e minha alma sacio
Nessas ondas que a Dor faz jorrar de teus olhos!
Mas por que chora enfim a beleza absoluta
Que a seus pés tem o ser humano submetido,
Que misterioso mal lhe rói o flanco em luta?
- Ela chora, insensata, por haver vivido!
E por viver ainda! E o que ela mais deplora,
O que a faz ajoelhar-se em frêmito feroz,
É que amanhã há de estar viva como agora!
Amanhã e depois e sempre! - como nós!
CASTIGO DO ORGULHO
Nos esplêndidos tempos em que a Teologia
Viçava no apogeu da seiva e da energia,
Conta-se que um doutor, dentre os mais eminentes,
Após dobrar os corações indiferentes,
Os arrojou nas mais escuras profundezas;
Após franquear às celestiais e altas grandezas
Caminhos dele próprio até desconhecidos,
Só pelas almas puras talvez percorridos,
Como quem alto foi demais, cheio de pânico,
Gritou, possuído então de um orgulho satânico:
"Jesus, ó meu Jesus! Te ergui à etérea altura!
Mas se, ao contrário, eu te golpeasse na armadura,
Tua vergonha igualaria atua glória,
E não serias mais que um feto sem história!"
Sua razão de pronto a pó se reduziu.
A flama deste sol de negro se tingiu;
O caos se lhe instalou então na inteligência,
Templo antes vivo, pleno de ordem e opulência,
Sob cujos tetos tanto fausto resplendia
E nele floresceram a noite e a agonia,
Qual numa furna cuja boca jaz selada.
Desde então semelhante aos animais da estrada,
Quando ia ao campo sem saber sequer quem era,
Sem distinguir entre o verão e a primavera,
Imundo, ocioso e feio como coisa usada,
Fazia riso e a diversão da meninada.
328
O INIMIGO
A mocidade foi-me um temporal bem triste,
Onde raro brilhou a luz d'um claro dia;
Tanta chuva caiu, que quase não existe
Uma flor no jardim da minha fantasia.
E agora, que alcancei o outono, alquebrantado,
Que paciente labor não preciso — ai de mim! —
Se quiser renovar o terreno encharcado,
Cheio de boqueirões, que é hoje o meu jardim!
E quem sabe se as flor's ideais que ora cubiço
Iriam encontrar no chão alagadiço
O preciso alimento ao seu desabrochar?
Corre o tempo veloz, num galope desfeito,
E a Dor, a ingente Dor, que nos corrói o peito,
Com nosso próprio sangue, a crescer, a medrar!
O ALBATROZ
Às vezes no alto mar, distrai-se a marinhagem
Na caça do albatroz, ave enorme e voraz,
Que segue pelo azul a embarcação em viagem,
Num voo triunfal, numa carreira audaz.
Mas quando o albatroz se vê preso, estendido
Nas tábuas do convés, — pobre rei destronado!
Que pena que ele faz, humilde e constrangido,
As asas imperiais caídas para o lado!
Dominador do espaço, eis perdido o seu nimbo!
Era grande e gentil, ei-lo o grotescio verme!...
Chega-lhe um ao bico o fogo do cachimbo,
Mutila um outro a pata ao voador inerme.
O Poeta é semelhante a essa águia marinha
Que desdenha da seta, e afronta os vendavais;
Exilado na terra, entre a plebe escarninha,
Não o deixam andar as asas colossais!
329
DIOGO BERNARDES
(1530—?1605)
LITERATURA PORTUGUESA
JÁ NÃO POSSO SER CONTENTE
Já não posso ser contente,
Tenho a esperança perdida,
Ando perdido entre a gente,
Nem morro, nem tenho vida.
Prazeres que tenho visto
Onde se foram, que é deles,
Fora-se a vida com eles
Não ma vira agora nisto,
Vejo-me andar entre a gente
Como coisa esquecida,
Eu triste, outrém contente,
Eu sem vida, outrém com vida.
Vieram os desenganos,
Acabaram os receios;
Agora choro meus danos,
E mais choro bens alheios;
Passou o tempo contente,
E passou tão de corrida,
Que me deixou entre a gente
Sem esperança de vida.
330
SONETO
Leandro em noite escura ia rompendo
As altas ondas, delas rodeado
No meio do Helesponto, já cansado,
E o fogo já na torre morto vendo;
E vendo cada vez ir mais crescendo
O bravo vento, e o mar mais levantado;
De suas forças já desconfiado,
Os rogos quis provar, não lhe valendo.
"Ai ondas!" (suspirando começou):
Mas delas, sem lhe mais alento dar,
A fala contrastada, atrás tornou.
"Ai ondas! (outra vez diz) vento, mar,
Não me afogueis, vos rogo, enquanto vou;
Afogai-me depois quando tornar".
EPIGRAMA
Com qual amor, ó sumo amador nosso,
com qual sangue que tenha derramado,
vosso amor, vosso sangue pagar posso,
um aceso por mim, outro esgotado,
senão com vosso amor, c’o sangue vosso,
pois para vo-lo dar mo tendes dado?
Por tal razão vos dou, meu Redentor,
por meu o vosso sangue, o vosso amor.
OUTRO SONETO ÀS CHAGAS
Ó chagas de Jesu, doce memória
de sua sacratíssima Paixão!
Ó nossa copiosa redenção,
certo penhor do céu, chaves da glória!
Ó insígnias da mais alta vitória
que se no mundo viu depois que Adão
ao defeso pomo ergueu a mão,
pena que pagou culpa tão notória!
331
Aquela dor imensa que sentiram
convosco os membros seus, chagas serenas,
fazei que chore e cante, escreva e sinta.
Papel seja a minha alma, sejam penas
os três cravos cruéis que vos abriram,
tinteiro o lado seja, o sangue tinta.
ELEGIA NO TEMPO DO MAL
Quem, ó Senhor do céu, de tanta culpa
se vê que está cercado, que não tem
em cem mil erros ūa só desculpa,
onde se acolherá, Senhor, ou a quem,
se a vós, de quem se teme, não tornar?
No mundo poder-lhe-á valer alguém?
Em que alta serra, em que profundo mar
pode dos vossos olhos esconder-se?
Onde de vossas mãos pode escapar?
Se quer fugir de vós para valer-se,
não lhe sinto lugar melhor guardado
que dentro em vossas chagas recolher-se.
Esconda-se de vós no vosso lado,
não cure de buscar outro deserto
nem outro mais seguro povoado.
Da vossa ira, Senhor, tudo está perto,
só dela longe está ūa alma pura
que não sofre na vida desconcerto.
Nos mores medos anda mais segura,
pondo os olhos em vós despreza a vida,
vós sua vida sois, outra não cura.
Mas a minha, na culpa endurecida,
que tanto de contino vos ofende,
ingrata a vosso amor, desconhecida,
vendo por quantas partes já se estende
332
deste fogo mortal a mortal chama,
de vós tão apartada, que pretende?
Como tão seca está que não derrama
lágrimas noite e dia em que se lave?
Como de vós amada vos não ama?
Ah! lance já de si o jugo grave
dos graves erros seus, o vosso tome;
o vosso, ó bom Jesu, leve e suave.
Quebrante no poder do vosso nome
do seu mortal imigo a fortaleza.
Com vossa graça sua malícia dome,
que sem ela, Senhor, tudo é fraqueza,
e basta a nos vencer sem vossa ajuda
a nossa, inda que fraca, natureza;
a qual nunca granjeia, nunca estuda
senão em comprazer ao vão desejo
que de um em outro mal mil vezes muda.
Se eu isto de mi sei, se entre nós vejo
da morte um e outro arrebatado,
porque deixando a vós por mi me rejo?
Quem seguro me dá que em tal estado
primeiro não acabe a fraca vida
que deixe de seguir seu curso errado?
Ah! Senhor, pois a vossa oferecida
por mim foi num madeiro entre vil gente,
não me deixeis de mi ser homicida.
Não permitais que corte de repente
a dura Parca o fio de meus dias
gastado até’gora inutilmente.
Primeiro estas entranhas, que tão frias
em vosso amor estão, nele se inflamem;
primeiro de outro fuja as tiranias.
Primeiro tantas lágrimas derramem
333
meus olhos por vos ter errado tanto,
que fontes e não já olhos se chamem.
Enfim, primeiro deixe tudo quanto
de vós, meu Deus, me aparta, e me desvia
de dar a vós meu choro, a vós meu canto.
Torne da noute escura ao claro dia
primeiro que de todo me anouteça
e se torne esta terra à terra fria.
Nesta alma que anda em trevas amanheça
vossa divina luz, onde sem fim
diante de vossos olhos resplandeça,
por vós cobrando o que perdi por mim.
A DONA MARIA DE VILHENA QUANDO SE METEU FREIRA
Alma merecedora de mil palmas,
de mil louvores digna, de mil cantos,
um doce amor das bem nascidas almas;
alma que só pudeste romper quantos
laços cá nos detém em prisão dura,
alegria do céu, prazer dos santos;
alma bela, alma branda, casta e pura,
toda cheia de amor, toda amorosa,
vestida doutra nova fermosura;
ah, que direi de ti, alma ditosa,
no mundo exemplo raro de beleza,
agora fora dele mais fermosa?
Ornada de um saber, de ūa grandeza
que soube desprezar em tenra idade
o que no mundo mais se busca e preza,
moveu-te por ventura essa vontade
a vontade do pai, ou te moveu
a força da cruel necessidade?
Quem não verá ser isso amor do céu,
334
amor daquele Deus crucificado
que para esposa sua te escolheu?
Ah soberano amor bem empregado
em quem o seu amor por amor puro
antes de o mundo ser te tinha dado!
Deixaste, alma fermosa, o vale escuro,
de lágrimas e dores sempre cheio,
tomaste em bravo mar porto seguro,
um direito caminho, um certo meio
para subir à pátria soberana,
onde sem dor se vive e sem receio.
Das aparências vãs da glória humana
a cega vaidade descobriste
que nos leva após si, que nos engana.
C’os olhos da razão dela fugiste,
e doutras cousas mais com que parece
que pode haver prazer na vida triste.
Para ti outro céu já resplandece,
outro sol, outra lua, outras estrelas,
outras flores a terra te oferece.
Doutras com nova mão novas capelas
de mais suave cheiro dás agora
a teu suave amor, criador delas.
Nessa quietação onde Deus mora,
a ele só te dá, pois te chamou,
a ele canta só, por ele chora.
Com outra do teu nome, que lavou
com lágrimas os pés de seu Senhor
e com suas tranças de ouro os alimpou;
com outra a quem da vida o Redentor,
porquanto muito amou, perdoou muito,
que nada nega Deus a muito amor;
com outra que colheu divino fruito,
tão de verdade triste e arrependida
335
que nunca teve mais o rosto enxuto;
com outra que, na lapa recolhida,
na solidão da serra cavernosa
em amores do céu gastou a vida;
com outra que lá nele gloriosa,
da visão de seu Mestre não se parte,
de quem na terra foi tão saudosa;
com esta tal Maria a melhor parte
por Cristo com raro exemplo escolheste,
que seu amor não saberá negar-te,
pois tu, alma ditosa, o teu lhe deste.
EPITÁFIO À SUA SEPULTURA
Os olhos onde o casto amor ardia,
ledo de se ver neles abrasado,
o rostro onde com termo desusado
vermelha rosa sobre neve abria,
o cabelo que enveja ao sol fazia,
porque fazia o seu menos dourado,
a branca mão, o corpo bem formado,
tudo se torna aqui em terra fria.
Perfeita fermosura em tenra idade,
como flor que sem tempo foi colhida,
aqui fechou a morte surda e dura.
Como não morre amor de piedade,
não dela, que passou a melhor vida,
de si, pois o deixou em noite escura?
336
EMILIANO PERNETA
(1866—1921)
LITERATURA BRASILEIRA
VENCIDOS
Nós ficaremos, como os menestréis da rua,
Uns infames reais, mendigos por incúria,
Agoureiros da Treva, adivinhos da Lua,
Desferindo ao luar cantigas de penúria?
Nossa cantiga irá conduzir-nos à tua
Maldição, ó Roland?... E, mortos pela injúria,
Mortos, bem mortos, e, mudos, a fronte nua,
Dormiremos ouvindo uma estranha lamúria?
Seja. Os grandes um dia hão de cair de bruço....
Hão de os grandes rolar dos palácios infetos!
E gloria à fome dos vermes concupiscentes!
Embora, nós também, nós, num rouco soluço,
Corda a corda, o violão dos nervos inquietos
Partamos! inquietando as estrelas dormentes!
GLÓRIA
Ao I. Serro Azul
Quando um dia eu descer às margens desse lago
337
Estígio, onde Caron, mediante uma parca
Moeda de estanho vil ou cobre, que eu lhe pago,
Há de me transportar numa sombria barca...
Quando sem um sinal, sem uma prova ou marca
De afeição, eu me for por esse abismo vago,
Vendo que sobre mim funebremente se arca
O céu, e junto a mim esse Caron pressago...
E envolvido na mais completa obscuridade,
Abandonado, e só, e triste, e silencioso,
Sem a sombra sequer do orgulho e da vaidade,
Eu tiver de rolar no olvido, que me espera,
Que ao menos possa ver o palácio radioso,
Feito de louro e sol e mirto e ramis de hera!
METAMORFOSES
A Mme. Georgine Mongruel
Sei que há muita nudez e sei que há muito frio,
E uma voracidade horrível, um furor
Tão desmedido que, quando eu acaso rio,
Quantos não estarão torcendo-se de dor.
Conheço tudo, sim, apalpo, indago, espio...
Tenho a certeza que vá eu para onde for,
Como o escaravelho, hei de o ódio sombrio
Ver enodoar até o seio de uma flor.
Mas sei também que há mil aspirações estranhas,
Que havemos de subir montanhas e montanhas,
Que a Natureza avança e o Homem faz-se luz...
Que a Vida, como o sol, um alquimista louro,
Tem o dom de poder mudar a lama em ouro,
E em límpidos cristais esses rochedos nus!
CORRE MAIS QUE UMA VELA...
Corre mais que uma vela, mais depressa,
Ainda mais depressa do que o vento,
338
Corre como se fosse a treva espessa
Do tenebroso véu do esquecimento.
Eu não sei de corrida igual a essa:
São anos e parece que é um momento;
Corre, não cessa de correr, não cessa,
Corre mais do que a luz e o pensamento...
É uma corrida doida essa corrida,
Mais furiosa do que a própria vida,
Mais veloz que as notícias infernais...
Corre mais fatalmente do que a sorte,
Corre para a desgraça e para a morte...
Mas que queria que corresse mais!
SÚCUBO
Desde que te amo, vê, quase infalivelmente,
Todas as noites vens aqui. E às minhas cegas
Paixões, e ao teu furor, ninfa concupiscente,
Como um súcubo, assim, de fato, tu te entregas...
Longe que estejas, pois, tenho-te aqui presente.
Como tu vens, não sei. Eu te invoco e tu chegas.
Trazes sobre a nudez, flutuando docemente,
Uma túnica azul, como as túnicas gregas...
E de leve, em redor do meu leito flutuas,
Ó Demônio ideal, de uma beleza louca,
De umas palpitações radiantemente nuas!
Até, até que enfim, em carícias felinas,
O teu busto gentil ligeiramente inclinas,
E te enrolas em mim, e me mordes a boca!
SETEMBRO
Eu ontem vi chegar, quase que à noitezinha,
Apressada e sutil, a primeira andorinha...
É a primavera, pois, em flor, que se anuncia,
339
É setembro que vem, bêbedo de ambrosia.
Mãos doiradas, a rir, mãos leves e radiosas,
Semeando à luz e ao vento as papoulas e as rosas...
Como foi para nós de um esquisito gozo,
Ó minha alma! esse doce, esse breve repouso,
Que entre o nosso viver tumultuário e incerto
Surgiu como se fosse o oásis do deserto...
SOLIDÃO
Que bom se eu fosse aquele lavrador,
Que eu nunca pude ser e que eu não sou,
Que depois de lavrar os campos, flor,
Centeio, milho e trigo semeou...
Esse trabalho nunca lhe amargou,
Mas à hora doce e triste de sol-pôr,
Tanta canseira o pobre desfolhou,
Tanto fez, que semeou a própria dor...
E oh! que amargura, quando a noite vem,
Toda dum roxo frio de lilás...
Quem dera ser o lavrador, porém!
Entrar em casa, a mesa posta, os seus
Em derredor, a consciência em paz,
E tudo em paz, louvado seja Deus!
DE UM FAUNO
Ah! quem me dera, quando passa em meu caminho
Juno! com seu andar de névoa que flutua,
Poder despi-la dessa túnica de linho...
E vê-la nua! Eu só compreendo estátua nua!
Nua! essa corça nua é branca, e é como a Lua...
Ser eu Apolo! embriagá-la do meu vinho!
Porém se estendo no ar os meus braços, recua,
Esquiva a dama apressa o passo miudinho...
340
A dama foge, não deseja que eu avance...
Meu desejo, porém, é um gamo. De relance,
Vendo-a, corre a querer sugar-lhe o claro mel...
Despe-a; carrega-a, assim, despida, para o leito...
E, nua, em flor, bem como um sátiro perfeito,
Sobre o feno viola essa Virgem cruel!
LÁ
Quando eu fugir, na ponta duma lança,
Deste albergue noturno, em que me vês.
Não sei que sonho vão, nem que esperança
Vaga de abrir os olhos outra vez..
Porque a esperança doce, de criança,
D’inda os poder abrir na placidez
Duma nuança mansa que não cansa,
Lá, para além dos astros, lá, talvez?
Há de ser ao cair do sol. Ereto,
Tal como sou, rudíssimo de aspecto,
Mas tão humilde, e teu, e se te apraz,
Eu te verei entrar, suave sono,
Nesse veludos pálidos de Outono,
Ó Beatitude! Angelitude! Paz!
AO CAIR DA TARDE
Agora nada mais. Tudo silêncio. Tudo.
Esses claros jardins com flores de giesta,
Esse parque real, esse palácio em festa,
Dormindo à sombra de um silêncio surdo e mudo…
Nem rosas, nem luar, nem damas… Não me iludo,
A mocidade aí vem, que ruge e que protesta,
Invasora brutal. E a nós que mais nos resta,
Senão ceder-lhe a espada e o manto de veludo?
Sim, que nos resta mais? Já não fulge e não arde
341
O sol! E no covil negro desse abandono,
Eu sinto o coração tremer como um covarde!
Para que mais viver, folhas tristes de outono?
Cerra-me os olhos, pois, Senhor. É muito tarde.
São horas de dormir o derradeiro sono.
342
EMÍLIO DE MENEZES
(1866—1918)
LITERATURA BRASILEIRA
SUPREMO APELO
Por que causas, de ti, foge a antiga ventura
E toda, em ti, se embebe a alma, em fel e vinagre?
Certo, uma grande dor te fere e te tortura!
— Mas tão grande, que a grande alma assim te conflagre?
Tanto Sol! Tanta Luz! E esta treva perdura!
— De um espírito mau, diabólico milagre —
Mas olha! Volta à Luz! Volta ao Sol que fulgura
Nos Poemas que te eu dê, no Amor que te eu consagre!
Vem beber no meu verso a fortaleza e a vida!...
Vê tu quanto poder num hemistíquio impera,
E o vigor que há na rima — arma nunca excedida!...
Vem, que ao fim da jornada, a glória nos espera!
Vamos! — a galopar, — em fora! a toda a brida,
Na esplanada genial do sonho e da quimera!
JEOVÁ E JESUS
Jeová que, terra ou céu, todo o universo tinha
E lhe indicava o rumo e lhe traçava o norte,
Era, segundo a crença, uma força daninha
Que espalhava o Castigo, a Fome, a Peste, a Morte.
343
A humana geração, estúpida e mesquinha,
Quem quer que hoje a contemple, em místico transporte
Ante o Deus do Pedrão que na alma se lhe aninha,
Sente quanto Jesus a fez mais nobre e forte.
Foi preciso que, humilde, Ele andasse na terra
— Ele que era do céu, Senhor e Majestade, —
Dizendo quanto amor o Amor de Deus encerra!
Nasceu aqui, qual nasce a vil humanidade,
E o que por nós sofreu ainda hoje nos aterra.
Porém do Deus Terror fez ele o Deus Piedade!...
NOITE DE INSÔNIA
Este leito que é o meu, que é o teu, que é o nosso leito,
Onde este grande amor floriu, sincero e justo,
E unimos, ambos nós, o peito contra o peito.
Ambos cheios de anelo e ambos cheios de susto;
Este leito que aí está revolto assim, desfeito,
Onde humilde beijei teus pés, as mãos, o busto.
Na ausência do teu corpo a que ele estava afeito.
Mudou-se, para mim, num leito de Procusto!...
Louco e só! Desvairado! A noite vai sem termo
E, estendendo, lá fora, as sombras augurais.
Envolve a Natureza e penetra o meu ermo.
E mal julgas talvez, quando, acaso, te vais,
Quanto me punge e corta o coração enfermo,
Este horrível temor de que não voltes mais!...
A CHEGADA
Noite de chuva tétrica e pressaga.
Da natureza ao íntimo recesso
Gritos de augúrio vão, praga por praga,
Cortando a treva e o matagal espesso.
Montes e vales, que a torrente alaga,
Venço e à alimária o incerto passo apresso.
344
Da última estrela à réstia Ínfima e vaga
Ínvios caminhos, trêmulo, atravesso.
Tudo me envolve em tenebroso cerco
— D' alma a vida me foge, sonho a sonho,
E a esperança de vê-Ia quase perco.
Mas numa volta, súbito, da estrada
Surge, em auréola, o seu perfil risonho,
Ao clarão da varanda iluminada!
TARDE NA PRAIA
A Leal de Sousa
Quando, à primeira vez, lhe via grandeza,
Foi nos tempos da longe meninice.
E quedei-me à mudez de quem sentisse
A alma de 'pasmos e terrores presa.
Depois, na mocidade, a olhá-lo, disse:
É moço o mar na força e na beleza!
Mas, ao dia apagado e à noite acesa,
Hoje o sinto entre as brumas da velhice.
Distanciado de escarpas e barrancos,
Vejo-o a morrer-me aos pés, calmo, ao abrigo
Das grandes fúrias e os hostis arrancos.
E ao contemplá-lo assim, tristonho digo,
Vendo-lhe, à espuma, os meus cabelos brancos:
O velho mar envelheceu comigo!
ENVELHECENDO
A Luís Murat
Tomba às vezes meu ser. De tropeço a tropeço,
Unidos, alma e corpo, ambos rolando vão.
É o abismo e eu não sei se cresço ou se decresço,
À proporção do mal, do bem à proporção.
Sobe às vezes meu ser. De arremesso a arremesso,
Unidos, estro e pulso, ambos fogem ao chão
345
E eu ora encaro a luz, ora à luz estremeço.
E não sei onde o mal e o bem me levarão.
Fim, qual deles será? Qual deles é começo?
Prêmio, qual deles é? Qual deles é expiação?
Por qual deles ventura ou castigo mereço?
Ante o perpétuo sim, e ante o perpétuo não,
Do bem que sempre fiz, nunca busquei o preço,
Do mal que nunca fiz, sofro a condenação.
A ROMÃ
Mal se confrange na haste a corola sangrenta
e o punício vigor das pétalas descora.
Já no ovário fecundo e intumescido, aumenta
o escrínio em que retém os seus tesouros. Flora!
E ei-la exsurge a Romã. Fruta excelsa e opulenta
que de acesos rubis os lóculos colora
e à casca orbicular, áurea e eritrina ostenta
o ouro do entardecer e o paunásio da aurora!
Fruta heráldica e real, em si, traz à coroa
que o cálice da flor lhe pôs com o mesmo afago
com que a Mãe Natureza os seres galardoa!
Porém a forma hostil, de arremesso e de estrago,
lembra um dardo mortal que o espaço cruza e atroa
nos prélios ancestrais de Roma e de Cartago!
UM PAULISTA NARCISISTA
A Amadeu Amaral
Dizem que, às vezes, quer se achar bonito,
mas, nem sendo Amadeu e sendo amado,
mas muito amado mesmo, eu não hesito:
se não é feio é bem desengraçado.
Entretanto se o vejo (isto é esquisito)
através de um soneto burilado,
e mais que belo, afirmo em alto grito,
346
é o próprio Apolo que lhe fica ao lado.
Mais comprido que a universal história,
este Leconte, com seu ar caipira,
me deixa uma impressão nada ilusória.
Quando ele ao alto a inspiração atira,
com a cabeça a topar no céu da glória,
é um guindaste a guindar a própria lira.
SAI... AZAR!
Seis horas. Estação da Leopoldina.
Tomo o trem. Mal me abanco, uma velhota,
De setenta anos, fala, sopra, arrota,
Numa desenvoltura de menina.
Quero ler. A carcaça, de voz fina,
Tanto fala e me diz tanta lorota,
Que, na raiva, o jornal se me amarrota
E ainda o raio da velha me bolina.
Quero fugir. A peste me segura.
Por pouco mais me torno um assassino.
Sinto que passa um vento de loucura.
E julgo ver que, em meio ao desatino,
Eu era da polícia a atroz figura,
E a velha era a figura do Aurelino.
VINTE ANOS DEPOIS...
"Feia — tu me disseste — o teu amor de outrora,
— Resíduo de mulher, arcabouço de um sonho,
Escrava de um burguês presumido e enfadonho,
Feia e velha mal vive a morrer de hora em hora!"
E tu, poeta querido, a cuja alma sonora,
Sempre, em meu culto de arte, as estrofes deponho,
Mergulhaste ao falar-me este meu ser tristonho,
Numa recordação que me embevece agora!
347
Vejo-lhe a alma infantil de há vinte anos! Revejo
Tudo que houve entre nós nessa manhã de Maio
Que só fez perpetuar o insaciado desejo!
Toda a vida a passar mais rápida que o raio,
Ao néctar virginal do seu primeiro beijo,
Na volúpia imortal do primeiro desmaio!...
O POETA DEUS
Quando a terra volver, de novo, ao caos que a espera,
À imensa escuridão da treva indefinida;
Quando tudo que é som, que é luz, que é primavera,
Mundo e negro fizer a eterna despedida;
Quando não mais houver, no espaço, uma só esfera,
Nem, na amplidão vazia, uma só luz perdida;
Quando, sem água o mar, sem calor a cratera,
Em nada mais houver um vestígio de vida;
Hás de ver ao compor as estrofes de um hino,
A Vida ressurgir ao sopro do teu Verso,
Ao fecundo clangor do teu Alexandrino!...
Pois tens, Poeta Supremo! em tua essência imerso,
Dos Deuses, Deus também, todo o poder divino,
De fazer reviver, no Nada, outro Universo!
348
FAGUNDES VARELA
(1841—1875)
LITERATURA BRASILEIRA
SONETO
Desponta a estrela d’alva, a noite morre.
Pulam no mato alígeros cantores,
E doce a brisa no arraial das flores
Lânguidas queixas murmurando corre.
Volúvel tribo a solidão percorre
Das borboletas de brilhantes cores;
Soluça o arroio; diz a rola amores
Nas verdes balsas donde o orvalho escorre.
Tudo é luz e esplendor; tudo se esfuma
Às carícias da aurora, ao céu risonho,
Ao flóreo bafo que o sertão perfuma!
Porém minh’alma triste e sem um sonho
Repete olhando o prado, o rio, a espuma:
- Oh! mundo encantador, tu és medonho!
ILUSÃO
Sinistro como um fúnebre segredo
Passa o vento do Norte murmurando
Nos densos pinheirais;
A noite é fria e triste; solitário
349
Atravesso a cavalo a selva escura
Entre sombras fatais.
À medida que avanço, os pensamentos
Borbulham-me no cérebro, ferventes,
Como as ondas do mar,
E me arrastam consigo, alucinado,
À casa da formosa criatura
De meu doido cismar.
Latem os cães; as portas se franqueiam
Rangendo sobre os quícios; os criados
Acordem pressurosos;
Subo ligeiro a longa escadaria,
Fazendo retinir minhas esporas
Sobre os degraus lustrosos.
No seu vasto salão iluminado,
Suavemente repousando o seio
Entre sedas e flores,
Toda de branco, engrinaldada a fronte,
Ela me espera, a linda soberana
De meus santos amores.
Corro a seus braços trêmulo, incendido
De febre e de paixão... A noite é negra,
Ruge o vento no mato;
Os pinheiros se inclinam, murmurando:
- Onde vai este pobre cavaleiro
Com seu sonho insensato?...
DEIXA-ME!
Quando cansado da vigília insana
Declino a fronte num dormir profundo,
Por que teu nome vem ferir-me o ouvido,
Lembrar-me o tempo que passei no mundo?
Por que teu vulto se levanta airoso,
Tremente em ânsias de volúpia infinda?
E as formas nuas, e ofegante o seio,
No meu retiro vens tentar-me ainda?
350
Por que me falas de venturas longas,
Por que me apontas um porvir de amores?
E o lume pedes à fogueira extinta,
Doces perfumes a polutas flores?
Não basta ainda essa existência escura,
Página treda que a teus pés compus?
Nem essas fundas, perenais angústias,
Dias sem crenças e serões sem luz?
Não basta o quadro de meus verdes anos
Manchado e roto, abandonado ao pó?
Nem este exílio, do rumor no centro,
Onde pranteio desprezado e só?
Ah! não me lembres do passado as cenas,
Nem essa jura desprendida a esmo!
Guardaste a tua? a quantos outros, dize,
A quantos outros não fizeste o mesmo?
A quantos outros, inda os lábios quentes
De ardentes beijos que eu te dera então,
Não apertaste no vazio seio
Entre promessas de eternal paixão?
Oh! fui um doido que segui teus passos,
Que dei-te em versos de beleza a palma;
Mas tudo foi-se, e esse passado negro
Por que sem pena me despertas n’alma?
Deixa-me agora repousar tranquilo,
Deixa-me agora dormitar em paz,
E com teus risos de infernal encanto
Em meu retiro não me tentes mais!
O VIZIR
- Não derribes meus cedros! murmurava
O gênio da floresta aparecendo
Adiante de um vizir, senão eu juro
Punir-te rijamente! E no entanto
O vizir derribou a santa selva!
Alguns anos depois foi condenado
Ao cutelo do algoz. Quando encostava
351
A cabeça febril no duro cepo,
Recuou aterrado: - “Eternos deuses!
Este cepo é de cedro!” E sobre a terra
A cabeça rolou banhada em sangue!
NÃO TE ESQUEÇAS DE MIM!
Não te esqueças de mim, quando erradia
Perde-se a lua no sidéreo manto;
Quando a brisa estival roçar-te a fronte,
Não te esqueças de mim, que te amo tanto.
Não te esqueças de mim, quando escutares
Gemer a rola na floresta escura,
E a saudosa viola do tropeiro
Desfazer-se em gemido de tristura.
Quando a flor do sertão, aberta a medo,
Pejar os ermos de suave encanto,
Lembre-te os dias que passei contigo,
Não te esqueças de mim, que te amo tanto.
Não te esqueças de mim, quando à tardinha
Se cobrirem de névoa as serranias,
E na torre alvejante o sacro bronze
Docemente soar nas freguesias!
Quando de noite, nos serões de inverno,
A voz soltares modulando um canto,
Lembre-te os versos que inspiraste ao bardo,
Não te esqueças de mim, que te amo tanto.
Não te esqueças de mim, quando meus olhos
Do sudário no gelo se apagarem,
Quando as roxas perpétuas do finado
Junto à cruz de meu leito se embalarem.
Quando os anos de dor passado houverem,
E o frio tempo consumir-te o pranto,
Guarda ainda uma idéia a teu poeta,
Não te esqueças de mim, que te amo tanto.
352
ELEGIA
A noite era bela - dormente no espaço
A lua soltava seus pálidos lumes;
Das flores fugindo, corria lasciva
A brisa embebida de moles perfumes.
Do ermo os insetos zumbiam na relva,
As plantas tremiam de orvalho banhadas,
E aos bandos voavam ligeiras falenas
Nas folhas batendo com as asas douradas.
O túrbido manto das névoas errantes
Pairava indolente no topo da serra;
E aos astros - e às nuvens perfumes - sussurros,
Suspiros e cantos partiam da terra.
Nós éramos jovens - ardentes e sós,
Ao lado um do outro no vasto salão;
E as brisas e a noite nos vinham no ouvido
Cantar os mistérios de infinda paixão!
Nós éramos jovens - e a luz de seus olhos
Brilhava incendida de eternos desejos,
E a sombra indiscreta do níveo corpinho
Sulcava-lhe os seios em brandos arquejos!
Nós éramos jovens - e as balsas floridas
O espaço inundavam - de quentes perfumes,
E o vento chorava nas tílias do parque,
E a lua soltava seus tépidos lumes!...
Ah! mísero aquele que as sendas do mundo
Trilhou sem o aroma de pálida flor,
E à tumba declina, na aurora dos sonhos,
O lábio inda virgem dos beijos de amor!
Não são dos invernos as frias geadas,
Nem longas jornadas que os anos apontam.
O tempo descora nos risos e prantos,
E os dias do homem por gozos se contam.
353
Assim nessa noite de mudas venturas,
De louros eternos minh’alma enastrei;
Que importa-me agora martírios e dores,
Se outrora dos sonhos a taça esgotei?
Ah! lembra-me ainda! - nem um candelabro
Lançava ao recinto seu brando clarão,
Apenas os raios da pálida lua
Transpondo as janelas batiam no chão.
Vestida de branco - nas cismas perdida,
Seu mórbido rosto pousava em meu seio,
E o aroma celeste das negras madeixas
Minh’alma inundava de férvido anseio.
Nem uma palavra seus lábios queridos
Nos doces espasmos diziam-me então:
Que valém palavras, quando ouve-se o peito
E as vidas se fundem no ardor da paixão?
Oh! céus! eram mundos... ai! mais do que mundos
Que a mente invadiam de etéreo fulgor!
Poemas divinos - por Deus inspirados,
E a furto contados em beijos de amor!
No fim do seu giro, da noite a princesa
Deixou-nos unidos em brando sonhar;
Correram as horas - e a luz da alvorada
Em juras infindas nos veio encontrar!
Não são dos invernos as frias geadas,
Nem longas jornadas que os anos apontam...
O tempo descora nos risos e prantos,
E os dias do homem por dores se contam!
Ligeira... essa noite de infindas venturas
Somente em minh’alma lembranças deixou...
Três meses passaram, e o sino do templo
À reza dos mortos os homens chamou!
Três meses passaram - e um lívido corpo
Jazia dos círios à luz funeral,
E, à sombra dos mirtos, o rude coveiro
Abria cantando seu leito afinal!...
354
Nós éramos jovens, e a senda terrestre
Trilhávamos juntos, de amor a sorrir,
E as flores e os ventos nos vinham no ouvido
Contar os arcanos de um longo porvir!
Nós éramos jovens, e as vidas e os seios,
O afeto prendera num cândido nó!
Foi ela a primeira que o laço quebrando
Caiu soluçando das campas no pó!
Não são dos invernos as frias geadas,
Nem longas jornadas que os anos apontam,
O tempo descora nos risos e prantos,
E os dias do homem por dores se contam!
TRISTEZA
Eu amo a noite com seu manto escuro
De tristes goivos coroada a fronte
Amo a neblina que pairando ondeia
Sobre o fastígio de elevado monte.
Amo nas plantas, que na tumba crescem,
De errante brisa o funeral cicio:
Porque minh’alma, como a sombra, é triste,
Porque meu seio é de ilusões vazio.
Amo a desoras sob um céu de chumbo,
No cemitério de sombria serra,
O fogo-fátuo que a tremer doideja
Das sepulturas na revolta terra.
Amo ao silêncio do ervaçal partido
De ave noturna o funerário pio,
Porque minh’alma, como a noite, é triste,
Porque meu seio é de ilusões vazio.
Amo do templo, nas soberbas naves,
De tristes salmos o troar profundo;
Amo a torrente que na rocha espuma
E vai do abismo repousar no fundo.
Amo a tormenta, o perpassar dos ventos,
355
A voz da morte no fatal parcel,
Porque minh’alma só traduz tristeza,
Porque meu seio se abrevou de fel.
Amo o corisco que deixando a nuvem
O cedro parte da montanha, erguido,
Amo do sino, que por morto soa,
O triste dobre na amplidão perdido.
Amo na vida de miséria e lodo,
Das desventuras o maldito seio,
Porque minh’alma se manchou de escárnios,
Porque meu seio se cobriu de gelo.
Amo o furor do vendaval que ruge,
Das asas negras sacudindo o estrago;
Amo as metralhas, o bulcão de fumo,
De corvo as tribos em sangrento lago.
Amo do nauta o doloroso grito
Em frágil prancha sobre mar de horrores,
Porque meu seio se tornou de pedra,
Porque minha’alma descorou de dores.
O céu de anil, a viração fagueira,
O lago azul que os passarinhos beijam,
A pobre choça do pastor no vale,
Chorosas flores que ao sertão vicejam,
A paz, o amor, a quietação e o riso
A meus olhares não têm mais encanto,
Porque minh’alma se despiu de crenças,
E do sarcasmo se embuçou no manto.
O EXILADO
O exilado está só por toda a parte!
Passei tristonho dos salões no meio,
Atravessei as turbulentas praças
Curvado ao peso de uma sina escura;
As turbas contemplaram-me sorrindo,
Mas ninguém divisou a dor sem termos
356
Que as fibras de meu peito espedaçava.
O exilado está só por toda a parte!
Quando, à tardinha, dos floridos vales
Eu via o fumo se elevar tardio
Por entre o colmo de tranquilo albergue,
Murmurava a chorar: - Feliz aquele
Que à luz amiga do fogão doméstico,
Rodeado dos seus, à noite, senta-se.
O exilado está só por toda a parte!
Onde vão estes flocos de neblina
Que o euro arrasta nas geladas asas?
Onde vão essas tribos forasteiras
Que à tempestade se esquivar procuram?
Ah! que me importa?... também eu doidejo,
E onde irei, Deus o sabe, Deus somente.
O exilado está só por toda a parte!
Desta campina as árvores são belas,
São belas estas flores que se vergam
Das auras estivais ao débil sopro;
Mas nem a sombra que no chão se alonga,
Nem o perfume que o ambiente inunda
São dessa gleba divinal que adoro.
O exilado está só por toda a parte!
Mole e lascivo no tapiz da selva
Serpeia o arroio, e o deslizar queixoso
Peja de amor as solidões dormentes;
Mas nunca o rosto refletiu-me um dia,
Nem foi seu burburinho enlanguescido
Que embalou minha infância a descuidosa.
O exilado está só por toda a parte!
- Por que chorais? me perguntou o mundo;
Contai-nos vossa dor, talvez possamos
Saná-la às gotas de elixir suave;
Mas, quando eu suspendi a lousa escura
Que o túmulo cobria-me da vida,
Riram-se pasmos sem sondar-lhe o fundo.
O exilado está só por toda a parte!
Vi o ancião da prole rodeado
357
Sorrir-se calmo e bendizer a Deus,
Vi junto à porta da nativa choça
As crianças beijarem-se abraçadas;
Mas de filho ou de irmão o santo nome
Ninguém me deu, e eu fui passando triste.
O exilado está só por toda a parte!
Quando verei essas montanhas altas
Que o sol dourava nas manhãs de agosto?
Quando, junto à lareira, as folhas lívidas
Deslembrarei de meu sombrio drama?
Doida esperança! as estações sucedem-se
E sem um gozo vou descendo à campa.
O exilado está só por toda a parte!
Brandas aragens, que roçais fagueiras
Das maravilhas nas cheirosas frontes,
Aves sem pátria, que cortais os ares,
Irmãs na sorte do infeliz romeiro,
Ah! levai um suspiro à pátria amada,
Último alento de cansado peito.
O exilado está só por toda a parte!
Quando nas folhas de lustrosos plátanos
Novos luares descansarem gratos,
Já sobre a estrada de meus pés os traços
O pegureiro não verá, que passa!
Mísero! ao leito de final descanso
Ninguém meu sono velará chorando.
O exilado está só por toda a parte!
AURORA
Antes de erguer-se de seu leito de ouro,
O rei dos astros o Oriente inunda
De sublime clarão;
Antes de as asas desprender no espaço,
A tempestade agita-se e fustiga
O turbilhão dos euros.
As torrentes de idéias que se cruzam,
O pensamento eterno que se move
No levante da vida,
358
São auras santas, arrebóis esplêndidos,
Que precedem à vinda triunfante
De um sol imorredouro.
O murmurar profundo, enrouquecido,
Que do seio dos povos se levanta,
Anuncia a tormenta;
Essa tormenta salutar e grande
Que o manto roçará, prenhe de fogo,
Na face das nações.
Preparai-vos, ó turbas! Preparai-vos,
Rebatei vossos ferros e cadeias,
Algozes e tiranos!
A hora se aproxima pouco a pouco,
E o dedo do Senhor já volve a folha
Do livro do destino!
Grande há de ser o drama, a ação gigante,
Majestosa a lição! luzes e trevas
Lutarão sobre os orbes!
O abismo soltará seus tredos roncos,
E o frêmito dos mares agitados
Se unirá aos das turbas.
Os reis convulsarão nos tronos frágeis,
Buscando embalde sustentar nas frontes
As úmidas coroas...
Debalde!... o vendaval na fúria insana
Os levará com elas, envolvidos
Num turbilhão de pó!
Vis, abatidos, o fidalgo e o rico
Sairão de seus paços vacilantes
Nos podres alicerces...
E errantes sobre a terra irão chorando,
Mendigar um farrapo ao vagabundo,
E um pedaço de pão!
Estranho povo surgirá da sombra
Terrível e feroz cobrindo os campos
De cruentos horrores!
O palácio e a prisão irão por terra,
E um segundo dilúvio, então de sangue,
359
O mundo lavará!
O sábio em seu retiro, estupefato,
Verá tombar a imagem da ciência,
Fria estátua de argila,
E um pálido clarão dirá que é perto
O astro divinal que às turbas míseras
Conduz a redenção!
Como aos dias primeiros do universo,
O globo se erguerá banhado em luzes,
Reflexos de Deus;
E a raça humana sob um céu mais puro
Um hino insigne enviará, prostrada
Aos pés do Onipotente!
Irmãos todos serão; todos felizes;
Iguais e belos, sem senhor nem peias,
Nem tiranos e ferros!
O amor os unirá num laço estreito,
E o trânsito da vida uma romagem
Se tornará celeste!
A hora se aproxima pouco a pouco;
O dedo do Senhor já volve a folha
Do livro do destino!...
Ergue-se a tela do teatro imenso,
E o mistério infinito se desvenda
Do drama do Calvário!
AS SELVAS
Selvas do Novo Mundo, amplos zimbórios,
Mares de sombra e ondas de verdura,
Povo de Atlantes soberano e mudo
Em cujos mantos o tufão murmura.
Salve! minh’alma vos procura embalde,
Embalde triste vos estendo os braços...
Cercam-me o corpo rebatidos muros,
Prendem-me as plantas enredados laços!...
Pátria da liberdade! antros profundos!
360
Vastos palácios! eternais castelos!
Mandai-me os gênios das sombrias grutas
De meus grilhões espedaçar os elos!...
Ah! que eu não possa me esquivar dos homens,
Matar a febre que meu ser consome,
E entre alegrias me arrojar cantando
Nas secas folhas do sertão sem nome!
Ah! que eu não possa desprender aos ermos
O fogo ardente que meu crânio encerra,
Gastar os dias entre o espaço e Deus
Nas matas virgens da colúmbia terra!
Eu não detesto nem maldigo a vida,
Nem do despeito me remorde a chaga,
Mas ah! sou pobre, pequenino e débil
E sobre a estrada o viajor me esmaga!
Que faço triste no rumor das praças?
Que busco pasmo nos salões dourados?
Verme do lodo me desprezam todos,
O pobre e os grandes de esplendor cercados!
Fere-me os olhos o clarão do mundo,
Rasgam-me o seio prematuras dores,
E à mágoa insana que me enluta as noites,
Declino à campa na estação das flores.
E há tanto encanto nas florestas virgens,
Tanta beleza do sertão na sombra,
Tanta harmonia no correr do rio,
Tanta delícia na campestre alfombra...
Que inda pudera reviver de novo,
E entre venturas flutuar minh’alma,
Fanada planta que mendiga apenas
A noite, o orvalho, a viração e a calma!
À LUCÍLIA
Se eu pudesse ao luar, Lucília bela,
Queimar-te a fronte de insensatos beijos,
361
Dobrar-te ao colo, minha flor singela,
Ao fogo insano de eternais desejos;
Ai! se eu pudesse de minh’alma aos elos
Prender tu’alma enfebrecida e cálida,
Erguer na vida os festivais castelos
Que tantas noites planejaste, pálida;
Ai! se eu pudesse nos teus olhos turvos
Beber a vida da volúpia ao véu,
Bem como os juncos sobre as ondas curvos
A chuva bebem que derrama o céu,
Talvez que as mágoas que meu peito ralam
Em cinzas frias se perdessem logo,
Como as violas que ao verão trescalam
Somem-se aos raios de celeste fogo!
Oh! vem Lucília! é tão formosa a aurora
Quando uma fada lhe batiza o alvor,
E a madressilva, que ao frescor vapora
Os ares peja de lascivo amor...
Sou moço ainda; de meu seio aos ermos
Posso-te louco arrebatar comigo...
De um mundo novo na solidão sem termos
Deitar-te à sombra de amoroso abrigo!
Tenho um dilúvio de ilusões na fronte,
Um mundo inteiro de esperanças n’alma,
Ergue-te acima de azulado monte,
Terás dos gênios do infinito a palma!...
CHILDE-HAROLD
(Sobre uma página de Byron)
Não te rias assim, oh! não te rias,
Basta de sonhos, de ilusões fatais!
Minh’alma é nua, e do porvir às luzes
Meus roxos lábios sorrirão jamais!
Que pesar me consome? ah! não procures
Erguer a lousa de um pesar profundo,
362
Nem apalpares a matéria lívida,
E a lama impura que pernoita ao fundo!
Não são as flores da ambição pisadas,
Não é a estrela de um porvir perdida...
Que esta cabeça coroou de sombras
E a tumba inclina ao despontar da vida!
É este enojo perenal, contínuo,
Que em toda a parte me acompanha os passos,
E ao dia incende-me as artérias quentes,
Me aperta à noite nos mirrados braços!
São estas larvas de martírio e dores
Sócias constantes do judeu maldito!
Em cuja testa, dos tufões crestada,
Labéu de fogo cintilava escrito!
Quem de si mesmo desterrar-se pode?
Quem pode a idéia aniquilar que o mata?
Quem pode altivo esmigalhar o espelho
Que a torva imagem de Satã retrata?
Quantos encontram inefáveis gozos
Nesses prazeres, para mim tormentos!
Quantos nos mares onde a morte enxergo
Abrem as velas do baixel aos ventos!
O meu destino é vaguear e sempre!
Sempre fugindo funeral lembrança...
Férreo estilete que me rasga os músculos,
Voz dos abismos que me brada: - Avança!
Que pesar me consome? ai! não mais tentes,
Espera a lousa de um pesar profundo,
Somente a morte encontrarás nas bordas,
E o inferno inteiro a praguejar no fundo!
O SABIÁ
(Cançoneta)
Oh! meu sabiá formoso,
Sonoroso,
363
Já desponta a madrugada,
Desabrocha a linda rosa
Donairosa,
Sobre a campina orvalhada.
Manso o regato murmura
Na verdura
Descrevendo giros mil,
Some-se a estrela brilhante,
Vacilante,
No horizonte cor de anil.
Ergue-te, oh! meu passarinho,
De teu ninho,
Vem gozar da madrugada...
Modula teu terno canto,
Doce encanto
De minh’alma amargurada.
Vem junto à minha janela,
Sobre a bela
Verdejante laranjeira,
Beber o eflúvio das flores,
Teus amores,
Nas asas de aura fagueira.
Desprende a voz adorada,
Namorada,
Poeta da solidão,
Ah! vem lançar com encanto
Mais um canto,
No livro da criação!
Oh! meu sabiá formoso,
Sonoroso,
Já desponta a madrugada...
Deixa teu ninho altaneiro,
Vem ligeiro
Saudar a luz da alvorada.
NÉVOAS
Nas horas tardias que a noite desmaia,
364
Que rolam na praia mil vagas azuis,
E a lua cercada de pálida chama
Nos mares derrama seu pranto de luz.
Eu vi entre os flocos de névoas imensas,
Que em grutas extensas se elevam no ar,
Um corpo de fada, serena dormindo,
Tranquila sorrindo num brando sonhar.
Na forma de neve, puríssima e nua,
Um raio da lua de manso batia,
E assim reclinada no túrbido leito
Seu pálido peito de amores tremia.
Oh! filha das névoas! das veigas viçosas,
Das verdes, cheirosas roseiras do céu,
Acaso rolaste tão bela dormindo,
E dormes, sorrindo, das nuvens no véu?
O orvalho das noites congela-te a fronte,
As orlas do monte se escondem nas brumas,
E queda repousas num mar de neblina,
Qual pérola fina no leito de espumas!
Nas nuas espáduas, dos astros dormentes,
Tão frio não sentes o pranto filtrar?
E as asas de prata do gênio das noites
Em tíbios açoites a trança agitar?
Ai! vem, que nas nuvens te mata o desejo
De um férvido beijo gozares em vão!...
Os astros sem alma se cansam de olhar-te,
Não podem amar-te, nem dizem paixão!
E as auras passavam, e as névoas tremiam,
E os gênios corriam no espaço a cantar,
Mas ela dormia tão pura e divina
Qual pálida ondina nas águas do mar!
Imagem formosa das nuvens da Ilíria,
Brilhante Valquíria das brumas do norte,
Não ouves ao menos do bardo os clamores,
Envolta em vapores mais fria que a morte!
Oh! vem! vem, minh’alma! teu rosto gelado,
365
Teu seio molhado de orvalho brilhante,
Eu quero aquecê-los ao peito incendido,
Contar-te ao ouvido paixão delirante!...
Assim eu clamava tristonho e pendido,
Ouvindo o gemido da onda na praia,
Na hora em que fogem as névoas sombrias,
Nas horas tardias que a noite desmaia.
E as brisas da aurora ligeiras corriam,
No leito batiam da fada divina...
Sumiram-se as brumas do vento à bafagem
E a pálida imagem desfez-se em neblina!
VIDA DE FLOR
Por que vergas-me a fronte sobre a terra?
Diz a flor da colina ao manso vento,
Se apenas às manhãs o doce orvalho
Hei gozado um momento?
Tímida ainda, nas folhagens verdes
Abro a corola à quietação das noites,
Ergo-me bela, me rebaixas triste
Com teus feros açoites!
Oh! deixa-me crescer, lançar perfumes,
Vicejar das estrelas à magia,
Que minha vida pálida se encerra
No espaço de um só dia!
Mas o vento agitava sem piedade
A fronte virgem da cheirosa flor,
Que pouco a pouco se tingia, triste,
De mórbido palor.
Não vês, oh brisa? lacerada, murcha,
Tão cedo ainda vou pendendo ao chão,
E em breve tempo esfolharei já morta
Sem chegar ao verão?
Tem piedade de mim! deixa-me ao menos
Desfrutar um momento de prazer,
366
Pois que é meu fado despontar na aurora
E ao crepúsc’ulo morrer!...
Brutal amante não lhe ouviu as queixas,
Nem às suas dores atenção prestou,
E a flor mimosa, retraindo as pétalas,
Na tige se inclinou.
Surgiu na aurora, não chegou à tarde,
Teve um momento de existência só!
A noite veio, procurou por ela,
Mas a encontrou no pó.
Ouviste, oh virgem, a legenda triste
Da flor do outeiro e seu funesto fim?
Irmã das flores à mulher, às vezes
Também sucede assim.
O FORAGIDO
(Canção)
Minha casa é deserta; na frente
Brotam plantas bravias do chão,
Nas paredes limosas o cardo
Ergue a fronte silente ao tufão.
Minha casa é deserta. O que é feito
Desses templos benditos de outrora,
Quando em torno cresciam roseiras,
Onde as auras brincavam na aurora?
Hoje a tribo das aves errantes
Dos telhados se acampa no vão,
A lagarta percorre as muralhas,
Canta o grilo pousado ao fogão.
Das janelas no canto, as aranhas
Leves tremem nos fios dourados,
As avencas pululam viçosas
Na umidade dos muros gretados.
Tudo é tredo, meu Deus! o que é feito
Dessas eras de paz que lá vão,
Quando junto do fogo eu ouvia
367
As legendas sem fim do serão?
No curral esbanjado, entre espinhos,
Já não bala ansioso o cordeiro,
Nem desperta-se ao toque do sino,
Nem ao canto do galo ao poleiro.
Junto à cruz que se eleva na estrada
Seco e triste se embala o chorão,
Não há mais o esfumar das acácias,
Nem do crente a sentida oração.
Não há mais uma voz nestes ermos,
Um gorjeio das aves no val;
Só a fúria do vento retroa
Alta noite agitando o ervaçal.
Ruge, oh! vento gelado do norte,
Torce as plantas que brotam do chão,
Nunca mais eu terei as venturas
Desses tempos de paz que lá vão!
Nunca mais desses dias passados
Uma luz surgirá dentre as brumas!
As montanhas se embuçam nas trevas,
As torrentes se vendam de espumas!
Corre, pois, vendaval das tormentas,
Hoje é tua esta morna soidão!
Nada tenho, que um céu lutulento
E uma cama de espinhos no chão!
Ruge, voa, que importa! sacode
Em lufadas as crinas da serra;
Alma nua de crença e esperanças,
Nada tenho a perder sobre a terra!
Vem, meu pobre e fiel companheiro,
Vamos, vamos depressa, meu cão,
Quero ao longo perder-me das selvas
Onde passa rugindo o tufão!
A MULHER
368
(A C...)
A mulher sem amor é como o inverno,
Como a luz das antélias no deserto,
Como espinheiro de isoladas fragas,
Como das ondas o caminho incerto.
A mulher sem amor é mancenilha
Das ermas plagas sobre o chão crescida,
Basta-lhe à sombra repousar um’hora
Que seu veneno nos corrompe a vida.
De eivado seio no profundo abismo
Paixões repousam num sudário eterno...
Não há canto nem flor, não há perfumes,
A mulher sem amor é como o inverno.
Su’alma é um alaúde desmontado
Onde embalde o cantor procura um hino;
Flor sem aromas, sensitiva morta,
Batel nas ondas a vagar sem tino.
Mas, se um raio do sol tremendo deixa
Do céu nublado a condensada treva,
A mulher amorosa é mais que um anjo,
É um sopro de Deus que tudo eleva!
Como o árabe ardente e sequioso
Que a tenda deixa pela noite escura
E vai no seio de orvalhado lírio
Lamber a medo a divinal frescura,
O poeta a venera no silêncio,
Bebe o pranto celeste que ela chora,
Ouve-lhe os cantos, lhe perfuma a vida...
- A mulher amorosa é como a aurora.
TRISTEZA
Minh’alma é como o deserto
De dúbia areia coberto,
Batido pelo tufão;
É como a rocha isolada,
Pelas espumas banhada,
369
Dos mares na solidão.
Nem uma luz de esperança,
Nem um sopro de bonança
Na fronte sinto passar!
Os invernos me despiram
E as ilusões que fugiram
Nunca mais hão de voltar!
Roem-me atrozes idéias,
A febre me queima as veias;
A vertigem me tortura!...
Oh! por Deus! quero dormir,
Deixem-me os braços abrir
Ao sono da sepultura!
Despem-se as matas frondosas,
Caem as flores mimosas
Da morte na palidez,
Tudo, tudo vai passando...
Mas eu pergunto chorando:
Quando virá minha vez?
Vem, oh virgem descorada,
Com a fronte pálida ornada
De cipreste funerário,
Vem! oh! quero nos meus braços
Cerrar-te em meigos abraços
Sobre o leito mortuário!
Vem, oh morte! a turba imunda
Em sua miséria profunda
Te odeia, te calunia...
- Pobre noiva tão formosa
Que nos espera amorosa
No termo da romaria.
Quero morrer, que este mundo
Com seu sarcasmo profundo
Manchou-me de lodo e fel,
Porque meu seio gastou-se,
Meu talento evaporou-se
Dos martírios ao tropel!
370
Quero morrer: não é crime
O fardo que me comprime
Dos ombros lançar ao chão,
Do pó desprender-me rindo
E as asas brancas abrindo
Lançar-me pela amplidão!
Oh! quantas louras crianças
Coroadas de esperanças
Descem da campa à friez!...
Os vivos vão repousando;
Mas eu pergunto chorando:
- Quando virá minha vez?
Minh’alma é triste, pendida,
Como a palmeira batida
Pela fúria do tufão.
É como a praia que alveja,
Como a planta que viceja
Nos muros de uma prisão!
371
FAUSTINO XAVIER DE NOVAIS
(1820—1869)
LITERATURA PORTUGUESA
EMBIRRAÇÃO
A balda alexandrina é poço imenso e fundo,
Onde poetas mil, flagelo deste mundo,
Patinham sem parar, chamando lá por mim.
Não morrerão, se um verso, estiradinho assim,
Da beira for do poço, extenso como ele é,
Levar-lhes grosso anzol; então eu tenho fé
Que volte um afogado, á luz da mocidade,
A ver no mundo seco a seca realidade.
Por eles, e por mim, receio, caro amigo;
Permite o desabafo aqui, a sós contigo,
Que á moda fazer guerra, eu sei quanto é fatal;
Nem vence o positivo o frívolo ideal;
Despótica em seu mando, é sempre fátua e vã,
E até da vã loucura a moda é prima-irmã:
Mas quando venha o senso erguer-lhe os densos véus,
Do verso alexandrino ha de livrar-nos Deus.
Deus quando abre ao poeta ás portas desta vida,
Não lhe depara o gozo e a gloria apetecida;
E o triste, se morreu, deixando mal escritas
Em verso alexandrino histórias infinitas,
Vai ter lá n'outra vida insípido desterro,
Se Deus, por compaixão, não dá perdão ao erro;
Fechado em quarto escuro, á noite não tem luz,
E se é cá do meu gosto o guarda que o conduz,
372
Debalde, imerso em pranto, implora o livramento;
Não torna a ser, aqui, das Musas o tormento;
Castigo alexandrino, eterna solidão,
Terá lá no desterro, em premio da ilusão;
Verá queimar, á noite, as rosas esfolhadas,
Que a moda lhe ofertara, e trouxe tão cuidadas,
E ao pé do fogo intenso, ardendo em cruas dores,
Verá que versos tais são galhos, não dão flores;
Que, lendo-os a pedido, a criatura santa,
A paciência lhe foge, a fé se lhe quebranta,
Se vai dum verso ao fim; depois... treme... vacila...
Dormindo, cai no chão; mais tarde, já tranquila,
Sonha com verso-verso, e as ilusões floridas,
Risonhas, vem mostrar-lhe as largas avenidas
Que o longo verso-prosa oculta, do porvir!
Sonhando, ao menos, pode amar, gozar, sentir,
Que um sono alexandrino a deixa ali em paz,
Dormir... dormir... dormir... erguer-se, enfim, vivaz,
Bradando: “Clorofórmio! O gênio que te pôs,;
A palma cede ao metro esguio, teu algoz!”
E aspiras, vate, assim, da gloria ao ideal?
Triste e funesto afã!... tentativa fatal!
Nesta sede de luz, nesta fome d'amor,
O poeta corre a estrela, á brisa, ao mar, á flor;
Quer ver-lhe a luz na luz da estreita peregrina,
Quer-lhe o aroma sentir na rosa da campina,
Na brisa o doce alento, a voz na voz do mar;
Ó inútil esforço! Ó ímprobo lutar!
Em vez da luz, do aroma, ou do alento, ou da voz,
O verso alexandrino, o impassível algoz!...
Não cantas a tristeza, e menos a ventura;
Que em vez do sabiá gemendo na espessura,
Imitarás, no canto, o grilo atrás do lar;
Mas desse estreito asilo, escuro e recatado,
Alegre hás de fugir, que erguendo altivo brado,
A lírica harmonia ha de ir-te despertar!
Verás de novo aberta a copiosa fonte!
Da poesia verás tão lúcido o horizonte,
Que a mente não calcula, e onde se perde o olhar,
Que nas asas do gênio, a voar pelo espaço,
Dá perna sacudindo o alexandrino laço,
373
Hás de a mão bendizer que o soube desatar.
Do precipício foge, e segue a luz secreta,
Essa estrela polar dos sonhos do poeta;
Mas, n'outro verso, amigo, onde ao mago ideal
A musica se ligue, o senso e a verdade;
— N'um destes vai-se, a ler, da vida a imensidade
Da sílaba primeira á sílaba final!
Meu Deus! Esta existência é transitória e passa;
Se fraco fui aqui, pecando por desgraça;
Se já não tenho jus ao vosso puro amor;
Se nem da salvação nutrir posso a esperança,
Quero em chamas arder, sofrer toda a provança
— Ler verso alexandrino... Oh! isso não, Senhor
374
FAUSTO GUEDES TEIXEIRA
(1871—1940)
LITERATURA PORTUGUESA
AMAR OU ODIAR
Amar ou odiar: ou tudo ou nada!
O meio termo é que não pode ser.
A alma tem que estar sobressaltada
Para o nosso barro se sentir viver...
Não é uma cruz a que não for pesada,
Metade de um prazer não é um prazer;
E quem quiser a alma sossegada,
Fuja do mundo e deixe-se morrer!
Vive-se tanto mais quando se sente:
Todo o valor está no que sofremos.
Que nenhum homem seja indiferente!
Amemos muito como odiamos já:
A verdade está sempre nos extremos
Porque é no sentimento que ela está!
VERSOS À GRÉCIA
Mata o amor da Pátria o amor da Humanidade,
E ao pé da nossa Pátria, a Humanidade o que é?!
Só em face da morte é que existe a igualdade;
375
Mesmo entre irmãos, na vida, há distâncias até.
Espírito que o mundo em teu abraço agarras,
São debaixo do céu os homens tão dif’rentes!
Pra defender os mais, sentimo-nos com garras,
Mas, pra nos defender, temos até os dentes.
Os gritos dos clarins da velha Grécia em p’rigo,
O grande coração desse povo aviltado
Se em todos encontrou um coração amigo,
Fez do homem mais fraco um heróico soldado.
A nossa linda terra é Deus que no-la guarda!
Mas para libertar, convosco, o vosso solo,
Só não há de saber pegar numa espingarda
Quem não souber pegar numa criança ao colo.
Há mil bocas de fogo em cada peito: é abri-lo!
Nas bocas dos canhões há corações a arder!
Fala-se em pátria? Basta! É o seu torrão aquilo
Que eles defendem? Basta! Eles hão de vencer.
Lutar-se braço a braço e fibra contra fibra,
É o que a nossa razão e consciência ensina;
Não gosto do punhal, mas quando quem o vibra
É fraco e aviltado, é uma arma divina!
Porque sou, como vós, dum país ameaçado,
Eu compreendo, agora, o vosso ódio bem;
Amanhã entrarão no meu país amado
E tentarão matar os meus irmãos também.
Que importa? Ao expirar coberto de mil f’ridas,
Eu direi para mim, mais viva a fé que tinha,
Que todas as nações poderão ser vencidas,
Há uma só que nunca o pode ser: é a minha!
Pois pensai vós também que, seja como for,
Não há nada e ninguém que aniquilar-vos possa,
E a bandeira que ergueis, de que nem sei a cor,
Há de tomar no ar as lindas cor’s da nossa.
Sofrereis? Certamente! E que importa sofrer?
Só a dor purifica e torna a vida bela!
376
Quem me dera uma hora igual, p’ra combater!
A minha Pátria assim, para morrer por ela!
SONETO
Não há mulher que não tenha um encanto,
todas são belas seja no que for;
a alma, por mais oculta, em qualquer canto
há de romper, e dar a sua flor.
Mas quando nada dê, temos, no emianto,
em nós, poder de tudo lhe supor
desde a pureza, se esse amor é santo,
ao mais, se o nosso amor é bem amor.
Entre as surpresas de que nos rodeia
a vida, pode uma alma ser perdida?
criatura de amor, que seja feia?
Sonho que eu vivo, e por que, há tanto, chamo!
Quem me dera, através da minha vida,
encontrar, afinal, a que eu não aniol...
377
FERNANDO PESSOA
(1888—1935)
LITERATURA PORTUGUESA
TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo.
que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes
e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
378
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
POEMA EM LINHA RETA
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
379
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
O GUARDADOR DE REBANHOS
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
380
ODE MARÍTIMA
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue —
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui…
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
381
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
ANIVERSÁRIO
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…
A que distância!…
(Nem o acho…)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes…
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…
382
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim…
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
PRESSÁGIO
O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente…
Cala: parece esquecer…
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar…
NÃO SEI QUANTAS ALMAS TENHO
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
383
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.
TODAS AS CARTAS DE AMOR…
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
384
São naturalmente
Ridículas.)
O CEGO E A GUITARRA
O ruído vário da rua
Passa alto por mim que sigo.
Vejo: cada coisa é sua
Oiço: cada som é consigo.
Sou como a praia a que invade
Um mar que torna a descer.
Ah, nisto tudo a verdade
É só eu ter que morrer.
Depois de eu cessar, o ruído.
Não, não ajusto nada
Ao meu conceito perdido
Como uma flor na estrada.
Cheguei à janela
Porque ouvi cantar.
É um cego e a guitarra
Que estão a chorar.
Ambos fazem pena,
São uma coisa só
Que anda pelo mundo
A fazer ter dó.
Eu também sou um cego
Cantando na estrada,
A estrada é maior
E não peço nada.
385
FLORBELA ESPANCA
(1894—1930)
LITERATURA PORTUGUESA
SER POETA É SER MAIS ALTO
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
OS VERSOS QUE TE FIZ
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.
Têm dolência de veludos caros,
386
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!
Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!
Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!
O NOSSO MUNDO
Que importa o mundo e as ilusões defuntas?...
Que importa o mundo seus orgulhos vãos?...
O mundo, Amor?... As nossas bocas juntas!...
NÃO SER
Ah! arrancar às carnes laceradas
Seu mísero segredo de consciência!
Ah! poder ser apenas florescência
De astros em puras noites deslumbradas!
Ser nostálgico choupo ao entardecer,
De ramos graves, plácidos, absortos
Na mágica tarefa de viver!
***
Quem nos deu asas para andar de rastos?
Quem nos deu olhos para ver os astros
- Sem nos dar braços para os alcançar?!...
LANGUIDEZ
Fecho as pálpebras roxas, quase pretas,
Que poisam sobre duas violetas,
Asas leves cansadas de voar...
387
E a minha boca tem uns beijos mudos...
E as minhas mãos, uns pálidos veludos,
Traçam gestos de sonho pelo ar...
FUMO
Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas;
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!
FANATISMO
Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!
"Tudo no mundo é frágil, tudo passa..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!..."
EM TI O MEU OLHAR FEZ-SE ALVORADA
Em ti o meu olhar fez-se alvorada,
E a minha voz fez-se gorgeio de ninho,
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura do linho
BEIJA-MAS BEM!
388
Beija-mas bem!... Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os beijos que sonhei pra minha boca!...
AQUELES QUE ME TÊM MUITO AMOR
Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.
E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!
Sinto os passos de Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!
E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!
AMAR
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...
389
EU SOU A QUE NO MUNDO ANDA PERDIDA
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...
Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...
Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!
NOITE DE SAUDADE
A Noite vem pousando devagar
Sobre a Terra, que inunda de amargura...
E nem sequer a benção do luar
A quis tornar divinamente pura...
Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura...
E eu oiço a Noite imensa soluçar!
E eu oiço soluçar a Noite escura!
Porque és assim tão escura, assim tão triste?!
é que, talvez, ó Noite, em ti existe
Uma saudade igual à que eu contenho!
Saudade que eu sei donde me vem...
Talvez de ti, ó Noite!... Ou de ninguém!...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!
390
DA MINHA JANELA
Mar alto! Ondas quebradas e vencidas
Num soluçar aflito e murmurado...
Ovo de gaivotas, leve, imaculado,
Como neves nos píncaros nascidas!
Sol! Ave a tombar, asas já feridas,
Batendo ainda num arfar pausado...
Ó meu doce poente torturado
Rezo-te em mim, chorando, mãos erguidas!
Meu verso de Samain cheio de graça,
Inda não és clarão já és luar
Como branco lilás que se desfaça!
Amor! teu coração trago-o no peito...
Pulsa dentro de mim como este mar
Num beijo eterno, assim, nunca desfeito!...
SAUDADES
Saudades! Sim... talvez... e porque não?...
Se o nosso sonho foi tão alto e forte
Que bem pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!
Esquecer! Para quê?... Ah! como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como pão!
Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar,
Mais doidamente me lembrar de ti!
E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim!
À VIDA
391
É vão o amor, o ódio, ou o desdém;
Inútil o desejo e o sentimento...
Lançar um grande amor aos pés de alguém
O mesmo é que lançar flores ao vento!
Todos somos no mundo "Pedro Sem",
Uma alegria é feita dum tormento,
Um riso é sempre o eco dum lamento,
Sabe-se lá um beijo de onde vem!
A mais nobre ilusão morre... desfaz-se...
Uma saudade morta em nós renasce
Que no mesmo momento é já perdida...
Amar-te a vida inteira eu não podia,
A gente esquece sempre o bom de um dia.
Que queres, meu Amor, se é isto a vida!
À MORTE
Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E como uma raiz, sereno e forte.
Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.
Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!
Vim da Moirama, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
À tua espera... quebra-me o encanto!
DESEJOS VÃOS
Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!
392
Eu queria ser o sol, a luz intensa
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até da morte!
Mas o mar também chora de tristeza...
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos céus, os braços, como um crente!
E o sol altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as pedras... essas... pisa-as toda a gente!...
O TEU OLHAR
Passam no teu olhar nobres cortejos,
Frotas, pendões ao vento sobranceiros,
Lindos versos de antigos romanceiros,
Céus do Oriente, em brasa, como beijos,
Mares onde não cabem teus desejos;
Passam no teu olhar mundos inteiros,
Todo um povo de heróis e marinheiros,
Lanças nuas em rútilos lampejos;
Passam lendas e sonhos e milagres!
Passa a Índia, a visão do Infante em Sagres,
Em centelhas de crença e de certeza!
E ao sentir-se tão grande, ao ver-te assim,
Amor, julgo trazer dentro de mim
Um pedaço da terra portuguesa!
LOUCURA
Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada
Pavorosa! Não sei onde era dantes.
Meu solar, meus palácios, meus mirantes!
Não sei de nada, Deus, não sei de nada!...
Passa em tropel febril a cavalgada
Das paixões e loucuras triunfantes!
393
Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes!
Não tenho nada, Deus, não tenho nada!...
Pesadelos de insônia, ébrios de anseio!
Loucura a esboçar-se, a enegrecer
Cada vez mais as trevas do meu seio!
Ó pavoroso mal de ser sozinha!
Ó pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro da minha!
EU
Até agora eu não me conhecia.
Julgava que era Eu e eu não era
Aquela que em meus versos descrevera
Tão clara como a fonte e como o dia.
Mas que eu não era eu não o sabia
E, mesmo que o soubesse, não o dissera...
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim... e não me via!
Andava a procurar-me - pobre louca! E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!
E esta ânsia de viver, que nada acalma,
É a chama da tua alma a esbrasear
As apagadas cinzas da minha alma!
SE TU VIESSES VER-ME
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...
Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...
394
Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri
E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...
TEUS OLHOS
Olhos do meu Amor! Infantes loiros
Que trazem os meus presos, endoidados!
Neles deixei, um dia, os meus tesoiros:
Meus anéis, minhas rendas, meus brocados.
Neles ficaram meus palácios moiros,
Meus carros de combate, destroçados,
Os meus diamantes, todos os meus oiros
Que trouxe d’Além-Mundos ignorados!
Olhos do meu Amor! Fontes... cisternas...
Enigmáticas campas medievais...
Jardins de Espanha... catedrais eternas...
Berço vindo do Céu à minha porta...
Ó meu leito de núpcias irreais!...
Meu suntuoso túmulo de morta!...
395
FRANCISCO JOAQUIM BINGRE
(1763—1856)
LITERATURA PORTUGUESA
ELOGIO DE AVEIRO
Talábrica senil, famoso Aveiro,
Bordado de riquíssimas salinas,
Que com tuas alvíssimas colinas
Formas um pitoresco tabuleiro;
Tu foste audacioso marinheiro
Que rasgando altas ondas cristalinas
Em África arvoraste as Lusas Quinas
E de Benim descobridor primeiro.
Tu das últimas praias do ocidente
Aos Áfricos sertões nossa lei pura
Levaste, e nos mostraste a baga ardente.
Pela tua atrevida sangradura
A estrada se encontrou do rico Oriente,
Onde o Gama depois audaz fulgura.
QUEM NÃO AMA, DESMENTE A NATUREZA
Se a flor namora a flor que lhe é vizinha,
Se uma palma com outra enlaça os ramos,
Se nos prados, com cândidos reclamos,
Namora uma avezinha outra avezinha.
396
Se o mundo o seu Autor quando o sustinha,
Nos eixos do poder, que acreditamos,
Na longa rotação que divisamos,
Viu que, para o suster, Amor convinha:
Se Amor é um dever que impresso existe
Em tudo que vegeta a redondeza,
Em que o governo universal consiste:
Quem se exime de amor e a Amor despreza?
Quem ataca esta Lei? Quem lhe resiste?
Quem não ama, desmente a Natureza.
BASTA, NÃO POSSO MAIS, MUNDO ENGANOSO!
Basta, não posso mais, Mundo enganoso!
Findaram para mim teus vãos prazeres.
Envelheci com eles, que mais queres
Deste escravo ancião, fraco e rugoso?
Se o teu carro triunfal puxei, fogoso,
Quando inda forças tinha, nada esperes
Deste caduco mais: quanto fizeres
Para outra vez servir-te, é duvidoso.
Enquanto não pensei, fui encantado:
Bebendo em taças de ouro o teu engano,
Eu fui, por ti, em bruto transformado.
Graças, graças ao santo Desengano,
Que a forma de homem outra vez me há dado,
Livrando-me de um mágico tirano!
ÀS CAMBALHOTAS SEMPRE ANDA A TRAVÉS
Às cambalhotas sempre anda a través
O Mundo, sem poder-se endireitar.
Velho, bêbado e tonto, a cambalear,
Já não pode suster-se sobre os pés.
Tudo nele se vê hoje de invés
397
Pois seu eixo quebrou, anda a rolar
Não há homem que o possa consertar:
Só se for, do Arquiteto a mão que o fez.
Tornou-se num pião: qualquer rapaz
O faz dar quatro voltas c'um cordel
E na palma da mão dançar o faz.
O que hoje fez de grande o seu papel,
Amanhã representa de Gil Blás
Neste imenso teatro de Babel.
Francisco Joaquim Bingre, in 'Sonetos'
DEUS, INFINITO SER
Deus, Infinito ser, nunca criado,
Sem princípio, nem fim, na Majestade
Que no trono da Eterna Divindade
Tens o Mundo num dedo dependurado:
Tu estavas em Ti, não foste nado,
O teu Ser era a tua Imensidade,
Tu tiveste por berço a Eternidade,
Tu, sem tempo, em Ti mesmo eras gerado!
Tu és um fogo que arde sem matéria,
Tu és perpétua luz, que não desmaia
Fulgindo, sem cessar, na sala etérea!
Tu és um mar de amor, que não tem praia,
Trovão assustador da esfera aérea,
Rei dum Reino Imortal, que não tem raia!...
OS TEUS BEIJOS, MEU BEM, TUAS CARÍCIAS
Os teus beijos, meu bem, tuas carícias,
Teus afagos, teus íntimos abraços,
São apertados nós que dás nos laços
Que prendem nossas ditas vitalícias.
Deixa gabar os deuses co'as delícias
Que disfrutam nos seus etéreos Paços,
398
Que estas, que nós gozamos por espaços
São, Marília, reais, não são fictícias.
Ora na tua ideia um pouco finge,
S'um prazer imortal que não se altera
As faces divinais com rosas tinge:
Se o chão que em teus olhos reverbera,
Se a ternura sem par que a mim te cinge
Durasse um dia, o sol sua luz perdera.
Francisco Joaquim Bingre, in 'Sonetos'
PRIMAVERA
Passei a Primavera de meus anos
Com maternais desvelos amorosos.
Com meiguices, afagos carinhosos,
Com mimos de solícitos afanos.
Desenfaixado dos primeiros panos,
Pus-me em pé, dei passinhos vagarosos,
Logo corridas, saltos brincalhosos,
Travessuras de meninais enganos.
Nesta idade infantil da Primavera,
Com outros meus iguais brincões folgava.
Ah, quão gostoso, então, o tempo me era!
Inocente brincar só me encantava:
Feliz, se aqui ficando eu conhecera
A força do prazer que desfrutava!
RETRATO DAS MULHERES EM TODAS AS IDADES
Mulher, de quinze a vinte é fresca rosa;
De vinte, a vinte e cinco é de exp'rimenta.
De vinte cinco a trinta, a graça aumenta:
Ditoso nesta idade quem a goza!
De trinta a trinta e cinco é mal gostosa
Porém, pode passar, com sal, pimenta,
Mas já dos trinta e cinco aos quarenta
399
Vai-se tornando assaz fastidiosa.
De quarenta e cinco ela é bachareleira,
Fala fanhoso e é já de pouco gabo.
De cinquenta cerrados é santeira!
Aos sessenta este seu retrato acabo:
Menina, moça, velha benzedeira,
Bruxa gogosa, então, leve-a o diabo!
JUÍZO
Quando, nos quatro ângulos da Terra,
Troarem as trombetas ressurgentes,
Despertadoras dos mortais dormentes,
Por onde um Deus irado aos homens berra:
Prontos, num campo, em apinhada serra,
Todos nus assistir devem viventes
Ao Juízo Final e ver, patentes,
Seus delitos, que um livro eterno encerra.
Então, aberto o Céu, e o Inferno aberto,
Todos ali verão: e a sorte imensa
Duma mágoa sem fim, dum gozo certo.
Verão reto juiz pesar a ofensa
Na balança integral, e o justo acerto,
Dando da vida e morte igual sentença
Francisco Joaquim Bingre, in 'Sonetos'
AMAR SEM POSSUIR É UM TORMENTO
Se a ti, onde Amor leva o pensamento,
Meu triste coração levar pudesse,
Dó terias, cruel, do que padece,
S'inda em teu peito cabe sentimento.
Amar sem possuir é um tormento
Que só quem o suporta é que o conhece.
Não o conheces tu, pois te arrefece
Sempre, na ausência, o frio esquecimento.
400
Tu tens um coração que se persuade
Dever amar só quando se deleita
Na posse do prazer, da sociedade.
O meu segue outra estrada mais direita,
Ama distante, ferem-no a Saudade
O Ciúme infernal, a vil Suspeita.
401
FRANCISCO OTAVIANO
(1825—1889)
LITERATURA BRASILEIRA
ILUSÕES DE VIDA
Quem passou pela vida em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem - não foi homem,
Só passou pela vida - não viveu.
RECORDAÇÕES
Oh! se te amei! Toda a manhã da vida
Gastei-a em sonhos que de ti falavam!
Nas estrelas do céu via teu rosto,
Ouvia-te nas brisas que passavam:
Oh! se te amei! Do fundo de minh’alma
Imenso, eterno amor te consagrei...
Era um viver em cisma de futuro!
Mulher! oh! se te amei!
Quando um sorriso os lábios te roçava,
Meu Deus! que entusiasmo que sentia!
Láurea coroa de virente rama
Inglório bardo, a fronte me cingia;
402
À estrela alva, às nuvens do Ocidente,
Em meiga voz teu nome confiei.
Estrela e nuvens bem no seio o guardam;
Mulher! oh! se te amei!
Oh! se te amei! As lágrimas vertidas,
Alta noite por ti; atroz tortura
Do desespero d’alma, e além, no tempo,
Uma vida sumir-se na loucura...
Nem aragem, nem sol, nem céu, nem flores,
Nem a sombra das glórias que sonhei...
Tudo desfez-se em sonhos e quimeras...
Mulher! oh! se te amei!
MORRER DORMIR
SONETO
Morrer... dormir... não mais! Termina a vida
E com ela terminam nossas dores:
Um punhado de terra, algumas flores,
E às vezes uma lágrima fingida!
Sim! minha morte não será sentida;
Não deixo amigos, e nem tive amores!
Ou, se os tive, mostraram-se traidores,
Algozes vis de uma alma consumida.
Tudo é podre no mundo. Que me importa
Que ele amanhã se esbroe e que desabe,
Se a natureza para mim é morta!
É tempo já que o meu exílio acabe,
Vem, pois, ó Morte, ao Nada me transporta!
Morrer... dormir... talvez sonhar... quem sabe?
403
FRANCISCO RODRIGUES LOBO
(1579—1621)
LITERATURA PORTUGUESA
ADEUS DE LERENO AO LIS
Fermoso rio Lis, que de contente
Estais detendo as águas vagarosas,
Por não passar daqui vossa corrente,
Entre essas ondas claras, duvidosas,
Levai ao largo mar, com turva vela,
Tristes queixumes, lágrimas queixosas.
Enquanto descansais na branca areia,
Ouvi um pastor triste e magoado
Que vai perder a vida em terra alheia.
Sua ventura o manda desterrado;
Não se pode saber que culpa teve,
Que amor, que foi juiz, era o culpado.
Se a tanta sem-razão mágoa se deve,
Ouvi a voz de cisne derradeira
Que inda que é grande a dor, há de ser breve.
Vós ninfas que morais nesta ribeira,
Nessas lapas cobertas e escondidas
Do mirto, faias, freixos e aveleira,
Seja de amor sentiste as feridas,
404
E quando crista um triste apartamento
Que, para dar mil mortes, dá mil vidas,
Agora que se cala o surdo vento
E o rio enternecido com meu prato
Detém seu vagaroso movimento,
Vinde a gozar da terra o verde manto,
Vereis da natureza o mor tesouro
E ouvireis as tristezas de meu canto,
Enquanto Apolo com seus raios de ouro
Enxugando estará com nova inveja
Vosso brando cabelo crespo e louro.
Antes que o descontente espírito seja
Apartado da doce companhia,
Consenti, ninfas belas, que vos veja.
Não vos verei porém como vos via,
Ora fugindo às feras da montanha,
Ora prendendo os peixes na água fria.
Chorando vos verei, pois dor tamanha
Não há como deixar a própria terra
Por ir buscar a morte em terra estranha.
Penedos, que pendeis desta alta serra,
De verde erva e de musgos revestidos,
A que os ventos em vão moverão guerra:
Vós declives outeiros repartidos
Com longes amorosos, ledos portos,
Só pela saudade conhecidos;
Vales, que de mil árvores cobertos
Abris caminha às cristalinas fontes
Que os alvos seixos deixam descobertos;
Vós, ladeiras incultas, e altos montes
Que coroados sois de altos pinheiros
E a cor tomando estais aos horizontes,
Pastos, cabanas, gados, pegureiros,
405
Pastores deste vale verde; ameno,
Doces amigos, doces companheiros
Aparta-se de vós, triste, Lereno,
Forçado dos poderes da ventura,
Contra quem seu poder foi tão pequeno.
A Deus o monte, o prado, a espessura,
A Deus o rio, a fonte cristalina,
A Deus as plantas, flores e a verdura.
Já no vale, no monte e na campina
Os pastores tanger me ouvirão
A minha desejada sinfonia.
Já nas ardentes sestas do verão
As ovelhas à sombra do arvoredo
O pasto por me ouvir não deixarão.
Já debaixo do vão deste penedo,
Olhando os cordeirinhos que pastavam,
Não cantarei de amor contente e ledo.
E as pastoras que a ouvir-me se ajuntavam,
Já me não tecerão verdes capelas
Com que por vencedor me coroavam.
Já nem na noite á vista das estrelas,
Nem quando o belo Sol claro aparece
Louvores me ouvirão das ninfas belas.
Já o vento que, ouvindo-te, emudece,
Entre os ecos da doce Filomena
Não levará meus ais donde os ofereço.
Tomai o curso atrás, águas do Lena,
Apesar dessa rocha que ameaça
Vossa clara corrente tão serena.
SONETO
Mil anos há que busco a minha estrela
E os fados dizem que ma têm guardada;
406
Levantei-me de noite e madrugada,
Por mais que madruguei não pude vê-la.
Já não espero haver alcance dela
Senão depois da vida rematada,
Que deve estar nos céus tão remontada
Que só lá poderei gozá-la e tê-la.
Pensamentos, desejos, esperança,
Não vos canseis em vão, não movais guerra,
Façamos entre os mais uma mudança:
Para me procurar vida segura
Deixemos tudo aquilo que há na terra,
Vamos para onde lemos a ventura.
METEU-ME AMOR EM SEU TRATO
Meteu-me Amor em seu trato,
Pôs-me os seus gostos na praça,
Quanto quis me deu de graça.
Mas é caro o seu barato.
Amor, que quis que tivesse
Os males por seu querer,
Deu menos bem, que escolhesse,
Para que quando os perdesse
Tivesse mais que perder.
Depois que em minha esperança
Me viu contra o tempo ingrato
Viver livre da mudança
Por tão grande confiança
Meteu-me Amor em seu trato.
Vi eu logo que convinha
Dar melhor conta do seu
Do que dei da vida minha:
Deixei perder quanto tinha
Por guardar o que me deu.
O desejo e o temor,
A fé, a vontade, a graça,
Tudo pus na mão de Amor.
Ele que é mais mercador
407
Pôs-me seus gostos na praça.
Entendeu que não sabia
A valia do interesse
Que eu dele então pretendia:
Perguntou-me o que queria
Antes que nada me desse.
Eu, que não soube o que fiz,
Quis um desprezo e negaça,
Quis uns desdéns senhoris,
E por ser graça o que quis.
Quanto quis me deu de graça.
Triste do que então cuidava,
Que tudo o que ganhou,
O mal com que se enganava,
E vendo a vontade escrava
Conhece o que lhe custou.
Amor vende como avaro
E faz seguro contrato
Com cautelas sem reparo:
Vende o barato e o caro,
Mas é caro o seu barato.
CORAÇÃO, OLHA O QUE QUERES
Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...
Tão tirana e desigual
Sustenta sempre a vontade,
Que a quem lhes quer de verdade
Confessam que querem mal;
se Amor para elas não val,
Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...
Se algumas tem afeição
Há-de ser a quem lha nega,
Porque nenhuma se entrega
Fora desta condição;
Não lhe queiras, coração,
E, senão, olha o que queres:
408
Que mulheres, são mulheres...
São tais, que é melhor partido
Para obrigá-las e tê-las,
Ir sempre fugindo delas,
Que andar por elas perdido;
E pois o tens conhecido,
Coração, que mais lhe queres?
Que, em fim, todas as mulheres!
QUE AMOR SIGO? QUE BUSCO? QUE DESEJO?
Que amor sigo? Que busco? Que desejo?
Que enleio é este vão da fantasia?
Que tive? Que perdi? Quem me queria?
Quem me faz guerra? Contra quem pelejo?
Foi por encantamento o meu desejo,
e por sombra passou minha alegria;
mostrou-me Amor, dormindo, o que não via,
e eu ceguei do que vi, pois já não vejo.
Fez à sua medida o pensamento
aquela estranha e nova fermosura
e aquele parecer quase divino.
Ou imaginação, sombra ou figura,
é certo e verdadeiro meu tormento:
Eu morro do que vi, do que imagino.
409
FREI ANTÔNIO DAS CHAGAS
(1631—682)
LITERATURA PORTUGUESA
CONTA E TEMPO
Deus pede hoje estrita conta do meu tempo.
E eu vou, do meu tempo dar-Lhe conta.
Mas como dar, sem tempo, tanta conta.
Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo?
Para ter minha conta feita a tempo
O tempo me foi dado e não fiz conta.
Não quis, tendo tempo fazer conta,
Hoje quero fazer conta e não há tempo.
Oh! vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis vosso tempo em passa-tempo.
Cuidai, enquanto é tempo em vossa conta.
Pois aqueles que sem conta gastam tempo,
Quando o tempo chegar de prestar conta,
Chorarão, como eu, o não ter tempo.
AO CAVALO DO CONDE DE SABUGAL QUE FAZIA GRANDES CURVETAS
Galhardo bruto, teu bizarro alento
Música é nova, com que aos olhos cantas,
Pois na harmonia de cadências tantas
É clave o freio, é solfa o movimento.
410
Ao compasso da rédea, ao instrumento
Do chão, que tocas, quando a vista encantas,
Já baixas grave, e agudo já levantas,
Onde o pisar é som, e o andar concento.
Cantam teus pés, e o teu meneio pronto,
Nas fugas, não, nas cláusulas medido,
Mil consonâncias forma m cada ponto.
Pois em falsas airosas suspendido,
Ergues em cada quebro um contraponto,
Fazes em cada passo um sustenido
411
GONÇALVES DE MAGALHÃES
(1811—1882)
LITERATURA BRASILEIRA
INVOCAÇÃO À SAUDADE
Tu, que n’alma te embebes magoada,
Melancólica dor, e gota a gota
Vertes no coração tóxico acerbo,
Que entorpece a existência, e a vida rala!
Tu, tirana da ausência, que retratas
Em fugitiva sombra, em negro quadro
A imagem do passado;
Que ao filho sempre a mãe anosa antolhas,
A pátria ao peregrino, o amigo ao amigo,
O esposo à esposa; e ao malfadado escravo,
Que sem futuro pelo mundo vaga,
Mostras a liberdade, e o lar paterno;
E a cada simulacro que apresentas,
Com farpado aguilhão rasgas o peito
Do triste que te sofre;
E nos olhos sanguíneos, encovados,
Não lágrimas distilas,
Mas fel, só atro fel, bárbara, espremes.
Oh saudade! Oh martírio de alma nobre!
Malgrado o teu pungir, como és suave!
Como a rosa de espinhos guarnecida
Aguilhoa, e apraz co’o doce aroma,
Tu feres, e mitigas com lembranças.
Mas ah! o teu espinho ainda é mais duro;
E essas tuas lembranças são falazes,
Flores são que o punhal de Harmódio cobrem.
412
Para agora oprimir-me tudo se ergue;
Tudo agora de encantos se reveste,
Para mais agravar minha saudade.
Sítios qu’eu desdenhei, sítios que amava,
Templos que orar me viram respeitoso,
Estes céus de safira, estas montanhas
Cobertas de cocares de palmeiras,
Pais, amigos, irmãos, ah! tudo, tudo
Me está representando a fantasia,
Como que pouco a pouco quer matar-me.
Que cena há aí que mais encantos tenha,
Que ver lânguida virgem, pudibunda,
Pálida a fronte, as faces desbotadas,
Baixos os olhos, revoando a coma,
E uma terna expressão de oculta angústia
Que lavra-lhe as entranhas?
Que cena há aí que mais encantos tenha,
Que vê-la num baixel, segura ao mastro,
Suspiros exalar, longos suspiros,
Que voam murmurando, e se misturam
Co’os ventos que sibilam nas enxárcias?
De vez em quando olhar, e só ver nuvens,
Nuvens que o céu encobrem, retratando
Fugitivas imagens, que recordam
Terras da pátria; quem, meu Deus, quem pode
Resistir a tal cena?
Tu matas, oh saudade!... Às crespas ondas,
Delirante Moema, e quase insana,
Por ti ferida se arremessa.... e morre...
Que não pode a mesquinha
Longe viver do fugitivo amante,
Que tanto amor pagara com desprezos
Lindóia, entregue à dor, desesperada
N’ausência de Cacambo, mal lhe soa
Do caro esposo o último suspiro,
Também suspira, odeia a vida,... e morre...
E tu, Clara infeliz, filha dos bosques,
Gerada entre palmeiras,
Nada pode aprazer-te, nada pode
Extinguir-te a lembrança
Da rústica cabana, onde embalada
Em berço foste de tecidas varas.
De diurnas, domésticas fadigas
Descansada, lá quando alveja a lua
413
Em fundo azul, mil vezes te enxergaram
Num tronco de coqueiro reclinada,
Cantar da infância tuas árias saudosas,
Árias bebidas nos maternos lábios:
Ai... minha mãe, dizias.
Ai... minha mãe... quem sabe se ainda vives!
Aldeia onde nasci, pobre cabana,
Rede que me embalavas, eu vos choro!
Oh terra do Brasil, terra querida,
Quantas vezes do mísero Africano
Te regaram as lágrimas saudosas?
Quantas vezes teus bosques repetiram
Magoados acentos
Do cântico do escravo,
Ao som dos duros golpes do machado!
Oh bárbara ambição, que sem piedade,
Cega e surda de Cristo a lei postergas,
E assoberbando mares, e perigos,
Vais infame roubar, não vãs riquezas,
Mas homens, que escravizas!
Mil vezes o Senhor, para punir-te,
Opôs ao teu baixel ondas e ventos;
Mil vezes, mas embalde,
Nas cavernas do mar caiu gemendo.
À voz do Eterno obediente a terra
Se mostra austera e parca,
Que a lágrima do escravo esteriliza
O terreno que orvalha.
A Natureza preza a Liberdade,
E só franqueia aos livres seus tesouros.
Oh suspirada, oh cara Liberdade,
Descende asinha do Africano à choça,
Seu pranto enxuga, quebra-lhe as cadeias,
E adoça-lhe da pátria a dor saudosa.
Oh palavras! oh língua! quão sois fracas,
Para d’alma narrar os sentimentos!
Oh saudade, aflição dura e suave!
Oh saudade, que o rosto me descoras,
Saudade que me apertas, que nos lábios
Secas-me o almo riso,
E o pensamento meu absorves todo,
Como uma esponja o líquido, e o repartes
Co’o passado, o presente, e co’o futuro.
Oh saudade! Oh saudade!
414
Minhas endechas mal carpidas colhe;
Dá-me um lúgubre som, como o das vagas
Que nas praias se quebram
Sem ordem, como os meus chorados cantos;
Uma voz sepulcral, como o da rola
Que em solitária selva se lamenta;
Um acento funéreo, um eco lúgubre,
Como o eco das grotas, quando a chuva
Goteja reboando.
Ah! corram minhas lágrimas, ah! corram
A quantos meus gemidos escutarem.
Oh saudade! Oh saudade!
Pois que em minha alma habitas,
E sem cessar me lembras pais, e Pátria,
Minhas tristes endechas serão tuas,
Saudade, serei teu... Saudade, és minha.
A BELEZA
Oh Beleza! Oh potência invencível,
Que na terra despótica imperas;
Se vibras teus olhos
Quais duas esferas,
Quem resiste a teu fogo terrível?
Oh Beleza! Oh celeste harmonia,
Doce aroma, que as almas fascina;
Se exalas suave
Tua voz divina,
Tudo, tudo a teus pés se extasia.
A velhice, do mundo cansada,
A teu mando resiste somente;
Porém que te importa
A voz impotente,
Que se perde, sem ser escutada?
Diga embora que o teu juramento
Não merece a menor confiança;
Que a tua firmeza
Está só na mudança;
Que os teus votos são folhas ao vento.
415
Tudo sei; mas se tu te mostrares
Ante mim como um astro radiante,
De tudo esquecido,
Nesse mesmo instante,
Farei tudo o que tu me ordenares.
Se até hoje remisso não arde
Em teu fogo amoroso meu peito,
De estóica dureza
Não é isto efeito;
Teu vassalo serei cedo ou tarde.
Infeliz tenho sido até agora,
Que a meus olhos te mostras severa;
Nem gozo a ventura,
Que goza uma fera;
Entretanto ninguém mais te adora.
Eu te adoro como o anjo celeste,
Que da vida os tormentos acalma;
Oh vida da vida,
Oh alma desta alma,
Um teu riso sequer me não deste!
Minha lira que triste ressoa,
Minha lira por ti desprezada,
Assim mesmo triste,
Assim malfadada,
Teu poder, teus encantos pregoa.
Oh Beleza, meus dias bafeja,
Em teu fogo minha alma devora;
Verás de que modo
Meu peito te adora,
E que incenso ofertar-te deseja.
A CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS
Como da pira extinta a labareda,
Ainda o rescaldo crepitante fica,
Assim do ardente moço a mente acesa
Na desusada luta que a excitara,
Ainda, alerta e escaldada se revolve!
416
De um lado e de outro balanceia o corpo,
Como após da tormenta o mar banzeiro;
Alma e corpo repouso achar não podem.
Debalde os olhos cerra; a igreja, as casas,
A vila, tudo ante ele se apresenta.
Das preces a harmonia inda murmura
Como um eco longínquo em seus ouvidos.
Os discursos do tio mutilados,
Malgrado seu, assaltam-lhe a memória.
No espontâneo pensar lançada a mente,
Redobrando de força, qual redobra
A rapidez do corpo gravitante,
Vai discorrendo, e achando em seu arcanos
Novas respostas às razões ouvidas.
Mas a noite declina, e branda aragem
Começa a refrescar. Do céu os lumes
Perdem a nitidez desfalecendo.
Assim já frouxo o Pensamento do índio,
Entre a vigília e o sono vagueando,
Pouco a pouco se olvida, e dorme, sonha,
Como imóvel na casa entorpecida,
Clausurada a crisálida recobra
Outra vida em silêncio, e desenvolve
Essas ligeiras asas com que um dia
Esvoaçará nos ares perfumados,
Onde enquanto réptil não se elevara;
Assim a alma, no sono concentrada,
Nesse mistério que chamamos sonho,
Preludiando a vista do futuro,
A póstuma visão preliba às vezes!
Faculdade divina, inexplicável
A quem só da matéria as leis conhece.
Ele sonha... Alto moço se lhe antolha
De belo e santo aspecto, parecido
Com uma imagem que vira atada a um tronco,
E de setas o corpo traspassado,
Num altar desse templo, onde estivera,
E que tanto na mente lhe ficara,
— "Vem!" lhe diz ele e ambos vão pelos ares.
Mais rápidos que o raio luminoso
Vibrado pelo sol no veloz giro,
417
E vão pousar no alcantilado monte,
Que curvado domina a Guanabara.
Cerrado nevoeiro se estendia
Sobre a vasta extensão de espaço em torno,
Cobertando o verdor da imensa várzea;
E o topo da montanha sobranceiro
Parecia um penedo no Oceano.
Mas o velário de cinzenta névoa
Pouco a pouco, subindo adelgaçou-se,
E rarefeito enfim, em brancas nuvens.
Foi flutuando pelo azul celeste.
Que grandeza! Que imensa majestade!
Que espantoso prodígio se levanta!
Que quadro sem igual em todo o mundo,
Onde o sublime e o belo em harmonia
O pensamento e a vista atrai, enleva
E f az que o coração extasiado
Se dilate, se expanda, e bata, e impila
O sangue em borbotões pelas artérias!
Os olhos encantados se exorbitam,
Como as vibradas cordas de uma lira,
De almo prazer os nervos estremecem;
E o espírito pairando no infinito,
Do belo nos arcanos engolfado,
Parece alar-se das prisões do corpo.
Niterói! Niterói! como és formosa!
Eu me glorio de dever-te o braço!
Montanhas, várzeas, lagos, mares, ilhas,
Prolífica Natura, céu ridente,
Léguas e léguas de prodígios tantos.
Num todo tão harmônico e sublime,
Onde olhos o verão longe deste Éden?
NAPOLEÃO EM WATERLOO
Tout na manqué que quand tout avait
Réussi
.
Napoleão em S. Helena (memorial).
418
Eis aqui o lugar onde eclipsou-se
O Meteoro fatal às régias frontes!
E nessa hora em que a glória se obumbrava,
Além o Sol em trevas se envolvia!
Rubro estava o horizonte, e a terra rubra!
Dous astros ao ocaso caminhavam;
Tocado ao seu zênite haviam ambos;
Ambos iguais no brilho; ambos na queda
Tão grandes como em horas de triunfo!
Waterloo!... Waterloo!... Lição sublime
Este nome revela à Humanidade!
Um Oceano de pó, de fogo, e fumo
Aqui varreu o exército invencível,
Como a explosão outrora do Vesúvio
Até seus tetos inundou Pompéia.
O pastor que apascenta seu rebanho;
O corvo que sanguíneo pasto busca,
Sobre o leão de granito esvoaçando;
O eco da floresta, e o peregrino
Que indagador visita estes lugares:
Waterloo!... Waterloo!... dizendo, passam.
Aqui morreram de Marengo os bravos!
Entretanto esse Herói de mil batalhas,
Que o destino dos Reis nas mãos continha;
Esse Herói, que c’oa ponta de seu gládio
No mapa das Nações traçava as raias,
Entre seus Marechais, ordens ditava!
O hálito inflamado de seu peito
Sufocava as falanges inimigas,
E a coragem nas suas acendia.
Sim, aqui ‘stava o Gênio das vitórias,
Medindo o campo com seus olhos de águia!
O infernal retintim do embate de armas,
Os trovões dos canhões que ribombavam,
O sibilo das balas que gemiam.
O horror, a confusão, gritos, suspiros,
Eram como uma orquestra a seus ouvidos!
Nada o turbava! — Abóbadas de balas,
419
Pelo inimigo aos centos disparadas,
A seus pés se curvavam respeitosas,
Quais submissos leões; e nem ousando
Tocá-lo, ao seu ginete os pés lambiam.
Oh! por que não venceu? — Fácil lhe fora!
Foi destino, ou traição? — Águia sublime
Que devassava o céu com vôo altivo
Desde as margens do Sena até ao Nilo!
Assombrando as Nações co’as largas asas,
Por que se nivelou aqui c’os homens?
Oh! por que não venceu? — O Anjo da glória
O hino da vitória ouviu três vezes;
E três vezes bradou: — É cedo ainda!
A espada lhe gemia na bainha,
E inquieto relinchava o audaz ginete,
Que soía escutar o horror da guerra,
E o fumo respirar de mil bombardas.
Na pugna os esquadrões se encarniçavam;
Roncavam pelos ares os pelouros;
Mil vermelhos fuzis se emaranhavam;
Encruzadas espadas, e as baionetas,
E as lanças faiscavam retinindo,
Ele só impassível como a rocha,
Ou de ferro fundido estátua equestre,
Que invisível poder mágico anima,
Via seus batalhões cair feridos,
Como muros de bronze, por cem raios;
E no céu seu destino decifrava.
Pela última vez c’oa espada em punho,
Rutilante na pugna se arremessa;
Seu braço é tempestade, a espada é raio!...
Mas invencível mão lhe toca o peito!
É a mão do Senhor! barreira ingente;
Basta, guerreiro, Tua glória é minha;
Tua força em mim ‘stá. Tens completado
Tua augusta missão. — És homem; — pára.
Eram poucos, é certo; mas que importa?
Que importa que Grouchy, surdo às trombetas,
Surdo aos trovões da guerra que bradavam:
Grouchy, Grouchy, a nós, eia, ligeiro;
420
O teu Imperador aqui te aguarda.
Ah! não deixes teus bravos companheiros
Contra a enchente lutar, que mal vencida
Uma após outra em turbilhões se eleva,
Como vagas do Oceano encapelado,
Que furibundas se alçam, lutam, batem
Contra o penedo, e como em pó recuam,
E de novo no pleito se arremessam.
Eram poucos, é certo; e contra os poucos
Armadas as Nações aqui pugnavam!
Mas esses poucos vencedores foram
Em Iena, em Montmirail, em Austerlitz.
Ante eles o Tabor, e os Alpes curvos
Viram passar as águias vencedoras!
E o Reno, e o Manzanar, e o Adige, e o Eufrates
Embalde à sua marcha se opuseram.
Eram os poucos que jamais vencidos
Os dias seus contavam por batalhas,
E de cãs se cobriram nos combates;
O sol do Egito ardente assoberbaram,
A peste em jafa, a sede nos desertos,
A fome, e os gelos dos Moscóvios campos;
Poucos que se não rendem; — mas que morrem!
Oh! que para vencer bastantes eram!
A terra em vão contra eles pleiteara,
Se Deus, que os via, não dissesse: Basta.
Dia fatal, de opróbrio aos vencedores!
Vergonha eterna à geração que insulta
O Leão que magnânimo se entrega.
Ei-lo sentado em cima do rochedo,
Ouvindo o eco fúnebre das ondas,
Que murmuram seu cântico de morte:
Braços cruzados sobre o largo peito,
Qual náufrago escapado da tormenta,
Que as vagas sobre o escolho rejeitaram;
Ou qual marmórea estátua sobre um túmulo.
Que grande idéia ocupa, e turbilhona
Naquela alma tão grande como o mundo?
421
Ele vê esses Reis, que levantara
Da linha de seus bravos, o traírem.
Ao longe mil pigmeus rivais divisa,
Que mutilam sua obra gigantesca;
Como do Macedônio outrora o Império
Entre si repartiram vis escravos.
Então um riso de ira, e de despeito
Lhe salpica o semblante de piedade.
O grito ainda inocente de seu filho
Soa em seu coração, e de seus olhos
A lágrima primeira se desliza.
E de tantas coroas que ajuntara
Para dotar seu filho, só lhe resta
Esse Nome, que o mundo inteiro sabe!
Ah! tudo ele perdeu! a esposa, o filho,
A pátria, o mundo, e seus fiéis soldados.
Mas firme era sua alma como o mármor,
Onde o raio batia, e recuava!
Jamais, jamais mortal subiu tão alto!
Ele foi o primeiro sobre a terra.
Só, ele brilha sobranceiro a tudo,
Como sobre a coluna de Vendôme
Sua estátua de bronze ao céu se eleva.
Acima dele Deus, — Deus tão-somente!
Da Liberdade foi o mensageiro.
Sua espada, cometa dos tiranos,
Foi o sol, que guiou a Humanidade.
Nós um bem lhe devemos, que gozamos;
E a geração futura agradecida:
Napoleão, dirá, cheia de assombro.
O ANAGRAMA
Dos vates a antiga usança
Quis respeitoso seguir,
Ensaiando em anagrama
Teu doce nome exprimir;
Mas a mente em vão se cansa,
No desejo que me inflama
422
Nada me vem acudir.
Não desistindo da idéia,
Volto a ela sem cessar;
Diversos nomes invento,
Sem nenhum poder achar,
Que seja nome de idéia,
E se preste ao meu intento,
Sem o teu muito ocultar.
Vendo alfim que não podia
Teu anagrama fazer;
Que quantos eu inventava
Nada queriam dizer;
Uma idéia à fantasia,
Quando já nada esperava,
Me veio enfim socorrer.
Foi idéia luminosa,
Direi quase inspiração,
Pois que senti de repente
Palpitar-me o coração.
Sua força imperiosa
Foi tal, qu'eu obediente
Dei-lhe pronta execução.
De papel em uma fita
Teu lindo nome escrevi;
Pondo as letras separadas,
Co'a tesoura as dividi.
Cada solta letra escrita
Enrolei, e baralhadas,
Numa caixinha as meti.
Tudo ao acaso deixando,
Da sorte o cofre agitei;
E tirando-as de uma em uma,
Uma após outra as tracei.
Oh prodígio! Oh pasmo! Quando
Esta maravilha suma
De um mero acaso esperei?
Já Urânia — escrito estava!
Foi Amor quem o escreveu!
423
Não, não foi obra do acaso;
Teu nome veio do céu!
Aquele — já — me ordenava
Que da Urânia do Parnaso
Fosse o nome agora teu.
Que para mim renascida
A Musa Urânia serás.
Que ao céu e a Deus minha mente
Tu sempre levantarás.
Musa real, não fingida,
Unida a mim ternamente,
Celeste amor me terás.
424
GONÇALVES DIAS
(1823—1864)
LITERATURA BRASILEIRA
TE DEUM
Nós Senhor, nós te louvamos,
Nós, Senhor, te confessamos.
Senhor Deus Sabaó, três vezes santo,
Imenso é o teu poder, tua força imensa,
Teus prodígios sem conta; - e os céus e a terra
Teu ser e nome e glória preconizam.
E o arcanjo forte, e o serafim sem mancha,
E o coro dos profetas, e dos mártires
A turba eleita – a ti, Senhor, proclamam,
Senhor Deus Sabaó, três vezes santo.
Na inocência do infante és tu quem falas;
A beleza, o pudor – és tu que as gravas
Nas faces da mulher, - és tu que ao velho
Prudência dás, - e o que verdade e força
Nos puros lábios, do que é justo, imprimes.
És tu quem dás rumor à quieta noite,
És tu quem dás frescor à imensa brisa,
Quem dás fulgor ao raio, asas ao vento,
Quem na voz do trovão longe rouquejas.
És tu que do oceano à fúria insana
Pões limites e cobro, - és tu que a terra
No seu vôo equilibras, - quem dos astros
425
Governas a harmonia, como notas.
Acordes, simultâneas, palpitando
Nas cordas d’Harpa do teu Rei Profeta,
Quando ele em teu furor hinos soltava,
Qu’iam, cheios de amor, beijar teu sólio.
Santo! Santo! Santo! – teus prodígios
São grandes, como os astros, - são imensos
Como areia delgada em quadra estiva.
E o arcanjo forte e o serafim sem mancha,
E o coro dos profetas, e dos mártires
A turba eleita- a ti, Senhor, proclamam,
Senhor Deus Sabaó, três vezes grande.
CANÇÃO DO EXÍLIO
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar –sozinho, à noite–
Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que disfrute os primores
Que não encontro por cá;
426
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
CANÇÃO DO TAMOIO
I
Não chores, meu filho;
Não chores, que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.
A vida é combate,
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos
Só pode exaltar.
II
Um dia vivemos!
E o homem que é forte
Não teme da morte;
Só teme fugir;
No arco que entesa
Tem certa uma presa,
Quer seja tapuia,
Condor ou tapir.
III
O forte, o cobarde
Seus feitos inveja
De o ver na peleja
Garboso e feroz;
E os tímidos velhos
Nos graves concelhos,
Curvadas as frontes,
Escutam-lhe a voz!
IV
Domina, se vive;
Se morre, descansa
Dos seus na lembrança,
Na voz do porvir.
Não cures da vida!
Sê bravo, sê forte!
Não fujas da morte,
427
Que a morte há de vir!
V
E pois que és meu filho,
Meus brios reveste;
Tamoio nasceste,
Valente serás.
Sê duro guerreiro,
Robusto, fragueiro,
Brasão dos tamoios
Na guerra e na paz.
VI
Teu grito de guerra
Retumbe aos ouvidos
D'imigos transidos
Por vil comoção;
E tremam d'ouvi-lo
Pior que o sibilo
Das setas ligeiras,
Pior que o trovão.
VII
E a mãe nessas tabas,
Querendo calados
Os filhos criados
Na lei do terror;
Teu nome lhes diga,
Que a gente inimiga
Talvez não escute
Sem pranto, sem dor!
VIII
Porém se a fortuna,
Traindo teus passos,
Te arroja nos laços
Do inimigo falaz!
Na última hora
Teus feitos memora,
Tranquilo nos gestos,
Impávido, audaz.
IX
E cai como o tronco
428
Do raio tocado,
Partido, rojado
Por larga extensão;
Assim morre o forte!
No passo da morte
Triunfa, conquista
Mais alto brasão.
X
As armas ensaia,
Penetra na vida:
Pesada ou querida,
Viver é lutar.
Se o duro combate
Os fracos abate,
Aos fortes, aos bravos,
Só pode exaltar.
POR UM AI
Se me queres ver rendido,
De joelhos, a teus pés,
Por um olhar que me deites,
Por um só ai que me dês;
Se queres ver o meu peito
rugindo como um vulcão,
Estourar, arder em chamas,
Ferver de amor e paixão;
Se me queres ver sujeito,
curvado e preso à tua lei,
Mais humilde que um escravo,
Mais orgulhoso que um rei;
Meus olhos sobre os teus olhos,
Meu coração a teus pés;
Por um olhar que me deites,
Por um só ai que me dês;
Ouça, feliz, dos teus lábios
Esta só palavra - amor! Estrela cortando os ares,
429
Abelha sobre uma flor.
Então verás dos meus olhos,
Que o pesar me não cegou,
Ebentaram de alegria
Prantos, que a dor estancou;
Então verás o meu peito
Como outra vez se incendia:
Era a folha verde e fresca,
Onde o sol se refletia!
Murcha e triste pende agora;
Caiu, jaz solta, está só:
Exposta ao fogo, arde em chamas,
- Deixai-a, desfaz-se em pó!
Hei de sentir outra vida,
Outra vez meu coração
Escutarei palpitando
De amor, de fogo e paixão.
Lascado tronco sem graça,
Tal fui, tal me vês agora!
Mas venha o orvalho celeste,
Venha o bafejo da aurora;
Venha um raio de alegria
Dar-lhe às raízes calor;
Revive de novo, e brota
Folhas, galhos e verdor.
Do cimo erguido e copado
Outra vez se dependuram
Mil flores - ali mil aves
Nos seus gorjeios se apuram.
Não quero palavras falsas,
Não quero um olhar que minsta,
Nenhum suspiro fingido,
Nem voz que o peito não sinta.
Basta-me um gesto, um aceno,
Uma só prova, - e verás
430
Minha alma presa em teus lábios,
Como de amor se desfaz!
Ver-me-ás rendido e sujeito,
Cativo e preso à tua lei,
Mais humilde que um escravo,
Mais orgulhoso que um rei!
SE SE MORRE DE AMOR
Se se morre de amor! – Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n’alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve e no que vê prazer alcança!
Simpáticas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d’amor arrebentar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delírio
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro
Clarão, que as luzes ao morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
D’amor igual ninguém sucumbe à perda.
Amor é vida; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração – abertos
Ao grande, ao belo, é ser capaz d’extremos,
D’altas virtudes, té capaz de crimes!
Compreender o infinito, a imensidade
E a natureza e Deus; gostar dos campos,
D’aves, flores,murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
431
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes;
Isso é amor, e desse amor se morre!
Amar, é não saber, não ter coragem
Pra dizer que o amor que em nós sentimos;
Temer qu’olhos profanos nos devassem
O templo onde a melhor porção da vida
Se concentra; onde avaros recatamos
Essa fonte de amor, esses tesouros
Inesgotáveis d’lusões floridas;
Sentir, sem que se veja, a quem se adora,
Compreender, sem lhe ouvir, seus pensamentos,
Segui-la, sem poder fitar seus olhos,
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar os seus vestidos,
Arder por afogá-la em mil abraços:
Isso é amor, e desse amor se morre!
SEUS OLHOS
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
Estrelas incertas, que as águas dormentes
Do mar vão ferir;
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Têm meiga expressão,
Mais doce que a brisa, — mais doce que o nauta
De noite cantando, — mais doce que a frauta
Quebrando a solidão,
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
São meigos infantes, gentis, engraçados
Brincando a sorrir.
São meigos infantes, brincando, saltando
Em jogo infantil,
Inquietos, travessos; — causando tormento,
Com beijos nos pagam a dor de um momento,
Com modo gentil.
432
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Às vezes luzindo, serenos, tranquilos,
Às vezes vulcão!
Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco,
Tão frouxo brilhar,
Que a mim me parece que o ar lhes falece,
E os olhos tão meigos, que o pranto umedece
Me fazem chorar.
Assim lindo infante, que dorme tranquilo,
Desperta a chorar;
E mudo e sisudo, cismando mil coisas,
Não pensa — a pensar.
Nas almas tão puras da virgem, do infante,
Às vezes do céu
Cai doce harmonia duma Harpa celeste,
Um vago desejo; e a mente se veste
De pranto co'um véu.
Quer sejam saudades, quer sejam desejos
Da pátria melhor;
Eu amo seus olhos que choram em causa
Um pranto sem dor.
Eu amo seus olhos tão negros, tão puros,
De vivo fulgor;
Seus olhos que exprimem tão doce harmonia,
Que falam de amores com tanta poesia,
Com tanto pudor.
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Eu amo esses olhos que falam de amores
Com tanta paixão.
Pedido
Ontem no baile
Não me atendias!
Não me atendias,
Quando eu falava.
433
De mim bem longe
Teu pensamento!
Teu pensamento,
Bem longe errava.
Eu vi teus olhos
Sobre outros olhos!
Sobre outros olhos,
Que eu odiava.
Tu lhe sorriste
Com tal sorriso!
Com tal sorriso,
Que apunhalava.
Tu lhe falaste
Com voz tão doce!
Com voz tão doce,
Que me matava.
Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Se então só qu'rias
Exp'rimentar-me.
Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Não lhe sorrias,
Que era matar-me.
434
GREGÓRIO DE MATOS
(1636—1696)
LITERATURA BRASILEIRA
O POETA DESCREVE O QUE ERA NAQUELE TEMPO A CIDADE DA BAHIA
A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um bem frequente olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia,
Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.
BUSCANDO A CRISTO
A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.
A vós, divinos olhos, eclipsados
De tanto sangue e lágrimas cobertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
435
E, por não condenar-me, estais fechados.
A vós, pregados pés, por não deixar-me,
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, p’ra chamar-me,
A vós, lado patente, quero unir-me,
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.
A UMA DAMA
Dama cruel, quem quer que vós sejais,
Que não quero por hora descobrir-vos,
Dai-me licença agora para arguir-vos,
Pois para amar-vos sempre ma negais:
Por que razão de ingrata vos prezais,
Não me pagando o zelo de servir-vos?
Sem dúvida deveis de persuadir-vos,
Que a ingratidão aformoseia mais.
Não há cousa mais feia na verdade:
Se a ingratidão aos nobres envilece,
Que beleza fará, o que é fealdade?
Depois, que sois ingrata me parece,
Que hoje é torpeza o que era então beldade,
Que é flor a ingratidão que em flor fenece.
POR CONSOANTES QUE ME DERAM FORÇADOS
Neste mundo é mais rico o que mais rapa:
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa;
Com sua língua, ao nobre o vil decepa:
O velhaco maior sempre tem capa.
Mostra o patife da nobreza o mapa:
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa:
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser papa.
A flor baixa, se inculca por tulipa:
Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Mais isento se mostra o que mais chupa:
Para a tropa do trapo vazo a tripa:
E mais não digo; porque a Musa topa
Em apa, em epa, em ipa, em opa, em upa.
436
EFEITOS CONTRÁRIOS DO AMOR
Ó que cansado trago o sofrimento
Ó que injusta pensão da humana vida,
Que dando-me o tormento sem medida,
Me encurta o desafogo de um contento!
Nasceu para oficina do tormento
Minha alma, a seus desgostos tão unida,
Que por manter-se em posse de afligida
Me concede os pesares de alimento.
Em mim não são as lágrimas bastantes
Contra incêndios, que ardentes me maltratam,
Nem estes contra aqueles são possantes:
Contrários contra mim em paz se tratam,
E estão em ódio meu tão conspirantes,
Que só por me matarem não se matam.
A JESUS CRISTO, NOSSO SENHOR
Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido;
Porque quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história,
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
DEFINE A SUA CIDADE
De dois ff se compõe
Esta cidade a meu ver,
Um furtar, outro foder.
Recopilou-se o direito,
437
E quem o recopilou
Com dois ff o explicou
Por estar feito e bem feito:
Por bem digesto e colheito,
Só com dois ff o expõe,
E assim quem os olhos põe
No trato, que aqui se encerra,
Há de dizer que esta terra
De dois ff se compõe.
Se de dous ff composta
Está a nossa Bahia,
Errada a ortografia
A grande dano está posta:
Eu quero fazer aposta,
E quero um tostão perder,
Que isso a há de perverter,
Se o furtar e o foder bem
Não são os ff que tem
Esta cidade a meu ver.
Provo a conjetura já
Prontamente com um brinco:
Bahia tem letras cinco
Que são B A H I A,
Logo ninguém me dirá
Que dois ff chega a ter
Pois nenhum contém sequer,
Salvo se em boa verdade
São os ff da cidade
Um furtar, outro foder.
À DESPEDIDA DO MAU GOVERNO QUE FEZ O GOVERNADOR DA BAHIA
Senhor Antão de Sousa de Menezes,
Quem sobe ao alto lugar, que não merece,
Homem sobe, asno vai, burro parece,
Que o subir é desgraça muitas vezes.
A fortunilha, autora de entremezes
Transpõe em burro o herói, que indigno cresce:
Desanda a roda, e logo homem parece,
Que é discreta a fortuna em seus reveses.
Homem sei eu que foi Vossenhoria,
Quando o pisava da fortuna a roda,
Burro foi ao subir tão alto clima.
438
Pois vá descendo do alto onde jazia,
Verá quanto melhor se lhe acomoda
Ser home em baixo, do que burro em cima.
A OUTRA FEIRA, QUE SATIRIZANDO A DELGADA FISIONOMIA DO POETA LHE
CHAMOU PICA-FLOR
Se pica-flor me chamais,
Pica-flor aceito ser,
Mas resta agora saber
Se no nome, que me dais,
Meteis a flor, que guardais
No passarinho melhor!
Se me dais este favor,
Sendo só de mim o pica,
E o mais vosso, claro fica
Que fico então pica-flor.
À CIDADE DA BAHIA
Triste Bahia! oh, quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado,
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mim abundante.
A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante.
Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.
Oh, se quisera Deus que, de repente,
Um dia amanheceras tão sizuda
Que fora de algodão o teu capote!
AOS CARAMURUS DA BAHIA
Um calção de pindoba, a meia zorra
Camisa de urucu, mantéu de arara,
Em lugar de cotó arco e taquara
Penacho de guarás em vez de gorra.
439
Furado o beiço, e sem temor que morra
O pai, que lho envasou c’uma titara
Porém a Mãe a pedra lhe aplicara
Por reprimir-lhe o sangue que não corra.
Alarve sem razão, bruto sem fé,
Sem mais leis que a do gosto, quando erra
De Paiaiá tornou-se em abaité.
Não sei onde acabou, ou em que guerra:
Só sei que deste Adão de Massapé
Procedem os fidalgos desta terra.
440
GUILHERME DE AZEVEDO
(1839—1882)
LITERATURA PORTUGUESA
GRAÇA PÓSTUMA
Depois da tua morte eu hei de ver se arranco,
Numa noite serena, ao teu berço final,
Um produto mimoso; — um grande lírio branco
Da alvura do teu colo ebúrneo e divinal!
Aquela flor suave, ó minha visão histérica,
Debruçada gentil, na taça em que a puser,
Fazer-me-á lembrar a graça cadavérica
Do teu corpo franzino e etéreo de mulher!
E mesmo conterá, de certo, alguma cousa
Do que me traz submisso e prezo ao teu olhar:
— Teu corpo a pouco e pouco irá fugindo à lousa
Depois tornado em lírio à terra há de voltar! —
E em longas noites, nele, eu beberei sozinho,
Sonhando as convulsões d'uns lindos braços nus,
A fragrância que exala a candidez do linho
Em que hoje ondeias leve e onde os meus lábios pus,
— Saudando a boa mãe que faz com que eu te goze
Depois do verme vil teu seio poluir,
Mais pura no frescor de tal metamorfose
Do que eras a cismar, do que eras a sorrir!
441
Ó minha doce Ofélia! Os rápidos momentos
Da vida, são cruéis mas passam como um som!
Um dia quando em fim dos velhos sedimentos
Teu corpo renascer num lírio imenso e bom,
Talvez que eu durma já também sob os matizes
Das flores, ao sorrir das mil germinações,
Dando um pasto fecundo às tuas sãs raízes
Depois de te sagrar as últimas canções!
OS SONHOS MORTOS
Embora triste a noite, a vagabunda lua
Mais branca do que nunca erguia-se nos céus,
Igual a uma donzela ingênua e toda nua
No leito ajoelhada erguendo a fronte a Deus!
O mar tinha talvez cintilações funestas.
A praia estava fria, as vagas davam ais;
Semelhavam, ao longe, as extensas florestas
Fantasmas ao galope em monstros colossais.
E eu vi num campo imenso, agreste e desolado,
Imerso no fulgor diáfano da luz,
Juncando tristemente o solo ensanguentado
Sinistra multidão de corpos semi-nus!
Tinha a morte cruel, em sua orgia louca,
Deposto em cada fronte um osculo brutal;
E um irônico riso ainda em muita boca
Se abria, como a flor fantástica do mal!
E eu vi corpos gentis de virgens delicadas
Beijando a fria terra, as mãos hirtas no ar,
Em sagrada nudez!… Cabeças decepadas!…
Em muito peito ainda o sangue a borbulhar!…
E sobre a corrupção das brancas epidermes
Luzentes de luar e d'esplendor dos céus,
Orgulhosos passando os triunfantes vermes,
Da santa formosura os últimos Romeus!
Se tu minha alma livre ainda hoje conservas
442
Memória das visões que amaste com fervor
Aí as tens agora alimentando as ervas
De novo dando à terra o que ela deu à flor!
FALA A ORDEM
Pequeno, d'onde vens cantando a Marselhesa;
Da barricada infame, ou d'outra vil torpeza?
Que esplêndido porvir! Do nada apenas sais
Começas a morder as púrpuras reais
Ó filho trivial da lívida canalha!…
E, vamos, deixa ver, guardaste uma navalha,?!
Não tremas que eu bem vi! que trazes tu na mão?
Intentas já limar as grades da prisão,
Fazendo cintilar um ferro contra o sólio
Arcanjo que adejais nos fumos do petróleo?!…
Mas, vamos abre a mão: não queiras que eu te dê.
Bandido eu bem dizia! — a carta do A B C!…
O VELHO CÃO
Soltava ontem já tarde um velho cão felpudo
Uns doloridos ais,
Em frente d'um palácio altivo, belo e mudo,
Cerrado aos vendavais.
Fazia pena ouvi-lo, o mísero molosso
Em seu triste chorar!
Era quase uma sombra: apenas pele e osso
E um vago, um doce olhar!…
Eis a sorte cruel do pobre que não come,
Dos míseros sem pão!
Em paga ainda em cima os vai tragando a Fome,
A negra aparição!
Latia o cão faminto. O frio era mordente,
Feroz, quase voraz!
443
E o pobre não sabia, em fim, que há muita gente
Que adora a santa paz.
Ora perto vivia uma galante rosa,
Etérea, virginal,
Que tinha um lindo colo, amava, era nervosa
E a quem fazia mal,
Aquele uivar sinistro; a ponto de em desmaios
Pender a fronte ao chão!
Saíram pois à rua impávidos lacaios
E foram dar no cão.
— Há no mundo um rafeiro, um velho cão esfaimado,
— O povo sofredor,
Que às vezes vai ganir, com fome, o seu bocado
Ás portas d'um senhor.
O resto é velha história: ocioso é já dizer-vos
O fim que ela há de ter.
A Ordem, só d'ouvi-lo, alteram-se-lhe os nervos
E manda-lhe bater!
444
GUIMARÃES JÚNIOR
(1845—1898)
LITERATURA BRASILEIRA
FORA DA BARRA
Adeus! Adeus! Nas cerrações perdida
Vejo-te apenas, Guanabara altiva...
- Varella. - Ao Rio de Janeiro.
Já vamos longe... Os morros benfazejos
Metem na bruma os cimos alterosos...
Ventos da tarde, ventos lacrimosos,
Vós sois da Pátria os derradeiros beijos!
As alvas plagas, os profundos brejos,
Ficam além, além! Adeus, gostosos
Tormentos do passado! Adeus, oh gozos!
Adeus, oh velhos e infantis desejos!
Na fugitiva luz do sol poente
Vai se apagando - ao longe - tristemente
Do Corcovado a majestosa serra:
O mar parece todo um só gemido...
E eu mal sustenho o coração partido,
Oh terra de meus pais! Oh minha terra!
VISITA À CASA PATERNA
A minha irmã Isabel
Como a ave que volta ao ninho antigo,
Depois de um longo e tenebroso inverno,
Eu quis também rever o lar paterno,
O meu primeiro e virginal abrigo.
445
Entrei. Um gênio carinhoso e amigo,
O fantasma talvez do amor materno,
Tomou-me as mãos, - olhou-me, grave e terno,
E, passo a passo, caminhou comigo.
Era esta sala... (Oh! se me lembro! e quanto!)
Em que da luz noturna à claridade,
minhas irmãs e minha mãe... O pranto
Jorrou-me em ondas... Resistir quem há de?
Uma ilusão gemia em cada canto,
Chorava em cada canto uma saudade.
A VOZ DAS ÁRVORES
Enquanto os meus olhares flutuavam,
Seguindo os vôos da erradia mente,
Sob a odorosa cúpula fremente
Dos bosques - onde os ventos sussurravam,
Ouvi falar. As árvores falavam:
A secular mangueira fielmente
Repetia-me a rir o idílio ardente
Que dois noivos, à tarde, lhe contavam;
A palmeira narrava-me a inocência
De um brando e mútuo amor, - sonho que veste
Dos loiros anos a feliz demência;
Ouvi o cedro, - o coqueiral agreste,
Mas, excedia a todas a eloquência
Duma que não falava: - era o cipreste.
PAULO E VIRGÍNIA
Fomos um dia alegres, estouvados,
Ao clarão matinal do sol nascente,
Colher as flores do vergel ridente
E as primeiras amoras dos cercados.
Risonhos, venturosos, namorados,
Cada qual mais feliz e mais contente,
Esquecemos a terra inteiramente:
Doidos de amor, de gozo embriagados.
Seus cabelos - enquanto ela corria,
Voavam, loiros com a luz, dispersos!
Eu a chamava e ela me fugia.
Por fim voltamos - em prazer imersos:
446
E das venturas todas desse dia...
Resta a saudade que inspirou meus versos.
447
GUIMARÃES PASSOS
(1867—1909)
LITERATURA BRASILEIRA
ÉBRIO
Querem que eu ria, que o prazer alheio
Seja meu, que o partilhe e o acompanhe;
Que a ventura que banha aos outros, banhe
Meu negro peito de tristeza cheio.
Seja! Bradai; nenhum de vós estranhe
Mais nesta roda um rosto triste e feio;
Quero beber e rir, pois já não creio
Senão que existem males e champagne.
E uma taça após outra fui bebendo;
Sempre bebendo, vi dançar a mesa,
E os meus convivas fui desconhecendo.
Ébrio afinal, caí... mas não sozinho:
Comigo estavas, porque a natureza
Do meu amor embriaga mais que o vinho.
LONGE
Longe de mim!... Só a amplidão vazia!
Sol, em que céu de bronze te escondeste?
Céu, porque assim tão baixo tu desceste
E esmagas-me se dó desta agonia?
Nem um adeus, ao menos me disseste;
Foste-te e eu, cego, já não tenho guia;
448
Meus olhos mais nem uma estrela fria
Verão, pois deles desapareceste.
Ah! nunca saibas meu pesar revendo
Tudo aquilo que vias estavas
Nos meus braços de medo e amor tremendo.
Longe de mim!... Por mais que chame e brade,
Apenas ouve as minhas vozes cavas
Esta saudade, esta imortal saudade!
AOS FELIZES
A Henrique Silva
Pensais que invento penas por meu gosto,
Que em meus versos afeto sofrimento?
Néscios? Lede nas linhas do meu rosto,
E com verdade me dizei se invento.
Ride felizes, ride que o desgosto
Nunca deixou de vir; em breve o alento
Que hoje tendes tê-lo-eis como o sol posto:
Longe e brilhando apenas um momento.
"Mas, me direis, como te enganas! Ama,
Ama, que perderás essa tristeza,
Terás ventura, terás glória, fama..."
E eu, por vingar-me, sufocando o ai!
Do coração ferido, com firmeza,
Por meu turno respondo-vos - amai!
MORTE
És negra, és negra, dizem-me os felizes,
Dizem que ao ver-te o vulto atro e sombrio,
Gelam-se os corações, tamanho frio,
Serena, espalhas onde quer que pises.
É que tu levas para um céu vazio,
Onde somente as dores tem raízes,
As esperança todas, e não dizes
Nada a quem fica, nem a quem partiu,
Anjo negro, terror da humanidade,
Morte, estilete que nos toca o fundo
D’alma, enchendo de mágoa e de saudade!
Morte, há no mundo tanta dor contida!
Que, tu, que findas todo o bem do mundo,
449
És a coisa melhor que há nesta vida.
PARADOXO
Se encontrares alguém no teu caminho,
Que do teu pranto menoscabe, rindo,
Que te ouvindo gemer, teus ais ouvindo,
Quebre na face o rictus do escarninho;
Se encontrares alguém que, descobrindo
No recesso da tua alma íntimo espinho,
Em vez de dar-te fraternal carinho,
Aprofunde-te a dor que estás sentido;
Não te zangues com ele, não te zangue
O desgraçado riso que lhe vires;
Toca-lhe o peito - poreja sangue;
Toca-o: verás que fementidos modos!
Sonda-o: verás, por tudo que lhe ouvires
Que ele é mais desgraçado que nós todos.
MEA CULPA
Não é tua alma o lírio imaculado,
Que à luz de uns olhos puros se levanta,
Pois não fulgura em teu olhar a santa
Chama, que brilha isenta do pecado.
Se o teu seio palpita apaixonado,
Se a voz do amor nos teus suspiros canta,
Não me ilude o queixume, que à garganta,
Quebras, para me ver mais desgraçado!
Eu bem sei quem tu és... Mas, que loucura
Arrasta-me a teus pés como um cativo!
Mostra-me o inferno a aberta sepultura:
E abraçado contigo, ó pecadora!
Eu desço-o tão feliz como se fora
Um justo ao claro céu subindo vivo.
A JOSÉ DO PATROCÍNIO
Se altivo - ouvirás contra ti mil rumores;
Humilde - qualquer um julgar-te-á seu vassalo;
Rico - servos terás como Sardanapalo;
450
Pobre - ai! de ti! ver-te-ás cercado de credores.
Se franco - eis a teu lado os vis caluniadores;
Ladino - ao teu encalço eis a lei, a cavalo;
Ama - serás tu só que sofrerás abalo;
Se amado - outro és e não terás amores.
Se só - tu maldirás a tua soledade;
Unido - chorarás a antiga liberdade...
Para seres, enfim, sem sofrer, que te ocorre?
Se alguém, sejas nada, inteligente ou rudo;
Se dos que nada têm; se dos que gozam tudo,
Para teres razão, só tens um meio: morre!
VILANCETE
Sois como as demais mulheres,
Nem menos sois, nem sois mais,
Porque sois todas iguais.
Voltas
Mui formosa não vos acho,
Mui feira também não sois;
Dos dons estais entre os dois,
Nem por cima, nem por baixo.
Tendes, sim, muito despacho,
Mas não que as outras demais,
Porque sois todas iguais,
Dizer-vos que, só, mentis,
Seria injustiça tanta
Que, só mentira a garganta,
Mais que as mentiras que ouvis.
Também não sois mais feliz,
Nem mais infeliz que as mais,
Porque sois todas iguais,
Promessas não vos falecem,
Não vos falecem negaças,
Dão-vos perdão vossas graças,
Vossos pecados as crescem.
Se penas vos acontecem,
Mais que as outras não penais,
Porque sois todas iguais.
De amar-vos não me arrependo,
Bem que nunca amado houvera;
Nem vos quero mais sincera,
Tão fementida vos tendo;
451
Mal éreis, assim não sendo,
Pois não éreis como as mais,
Já que sois todas iguais.
NO EXÍLIO
Longe da terra pátria!... Os longos dias
Do exílio amargam, mas não há no mundo
Desgraçado tão grande que, no fundo,
Não encontre um prazer nas agonias.
Que o céu alheio aclara-me jucundo,
Se os teus olhos de mim já não desvias,
Se o calor do teu peito a cinzas frias
A saudade reduz em que me afundo!
Ouvir-te o coração apaixonado
Chegar-te aos lábios num prazer tamanho,
Compensa a dor ao mais desesperado.
Bendita a sorte que me uniu contigo:
Mostrou-me a Pátria um coração estranho,
Deste-me, estranha, um coração amigo!
TU, SÓ TU...
A Estrela d’Alva desaparecia
Quando eu parti naquela madrugada,
E a doce aurora, tímida e rosada.
Das nuvens de ouro levantava o dia.
Numa palmeira, que no espaço abria
O verde leque, para o céu voltada.
Da áurea garganta uma ave apaixonada
Cavatinas alegres despedia.
Manhã tão linda: o prado um firmamento
Glauco e cheiroso, estrelas multicores,
O chão bordando num deslumbramento!
E eu vendo o campo, eu vendo o céu tranquilo,
Pensava em ti, dona das minhas dores;
Morta: só tu darias vida àquilo.
PUBESCÊNCIA
A Emílio de Menezes
452
Ei-la! Chega ao jardim, que estava triste,
Porque a sua alegria ausente estava,
E ela, que em vê-lo dantes se alegrava,
Agora a toda a tentação resiste:
Seria outra alma, pensa, que a animava?
Por que um desejo que a persegue insiste?
Qualquer cousa que ignora, mas que existe,
Pulsa-lhe ao coração que não pulsava.
Triste cismando segue, e em frente à fonte:
— Um sátira, de cuja boca escorre
Um fino fio d'água transparente —
Ri-se, dos cornos que lhe vê na fronte,
Os lábios cola aos dele, e porque morre
De sede, bebe alucinadamente.
453
JERÔNIMO BAÍA
(1620/30-1688)
A UMA ROSA
Como tens tão pouca vida?
Quem tão depressa te mata?
Flor do mais ilustre sangue,
Que deu de Vênus a planta?
Uma Aurora só que vives,
Flores te chamam Monarca:
Na mesma terra do império,
Que foi berço, tens a campa.
Lástima da tarde chamam
A ti doce mimo da alva,
Gentil pérola nascida
Entre concha de esmeralda.
Águia nos voos florentes
Estendes ao Sol as asas,
Mas quando os raios lhe logras,
Fênix em raios te abrasas.
Em quanto em verde clausura
Te fecha o botão as galas,
Para os logros, que desejas,
Te dão vida as esperanças.
Mas quando a púrpura bela
Te serve já de mortalha,
Sentido o Sol chora raios,
Buscando a morte nas águas.
De fermosura tão rica
Não sei quem foi o pirata
Tão atrevido, que rouba
A joia da madrugada.
LAMPADÁRIO DE CRISTAL
(Extratos)
Ao rigor de Lísi
Mais dura, mais cruel, mais rigorosa
454
Sois, Lísi, que o cometa, rocha ou muro
Mais rigoroso, mais cruel, mais duro,
Que o Céu vê, cerca o mar, a terra goza.
Sois mais rica, mais bela, mais lustrosa
Que a perla, rosa, Sol ou jasmim puro,
Pois por vós fica feio, pobre e escuro,
Sol em Céu, perla em mar, em jardim rosa.
Não viu tão doce, plácida e amena,
(Brame o mar, trema a terra, o Céu se agrave),
Luz o Céu, ave a terra, o mar sirena.
Vós triunfais de sirena', luz e ave,
Claro Sol, perla fina, rosa amena,
Mor cometa, árduo muro, rocha grave.
SONHANDO QUE VIA A MÁRCIA
Pintais, sono gentil, com belo ornato
Meu claro sol na vossa sombra escura,
Que posto que da morte sois retrato,
Retrato sabeis ser da fermosura.
Eu, vendo o grato rosto e peito ingrato,
Quando fermosa a sigo a temo dura;
Porém firme no amor, fácil no trato,
Me coroa a esperança, a fé me jura.
Cante pois por tal glória, por tal sorte,
Cante vosso louvor, minha Talia
No Ocaso, no Oriente, Sul e Borte;
Chame-vos clara luz, não sombra fria,
Causa da vida, não irmão da morte,
Filho da noite não, mas pai do dia.
A UMA TRANÇA DE CABELOS NEGROS
Diversa em cor, igual em bizarria
Sois, bela trança, ao lustre de Sofala,
Luto por negra, por vistosa gala,
455
Nas cores noite, na beleza dia.
Negra, porém de amor na monarquia
Reinais senhora, não servis vassala;
Sombra, mas toda a luz não vos iguala;
Tristeza, mas venceis toda a alegria.
Tudo sois, mas eu tenho resoluto
Que sois só na aparência enganadora
Negra, noite, tristeza, sombra, luto.
Porém na essência, ó doce matadora,
Quem não dirá que sois, e não diz muito,
Dia, gala, alegria, luz, senhora?
MANDANDO EL-REI D. PEDRO ENTERRAR O CORAÇÃO DO MARQUÊS DE
MARIALVA AO PÉ DO TÚMULO DE EL-REI D. JOÃO IV
Ceda ó Jove na paz, Marte na guerra,
Pedro o primeiro, a Pedro sem segundo,
Pois este humano, aquele furibundo
Corações tira, mortos desenterra:
Adonde expira Inês Pedro se encerra,
Um medo ao Reino, o outro amor ao mundo,
Pois faz a um morto, a outro moribundo,
Grave este o fogo, leve aquele a terra.
Três corações, dous Janos, e um Mavorte,
Entregue ao Letes um, outro à memória,
Um coroa o amor, outro a consorte.
Mas ai com tanto excesso, alta vitória,
De Pedro a Pedro, o que da gloria à morte,
Ele é morte de dous, vós de um sois glória.
À MORTE DO CONDE DE CASTELO MELHOR
O Castelo melhor, o melhor forte,
Glória do Minho, horror de Salvaterra,
Quando subiu ao Céu, caiu à terra;
Cato, ai triste caso! ai dura sorte!
456
Da maior fortaleza de Mavorte
Um jaspe só toda a ruína encerra.
O tempo fez o que não fez a guerra;
O que não pôde Marte, pôde a Morte.
Fosso lhe deu, serviu-lhe de estacada
Pio o Galego, o Castelhano exangue,
Com cadáveres um, outro com sangue.
E fora extinta, e fora aniquilada,
A ter mais duração ou mais estrela,
Deste Castelo só toda Castela.
FALANDO COM DEUS
Só vos conhece, amor, quem se conhece;
Só vos entende bem quem bem se entende;
Só quem se ofende a si, não vos ofende,
E só vos pode amar quem se aborrece.
Só quem se mortifica em vós floresce;
Só é senhor de si quem se vos rende;
Só sabe pretender quem vos pretende,
E só sobe por vós quem por vós desce.
Quem tudo por vós perde, tudo ganha,
Pois tudo quanto há, tudo em vós cabe.
Ditoso quem no vosso amor se inflama,
Pois faz troca tão alta e tão estranha.
Mas só vos pode amar o que vos sabe,
Só vos pode saber o que vos ama.
AO MENINO-DEUS NASCIDO
Não choreis, belo Menino,
Se de amante vos prezais,
Porque amor que chora mais
É sempre amor menos fino:
Limpai o rosto divino,
A quem a minha alma adora,
457
Que se vossa Mãe vos chora,
Meu Deus, com tantos rigores,
É porque ao nascer das flores,
Costuma chorar a Aurora.
MADRIGAL A UMA CRUELDADE FORMOSA
A minha bela ingrata
Cabelo de ouro tem, fronte de prata,
De bronze o coração, de aço o peito;
São os olhos reluzentes
(Por quem choro e suspiro,
Desfeito em cinza, em lágrimas desfeito),
Celestial safiro;
Os beiços são rubins, perlas os dentes;
A lustrosa garganta
De mármore polido;
A mão de jaspe, de alabastro a planta.
Que muito, pois, Cupido,
Que tenha tal rigor tanta lindeza,
As feições milagrosas,
Para igualar desdéns a formosuras,
De preciosos metais, pedras preciosas,
E de duros metais, de pedras duras?
AO MENINO DEUS EM METÁFORA DE DOCE
(Romance - atribuído a este autor)
– Quem quer fruta doce?
– Mostre lá! Que é isso?
– É doce coberto;
É manjar divino.
– Vejamos o doce,
E, depois que o virmos,
Compraremos todo,
Se for todo rico.
– Venha ao portal logo:
Verá que não minto,
Pois de várias sortes
É doce infinito.
458
Desculpa, minha alma.
– Mas ah! que diviso?
Envolto em mantilhas,
Um infante lindo!
– Pois de que se admira,
Quando este Menino
É doce coberto,
É manjar divino?
– Diga o como é doce,
Que ignoro o prodígio.
– Não sabe o mistério?
Ora vá ouvindo:
Muito antes de Santa Ana
Teve este doce princípio,
Porque já do Salvador
Se davam muitos indícios.
Mas na Anunciada dizem
Que houve mais expresso aviso,
E logo na Encarnação
Se entrou por modo divino.
Esteve pois na Esperança
Muitos tempos escondido.
Saiu da Madre de Deus,
Depois às Claras foi visto.
Fazem dele estimação
As freiras com tal capricho,
Que apuram para este doce
Todos os cinco sentidos.
Afirmam que no Calvário
Terá Seu termo finito,
Sendo que no Sacramento
Há-de ter novo artifício.
Que seja doce este Infante,
A razão o está pedindo,
Porque é certo que é morgado,
459
Sendo unigênito Filho!
Exposto ao rigor do tempo,
Quando tirita nuzinho,
Um caramelo parece
Pelo branco e pelo frio.
Tal doce é, que porque farte
Ao pecador mais faminto,
Será de pão com espécies,
Substancial doce divino.
É manjar tão soberano,
Regalo tão peregrino,
Que os espíritos levanta,
Tornando aos mortos vivos.
Tão delicioso bocado
Será de gosto infinito,
manjar real, verdadeiro,
Manjar branco parecido!
Que é manjar dos Anjos, dizem
Talentos mui fidedignos,
Por ser pão-de-ló, que aos Anjos
Foi em figura oferecido.
RETRATO
Vi Fílis, a bela,
Lume dos meus olhos,
Olhos de minha alma,
Alma de meu corpo.
Vi-a, e logo amor.
Vi-a, e Febo logo
Quer que a pinte a cores,
Quer que a cante a coros.
Meti-me em debuxos,
E saí com tonos.
Quem me fora Apeles!
Quem me fora Apolo!
Seu rico cabelo,
Do mais precioso,
460
Mil troféus alcança
E logra mil louros.
Os raios enlaça,
Para mal dos olhos.
Todo ele é nós cegos,
E nós, cegos todos.
O campo da testa
Belo e belicoso,
Faz de neve fronte
A esquadrão de fogo.
Seus olhos rasgados
De avarentos noto,
Pois quanto mais ricos
Tanto estão mais rotos.
São mar de beleza
Que me tem absorto,
E suas meninas
São os seus cachopos.
Dormidos se mostram,
Mas sabem (que assombro!)
Mais eles dormidos
Que espertos os outros.
Altamente dormem,
Mas entre os seus sonhos,
Mais que de dormidos,
Roncam de formosos.
Feito de apanhia,
Mistura o seu rosto
Com o branco o tinto,
De neve entre copos.
O nariz e as faces
Têm câmbio cheiroso:
Elas flores dão,
Ele dá Favônios.
A boca parece,
Se mal a não apodo,
Pela cor, ferida,
Pelo breve, ponto.
De seus dentes, quando
Descobre o tesouro,
O aljôfar se mete
Nas conchas medroso.
Por ser tão tenrinho,
Tão de leite todo,
461
Seu colo podia
Andar inda ao colo.
É tão rica jóia,
Brinco tão formoso,
Que todos os dias
O traz ao pescoço.
Põe a mão galharda,
Por quem vivo e morro,
O papel de tinta,
A neve de lodo.
Tudo nela é branco;
Porém eu me assombro
De topar as setas
Onde o alvo topo.
São seus pés tão breves,
Que estes versos toscos
Com ser tão pequenos,
Lhe ficam mui longos.
A UMA CRUELDADE FORMOSA
A minha bela ingrata
Cabelo de ouro tem, fronte de prata,
De bronze o coração, de aço o peito;
São os olhos reluzentes
Por quem choro e suspiro,
Desfeito em cinza, em lágrimas desfeito;
Celestial safira,
Os beiços são rubins, perlas os dentes;
A lustrosa garganta
De mármore polido;
A mão de jaspe, de alabastro a planta.
Que muito, pois, Cupido,
Que tenha tal rigor tanta lindeza,
As feições milagrosas,
- Para igualar desdéns a formosuras De preciosos metais, pedras preciosas,
E de duros metais, de pedras duras?
462
JERÔNIMO CORTE-REAL
(1530?—1588)
LITERATURA PORTUGUESA
A TEMPESTADE
Cobre-se ó céu de grossas negras nuvens,
Os ventos mais e mais cada hora crescem,
Já se escurece o céu, já. com soberba
Inchadas grossas ondas se levantam.
A nau começa já passar trabalho,
Já começa gemer, e em tal afronta
O apito soa, brada o mestre, acodem
Com presteza varões no mar expertos.
Põe-se o fero Vulturno junto ao cabo,
Levanta lá no céu furiosas ondas;
Austro bramando corre ali com fúria,
Dando um balanço à nau que quase a rende,
Vem com grande furor Bóreas raivoso,
Comete por davante, o passo impide,
Encontra as grandes velas, e, por força,
Ao mastro as pega e a nau atrás empuxa:
Rompe-se por mil partes o céu, e arde
Em ligeiro, apressado, vivo fogo.
Um rugido espantoso vai correndo
Desde o Antártico Pólo ao seu oposto.
Arremessam-se lanças pelos ares
De congelada pedra em água envolta;
Com espantoso ímpeto, e rasgadas
As densas negras nuvens raios cospem:
De um golpe as velas vêm todas abaixo.
463
MANUEL DE SOUSA ENTERRA D. LEONOR NA PRAIA
Apartando co'as mãos a branca areia
Abre nela uma estreita sepultura
Torna-se atrás alçando nos cansados
Braços aquele corpo lasso e frio.
Ajudam as criadas as funestas
Derradeiras exéquias, com mil gritos.
Ai duro tempo! (dizem),como apartas
Para sempre de nós tal fermosura!
Na perpétua morada tenebrosa
A deixam, levantando alto alarido,
Com salgado licor banhando a terra,
Aquele último vale. todas dizem.
Não fica só Lianor na causa infausta,
Que de um tenro filhinho se acompanha,
Que a luz vital gozou, quatro perfeitos
Anos, ficando o quinto interrompido.
Ali co'a morta mãe o filho morto
Ambos com morto amor em cerra jazem,
Ela lhe nega o branco amado peito,
E ele o doce, materno, amado gosto.
Ambos na solitária praia ficam,
Junto das grossas ondas sepultados,
Deixando ao mundo um triste raro exemplo
De perversa, cruel, ímpia fortuna.
À ESPERA DO SOCORRO
Trabalhos, aflições, grandes angústias,
Desconsolações, males e misérias
Socorre-as Deus então, quando mais clara
L mais certa se mostra a desventura.
Os prenósticos tristes emudeçam
E pasmem com mortal espanto a gente
Ou a cruel fortuna se nos mostre
Com áspero, feroz, bravo semblante.
Firme esperança em Deus tenhamos sempre,
Pois nele certa está misericórdia
L Quando em nossos males, esquecido
Se mostra, então nos dá mor o remédio.
As naus tardavam já em vir do Reino
E a esta causa em Goa se enxergava
464
Na gente popular uma tristeza
Nascida do temor que o grande cerco
Nos corações vulgares tinha impresso.
Traspassa um grande espanto as tristes almas
Daquelas que na guerra os caros filhos
E seus maridos têm aventurados
A desastrado fim cada momento;
Os templos frequentados eram delas
Com lágrimas pedindo a Deus socorro
E com voz alta e triste à Virgem pia.
Chamavam com fervor que lhe valesse,
Tomando-a por terceira em tal perigo.
COMO OS INIMIGOS BATIAM A FORTALEZA
O Sol ardente em seu fogoso carro
Quase meia jornada já cumpria,
Quando lá pelos ares se levanta
Um alarido horrível, que penetra
As nuvens e alto céu: os vivos gritos
Espalhados nos ares vão buscando
As côncavas cavernas dos mais altos
E solitários montes, e nos vales
Mais fundos e vazios; com ajuda
Da triste e namorada Eco formam
Com ímpeto diversos apelidos.
Das contrárias paredes começaram
Disparar basaliscos, e salvages
Quartaus, espalhafatos, leões grossos
Com que as altas montanhas estremecem.
O principal que ofendem é a distância
Do Apóstolo que a mão meteu no lado
De Cristo, e todo o lanço Que ali dela
Corre até Santiago, porque viram
Ser estes três lugares menos fortes.
Danificados mais e mal seguros
De todas estas partes lhe respondem
Com mui furiosos tiros. Cobre um fumo
Escuro e infernal as fortalezas.
Súpitos e mortais ardentes fogos
Luzem com grande pressa em ambas partes:
O capitão ordena um contramuro
Dentro naquela parte combatida:
465
De parede tão grossa, que medidos
Tinha dezesseis palmos, e de entulho
Três côvados. Repairos fez mui grandes
Com fortes contracavas no baluarte
São Tomé: porque viu que a ele vinham
Determinados com violenta fúria.
Ferve a gente lá dentro, cresce a obra,
Uns madeira acarretam, outros abrem
Com forças e com ferro a dura terra,
Fazendo contraminas. Outros correm
Com grande pressa ao muro, e as estâncias
Povoam de arcabuzes, lanças, dardos,
De pólvora, pelouros e outras muitas
Proveitosas maneiras de peleja.
Os capitães acodem diligentes
Onde os tiros cruéis fazem mor dano.
Is ali com mil repairos fortificam
Lugares dos pelouros derrubados.
466
JOÃO DE DEUS
(1830—896)
LITERATURA PORTUGUESA
AMORES, AMORES
Não sou eu tão tola
Que caia em casar;
Mulher não é rola
Que tenha um só par:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.
Que mal faz um beijo,
Se apenas o dou,
Desfaz-se-me o pejo,
E o gosto ficou?
Um deles por graça
Deu-me um, e, depois,
Gostei da chalaça,
Paguei-lhe com dois.
Abraços, abraços,
Que mal nos farão?
Se Deus me deu braços,
Foi essa a razão:
Um dia que o alto
Me vinha abraçar,
Fiquei-lhe de um salto
Suspensa no ar.
467
Vivendo e gozando,
Que a morte é fatal,
E a rosa em murchando
Não vale um real:
Eu sou muito amada,
E há muito que sei
Que Deus não fez nada
Sem ser para quê.
Amores, amores,
Deixá-los dizer;
Se Deus me deu flores,
Foi para as colher:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.
A CIGARRA E A FORMIGA
Como a cigarra o seu gosto
É levar a temporada
De Junho, Julho e Agosto
Numa cantiga pegada,
De Inverno também se come,
E então rapa frio e fome!
Um Inverno a infeliz
Chega-se à formiga e diz:
- Venho pedir-lhe o favor
De me emprestar mantimento,
Matar-me a necessidade;
Que em chegando a novidade,
Até faço um juramento,
Pago-lhe seja o que for.
Mas pergunta-lhe a formiga:
"Pois que fez durante o Estio?"
- Eu, cantar ao desafio.
"Ah cantar? Pois, minha amiga,
Quem leva o Estio a cantar,
Leva o Inverno a dançar!"
468
MILITARÃO
Um valente militar
Ficou tão abarrotado
Num opíparo jantar
A que fora convidado,
Que o que fazia era ímpar,
E estava dando cuidado.
Diz-lhe aflita uma das manas:
“Meta dois dedos na boca,
Provoque as ânsias, a ver!”
-Dois dedos na boca...louca?
Se eu os pudesse meter,
Metia duas bananas.
BEIJO
Beijo na face,
Pede-se e dá-se:
Dá?
Que custa um beijo?
Não tenha pejo:
Vá!
Um beijo é culpa,
Que se desculpa:
Dá?
A borboleta
Beija a violeta:
Vá!
Um beijo é graça,
Que a mais não passa:
Dá?
Teme que a tente?
É inocente...
Vá!
Guardo segredo,
Não tenha medo:
Vê?
Dê-me um beijinho,
Dê de mansinho,
469
Dê!
(BEIJO...)
Talvez te leve
O vento em breve,
Flor!
A vida foge,
A vida é hoje,
Amor!
Guardo segredo,
Não tenhas medo
Pois!
Um mais na face,
E a mais não passe!
Dois...
Oh! dois? piedade!
Coisas tão boas...
Vês?
Quantas pessoas
Tem a Trindade?
Três!
Três é a conta
Certinha e justa...
Vês?
E que te custa?
Não sejas tonta!
Três!
Três, sim: não cuides
Que te desgraças:
Vês?
Três são as Graças,
Três as Virtudes;
Três.
As folhas santas
Que o lírio fecham,
Vês?
E não o deixam
Manchar, são... quantas?
Três!
470
JOÃO DE LEMOS
(1819—1890)
LITERATURA PORTUGUESA
NÃO TE ENTENDO, CORAÇÃO
Mas se não amo, nem posso,
Que pode então isto ser?
Coração, se já morreste,
Porque te sinto bater?
Ai, desconfio que vives
Sem tu nem eu o saber.
Porque a olho quando a vejo?
Porque a vejo sem a olhar?
Porque longe dos meus olhos
Me andam os seus a lembrar?
Porque levo tantas horas
Nela somente a pensar?
Porque tímido lhe falo,
E dantes não era assim?
Porque mal a voz lhe escuto
Não sei o que sinto em mim?
Porque nunca um não me acode
Em tudo que ela diz sim?
Porque estremeço contente
Quando ela me estende a mão,
E se aos outros faz o mesmo
Porque é que não gosto então?
471
Deveras que não me entendo,
Nem te entendo, coração.
Ou me enganas, ou te engano;
Se isto amor não pode ser,
Não atino, não conheço
Que outro nome possa ter;
Ai, coração, que vivemos
Sem tu nem eu o saber.
AS ROSAS DE SANTA ISABEL
Onde ides, correndo asinha,
Onde ides, bela Rainha,
Onde ides, correndo assim?
Porque andais fora dos Paços?
Que peso levais nos braços?
Oh! Dizei-mo agora a mim?...
A Santa, regalos novos,
Frutas, pão, e carne, e ovos,
No regaço e braços seus,
Sem cuidar ser surpreendida,
Ia levar farta vida
Aos pobrezinhos de Deus.
Coram-lhe as faces formosas,
E responde:- "Levo rosas..."
Dom Dinis deitou-lhe a mão,
Ao regaço, de repente;
Mas de rubra cor vivente
Só rosas lá viu então!...
Como o tempo era passado,
Nos jardins, no monte e prado,
De rosas e toda a flor,
El-rei, cheio de piedade,
Nas rosas da caridade
Viu a bênção do Senhor!
E daquele rosal dela
Tirando uma rosa bela,
Que guardou no peito seu,
472
Disse-lhe:- "Em paz ide agora,
Que eu me encomendo, Senhora,
À Santa, ao Anjo do Céu."
A LUA DE LONDRES
É noite. O astro saudoso
rompe a custo um plúmbeo céu,
tolda-lhe o rosto formoso
alvacento, úmido véu,
traz perdida a cor de prata,
nas águas não se retrata,
não beija no campo a flor,
não traz cortejo de estrelas,
não fala de amor às belas,
não fala aos homens de amor.
Meiga Lua! Os teus segredos
onde os deixaste ficar?
Deixaste-os nos arvoredos
das praias de além do mar?
Foi na terra tua amada,
nessa terra tão banhada
por teu límpido clarão?
Foi na terra dos verdores,
na pátria dos meus amores,
pátria do meu coração!
Oh! que foi!... Deixaste o brilho
nos montes de Portugal,
lá onde nasce o tomilho,
onde há fontes de cristal;
lá onde viceja a rosa,
onde a leve mariposa
se espaneja à luz do Sol;
lá onde Deus concedera
que em noite de Primavera
se escutasse o rouxinol.
Tu vens, ó Lua, tu deixas
talvez há pouco o país
onde do bosque as madeixas
já têm um flóreo matiz;
473
amaste do ar a doçura,
do azul e formosura,
das águas o suspirar.
Como hás-de agora entre gelos
dardejar teus raios belos,
fumo e névoa aqui amar?
Quem viu as margens do Lima,
do Mondego os salgueirais;
quem andou por Tejo acima,
por cima dos seus cristais;
quem foi ao meu pátrio Douro
sobre fina areia de ouro
raios de prata esparzir
não pode amar outra terra
nem sob o céu de Inglaterra
doces sorrisos sorrir.
Das cidades a princesa
tens aqui; mas Deus igual
não quis dar-lhe essa lindeza
do teu e meu Portugal.
Aqui, a indústria e as artes;
além, de todas as partes,
a natureza sem véu;
aqui, ouro e pedrarias,
ruas mil, mil arcarias;
além, a terra e o céu!
Vastas serras de tijolo,
estátuas, praças sem fim
retalham, cobrem o solo,
mas não me encantam a mim.
Na minha pátria, uma aldeia,
por noites de lua cheia,
é tão bela e tão feliz!...
Amo as casinhas da serra
c'oa Lua da minha terra,
nas terras do meu país.
Eu e tu, casta deidade,
padecemos igual dor;
temos a mesma saudade,
sentimos o mesmo amor.
474
Em Portugal, o teu rosto
de riso e luz é composto;
aqui, triste e sem clarão.
Eu, lá, sinto-me contente;
aqui, lembrança pungente
faz-me negro o coração.
Eia, pois, ó astro amigo,
voltemos aos puros céus.
Leva-me, ó Lua, contigo,
preso num raio dos teus.
Voltemos ambos, voltemos,
que nem eu nem tu podemos
aqui ser quais Deus nos fez;
terás brilho, eu terei vida,
eu já livre e tu despida
das nuvens do céu inglês.
475
JOÃO PENHA
(1838—1919)
LITERATURA PORTUGUESA
CONSOLAÇÃO
A um poeta lírico
Não sucumbas assim. A noite escura
Sucede a luz da aurora e o sol radioso:
Suspende as mágoas do violão choroso,
O lamento dos tristes sem ventura.
Limpa as fezes do cálix da amargura,
E, com vinho dum pâmpano gostoso,
Ergue um brinde ao amante venturoso
Da mulher que adoravas com loucura.
Nem outra vez me digas que na munda,
Ou na voragem das perdidas gentes,
Não há sofrer maior, nem mais profundo.
A terra é o grande val dos descontentes!
Oh! se tu visses num festim jucundo
A mágoa dum gastrônomo... sem dentes!
SERMÃO NA MONTANHA
Frei Bernardo, de pé sobre uma dorna
Empina a canjirão, que o desafia,
476
E sobre o povo, que o admira, entorna
O mar enorme da oratória pia.
Prega, sinistra: textos mil aponta;
Aos abismos descendo do profundo,
Agarra Belzebu, por uma ponta
E com ele verbera o dorso ao mundo.
Chega à peroração, que a povo chora:
Vem ao trono buscá-lo a confraria;
Lança a benção final, e, sem demora
Empina o canjirão que o desafia.
AS GRANDES MANOBRAS
A Trindade Coelho
Quando eu fazia trovas, nessa idade
Em que a vida é sonho de poesia,
Fiz-lhe versos de amar, em que a dizia
Um lírio branco, a flor da castidade.
Era junto ao Penedo da Saudade
Que eu muitas vezes, perpassando, a via:
Lá era o ninho. Assim a cotovia
O faz longe, bem longe da cidade.
Quanto eu a amava então! Em ânsia ardente
Eu só tinha um desejo: o da conquista
Daquela virgem pura, anjo inocente!
Certo dia, em que a vi, fui-lhe na pista,
E logo, aproximando-me tremente:
– “Onde vai?” – perguntei. – “Vou à revista”.
A CARNE
A Cândido de Figueiredo
Carne mimosa, carne cor de rosa
Nada mais sois, oh anjos, na poesia
Dos vates dissolutos de hoje em dia,
Nos romances de amor, hedionda prosa.
477
A vossa alma gentil, ideal, mimosa,
Nestas idades de descrença ímpia,
Como escondida, numa estátua fria
Sonha e não voa, de voar medrosa!
Anjos chorai o Amor! Com voz dolente
Dizei-lhe adeus! Bronco recife
Se apruma entre ele e vós, cruel, ingente:
Que par mais que de vinhos o borrife,
Ninguém gosta de ver, continuadamente,
Diante de si, fatal, o mesmo bife!
CENA DE TABERNA
A Guimarães Fonseca
Vede-o, além, no esconso, à luz mortiça
Do velho lampadário que vacila!
No lábio tem o insulto, e na pupila
O raio ardente que as paixões atiça.
Vede-os, que são rivais! Fatal cobiça
Violenta os arrancou à paz tranquila,
E no rude brigar, que os aniquila,
Já tingem de vermelho o chão e a liça!
– “Acima o canjirão!” – com voz acesa
Diz a mais fera na tremenda luta,
“Acima!” – e pousa-o sobre a mesa.
Mas, vendo soçobrar a massa bruta
Do insolente rival, dos vinhos presa:
– “Venci! diz vomitando; é minha a truta!”
478
JOAQUIM SERRA
(1838—1888)
LITERATURA BRASILEIRA
A MISSA DO GALO
Repica o sino da aldeia,
Troa o foguete no ar!
O rio geme na areia,
Na areia brilha o luar.
Quantas vozes, que alegria!
O povo da freguesia
Corre em chusma, folgazão.
No caminho arcos de flores,
Por toda parte cantores,
Folguedos e agitação!
Ali no largo da ermida
O tambor toca festeiro,
Se apinha o povo em redor;
E a igrejinha garrida,
Tendo defronte um cruzeiro,
É toda luz e fulgor!
Vêm do monte umas devotas,
Trazem o rosário na mão;
Uns camponeses janotas,
Calças por dentro das botas,
Seguindo o grupo lá vão!
Que raparigas formosas,
Cheias de rendas e rosas
A ladeira vão subir!
Falam cousas tão suaves,
479
Parece gorjeio de aves
O que elas dizem a sorrir!
A brisa sopra fagueira,
Brincando na juçareira
E vai o rio enrugar;
Chegam de longe canoas,
Os barqueiros cessam as loas,
Que modulavam a remar!
O sino da freguesia,
Da branca igreja da aldeia,
Cada vez repica mais;
O povo corre à porfia,
A capela já está cheia,
Soam trenos festivais!
Porque produz tanto abalo
Esta festa sem rival?
É hoje a missa do galo,
Santa missa do Natal!
.....................................................
Este festejo tão lindo
Que grande mistério encerra!
Poema de amor infindo
Que o céu ensinou à terra!
Faz-se humano o ente divino,
O Eterno se faz menino,
Vem viver entre os mortais!
Lei cristã, santa e formosa,
Salve crença majestosa,
Que eu recebi de meus pais!
A MINHA MADONA
Alva, mais alva do que o branco cisne,
Que além mergulha e a penugem lava;
Alva como um vestido de noivado,
Mais alva, inda mais alva!
Loira, mais loira do que a nuvem linda
Que o sol à tarde no poente doira;
Loira como uma virgem ossianesca,
Mais loira, inda mais loira!
Bela, mais bela que o raiar da aurora
Após noite hibernal, negra procela;
Bela como a açucena rociada
480
Mais bela, inda mais bela!
Doce, mais doce que o gemer da brisa;
Como se deste mundo ela não fosse...
Doce como os cantares dos arcanjos,
Mais doce, inda mais doce!
Casta, mais casta que a mimosa folha
Que se constringe, que da mão se afasta,
Assim como a Madona imaculada
Ela era assim tão casta!...
481
JOÃO XAVIER DE MATOS
(1730/5—1789)
LITERATURA PORTUGUESA
PÔS-SE O SOL
Pôs-se o sol... Como já, na sombra feia
Do dia, pouco a pouco, a luz desmaia!
E a parda mão da Noite, antes que caia,
De grossas nuvens todo o ar semeia!
Apenas já diviso a minha Aldeia;
Já do cipreste não distingo a faia:
Tudo em silêncio está. Só, lá na praia,
Se ouvem quebrar as ondas pela areia.
Com a mão na face, a vista ao Céu levanto,
E cheio de mortal melancolia,
Nos tristes olhos mal sustenho o pranto;
E se inda algum alívio ter podia
Era ver esta Noite durar tanto,
Que nunca mais amanhecesse o dia!
EU VI UMA PASTORA
Eu vi uma Pastora em certo dia
Pelas praias do Tejo andar brincando,
Os redondos seixinhos apanhando,
Que no puro regaço recolhia.
Eu vi nela tal graça, que faria
Inveja a quantas há; e o gesto brando,
Com o sereno rosto levantado,
Parece namorava quanto via.
Eu vi o passo airoso, a compostura,
Com que depois me pareceu mais bela,
Guiando os cordeirinhos na espessura.
Eu o digo de todo; vi a Estélia:
482
De graça, de candor, de formosura
Só poderei ver mais, tornando a vê-la.
483
JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO
(1761—1831)
LITERATURA PORTUGUESA
A CIDADE BELA
Dos sete montes seus ao longe a vista!
Das altas torres, pórticos soberbos
Quanto é grande, magnífico o prospecto!
Humilde e bonançoso o flavo Tejo,
Sobre areias auríferas correndo,
As praias lhe enriquece, as plantas beija.
Quão denso bosque de cavalos pinhos
Sobre a espádua sustenta! Do Oriente
Rubins acesos, fugidas safiras,
E da opulenta América os tesouros,
Cortando os mares líquidos, trouxeram.
Nela é mais puro o ar; e o Céu se esmalta
De mais sereno azul. O Sol brilhante,
Correndo o vasto Céu, se apraz de vê-la.
E quase se suspende, e, meigo, envia
Sobre ela o raio extremo, quando acaba
A lúcida carreira, a frente de ouro
No seio esconde das cerúleas ondas.
EPODOS DE HORÁCIO
(Traduzidos em verso português)
Se há parricida que do pai caduco
484
O sangue derramasse,
Alhos coma somente, que a cicuta
É menos venenosa.
Ó cegadores rústicos, vós tendes
Estômagos de ferro.
Que veneno cruel me despedaça
As torradas entranhas.
Atroz peçonha, víbora cruenta
Lançou nestes manjares
Ou deles foi maldita cozinheira
A pérfida Canídia
Quando o belo Jasão, dos argonautas
O condutor valente,
Foi subjugar os indomáveis touros,
Sob ignorado jugo,
Medéia os membros lhe banhou com o sumo
Dos alhos espremido
Antes que as rédeas aos dragões sanhudos,
Batesse sobre os ares,
Fugindo de Corinto, com tal sumo
Os vestidos molhava
Com que do leito seu vingava a afronta
Na rival inocente.
Jamais nos campos de Calábria, Sírio
Vomitou tanto fogo,
Jamais nas veias do valente Alcides
De Neso as vestiduras
Tantos acesos turbilhões lançaram
De chama abrasadora
E se veneno tal, teu gosto prende,
Verás, caro Mecenas,
Corno de ti fugindo a terna moça
Teus ósculos rejeita.
485
JOSÉ BONIFÁCIO
(1827—1886)
LITERATURA BRASILEIRA
SAUDADE
I
Eu já tive em belos tempos
Alguns sonhos de criança;
Já pendurei nas estrelas
A minha verde esperança;
Já recolhi pelo mundo
Muita suave lembrança.
Sonhava então - e que sonhos
Minha mente acalentaram?!
Que visões tão feiticeiras
Minhas noites embalaram?!
Como eram puros os raios
De meus dias que passaram?!
Tinha um anjo de olhos negros,
Um anjo puro e inocente,
Um anjo que me matava
Só c’um olhar - de repente,
- Olhar que batia na alma,
Raio de luz transparente!
Quando ela ria, e que riso?!
Quando chorava - que pranto?!
Quando rezava, que prece!
E nessa prece que encanto?!
486
Quando soltava os cabelos,
Como esparzia quebranto!
..............................................................
Por entre o chorão das campas
Minhas visões se ocultaram;
Meus pobres versos perdidos
Todos, todos acabaram;
De tantas rosas brilhantes
Só folhas secas ficaram!
II
Oh! que já fui feliz! - ardente, ansioso
Esta vida boiou-me em mar de encantos!
Os meus sonhos de amor eram mil flores
Aos sorrisos de aurora, abrindo a medo
Nos orvalhados campos!
Ela no agreste monte; ela nos prados;
Ela na luz do dia; ela nas sombras
Pardacentas do vale; ela no monte,
No céu, no firmamento - ela sorrindo!
Então o sol surgindo feiticeiro,
Entre nuvens de cores recamadas,
Segredava mistérios!
Como era verde o florejar das veigas,
Brandinha a viração, múrmura a fonte,
Meigo o clarão da lua, a estrela amiga
Na solidão do Céu!
Que sedes de querer, que amor tão santo,
Que crença pura, que inefáveis gozos,
Que venturas sem fim, calcando ousado
Humanas impurezas!
Deus sabe se por ela, em sonho estranho
A divagar sem tino em loucos êxtases,
Sonhei, penei, vivi, morri de amores!
Se um quebro fugitivo de seus olhos
Era mais do que a vida em plaga edênica,
Mais do que a luz ao cego, o orvalho às flores,
A liberdade ao triste prisioneiro,
E a terra da pátria ao foragido!!!
Mas, ai! - tudo morreu!...
Secou-se a relva, a viração calou-se,
Os queixumes da fonte emudeceram,
Mórbida a lua só prateia lousa,
A estrela amorteceu e o sol amigo
487
No verde-negro seio do oceano
Chorando a face esconde!
Meus amores talvez morreram todos
Da lua no clarão que eu entendia,
Nessa réstia do sol que me falava,
Que tantas vezes me aqueceu a fronte!
III
Além, além, meu pensamento, avante!
Que idéia agora a mente me assalteia?!
Lá surge afortunada,
Da minha infância a imagem feiticeira!
Quadra risonha de inocência angélica,
Minha estação no Céu, por que fugiste?
E que vens tu fazer - agora à tarde
Quando o sol já desceu os horizontes,
E a noite do saber já vem chegando
E os lúgubres lamentos?
Minha aurora gentil - tu bem sabias
Como eu falava às brisas que passavam,
Às estrelas do Céu, à lua argêntea,
sobre nuvem purpúrea ao Sol já frouxo!
Ante mim se erguia então o venerando
O vulto de meu Pai - perto, ao meu lado
Minha irmãs brincavam inocentes,
Puras, ingênuas, como a flor que nasce
Em recatado ermo! - Ai! minha infância
Não voltarás... oh! nunca!... entre ciprestes
Dormes daqueles sonhos esquecida!
Na solidão da morte - ali repoisam
Ossos de Pai, de Irmãos!... embalde choras
Coração sem ventura... a lousa é muda,
E a voz dos mortos só a campa a entende.
Tive um canteiro de estrelas,
De nuvens tive um rosal;
Roubei às tranças da aurora
De pérolas um ramal.
De aurinoturno véu
Fez-me presente uma fada;
Pedi à lua os feitiços,
A cor da face rosada.
Contente à sombra da noite
Rezava a Virgem Maria!
De noite tinha esquecido
488
Os pensamentos do dia.
Sabia tantas histórias
Que não me lembra nenhuma;
Ao meus prantos apagaram
Todas, todas - uma a uma!
IV
Ambições, que eu já tive, que é delas?
Minhas glórias, meu Deus, onde estão?
A ventura - onde vivi na terra?
Minha rosas - que fazem no chão?
Sonhei tanto!... Nos astros perdidos
Noites... noites inteiras dormi;
Veio o dia, meu sono acabou-se,
Não sei como no mundo me vi!
Esse mundo que outrora habitava
Era Céu... paraíso... eu não sei!
Veio um anjo de formas aéreas,
Deu-me um beijo, depois acordei!
Vi maldito esse beijo mentido,
Esse beijo do meu coração!
Ambições, que eu já tive, que é delas?
Minhas glórias, meu Deus, onde estão?
A cegueira vendou-me estes olhos,
Atirei-me num pego profundo;
Quis coroas de glória... fugiram,
Um deserto ficou-me este mundo!
As grinaldas de louro murcharam,
Nem grinaldas - somente a loucura!
Vi no trono da glória um cipreste,
Junto dele uma vil sepultura!
Negros ódios, infames traições,
E mais tarde... um sudário rasgado!
O futuro?... Uma sombra que passa,
E depois... e depois... o passado!
Ai! maldito esse beijo sentido
Esse beijo do meu coração!
A ventura - onde vive na terra?
Minhas rosas - que fazem no chão?
Por entre o chorão das campas
Minhas visões se ocultaram;
Meus pobres versos perdidos
Todos, todos acabaram;
De tantas rosas brilhantes
489
Só folhas secas ficaram....
CALABAR
Oh! não vendeu-se, não! - Ele era escravo
Do jugo português. - Quis a vingança;
Abriu sua alma às ambições de um bravo
E em nova escravidão bebeu a esperança!
Combateu... pelejou... entre a batalha
Viu essas vidas que no pó se somem;
Enrolou-se da pátria na mortalha,
Ergueu-se - inda era um homem!
Calabar! Calabar! Foi a mentira
Que a maldição cuspiu em tua memória!
Amaste a liberdade; era uma lira
De loucos sonhos, de elevada glória!
Alma adejando neste Céu brilhante
- Sonhaste escravo reviver liberto;
Subiste ao largo espaço triunfante,
Voaste - era um deserto!
A quem traíste, herói? - Na vil poeira
Que juramento te prendia à fé?!
Escravo por escravo essa bandeira
Foi de um soldado lá - ficou de pé!...
Viu o sol entre as brumas do futuro
- Ele que por si só nada podia;
Quis vingar-se também - no sonho escuro
Quis ter também seu dia!
O pulso roxo da fatal cadeia
Brandiu uma arma, pelejou também,
Viram-no erguido na refrega feia,
- Sombrio vulto que o valor sustém!
Respeitai-o - que amou a heroicidade!
Quis erguer-se também do raso chão!
Foi delírio talvez - a eternidade
Teve no coração!
Oh! que o Céu era lindo e o sol se erguia,
Como um incêndio nas brasílias terras;
Da cimeira da selva a voz surgia,
E o som dos ventos nas remotas serras!
Adormeceu... à noite em funda calma
Ouviu ao longe os ecos da floresta;
Bateu-lhe o coração - triste sua alma
490
Sorriu-se - era uma festa!
Homem - sentiu na carne desnudada
O açoite do algoz nodoar a honra,
E o sangue sobre a face envergonhada
Mudo escreveu o grito da desonra!
Era escravo! Deixai-o que combata;
Livre nunca ele foi - quer sê-lo agora,
Como o peixe no mar, a ave na mata,
Como no Céu a aurora!
Oh! deixai-o morrer - deste martírio!
Não alceis a calúnia ao grau da história!
Que fique a lusa mão em seu delírio
- Já que o corpo manchou, manchar a glória!
Respeitemos as cinzas do guerreiro
Que no pó sacudira a alteira fronte!
Quem sabe esse mistério segredeiro
Do sol lá no horizonte?!
Não se vendeu! Infâmia... era um escravo!
Sentiu o estigma vil, horrendo selo;
Pulsou-lhe o coração, viu que era um bravo;
Quis despertar do negro pesadelo!
Tronco sem folhas, triste e solitário,
Debalde o vento assoberbar tentou,
Das asas do tufão ao sopro vário
Estremeceu, tombou!
Paz ao sepulcro! Calabar morreu!
Sobre o topo da cruz fala a verdade!
Quis ser livre também - ele escolheu,
Entre duas prisões - quis ter vontade!
E a mão heróica que susteve a Holanda
A covardia entrega desarmada!
Vergonha eterna a Providência manda
À ingratidão manchada!
Morreu! Mas lá no marco derradeiro
O coração de amor bateu-lhe ainda!
Minha mãe! murmurou... era agoureiro
Esse queixume de uma dor infinda!
Morreu, o escravo se desfaz em pó...
Ferros lançai-lhe agora, se o podeis!
Vinde, tiranos - ele está bem só,
Ditai-lhe agora as leis!
ENLEVO
491
Se invejo as coroas, os cantos perdidos
Dos bardos sentidos, que altivos ouvi,
Bem sabes, donzela, que os loucos desejos,
Que os vagos almejos, são todos por ti.
Bem sabes que, às vezes, teu pé sobre o chão,
No meu coração faz eco, passando;
Que sinto e respiro teu hálito amado;
E, mesmo acordado, só vivo sonhando!
Bem sabes, donzela, na dor ou na calma,
Que é tua a minha alma, que é meu o teu ser,
Que vivo em teus olhos; que sigo teus passos;
Que quero em teus braços viver e morrer.
A luz do teu rosto - meu sol de ventura,
Saudade, amargura, não sei o que mais Traduz meu destino, num simples sorriso,
Que é meu paraíso, num gesto de paz.
Se triste desmaias, se a cor te falece,
A mim me parece que foges pro céu,
E eu louco murmuro, nos amplos espaços,
Voando a teus braços: - És minhas!... Sou teu!...
Da tarde no sopro suspira baixinho,
No sopro mansinho suspira... Quem és?
Suspira... Hás de ver-me de fronte abatida,
Sem força, sem vida, curvado a teus pés.
492
JOSÉ DE ANCHIETA
(1534—1597)
LITERATURA BRASILEIRA E PORTUGUESA
POEMA DA VIRGEM
Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas,
e em pesado dormir, tão fundo assim ressonas?
Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto,
que a morte tão cruel do filho chora tanto?
O seio que de dor amargado esmorece,
ao ver, ali presente, as chagas que padece?
Onde a vista pousar, tudo o que é de Jesus,
ocorre ao teu olhar vertendo sangue a flux.
Olha como, prostrado ante a face do Pai,
todo o sangue em suor do corpo se lhe esvai.
Olha como a ladrão essas bárbaras hordas
pisam-no e lhe retêm o colo e mãos com cordas.
Olha, perante Anás, como duro soldado
o esbofeteia mau, com punho bem cerrado.
Vê como, ante Caifás, em humildes meneios,
aguenta opróbrios mil, punhos, escarros feios.
Não afasta seu rosto ao que o bate, e se abeira
do que duro lhe arranca a barba e cabeleira.
Olha com que azorrague o carrasco sombrio
retalha do Senhor a meiga carne a frio.
Olha como lhe rasga a cerviz rijo espinho,
e o sangue puro risca a face toda arminho.
Pois não vês que seu corpo, incrivelmente leso,
mal susterá ao ombro o desumano peso?
Vê como a destra má finca em lenho de escravo
as inocentes mãos com aguçado cravo.
493
Olha como na cruz finca a mão do algoz cego
os inocentes pés com aguçado prego.
Ei-lo, rasgado jaz nesse tronco inimigo,
e c'o sangue a escorrer paga teu furto antigo!
Vê como larga chaga abre o peito, e deságua
misturado com sangue um rio todo d'água.
Se o não sabes, a mãe dolorosa reclama
para si quanto vês sofrer ao filho que ama.
Pois quanto ele aguentou em seu corpo desfeito,
tanto suporta a mãe no compassivo peito.
Ergue-te pois e, atrás da muralha ferina
cheio de compaixão, procura a mãe divina.
Deixaram-te uma e outro em sinais bem marcada
a passagem: assim, tornou-se clara a estrada.
Ele aos rastros tingiu com seu sangue tais sendas,
ela o solo regou com lágrimas tremendas.
Procura a boa mãe, e a seu pranto sossega,
se acaso ainda aflita às lágrimas se entrega.
Mas se essa imensa dor tal consolo invalida,
porque a morte matou a vida à sua vida,
ao menos chorarás todo o teu latrocínio,
que foi toda a razão do horrível assassínio.
Mas onde te arrastou, mãe, borrasca tão forte?
que terra te acolheu a prantear tal morte?
Ouvirá teu gemido e lamento a colina,
em que de ossos mortais a terra podre mina?
Sofres acaso tu junto à planta do odor,
em que pendeu Jesus, em que pendeu o amor?
Eis-te aí lacrimosa a curtir pena inteira,
pagando o mau prazer de nossa mãe primeira!
Sob a planta vedada, ela fez-se corruta:
colheu boba e loquaz, com mão audaz a fruta.
Mas a fruta preciosa, em teu seio nascida,
à própria boa mãe dá para sempre a vida,
e a seus filhos de amor que morreram na rega
do primeiro veneno, a ti os ergue e entrega.
Mas findou tua vida, essa doce vivência
do amante coração: caiu-te a resistência!
O inimigo arrastou a essa cruz tão amarga
quem dos seios, em ti, pendeu qual doce carga.
Sucumbiu teu Jesus transpassado de chagas,
ele, o fulgor, a glória, a luz em que divagas.
Quantas chagas sofreu, doutras tantas te dois:
era uma só e a mesma a vida de vós dois!
494
Pois se teu coração o conserva, e jamais
deixou de se hospedar dentro de teus umbrais,
para ferido assim crua morte o tragar,
com lança foi mister teu coração rasgar.
Rompeu-te o coração seu terrível flagelo,
e o espinho ensanguentou teu coração tão belo.
Conjurou contra ti, com seus cravos sangrentos,
quanto arrastou na cruz o filho, de tormentos.
Mas, inda vives tu, morto Deus, tua vida?
e não foste arrastada em morte parecida?
E como é que, ao morrer, não roubou teus sentidos,
se sempre uma alma só reteve os dois unidos?
Não puderas, confesso, aguentar mal tamanho,
se não te sustentasse amor assim estranho;
se não te erguesse o filho em seu válido busto,
deixando-te mais dor ao coração robusto.
Vives ainda, ó mãe, p'ra sofrer mais canseira:
já te envolve no mar uma onda derradeira.
Esconde, mãe, o rosto e o olhar no regaço:
eis que a lança a vibrar voa no leve espaço.
Rasga o sagrado peito a teu filho já morto,
fincando-se a tremer no coração absorto.
Faltava a tanta dor esta síntese finda,
faltava ao teu penar tal complemento ainda!
Faltava ao teu suplício esta última chaga!
tão grave dor e pena achou ainda vaga!
Com o filho na cruz tu querias bem mais:
que pregassem teus pés, teus punhos virginais.
Ele tomou p'ra si todo o cravo e madeiro
e deu-te a rija lança ao coração inteiro.
Podes mãe, descansar; já tens quanto querias:
Varam-te o coração todas as agonias.
Este golpe encontrou o seu corpo desfeito:
só tu colhes o golpe em compassivo peito.
Chaga santa, eis te abriu, mais que o ferro da lança,
o amor de nosso amor, que amou sem temperança!
Ó rio, que confluis das nascentes do Edém,
todo se embebe o chão das águas que retém!
Ó caminho real, áurea porta da altura!
Torre de fortaleza, abrigo da alma pura!
Ó rosa a trescalar santo odor que embriaga!
Jóia com que no céu o pobre um trono paga!
Doce ninho no qual pombas põem seus ovinhos
e casta rola nutre os tenros filhotinhos!
495
Ó chaga que és rubi de ornamento e esplendor,
cravas os peitos bons de divinal amor!
Ó ferida a ferir corações de imprevisto,
abres estrada larga ao coração de Cristo!
Prova do estranho amor, que nos força à unidade!
Porto a que se recolhe a barca em tempestade!
Refugiam-se a ti os que o mau pisa e afronta:
mas tu a todo o mal és medicina pronta!
Quem se verga em tristeza, em consolo se alarga:
por ti, depõe do peito a dura sobrecarga!
Por ti, o pecador, firme em sua esperança,
sem temor, chega ao lar da bem-aventurança!
Ó morada de paz! sempre viva cisterna
da torrente que jorra até a vida eterna!
Esta ferida, ó mãe, só se abriu em teu peito:
quem a sofre és tu só, só tu lhe tens direito.
Que nesse peito aberto eu me possa meter,
possa no coração de meu Senhor viver!
Por aí entrarei ao amor descoberto,
terei aí descanso, aí meu pouso certo!
No sangue que jorrou lavarei meus delitos,
e manchas delirei em seus caudais benditos!
Se neste teto e lar decorrer minha sorte,
me será doce a vida, e será doce a morte!
CARTA DA COMPANHIA
Depois de tudo criado
por conto, peso e medida,
disse Deus: "Seja formado
o homem, como treslado
de nossa imagem subida".
E criou
a Adão, a quem dotou
da semelhança divina.
Mas foi tal sua morfina,
que mui depressa borrou
aquela imagem tão divina.
Mas Cristo, Deus humanado,
glorioso São Francisco,
para limpar o treslado,
496
que Adão tinha borrado,
pondo o mundo em tanto risco,
quis pintar,
e consigo conformar
a vós, de dentro e de fora,
com graça tão singular,
que vos podemos chamar
homem novo, em quem Deus mora.
Ó formoso patriarca,
ó ilustre capitão
da sagrada religião,
dentro da qual, como em arca,
se salva o povo cristão!
Vós sois aquele varão
cheio de justiça e fé
e de toda perfeição,
figurado, com razão,
no justo e santo Noé.
Noé fez a grande arca
em que o homem racional,
junto com o bruto animal,
escapassem, como em barca,
do dilúvio universal.
Vós, por ordem divinal,
na religião, que fizestes,
a bons e maus recebestes,
e livres d'água mortal,
a Deus vivo os oferecestes.
Vós sois o grande varão
que de Deus fostes achado
segundo seu coração,
e no pai de Salomão
altamente figurado.
O qual, como desprezado
por ser o filho menor,
sendo de ovelhas pastor,
apascentava seu gado
497
com grã cuidado e amor.
Davi, com grande vigor,
um leão mui carniceiro
e um urso roubador,
com o gigante espantador
matou, com ser ovelheiro.
Este tal, por derradeiro,
Deus o fez rei de Israel,
salvando o povo fiel,
por este grã cavaleiro,
de toda a gente cruel.
Vós vos tínheis por menor,
tendo a todos por maiores,
e maior dos pecadores,
tendo-vos Deus por maior
de todos seus servidores.
Fez-vos pastor dos menores,
uns dos quais foram cordeiros,
mas mui fortes cavaleiros,
outros, do gado pastores
e guias, como carneiros.
Concedeu-vos tal poder,
que leão, urso e gigante
matásseis, carne e Lúcifer
destruindo mui possante.
Com tal capitão diante,
aumentou-se a fé e lei
da igreja militante,
e vós, já na triunfante,
sois coroado por rei.
Trepando sem nenhum medo
o príncipe Jonatas,
com seu criado de trás,
por um áspero penedo,
alcançou vitória e paz,
cometendo
498
o exército tremendo
dos inimigos, de repente.
E, com ânimo valente,
suas forças desfazendo,
salvou toda sua gente.
499
JOSÉ DURO
(1875—1899)
LITERATURA PORTUGUESA
ALVÍSSIMA
(Oração)
Como a Noite, Senhor,é linda
Com seus cabelos de luar…
Não chores mais, Lua bem-vinda
Que me fazes também chorar…
Sorrisos do luar d’uma Caveira oca,
Sorrisos do luar enfeitiçando os brejos
Sorrisos do luar a angelizar a boca,
Sorrisos do luar onde escondi meus beijos…
Orações do luar dos lábios de nós ambos,
Orações do luar que os astros não rezaram,
Orações do luar a consagrar os tambos,
Orações do luar, das almas que noivaram.
Cabelos do luar, aveludados, frios,
Cabelos do luar em tranças latescentes;
Cabelos do luar — alvíssimas serpentes,
Cabelos do luar banhando-se nos rios…
Aromas do luar em revoadas francas,
Aromas do luar, a perfumar o céu…
Aromas do luar, sonâmbulos ao léu,
Aromas do luar, por noites todas brancas…
500
Brancuras do luar dispersas pelos montes…
Brancuras do luar — finos lençóis de gelo…
Brancuras do luar, olhai o sete estrelo,
Brancuras do luar, a namorar as fontes…
Veludos do luar tecidos pela lua,
Veludos do luar, de lírios e de rosas…
Veludos do luar, ó vestes preciosas
Veludos do luar vestindo a noite nua…
Trêmulos de luar — litanias peregrinas,
Trêmulos de luar — ó harmonias cérulas,
Trêmulos de luar, nas bocas aspérulas
Trêmulos de luar, e lábios das boninas…
Tristezas do luar caindo-nos no peito,
Tristezas do luar, como um dobrar profundo…
Tristezas do luar anestesiando o Mundo,
Tristezas do luar, em lágrimas desfeito…
Lágrimas do luar da Lua aventureira,
Lágrimas do luar, da débil flor dos linhos…
Lágrimas do luar da mágoa derradeira,
Lágrimas do luar, de moços e velhinhos…
Saudades do luar, na rama dos ciprestes,
Saudades do luar, há mochos a cantar…
Saudades do luar, são almas a chorar…
Saudades do luar, as podridões agrestes…
Velhinhos corações a verter sangue e mágoas,
Velhinhos corações de mocidade negras,
Velhinhos corações — doridas toutinegras,
Velhinhos corações aos tombos pelas fráguas.
Vamos todos pedir à Lua sacrossanta
Na aspiração do Amor, na comunhão do Bem
Que o seu bendito olhar, o seu olhar de Santa,
Nos abençoe agora e para sempre amém!
EM BUSCA
Ponho os olhos em mim, como se olhasse um estranho,
501
E choro de me ver tão outro, tão mudado…
Sem desvendar a causa, o íntimo cuidado
Que sofro do meu mal — o mal de que provenho.
Já não sou aquele Eu do tempo que é passado,
Pastor das ilusões perdi o meu rebanho,
Não sei do meu amor, saúde não na tenho,
E a vida sem saúde é um sofrer dobrado.
A minh’alma rasgou-ma o trágico Desgosto
Nas silvas do abandono, à hora do sol-posto,
Quando o azul começa a diluir-se em astros…
E à beira do caminho, até lá muito longe,
Como um mendigo só, como um sombrio monge,
Anda o meu coração em busca dos seus rastros…
PRECE
Ó Morte, vai buscar a raiva abençoada
Com que matas o Mal e geras novos seres...
ó Morte vai depressa, e traz-ma, se puderes,
Que eu canso de viver, quero voltar ao Nada.
Escorre-me da boca a voz que inda murmura,
Arranca-me do peito o coração exangue,
Que eu hei de dar-te, em troca, os restos do meu sangue,
Para o negro festim da tua fome escura...
Ó santa que eu adoro, ó virgem d'olhar triste,
Bendita sejas tu, ó morte inexorável,
Pelo mundo a chorar desde que o Mundo existe...
Dá-me do teu licor, quero beber a esmo...
Que eu vivo no Abandono, e sou um miserável
Aos tombos pela Vida em busca de mim mesmo!
502
JOSÉ MARIA DO AMARAL
(1812—1885)
LITERATURA BRASILEIRA
PASSASTE COMO A ESTRELA MATUTINA
Passaste como a estrela matutina,
Que se some na luz pura da aurora;
Da vida só viveste aquela hora
Em que a existência em flor luz sem neblina.
Ver-te e perder-te! De tão triste sina
Não passa a mágoa em mim, antes piora;
Sem ver-te já, minha alma ainda te adora
Em triste culto que a saudade ensina.
Não vivo aqui; a vida em ti só ponho,
Na fé, de Cristo filha, a dor abrigo,
Futuro em ti no céu vejo risonho!
Neste mundo, meu mundo é teu jazigo;
Dizem que a vida é triste e falaz sonho,
Se é sonho a vida, sonharei contigo.
TRISTEZA AMARGA
Não chames sonhos a tristeza e dores
Do coração que chora a mocidade,
Na tarde triste da tristonha idade,
Que é tronco seco onde morreram flores.
503
Sonhos não são; nem são já sonhadores
Os que da vida sabem a verdade;
Dor pungente e real é a saudade
Do tempo em que de nós fomos senhores.
Nossos não somos já, senão da morte,
Quando entre o mundo está e a sepultura
Em fase derradeira, a nossa sorte;
Quem pode então lembrar, sem amargura,
Tenha embora o vigor do ânimo forte,
Que vai da vida a luz ser noite escura!
SE VOZ CRISTÃ EM TOM HARMONIOSO
Se voz cristã em tom harmonioso
Dos mortos à mansão seu hino envia,
Rompe talvez a morte a letargia,
O espectro acorda quase esperançoso!
Do teu benigno metro, tão piedoso,
Minha descrença ouviu a melodia;
A fé quase sorriu quando te ouvia!
Deu ao mundo um olhar quase saudoso!
Desertas ruínas onde reina a calma
Têm na tristeza graça e têm doçura
Se ao pé lhes nasce esbelta e verde palma:
Assim teu canto de cristão doçura
É, nos ermos sombrios de minh'alma,
Rosa que enfeita velha sepultura!....
TRISTEZAS DE MINHA ALMA TÃO SENTIDAS
Tristezas de minha alma tão sentidas,
Que sois doces memórias do passado,
Do tempo já vivido, e tão lembrado,
Ainda me dais as horas já perdidas!
Horas de tanto bem, tão bem vividas,
504
Quando vivi feliz e descuidado,
Sejam ao coração desenganado
Sonhos que enganem dores tão gemidas
Tem hoje o meu viver tal agonia,
Que é doçura a tristeza da saudade,
E a saudade do tempo é poesia.
Flores da quadra sois da mocidade,
Minha velhice em vós se refugia,
Tristezas de minha alma em soledade...
505
JUNQUEIRA FREIRE
(1832—1855)
LITERATURA BRASILEIRA
SAUDADE
Ao meu amigo
Frei Bento da Trindade Cortez
Atualmente no Mosteiro do Rio de Janeiro
... porque lágrimas também são amor.
Dr. J. J. B. de Oliveira
Em minhas horas de noturna insônia,
Com os olhos fitos no porvir longínquo
Eu penso em mim, - e na segunda idéia
Encontro-me contigo.
Eu te pranteio no arrebol da aurora,
Que em teu exílio meditando esperas.
Envolto num crepúsculo te enxergo
A deplorar teus fados.
Nas nuvens de sanguíneas listras
Lágrimas verto que sobre elas mando,
Partem, - porém do caminhar cansadas
Descaem no oceano.
Desesperado então, maldigo o espaço,
Maldigo o céu e a terra, o vácuo e o pleno.
Em cada criação deparo um erro.
Nem acho Deus tão sábio.
E na minha alma se desenha ao vivo
Melhor, mais belo, mais ditoso, um mundo.
506
Tiro do nada, sem ausência e males,
Um orbe todo novo.
O amor da pátria que os tiranos banem,
Não choraria maldições e sangue.
Nem tu nem eu seríamos cortados
Por divisões de abismos.
Mas quando ainda não acabo o sonho,
Diviso armadas que vão mar em fora.
Desperto, e caio nos aéreos braços
Da quimera sublime.
E mais amargo te lamento a sorte,
Tu, mártir feito pelas mãos dos bonzos,
Invoco o céu que entornará sobre eles
Alabastros de anátema.
Ligando a mim teu coração dorido,
Que a teus amigos em penhor deixaste,
Tateio nele as emoções tão vivas,
Que em teu desterro sofres.
Conheço as aflições que te salteiam,
Nobre proscrito. O sol, a lua, os astros.
Cruzam teu ponto, e trazem-me sinceros
Tuas ingênuas dores.
Sim! para os claustros não nasceu tua alma.
Teu coração não te palpita - Monge.
Nem tão baixo teus ímpetos serpenteiam,
Que um cárcere os contente.
Nesse vasto palor que te orna a fronte,
- Sinal dos homens de profundo gênio,
Eu leio a grande e destemida idéia,
Que não cabe nos claustros.
Deserta, ó gênio, do covil imundo,
Onde o leão dos vícios se alaparda.
Ah! esta cela, onde a indolência dorme.
Não pode, não, ser tua.
Coral guardado nas flumíneas urnas,
Quem há de te arrancar do equóreo fundo?
Não serias mais belo, em áureo engaste,
No colo de uma virgem?
SONETO
Arda de raiva contra mim a intriga
Arda de raiva contra mim a intriga,
507
Morra de dor a inveja insaciável;
Destile seu veneno detestável
A vil calúnia, pérfida inimiga.
Una-se todo, em traiçoeira liga,
Contra mim só, o mundo miserável.
Alimente por mim ódio entranhável
O coração da terra que me abriga.
Sei rir-me da vaidade dos humanos;
Sei desprezar um nome não preciso;
Sei insultar uns cálculos insanos.
Durmo feliz sobre o suave riso
De uns lábios de mulher gentis, ufanos;
E o mais que os homens são, desprezo e piso.
LOUCO (HORA DE DELÍRIO)
Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre,
Aproxima-se mais à essência etérea.
Achou pequeno o cérebro que o tinha:
Suas idéias não cabiam nele;
Seu corpo é que lutou contra sua alma,
E nessa luta foi vencido aquele,
Foi uma repulsão de dois contrários:
Foi um duelo, na verdade, insano:
Foi um choque de agentes poderosos:
Foi o divino a combater com o humano.
Agora está mais livre. Algum atilho
Soltou-se-lhe o nó da inteligência;
Quebrou-se o anel dessa prisão de carne,
Entrou agora em sua própria essência.
Agora é mais espírito que corpo:
Agora é mais um ente lá de cima;
É mais, é mais que um homem vão de barro:
É um anjo de Deus, que Deus anima.
508
Agora, sim — o espírito mais livre
Pode subir às regiões supernas:
Pode, ao descer, anunciar aos homens
As palavras de Deus, também eternas.
E vós, almas terrenas, que a matéria
Os sufocou ou reduziu a pouco,
Não lhe entendeis, por isso, as frases santas.
E zombando o chamais, portanto: - um louco!
Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre.
Aproxima-se mais à essência etérea.
MARTÍRIO
Beijar-te a fronte linda
Beijar-te o aspecto altivo
Beijar-te a tez morena
Beijar-te o rir lascivo
Beijar o ar, que aspiras
Beijar o pó, que pisas
Beijar a voz, que soltas
Beijar a luz, que visas
Sentir teus modos frios
Sentir tua apatia
Sentir até repúdio
Sentir essa ironia
Sentir que me resguardas
Sentir que me arreceias
Sentir que me repugnas
Sentir que até me odeias
Eis a descrença e crença,
Eis o absinto e a flor,
Eis o amor e o ódio,
Eis o prazer e a dor!
509
Eis o estertor de morte,
Eis o martírio eterno,
Eis o ranger de dentes,
Eis o penar do inferno!
MORTE (HORA DE DELÍRIO)
Pensamento gentil de paz eterna
Amiga morte, vem. Tu és o termo
De dous fantasmas que a existência formam,
— Dessa alma vã e desse corpo enfermo.
Pensamento gentil de paz eterna,
Amiga morte, vem. Tu és o nada,
Tu és a ausência das moções da vida,
do prazer que nos custa a dor passada.
Pensamento gentil de paz eterna
Amiga morte, vem. Tu és apenas
A visão mais real das que nos cercam,
Que nos extingues as visões terrenas.
Nunca temi tua destra,
Não vou o vulgo profano;
Nunca pensei que teu braço
Brande um punhal sobr’humano.
Nunca julguei-te em meus sonhos
Um esqueleto mirrado;
Nunca dei-te, pra voares,
Terrível ginete alado.
Nunca te dei uma foice
Dura, fina e recurvada;
Nunca chamei-te inimiga,
Ímpia, cruel, ou culpada.
Amei-te sempre: — pertencer-te quero
Para sempre também, amiga morte.
Quero o chão, quero a terra, - esse elemento
Que não se sente dos vaivens da sorte.
Para tua hecatombe de um segundo
510
Não falta alguém? — Preencha-a comigo:
Leva-me à região da paz horrenda,
Leva-me ao nada, leva-me contigo.
Miríades de vermes lá me esperam
Para nascer de meu fermento ainda,
Para nutrir-se de meu suco impuro,
Talvez me espera uma plantinha linda.
Vermes que sobre podridões refervem,
Plantinha que a raiz meus ossos fera,
Em vós minha alma e sentimento e corpo
Irão em partes agregar-se à terra.
E depois nada mais. Já não há tempo,
nem vida, nem sentir, nem dor, nem gosto.
Agora o nada — esse real tão belo
Só nas terrenas vísceras deposto.
Facho que a morte ao lumiar apaga,
Foi essa alma fatal que nos aterra.
Consciência, razão, que nos afligem,
Deram em nada ao baquear em terra.
Única idéia mais real dos homens,
Morte feliz — eu quero-te comigo,
Leva-me à região da paz horrenda,
Leva-me ao nada, leva-me contigo.
Também desta vida à campa
Não transporto uma saudade.
Cerro meus olhos contente
Sem um ai de ansiedade.
E como um autômato infante
Que ainda não sabe mentir,
Ao pé da morte querida
Hei de insensato sorrir.
Por minha face sinistra
Meu pranto não correrá.
Em meus olhos moribundos
Terrores ninguém lerá.
511
Não achei na terra amores
Que merecessem os meus.
Não tenho um ente no mundo
A quem diga o meu – adeus.
Não posso da vida à campa
Transportar uma saudade.
Cerro meus olhos contente
Sem um ai de ansiedade.
Por isso, ó morte, eu amo-te e não temo:
Por isso, ó morte, eu quero-te comigo.
Leva-me à região da paz horrenda,
Leva-me ao nada, leva-me contigo.
TEMOR
Ao gozo, ao gozo, amiga. O chão que pisas
A cada instante te oferece a cova.
Pisemos devagar. Olhe que a terra
Não sinta o nosso peso.
Deitemo-nos aqui. Abre-me os braços.
Escondamo-nos um no seio do outro.
Não há de assim nos avistar a morte,
Ou morreremos juntos.
Não fales muito. Uma palavra basta
Murmurada, em segredo, ao pé do ouvido.
Nada, nada de voz, - nem um suspiro,
Nem um arfar mais forte.
Fala-me só com o revolver dos olhos.
Tenho-me afeito à inteligência deles.
Deixa-me os lábios teus, rubros de encanto.
Somente pra os meus beijos.
Ao gozo, ao gozo, amiga. O chão que pisas
A cada instante te oferece a cova.
Pisemos devagar. Olha que a terra
Não sinta o nosso peso.
512
A ÓRFÃ NA COSTURA
Ela lhe ensinou a levantar suas mãos puras
e inocentes para o céu, a dirigir seus primeiros
olhares a seu Criador.
Flechier
Minha mãe era bonita,
Era toda a minha dita,
Era todo o meu amor.
Seu cabelo era tão louro,
Que nem uma fita de ouro
Tinha tamanho esplendor.
Suas madeixas lúcidas
Lhe caíam tão compridas,
Que vinham-lhe os pés beijar.
Quando ouvia as minhas queixas,
Em suas áureas madeixas
Ela vinha me embrulhar.
Também quando toda fria
A minha alma estremecia,
Quando ausente estava o sol,
Os seus cabelos compridos,
Como fios aquecidos,
Serviam-me de lençol.
Minha mãe era bonita,
Era toda a minha dita,
Era todo o meu amor.
Seus olhos eram suaves,
Como o gorjeio das aves
Sobre a choça do pastor.
Minha mãe era mui bela,
— Eu me lembro tanto dela,
De tudo quanto era seu!
Tenho em meu peito guardadas
Suas palavras sagradas
Co'os risos que ela me deu.
Os meus passos vacilantes
Foram por largos instantes,
513
Ensinados pêlos seus.
Os meus lábios mudos, quedos
Abertos pêlos seus dedos,
Pronunciaram-me: —Deus!
Mais tarde — quando acordava
Quando a aurora despontava,
Erguia-me sua mão.
Falando pela voz dela,
Eu repetia singela
Uma formosa oração.
Minha mãe era mui bela,
— Eu me lembro tanto dela,
De tudo quanto era seu l
Minha mãe era bonita,
Era toda a minha dita,
Era tudo e tudo meu.
Este pontos que eu imprimo,
Estas quadrinhas que eu rimo,
Foi ela que me ensinou.
As vozes que eu pronuncio,
Os cantos que eu balbucio,
Foi ela quem mos formou.
Minha mãe'. — diz-me esta vida,
Diz-me também esta lida,
Este retroz, esta lã.
Minha mãe! — diz-me este canto,
Minha mãel — diz-me este pranto,
— Tudo me diz: — minha mãe! —
Minha mãe era mui bela,
— Eu me lembro tanto dela,
De tudo quanto era seu!
Minha mãe era bonita,
Era toda a minha dita,
Era tudo e tudo meu.
O ARRANCO DA MORTE
Pesa-me a vida já. Força de bronze
514
Os desmaiados braços me pendura.
Ah! já não pode o espírito cansado
Sustentar a matéria.
Eu morro, eu morro. A matutina brisa
Já não me arranca um riso. A rósea tarde
Já não me doura as descoradas faces
Que gélidas se encovam.
O noturno crepúsculo caindo
Só não me lembra o escurecido bosque,
Onde me espera, a meditar prazeres,
A bela que eu amava.
A meia-noite já não traz-me em sonhos
As formas dela - desejosa e lânguida Ao pé do leito, recostada em cheio
Sobre meus braços ávidos.
A cada instante o coração vencido
Diminui um palpite; o sangue, o sangue,
Que nas artérias férvido corria,
Arroxa-se e congela.
Ah! é chegada a minha hora extrema!
Vai meu corpo dissolver-se em cinza;
Já não podia sustentar mais tempo
O espírito tão puro.
É uma cena inteiramente nova.
Como será? - Como um prazer tão belo,
Estranho e peregrino, e raro e doce,
Vem assaltar-me todo!
E pelos imos ossos me refoge
Não sei que fio elétrico. Eis! sou livre!
O corpo que foi meu! que lodo impuro!
Caiu, uniu-se à terra.
TEUS OLHOS
Que lindos olhos
Que estão em ti!
515
Tão lindos olhos
Eu nunca vi...
Pode haver belos
Mas não tais quais;
Não há no mundo
Quem tenha iguais.
São dois luzeiros,
São dois faróis:
Dois claros astros,
Dois vivos sóis.
Olhos que roubam
A luz de Deus:
Só estes olhos
Podem ser teus.
Olhos que falam
Ao coração:
Olhos que sabem
Dizer paixão.
Têm tal encanto
Os olhos teus!
— Quem pode mais?
Eles ou Deus?
SONHO
Era um bosque, um arvoredo,
Uma sagrada espessura,
— Mitológica pintura
Que o romantismo não faz.
Era um sítio tão formoso,
Que nem um pincel romano,
Nem Rubens, nem Ticiano
Copiariam assaz.
Ali pensei que sonhava
Com a donzela que me inspira,
Que põe-me nas mãos a lira,
Que põe-me o estro a ferver;
516
Que me acalenta em seu colo,
Que me beija a vasta crente,
Que me obriga a ser mais crente
No Deus que ela julga crer.
Sonhei com a visão dourada,
Que todo o poeta sonha,
— Idéia gentil, risonha,
Tão poucas vezes real!
Que só, com o peito abafado,
Se vai de noite em segredo
Contar no denso arvoredo
Ao cipreste sepulcral.
Mas, despertando do sonho,
Que aos homens não se revela,
Achei comigo a donzela,
Me apertando o coração,
E ainda presa a meus lábios,
Entre um riso, entre um gemido,
Murmurou-me ao pé do ouvido
— Que não era um sonho, não. —
E não mais, enquanto vivo,
Deixarei esta espessura,
— Mitológica pintura
Que o romantismo não faz.
Era um sítio tão formoso,
Que nem o pincel romano,
Nem Rubens, nem Ticiano
Copiariam assaz.
O REMORSO DA INOCENTE
Cisma a virgem mansamente
Em pensamentos do céu,
Mais cândida que as rolinhas,
Mais cândida que seu véu.
E cismava: — Ai! que eu não seja
Tão pura no meu amor:
Tão pura — como este raio
Da lâmpada do Senhor! —
517
E cismava: — Ai! que eu não seja
Já para Deus menos bela,
Como a bonina que murcha,
Que eu arranco da capela! —
E cismava: — Ai! que eu não tenha
Um crime, sem eu saber!
Qual será? — Ontem de noite
Eu não pude adormecer! —
E cismava: — Ai! que eu não seja
Menos linda ao meu Senhor!
Já hoje eu corri do claustro:
Dos mortos tive temor... —
E cismava: — Ai! que eu não seja
Ré de um crime que eu não sei,
Bem como o inseto escondido
Na rosa qu'ontem cortei! —
Ei-la, a cisma da donzela,
Da filha da solidão.
Ei-lo, o remorso que esconde
Nas dobras do coração.
O JESUÍTA
Era longe — bem longe: e eu vim primeiro
Cindindo as ondas desse mar profundo.
E por amor da Cruz vaguei sozinho
Nas ínvias matas desse novo mundo.
O tamoio gentil ervava as setas,
Quando pelos vergéis, tão seus, me via:
E co'os olhos fosfóricos ardendo
A taquara fatal a mim tendia.
E tendia a taquara, — mas ao ver-me
Quão sem temor e quão inerme estava,
Trocando em doce o seu olhar fogoso,
O arco e a seta pelo chão rojava.
518
De mim as tribos bárbaras, indômitas,
De mim o verbo do evangelho ouviram.
E ergui a cruz nos píncaros dos montes,
E após o verbo os povos me seguiram!
Eu disse às tribos: —Todas vós sois ricas,
— Que o ouro e a prata o solo vosso esmalta.
Sois ricas tribos, — mas não sois felizes,
Porque uma crença de um só Deus vos falta.
E eu dei às tribos uma crença doce,
Qual uma chuva de maná celeste:
E as tribos foram desde então felizes,
Qual flor pomposa que os jardins reveste.
E quando os reis da terra se esqueceram
Das tribos dadas a seu cetro forte,
Eu levantei-me, e disse aos reis da terra,
— O povo geme: Transmudai-lhe a sorte. —
Eternos templos eu ergui sozinho,
Eternos como a duração da terra.
E sozinho sagrei altares tantos
Ao Deus que aos ímpios c'o trovão aterra.
Eu dei às tribos uma crença doce,
Eu levantei alcáceres eternos.
Deram-me os homens proscrição e morte,
Deram-me em prêmio as fezes dos infernos.
519
LAURINDO RABELO
(1826—1864)
LITERATURA BRASILEIRA
NO ÁLBUM DUMA SENHORA
Meu nome aqui deixara solitário
Escrito nessa cor;
Com que desde nascido as faixas d’alma
Tingiu-me o dissabor;
Meu nome aqui deixara solitário
Em traço negro incerto,
Qual friso do buril da desventura
Em claro plano aberto;
A não temer que alguém, que não soubesse
O que este nome diz,
Ao vê-lo neste livro me insultasse
Chamando-me feliz.
Saiba, pois, quem o ler, que de uma Virgem
No livro afortunado
Seu nome escuro, como seu destino,
Escreve um desgraçado!
Sobre ele verta a Virgem uma lágrima
Do seu pranto celeste,
Que talvez se desbotem os negrumes
Do luto que o reveste.
Sim, ó Virgem, do pranto de teus olhos,
520
Concede, sim, concede
Uma lágrima triste ao pobre nome
Que lágrimas só pede!
De teus olhos quisera uma centelha
Um peito do vulcão;
Ao contrário, porém, só pede pranto
Um morto coração!
O sol ilumina, a gala ofende
Ao solo mortuário:
Só sobressaem os cristais do pranto
Dos mortos no sudário.
Eia, pois, cair deixa neste nome
O teu pranto celeste;
Que talvez se desbotem os negrumes
Do luto que o reveste.
A MINHA RESOLUÇÃO
O que fazes, ó minh’alma!
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!
Corre o ribeiro suave
Pela terra brandamente,
Se o plano condescendente
Dele se deixa regar;
Mas, se encontra algum tropeço
Que o leve curso lhe prive,
Busca logo outro declive,
Vai correr noutro lugar.
Segue o exemplo das águas,
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
521
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!
Nasce a planta, a planta cresce,
Vai contente vegetando,
Só por onde vai achando
Terra própria a seu viver;
Mas, se acaso a terra estéril
Às raízes lhe é veneno,
Ela vai noutro terreno
As raízes esconder.
Segue o exemplo da planta,
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!
Saiba a ingrata que punir
Também sei tamanho agravo:
Se me trata como escravo,
Mostrarei que sou senhor;
Como as águas, como a planta,
Fugirei dessa homicida;
Quero dar a um’alma fida
Minha vida e meu amor.
A LINGUAGEM DOS TRISTES
Se houver um ente, que sorvido tenha
Gota a gota o veneno da amargura;
Que nem nos horizontes da esperança
Veja raiar-lhe um dia de ventura;
Se houver um ente, que, dos homens certo,
Neles espere certa a falsidade;
Que veja um laço vil num rir de amores,
Uma traição nos mimos da amizade;
522
Se houver um ente, que, votado às dores,
Todo com a tristeza desposado,
De cruéis desenganos só nutrido,
Somente males a esperar do fado;
Que venha, acompanhar-me na agonia,
Qu’esta minh’alma, sem cessar, traspassa!
Venha, qu’há muito luto, a ver se encontro
Quem sinta, como eu, tanta desgraça
Venha, sim, que talvez por nosso trato
Uma nova linguagem seja urdida,
Em que possam falar-se os desgraçados,
Que do mundo não seja traduzida.
Por lei inexorável do destino,
Quem gemer à desgraça condenado,
Inda lidando no lidar do mundo,
Há de viver do mundo desterrado.
E em que desterro! Os outros só nos tiram
Os olhos do lugar do nascimento;
A desgraça, porém, do mundo inteiro
Desterra o coração e o pensamento.
Ao menos a linguagem deste exílio
Mais suportável torne a vida crua;
Tenha ao menos a terra da desgraça
Uma linguagem propriamente sua.
E quem tê-la melhor? Por mais que fale
O sedutor prazer em frase ardente,
Por mais que se perfume e se floreie,
Nunca é, como a dor, tão eloquente.
Nos fenômenos d’alma o corpo sempre
Do seu modo de obrar diversifica:
Pelas quebras da orgânica fraqueza
A força esp’ritual se multiplica.
Quando, livre, o esp’rito aos céus remonta,
Da Eternidade demandando o norte,
Toda força primeva recobrando —
Tomba a matéria, e cai nas mãos da morte!
523
Quando o gás do prazer dilata o seio,
A força do sentir dormente acalma;
Quando a pressa da dor o seio aperta,
A força do sentir se expande n’alma.
Assim novas palavras, novas frases,
Nova linguagem, pede o sofrimento;
Porque dobra o sentir, e duplas asas
P’ra vôos duplos colhe o pensamento:
Não, não pode em seus termos quase inertes,
Esse falar comum de cada dia,
Deste duplo sentir, d’idéias duplas,
Exprimir fielmente a valentia.
Enganai-vos, ditosos! Vossas falas,
Anos que falem, nunca dizem tanto,
Quanto num só momento dizer pode
Um suspiro, um soluço, um ai, um pranto.
Eia, pois, tristes! eia!... desde agora
Uma nova linguagem seja urdida,
Em que possam falar-se os desgraçados,
Que do mundo não seja traduzida.
Veja o mundo, de gozos egoísta,
Qu’os tristes nada têm de suas lavras:
Que, orgulhosos na pátria da desdita,
Nem dos ditosos querem as palavras.
AMOR E LÁGRIMAS
Se fosse possível na minha alma
Amanhecer um dia da ventura,
Corado por um beijo de donzela
Ao despontar d’aurora...
Se, Anjo de salvação mandado ao mísero,
Sorrindo, pelo céu jurasse a bela
Fazer-me cada vez por novos beijos
Mais rubra a cor do dia...
524
Se fiel companheira em toda parte
Quisesse me seguir, presa comigo,
Como um raio celeste preso a um astro
A iluminar-lhe o curso...
Se a visse, desdenhosa a mil tesouros,
Só por ter-me, deixá-los e contente
A gabar-me o sabor do pão grosseiro
Que me alimenta a vida...
Não a crera; e talvez que até julgasse
Tantas provas de amor atroz perfídia,
Se amor me não brilhasse nos seus olhos
No centro de uma lágrima.
Amor é fogo; o coração que ama
Todo nas suas chamas se evapora,
No rosto se condensa, e chega aos olhos
Em água convertido.
Que é um riso? — Um prazer. Prisão estreita
De duas almas? — Simpatia apenas:
E os abraços e beijos? — Muitas vezes
Sustento de lascívia.
Tudo isso diz amor; mas quando? — Quando,
Filho de um doce afeto que se apura
Nos cadinhos da dor, é batizado,
Num batismo de prantos.
É belo ver-se uns olhos cintilantes,
Acesos em vulcões de fogo ignoto,
A dardejar faíscas invisíveis
Que os corações abrasam:
É belo ver-se um rosto nacarado
No carmim do prazer: é belo ver-se
Partir fino coral de rubros lábios
Um sim d’alma saído:
Mas em rostos assim amor não fala;
E, se fala, as mais vezes diz mentiras;
E este — sim — que tomamos por verdade
É escárnio do crente.
525
Quereis vê-lo sincero? Observai-o
N’açucena de um rosto desmaiado,
Entre os lírios de uns lábios que roxeiam
Suspiros de agonia:
Nuns olhos, cuja luz crepusculante,
Entre a neve das lágrimas, pareça
Revérbero da alâmpada mortiça
Do templo da saudade.
Aí podeis lhe crer o que disser-vos,
Podeis segui-lo sem temer um crime;
Que amor, se o pranto lhe borrifa as asas,
Seu vôo ao céu dirige.
A SAUDADE BRANCA
Que tens, mimosa saudade?
Assim branca quem te fez?
Quem te pôs tão desmaiada,
Minha flor? Que palidez!...
Ah!... já sei: n’um peito vário
Emblema foste de amor:
O peito mudou de afeto,
E tu mudaste de cor.
Mas não; só peito animado
Por constância e lealdade,
Unida pode trazer-te
Consigo, minha saudade.
Demais tu não mudas; seja
Qual for o destino teu,
Conservas sempre o aspecto
Que a natureza te deu.
Que tens, mimosa saudade?
Assim branca quem te fez?
Quem te pôs tão desmaiada,
Minha flor? Que palidez!
526
Quem sabe se és flor, saudade?
Quem sabe? Da sepultura
Amor nas pedras penetra
Por milagre da ternura.
Quem sabe... (Oh! meu Deus não seja,
Não seja esta idéia vã!)
Se em ti não foi transformada
A alma de minha irmã?!
“Minha alma é toda saudades;
“De saudades morrerei” —
Disse-me, quando a minh’alma
Em saudades lhe deixei:
E agora esta saudade
Tão triste e pálida... assim
Como a saudade que geme
Por ela dentro de mim!...
A namorar-me os sentidos!
A fascinar-me a razão!...
Julgo que sinto a voz dela
Falar-me no coração!
Exulta, minh’alma, exulta!...
Aos meus lábios, flor louçã!
No meu peito... Toma um beijo...
Outro beijo, minha irmã!
Outro beijo, que estes beijos
Não te proíbe o pudor;
Sou teu irmão, não te mancham
Os beijos de meu amor.
Fala um pouco. Se almas podem
Em flores se transformar,
Sendo almas encantadas,
As flores podem falar.
Mas não falas?... não respondes?...
Oh! cruéis enganos meus!
Saudade, por que me iludes?
Minha irmã!... Meu Deus!... Meu Deus!...
527
Minha irmã!... minha ventura,
Esperança, encanto meu!
É teu irmão quem te chama!...
Responde!... fala!... Sou eu!
Dista muito o céu da terra?
Os anjos asas não têm?
Desata um vôo, meu anjo!
Não tardes, meu anjo! Vem!
Vem! Ao menos um momento
Quero ver-te, irmã querida:
Embora, depois de ver-te,
Fique cego toda a vida.
Mas não vens? Deus te não deixa
Vir ao mundo, meu amor?
Só devo encontrar no pranto
Lenitivo à minha dor?
Ah! minh’alma desfalece...
E o coração, que apressado
Com tanta força batia,
Mal palpita... está cansado.
Muda, sem termos, nem vozes
Me vai ralando a agonia:
A tempestade de angústias,
Mudou-se em melancolia.
Que é isto?! Como tão negro
Ficou-me todo o horizonte!
Que suor me banha o rosto!
Que peso sinto na fronte!
Ah! meu Deus! graças! aos olhos
O pranto sinto chegar;
Se a boca não fala, ao menos
Os olhos podem chorar.
Nós temos duas saudades;
Uma de sangue ensopada
Pela mão do desespero
528
No seio d’alma plantada;
Outra da melancolia
Toma o gesto, e veste a cor,
Exangue, pálida e fria,
Mas calada em sua dor.
Parece que a natureza
Quis provar esta verdade,
Quando diversa da roxa
Te criou, branca saudade.
À MORTE DE JUNQUEIRA FREIRE
Do retiro claustral cisne sagrado
O vôo desprendeu!
Enchendo os ares pátrios de harmonias
Cantou, depois morreu!
Mistério! — Ave criada entre os altares,
Acaso a turba impura
Do mundo com seu bafo envenenado
Abriu-te a sepultura?!
Punindo-te o desprezo de seus lares
O Anjo de Sião
Por ordem do Senhor tão presto deu-te
A morte, em punição?!
Preso o espírito, acaso, nas cadeias
Do voto eterno e forte
Teve, na luta acerba espedaçando-as,
Por liberdade a morte?!
Mistério! — Respeitemos nesta campa
Decretos divinais!
Sobre as cinzas do morto ao vivo toca
O pranto e nada mais!
Rei que fora! — Era um servo que devia
A vida ao Senhor seu!
Seu Senhor o chamou, a voz ouviu-lhe
E pronto obedeceu!
529
Duvidais do que digo? — Erguei a campa...
Esse corpo o que é?!
E negareis ainda que era um servo?!
Aí tendes a libré!
Viveu como poeta, de poeta
Deixou o canto e a fama.
Inda no crânio morto tem — bem vedes —
Do louro verde a rama!
Leste-lhe a poesia? Eram arquejos
D’um coração aflito!
De uma alma que ensaiava na matéria
Os vôos do infinito!
Voou!... Cisne de luz, adeja livre
Mau grado a humanidade!
Os hinos dos arcanjos são seus hinos
Seu mundo — a eternidade!
AMOR-PERFEITO
Secou-se a rosa... era rosa;
Flor tão fraca e melindrosa,
Muito não pôde durar.
Exposta a tantos calores,
Embora fossem de amores,
Cedo devia secar.
Porém tu, amor-perfeito,
Tu, nascido, tu afeito
Aos incêndios que amor tem,
Tu que abrasas, tu que inflamas,
Tu que vegetas nas chamas,
Por que secaste também?!
Ah! bem sei. De acesas fráguas
As chamas são tuas águas,
O fogo é água de amor.
Como as rosas se murcharam,
Porque as águas lhes falharam,
Sem fogo murchaste, flor.
530
É assim, que bem florente
Eras, quando o fogo ardente
De uns olhos que raios são,
Em breve, mas doce prazo,
Te orvalhou naquele vaso
Que, já foi meu coração.
Secaste, porque esse pranto
Que chorei, que choro há tanto,
De todo o fogo apagou.
Triste, sem fogo, sem frágua
Secaste, como sem água,
A triste rosa secou.
Que olhos foram aqueles!
Quando eu mais fiava deles
Meu presente e meu porvir,
Faziam cruéis ensaios
Para matar-me. Eram raios,
Tinham por fim destruir.
Destruíram-me: contudo
Perdôo o pesar agudo,
Perdôo a pungente dor
Que sofri nos meus tormentos,
Pelos felizes momentos
Que me deram nesta flor.
Ai! querido amor-perfeito!
Como vivi satisfeito,
Quando te vi florescer!
Ai! não houve criatura
No prazer e na ventura
Que me pudesse exceder.
Ai! seca flor, de bom grado,
Se tanto pedisse o fado,
Quisera sacrificar
Liberdade e pensamento,
Sangue, vida, movimento,
Luz, olfato, sons e ar.
Só para ver-te florente,
531
Como quando o fogo ardente,
De uns olhos que raios são,
Em breve, mas doce prazo,
Te orvalhou naquele vaso
Que já foi meu coração.
DOUS IMPOSSÍVEIS
Jamais! quando a razão e o sentimento
Disputam-se o domínio da vontade,
Se uma nobre altivez nos alimenta
Não se perde de todo a liberdade.
A luta é forte: o coração sucumbe
Quase nas ânsias do lutar terrível;
A paixão o devora quase inteiro,
Devorá-lo de todo é impossível!
Jamais! a chama crepitante lastra,
Em curso impetuoso se propaga,
Lancem-lhe embora prantos sobre prantos,
É inútil, que o fogo não se apaga.
Mas chega um ponto em que lhe acena o ímpeto
Em que não queima já, mas martiriza,
Em que tristeza branda e não loucura
À razão se sujeita e harmoniza.
É nesse ponto de indizível tempo
Onde, por misterioso encantamento,
O sentir a razão vencer não pode,
Nem a razão vencer ao sentimento.
No fundo de noss’alma um espetáculo
Se levanta de triste majestade,
Se de um lado a razão seu facho acende
De outro os lírios seus planta a saudade.
Melancólica paz domina o sítio,
Só da razão o facho bruxoleia
Quando por entre os lírios da saudade
Do zelo semimorto a serpe ondeia!
532
Dous limites então na atividade
Conhece o ser pensante, o ser sensível:
Um impossível — a razão escreve,
Escreve o sentimento outro impossível!
Amei-te! os meus extremos compensaste
Com tanta ingratidão, tanta dureza,
Que assim como adorar-te foi loucura,
Mais extremos te dar fora baixeza.
Minh’alma nos seus brios ofendida
De pronto a seus extremos pôs remate,
Que mesmo apaixonada uma alma nobre
Desespera-se, morre, não se abate.
Pode queixar-se inteira a felicidade
De teu olhar de fogo inextinguível,
Acabar minha crença, meu futuro,
Aviltar-me! jamais! É impossível!
Mas a razão, que salva da baixeza
O coração depois de idolatrar-te,
Me anima a abandonar-te, a não querer-te,
Mas a esquecer-te, não, sempre hei de amar-te!
Porém amar-te desse amor latente,
Raio de luz celeste e sempre puro
Que tem no seu passado o seu presente,
E tem no seu presente o seu futuro.
Tão livre, tão despido de interesse,
Que para nunca abandonar seu posto,
Para nunca esquecer-te, nem precisa
Beber, te vendo, vida no teu rosto.
Que, desprezando altivo quantas graças
No teu semblante, no teu porte via,
Adora respeitoso aquela imagem
Que deles copiou na fantasia.
NÃO POSSO MAIS!
Não sei se é vida, porém sei que a morte
533
Terá de certo menos amargor;
Só sei que a morte tem uma agonia,
E não sei quantas tenho nesta dor!
Os olhos fecha quem a vida perde,
O bem perdido jamais pode ver;
Eu, morto n’alma, fitos os olhos tenho
No bem querido, que não posso ter.
Embora firam desgraçada vítima
Ervados gumes de cruéis punhais,
As dores cessam mal que chega a morte,
Sangue as feridas lhe não vertem mais.
Desta ferida nada o sangue estanca...
A dor recresce mais, e mais pungente;
Morta minha alma para os gozos todos,
Só vê que vive pela dor que se sente.
O céu perdoe a quem assim compensa
Os sacrifícios deste coração;
Porém a mágoa me desvaira a mente:
Se não há crime, como haver perdão?
A fronte curva, delinquente altivo,
A fronte curva, não és mais que um réu;
Teu bafo impuro, que o pecado alenta,
Acende o raio que te arroja o céu.
Perdão!... mas seja para mim somente,
Nesse olhar terno que o perdão exprime;
Perdão te peço, Querubim celeste;
pune o culpado, mas perdoa o crime.
Rola de bosque, da inocência ao ninho
Eu cego o verme da paixão levei-te;
Anjo risonho, sobre a fronte lisa
A ruga acerba do cismar tracei-te!
Turvei-te a face, nebulei-te os olhos,
Cobri de espinhos o teu santo leito,
E da tristeza, que a minh’alma encobre,
Parte dos goivos te lancei no peito!
534
Mas Deus puniu-me...! Da sentença austera
Tu escrevias a primeira parte,
Quando a meus rogos de extremoso amante
Só respondias — eu não posso amar-te!
Mas não bastava: — ao martírio imenso
Dobrar devias a cruel tristura;
Num sim de amores que me deste um dia,
Um céu me abriste de falaz ventura.
Mas presto nuvens o horizonte toldam,
De todo nelas a visão se esvai,
E o cego doudo, que fitava os anjos,
De novo em trevas envolvido cai.
Não ter-te, fora já penar bastante;
Perder-te, extremo de cruel penar!
Pensei que a pena se acabava nisto,
Mas inda tinha mais que suportar!...
Desprezo em troca de meu culto; às ânsias
De minha angústia riso mofador,
De ti, daquele a quem me sacrificas,
Para mostrar-lhe todo o teu amor.
Que a fronte calques, que por ti velando
Consome dias, noites sem cessar;
Que a fronte calques, que desdenha o mundo
E varre a terra p’ra teus pés beijar...
É dura afronta, mas com essa afronta
Eu não me avilto, nem me desabono:
É nobre o solo que as rainhas pisam,
Chama-se solo convertido em trono;
Porém que aplaudas, que consintas outro,
Também calcar-me escarnecer de mim...
Eu não me lembro que fizesse um crime,
Que merecesse ser punido assim!...
Estrela d’Alva de divina aurora,
Deixa-me em trevas, é destino meu!
Deus te dirige neste mundo os raios,
Tu não governas o clarão que é teu.
535
Não quero o riso desbotado e morno
De complacente, caridoso amor;
De amor a planta quem a prova incauto
Morre do fruto, se não goza a flor.
Deus de teus braços me recusa a dita,
Mudo a sentença sofrerei — sou réu;
Banhei meus lábios nos pauís do crime,
Beijar não posso Querubins do céu!
Mas não mereço do escárnio o riso
Mas não sou digno de desprezos tais;
Se me não podes destruir a pena,
Muda o tormento, que não posso mais!...
AS DUAS REDENÇÕES
Ao batismo e liberdade de uma menina
Inda uma vez tanjamos
A lira, e mais um hino
Consinta-me o destino
Erguer nos cantos meus;
Que vá, de sons profanos
Despido e desquitado
Em vôo arrebatado,
Voando aos pés de Deus.
Da liberdade a estrela
No berço da inocência
Derrama a providência
De duas redenções;
Mostrando um’alma limpa
Do crime primitivo
No corpo de um cativo
Que quebra os seus grilhões.
Que assunto mais merece
Um hino de poesia?
Que dia tem mais dia?
Que feito tem mais Luz?
Do cativeiro um anjo
Quebrando infames laços,
536
À cruz estende os braços
E os braços lhe abre a cruz.
Perfilha Deus o anjo
Na filiação da graça,
E o ser que o crime embaça
Puniu a redenção!
E o homem, dissipando
Do berço insano agravo,
Em menos um escravo
Abraça um novo irmão!
Que foras, inocente,
Que foras, nesta vida,
Da escravidão perdida
No bárbaro bazar!?
Pobre rola ferida
Da infâmia pelo espinho,
Em que ramo, em que ninho
Te havias de aninhar?
Infante, sem afagos,
Temendo-te altiveza,
Querendo-te a vileza
Plantar no coração,
Dariam-te nos gestos,
Nas vestes, no aposento,
Na mesa, no alimento,
Somente — escravidão!
Donzela (oh! sacrilégio!)
Amor, qual flor sem viço,
Mil vezes é serviço
Que fero senhor quer!
É dor que o fel requinta,
Que a ímpia sorte agrava
Daquela que é escrava
Depois de ser mulher!
Se mãe (é mãe escrava!)
Quem sabe se verias
Teu filho mãos ímpias
Do seio te arrancar?
E surdos ao teu pranto
537
Mandarem-te com calma
Do seio da tua alma
A outro alimentar?!
Criança mas sem veres
Da infância as verdes cores,
Donzela sem amores,
Talvez alam sem Deus!
Não foras arrastada
Da vida pelos trilhos,
Nem tu, e nem teus filhos
Seriam filhos teus.
Ó vós que hoje lhe destes
O dom da liberdade,
Que junto à divindade
Matais a escravidão,
Ao trovador propícios
De ação tão excelente
Em culto reverente...
Guardai esta canção.
Eu sei que haveis guardá-la,
Que em tão santa amizade
Não vem a variedade
Deitar veneno atroz.
Sou vosso desde a infância:
Da vida até o fim
Sereis tanto por mim
Como serei por vós!
SUSPIROS E SAUDADES
Depois de tantas perdas só restou-me
Na soledade,
Em que deixou-me a dor, para consolo
Roxa saudade.
Esta flor, tão estéril nos prazeres,
Quando em retiro
Quase sempre do seio magoado
Brota um suspiro.
538
Achava estes suspiros e saudades
Encantadores,
Embora fossem flores da tristeza,
Sempre eram flores.
Demais, quem tem das ditas deste mundo
Chegado ao termo,
Quem traz de ingratidões e desenganos
O peito enfermo;
Quem tem com a flor que às almas venturosas
Do prazer fala?
Que ao ver-lhe o coração trajando luto
Traja de gala?
A tristeza que tendes, minhas flores,
É vosso encanto.
E como éreis formosas orvalhadas
Pelo meu pranto!
Mas secastes também?! Faltou-vos água?
Demais tivestes.
Fogo? Desde nascidas sempre em chamas
De amor vivestes.
Secastes? Com razão, que destas flores
Certo não é
Verdadeiro alimento, água nem fogo
Faltando a fé.
Vivem com fogo e água, se dos prados
Nascem no chão;
Mas não se flores d’alma dentro d’alma
Nascendo vão.
Quando morta a f’licidade,
A fé expira também!
Saudades de que se nutrem?
Os suspiros que alvo têm?
Morta a fé, vai-se a esperança,
Como pois viver pudera
Saudade que não tem crença,
Saudade que desespera?
539
Onde as graças do passado,
Se altivo gênio sanhudo
O ceticismo nos brada,
Foi mentira, engano tudo?
Em nada creio do mundo:
Ludíbrio da desventura
A felicidade me acena,
Só de um ponto — a sepultura.
Morreram minhas saudades,
E meus suspiros calados
Dentro d’alma pouco a pouco
Vão morrendo sufocados.
O DESALENTO
Ao meu amigo Leopoldo Luís da Cunha
Quando eu morrer, minha morte
Não lamentes, caro amigo,
Que o sepulcro é um jazigo
Onde eu devo descansar;
A minha triste existência
É tão pesada, é tão dura,
Que a pedra da sepultura
Já me não pode pesar.
Uma lágrima, um suspiro,
Eis quanto custa o morrer;
Custa-nos sempre o viver
Prantos, suspiros, sem fim!
Que tormento fora a vida,
Se não fosse transitória!?...
Não me risques da memória,
Porém não chores por mim.
Enchem trevas o sepulcro,
Mas ninguém delas se queixa;
Quando o morto os olhos fecha,
Não quer luz, quer sossegar;
Aquele fundo silêncio,
Aquele extremo abandono,
540
Dão-lhe tão profundo sono,
Que nem pode despertar.
Já tive medo da morte,
Agora tenho da vida;
Sinto minha alma abatida,
Sem vigor o coração;
Já cansado de viver,
Para a morte os olhos lanço;
Vejo nela o meu descanso,
A minha consolação.
541
LÚCIO DE MENDONÇA
(1854—1909)
LITERATURA BRASILEIRA
ALICE
Os seus olhos são como os das pombas,
sem falar no que está oculto dentro.
CÂNTICO DOS CÂNTICOS
Imagina um sorriso só de criança,
Todo candura, e junta-lhe a meiguice
De um sorriso de mãe; e tens ideado
O sorriso de Alice.
Imagina um olhar - mistério e sonho,
Cheio de luz, de glória, de doidice...
Com a sedução dos olhos da mãe d’água:
E tens o olhar de Alice.
Imagina uma grave melodia,
Tão doce como nunca mais se ouvisse,
Como nunca se ouviu na terra ainda,
E tens a voz de Alice.
Já viste como o cisne fende o lago?
Como desliza a névoa na planície?
Como anda na clareira a pomba rola?
É ver o andar de Alice.
Olha o macio pétalo corado
De rosa que de todo não abrisse.
542
O mimo da conchinha nacarada
É a boca de Alice.
Se um dia visses no alcantil dos cerros
A imaculada neve que caísse,
Verias, ai de mim! do que é formado
O coração de Alice.
FLOR DE IPÊ
Na clara estação gorjeada,
Em flor o ipê se desata;
Ó bela árvore dourada!
Ó loura filha da mata!
O tronco, o pai, se revê
Todo ufano, todos zelos,
Nesses teus áureos cabelos
Que o sol beija, ó flor de ipê!
As abelhas, jóias vivas,
Adereçam-te o toucado;
Diz-te frases expressivas
O sabiá namorado;
De ramo em ramo o tiê
Cai, com gota de sangue;
E a coral se enrosca langue
Nos teus braços, flor de ipê!
Mas, ai! tanta formosura,
Tão festejada e querida,
Pouco tempo vive e dura,
Logo cai a flor sem vida;
E sombrio e nu se vê,
Mudo, trágico, isolado,
Como um pai desamparado,
O velho tronco do ipê.
Na alegre quadra encantada
Dos sonhos e da esperança.
Vestiu-te a ilusão dourada
O coração de criança;
Surgiu-te - meu Deus! por quê? Ante os passos peregrinos
Crianças de olhos divinos,
Loura como a flor do ipê.
Sonhos de que te cobriste,
Coração em primavera,
543
Caíram, todos, ai, triste!
Quanta dourada quimera!
Eis-te da sorte à mercê,
Já sem viço, já sem flores...
Aqueles pobres amores
Foram como a flor do ipê!
A TAPERA
Les temps sont acomplis, les choses
se sont tues.
LECONTE DE LISLE
A meio vale escuro, à beira do caminho.
Está silenciosa a velha casa em ruína...
Desabitado lar, abandonado ninho,
O horror da solidão fantástica o domina.
O horror da solidão, por quê? também na mata,
Na virgem, secular, inóspita floresta,
Há uma calma grande, em que a alma se dilata;
E, ao invés do terror, que portentosa festa!
Mais funda é a solidão na agreste cumiada
Onde não pisou nunca o bípede tirano;
Mas lá quanta alegria aberta e iluminada!
- O cunho do terror vem dos vestígio humano.
Vê-se um velho postigo escancarado ao poente...
O tosco parapeito apodreceu... e vê-se
Que ali chorou, talvez, de saudades do ausente
Uma noiva fiel, que de esperar morresse.
A bela porta, franca outrora, está fechada...
É ninho de répteis a trapedira amiga.
Que convidava a entrar na plácida morada,
Que já ninguém procura e a ninguém mais abriga.
Pobre, inútil ruína! Olhemos de mais perto,
Pelo teto, que abriu dos temporais o açoite...
Brotam ervas do solo esquecido e deserto...
E este era o coração da casa, ao lar, à noite!
Aqui se reunia, em pacífico bando,
A família, a sonhar os dias do futuro,
Enquanto, fora, o vento andava praguejando
E a noite ia seguindo o seu caminho escuro.
Ali, para o nascente, havia um aposento
Pequeno e recatado... ai! ali, porventura,
Morava a sinhá-moça, o riso, o encantamento
544
Da rústica vivenda, a doce criatura!
No vão dessa janela aberta para a estrada
Quanta cena de afeto ainda se imagina!...
Um cavaleiro ao longe a sumir-se, e inclinada
Ao parapeito, a branca e chorosa menina...
Desconjuntado, já caindo-lhe os pedaços,
Vê-se um velho oratório... e, coberto de poeira,
Um Cristo mutilado abre os divinos braços...
Quanta fé o beijou na angústia derradeira!
Cá fora, indiferente, ingratamente alheio,
Passa o vento da mata, o alado vagabundo.
Sem um beijo, sequer, ao esqueleto feio
Da ruína sem dono, esquecida no mundo!
Somente à noite agora, ao ter da lua triste
A compassiva luz fantástica e serena,
Reanima-se a tapera e ressuscita e existe
De um sombrio existir que mete medo e pena.
Existe uma alma assim... Outrora foi ruidosa.
Clara, feliz, brilhante à luz da primavera...
Agora é nua e só, - sombra silenciosa,
Morta à beira da vida... a lúgubre tapera!
IDEAL
Desde bem cedo me sorriste,
Ó luz da alma contemplativa!
Na minha noite escura e triste
Hás de brilhar, enquanto eu viva.
Astro do enlevo solitário,
Oculta flor do ermo saudoso,
Lâmpada do íntimo sacrário,
Etérea fonte de almo gozo.
Tu és, na altura inacessível,
O eterno prêmio que eu almejo
E sigo; brilhas impassível
E eu vivo, enquanto ainda te vejo!
Por mais que neste inferno pene
E arder-me a vida toda sinta,
Adoro-te, ó sonho perene!
Ó ambição da alma faminta!
Astro amigo, fulge e cintila.
E roto à vida o frágil nexo,
Venha-me à fronte, enfim tranquila,
545
A extrema-unção do teu reflexo!
AVE MARIA
... à l’heure où joie nous quitte...
ASMIN
Ave, Maria... Era esta mesma a hora,
Este mesmo o lugar quando ela veio...
Quando perdi-me no amoroso enleio
Descia a noite como agora desce...
Ela os úmidos lábios entreabria
Para o céu, num sorriso, ou numa prece...
Ave, Maria!
Ave, Maria... Quanta vez às tardes
Viram-nos ambos num sonhar de doudos
Ao longe os montes se perdiam todos
Nos véus sombrios que além baixavam...
Minha alma à sua numa só se unia.
E os lábios dela e os lábios meus rezavam:
Ave, Maria!
Ave, Maria... Que formosa tarde
Era aquela da nossa despedida!
Era fatal partir, e foi cumprida
Minha sorte, que dela arrebatou-me!...
E a boca linda, que não mais sorria,
Na prece ardente murmurou meu nome...
Ave, Maria!
Ave, Maria... A hora ainda é a mesma.
Ainda o mesmo o lugar... mas já não vive
Aquele apaixonado amor que eu tive
E que tanto em saudade se revela...
Ela, a formosa desleal, mentia...
Vive, minh’alma, para orar por ela...
Ave, Maria!
546
LUÍS DA GAMA
(1830—1882)
LITERATURA BRASILEIRA
RETRATO
É renga, magricela e presumida,
Com pele de muxiba engrovinhada;
O corpo de sumaca desarmada,
A cara de muafa malcozida;
A perna de forquilha retorcida,
Os ombros de cangalha um tanto usada;
A boca, de ratões grata morada,
Maçante na conversa em mal sofrida;
Senhora de um leproso cão rafeiro,
Que, querendo passar por mocetona,
Se besunta com sebo de carneiro;
Vestida é saracura de japona,
De feia catadura, e de mau cheiro,
Eis a choca perua da Amazona.
MINHA MÃE
Era mui bela e formosa,
Era a mais linda pretinha,
Da adusta Líbia rainha,
E no Brasil pobre escrava!
Oh, que saudades que eu tenho
547
Dos seus mimosos carinhos,
Quando c’os tenros filhinhos
Ela sorrindo brincava.
Éramos dois — seus cuidados,
Sonhos de sua alma bela;
Ela a palmeira singela,
Na fulva areia nascida.
Nos roliços braços de ébano.
De amor o fruto apertava,
E à nossa boca juntava
Um beijo seu, que era a vida.
Quando o prazer entreabria
Seus lábios de roixo lírio,
Ela fingia o martírio
Nas trevas da solidão.
Os alvos dentes. nevados.
Da liberdade eram mito,
No rosto a dor do aflito,
Negra a cor da escravidão.
Os olhos negros, altivos,
Dois astros eram luzentes;
Eram estrelas cadentes
Por corpo humano sustidas.
Foram espelhos brilhantes
Da nossa vida primeira,
Foram a luz derradeira
Das nossas crenças perdidas.
Tão terna como a saudade
No frio chão das campinas,
Tão meiga como as boninas
Aos raios do sol de Abril.
No gesto grave e sombria,
Como a vaga que flutua,
Plácida a mente — era a Lua
Refletindo em Céus de anil.
Suave o gênio, qual rosa
Ao despontar da alvorada,
Quando treme enamorada
Ao sopro d’aura fagueira.
548
Brandinha a voz sonorosa,
Sentida como a Rolinha,
Gemendo triste sozinha,
Ao som da aragem faceira.
Escuro e ledo o semblante,
De encantos sorria a fronte,
— Baça nuvem no horizonte
Das ondas surgindo à flor;
Tinha o coração de santa,
Era seu peito de Arcanjo,
Mais pura n’alma que um Anjo,
Aos pés de seu Criador.
Se junto à cruz penitente,
A Deus orava contrita,
Tinha uma prece infinita
Como o dobrar do sineiro,
As lágrimas que brotavam,
Eram pérolas sentidas,
Dos lindos olhos vertidas
Na terra do cativeiro.
A CATIVA
Como era linda, meu Deus!
Não tinha da neve a cor,
Mas no moreno semblante
Brilhavam raios de amor.
Ledo o rosto, o mais formoso,
De trigueira coralina,
De Anjo a boca, os lábios breves
Cor de pálida cravina.
Em carmim rubro engastados
Tinha os dentes cristalinos;
Doce a voz, qual nunca ouviram
Dúlios bardos matutinos.
Seus ingênuos pensamentos
São de amor juras constantes;
Entre a nuvem das pestanas
549
Tinha dois astros brilhantes.
As madeixas crespas negras,
Sobre o seio lhe pendiam,
Onde os castos pomos de ouro
Amorosos se escondiam.
Tinha o colo acetinado
— Era o corpo uma pintura —
E no peito palpitante
Um sacrário de ternura.
Límpida alma — flor singela
Pelas brisas embalada,
Ao dormir d’alvas estrelas,
Ao nascer da madrugada.
Quis beijar-lhe as mãos divinas,
Afastou-mas — não consente;
A seus pés de rojo pus-me
— Tanto pode o amor ardente!
Não te afastes lhe suplico,
És do meu peito rainha;
Não te afastes, neste peito
Tens um trono, mulatinha!...
Vi-lhe as pálpebras tremerem,
Como treme a flor louçã,
Embalando as níveas gotas
Dos orvalhos da manhã.
Qual na rama enlanguescida
Pudibunda sensitiva,
Suspirando ela murmura;
Ai, senhor, eu sou cativa!...
Deu-me as costas, foi-se embora
Qual da tarde do arrebol
Foge a sombra de uma nuvem
Ao cair da luz do sol.
550
LAURA
Aqui, ó Laura,
No teu jardim,
Pétalas colho
D’alvo jasmim.
Delas rescende
Doce fragrância,
Quais meigos sonhos
Da tua infância.
As plúmbeas nuvens,
Já fugitivas,
Os ermos buscam,
Serras esquivas.
Plácida lua
Nos Céus alveja,
Prateia os lagos,
E as flores beija.
Aqui, ó Laura,
Teus olhos garços,
Na linfa clara,
Nos Céus esparsos.
Lânguidos brilham
Nestas estrelas,
Que as brandas ondas
Retratam belas.
Na cor de rosa,
A luz da lua,
Risonha vejo
A face tua.
Carmíneos lábios
Nos rubros cravos,
Que n’hástea pendem,
Quais melios favos.
Teu níveo colo
— Na estátua erguida
551
Do amor de Tasso
— Da bela Arminda.
Na onda breve
O arfar do seio,
Que a aragem move
Com brando enleio.
Dos mal-me-queres
Áureos novelos
Os anéis fingem
Dos teus cabelos.
Da violeta
Na singeleza
Tua alma vejo,
Tua pureza
Ergue-te, ó Laura,
Do brando leito,
Dá-me em teu peito
De amor gozar;
Um volver d’olhos,
Um beijo apenas
Entre as verbenas
Do teu pomar.
Não fujas, Laura,
Vem a meus braços
Leva-me vida
Nos teus abraços...
Lá surge um Anjo!
Oh Céus, é ela!
— Estrela vésper
De luz singela!
Cobre-lhe os membros
Alva roupagem,
Que manso agita
Suave aragem.
Longos cabelos
552
Belos se estendem,
E em ondas de ouro
Dos ombros pendem.
A ela corro
Tento abraçá-la
Recurvo os braços,
Mas sem tocá-la!
Era um Arcanjo
De aéreo sonho
No ar perdeu-se
Ledo e risonho.
Laura formosa
No leito estava,
Dos meus lamentos.
Só desdenhava.
Já a luz do dia
Renasce além,
Debalde espero,
Laura não vem.
Não têm meus versos
Beleza tanta,
Que ouvi-los possa
Quem tudo encanta.
Naquele peito
De olente flor,
Paixões não entram,
Não entra amor.
A BORBOLETA
Sobre a açucena,
Que no horto alveja,
A borboleta
Mansinha adeja;
Libando os pingos
De orvalho brando,
553
Que a nuvem loura
Vem salpicando.
Meneia os leques
Por entre as flores,
Que o ar perfumam
Com seus olores.
Mimosos leques
De cores finas,
— Tela formosa
Das mãos divinas,
Ora serena,
Pairando a flux,
Esmaltes mostra
Do brilho à luz.
Ora nas águas
Boiando vai,
Qual folha seca
Que ao vento cai.
Ao vir da aurora
Vai do jasmim
Beijar a cútis
D’alvo cetim.
Ao cravo, à rosa
Afagos presta,
— Que a aragem sopra
E o sol recresta.
Ao pôr da tarde
Pousa em delírio
Nas tenras folhas,
Do roxo lírio.
E o frágil corpo
Em sono brando,
Que embala a brisa,
Que vem soprando,
Alívio encontra
554
Na solidão
Até que d’alva
Rompa o clarão.
NO CEMITÉRIO DE S. BENEDITO
Em lúgubre recinto escuro e frio,
Onde reina o silêncio aos mortos dado,
Entre quatro paredes descoradas,
Que o caprichoso luxo não adorna,
Jaz de terra coberto humano corpo,
Que escravo sucumbiu, livre nascendo!
Das hórridas cadeias desprendido,
Que só forjam sacrílegos tiranos,
Dorme o sono feliz da eternidade.
Não cercam a morada lutuosa
Os salgueiros, os fúnebres ciprestes,
Nem lhe guarda os umbrais da sepultura
Pesada laje de espartano mármore,
Somente levantado em quadro negro
Epitáfio se lê, que impõe silêncio!
— Descansam neste lar caliginoso
O mísero cativo, o desgraçado!...
Aqui não vem rasteira a vil lisonja
Os feitos decantar da tirania,
Nem ofuscando a luz da sã verdade
Eleva o crime, perpetua a infâmia.
Aqui não se ergue altar ou trono d’ouro
Ao torpe mercador de carne humana.
Aqui se curva o filho respeitoso
Ante a lousa materna, e o pranto em fio
Cai-lhe dos olhos revelando mudo
A história do passado. Aqui nas sombras
Da funda escuridão do horror eterno,
Dos braços de uma cruz pende o mistério,
Faz-se o cetro bordão, andrajo a túnica,
Mendigo o rei, o potentado escravo!
555
A UM NARIZ
Aí vai, leitores,
Um monstro esguio
Que em corrupio
De uma rua tem posto os moradores.
Maior que a proa
Da nau de linha,
Tem camarinha
Aonde à tarde se obumbra a tocha côa.
Rinoceronte
De tromba enorme,
Mais desconforme
Do que o mero, a baleia, o catodante.
Nariz bojante,
Recurvo e longo,
Que lá do Congo
Alcança o Tenerife e Monte Atlante.
De raça eslava
Tremenda espiga,
E há quem diga
Que nela Polifemo cavalgava.
Nariz alado,
De cor bringela,
Que de pinguela,
Serviu no Amazonas celebrado.
E se não mente
A tradição,
De lampião
Fazia um farol da Líbia ardente.
Nariz de pau,
Com tal composto,
Que sobre o rosto
Tem forma de bandurra ou berimbau.
Cavado e torto,
556
Formal tripeça,
Fundido à pressa
Nas forjas de Vulcano – por aborto.
Nariz de forno,
De amplas badanas,
Que mil bananas
Aloja em cada venta, sem transtorno.
É tão famoso
O tal nariz,
Que por um triz
Não fez parte do cabo tormentoso.
Qual catatau
Da testa pende,
E alguém entende
Ser ninho de coruja ou pica-pau.
Nariz de barro,
Mas não cozido,
Que suspendido,
Sobre as grimpas da lua vai de esbarro.
De quanto fiz
Não se enraiveça;
Não enrubesça,
Que p’ra dar e vender sobra nariz.
OS GLUTÕES
Oh tu quadrada Musa empavesada,
Soberana rainha da papança,
Borrachuda matrona insaciável
Que tens o corpo pingue, e larga pança;
Oh tu arca bojuda que resguardas
O profuso fardel das comidelas;
Amazona terrível, devorante
Té capaz de engolir mil caravelas:
Esganiça o pescoço longo-estreito,
Em linha põe os teus animalejos,
557
Os hórridos abutres, feios lobos,
Porcos, galinhas, gatos, percevejos.
Vem à triste morada do trovista
Um canto lhe inspirar que cheire a bife,
Para a fama elevar dos lambareiros
Sobre as grimpas do monte Tenerife.
Vem filha do pincel do grande Alcíato
Dourar os versos meus que, descorados,
Não podem atrair leitores sábios,
Amantes da lambança e bons guisados.
Derrama nestas linhas desbotadas
O perfume odorante da linguiça,
Do paio português, do bom salame,
Que a fome desafia, e nos atiça.
Transmuda o negro véu da escuridão,
Que a vista me detém, cerrando os olhos;
Um quadro me apresenta em que divise
Saboroso pastel com seus refolhos.
Presuntos de Lamego, perus cheios,
Roasteebiffs e leitões, tenras perdizes,
Tostado arroz de forno, nabos quentes,
Gansos, marrecos, patos, cordonizes.
Fervendo, em níveas taças cristalinas,
Espumante Champagne, jeropiga,
O bastardo, o madeira, o porto velho —
Que tem a via láctea na barriga.
Cerveja da godêmia, marasquino,
O licor.de Campinas, decantado,
Que faz sua visita, pelas onze,
À gente de focinho alcantilado.
Bojudos garrafões, quartolas cheias,
Em linha de batalha, a romper fogo,
À súcia comilona provocando
A gula saciar, por desafogo.
O coro das bacantes estrondosas
558
Em delírio bradando o — evohé;
Num canto a negra morte esborneada,
Tomando uma pitada de rapé.
Fortalece meu estro, oh grande Musa,
Estende os cantos meus pelo Universo,
Que um hino a teus alunos se consagre,
Se tão sublime preço cabe em verso!
Dos glutões já cadentes leio a fama
Nas páginas de um livro quinhentista;
Vejo a gula amolando as férreas garras,
Para em guerra tenaz fazer conquista.
És tu valente Clódio — o fero Aníbal,
Que rompendo na frente dos papões,
Vais mostrar a potência gargantona
Dos xeques da bebança, e comilões.
Refere o grão Macedo, autor de nota,
Que só tu numa ceia chupitaste
De saborosos figos uns quinhentos
Além de dez melões que inda mamaste.
E, para terminar o tal repasto,
De tordos seis dezenas consumiste,
Do fruto da videira vinte arráteis,
Com mais ostras quarenta que engoliste.
Melon Grotoniense, por bazófia,
Um touro devorou, de quatro anos;
Teógenes também, famoso atleta,
Por aposta comeu três bois cabanos.
E Fágon, em lauta mesa — à custa alheia,
Transportou para a pança três leitões,
Dois carneiros, um ganso, um javali,
De centeio cem pães, quatro melões.
Mitrídates honrou com pompa e cultos
Os vivos sorvedouros ambulantes,
Com prêmios distinguiu canina fome,
Dos ávidos abutres devorantes.
559
Cambises rei da Lídia, em certa noite,
Atracou-se à consorte com tal gana,
Que a meteu inteirinha no bandulho,
Como quem embutia uma banana!
O ébrio Filoxênio lamentava
Um pescoço não ter de braças mil,
Onde o vinho corresse a pouco e pouco,
Como corre das pipas num funil.
A fecunda Bretanha viu, com pasmo,
Um filho dessa Roma armipotente,
Que de seixos comia cinco arráteis,
Um bode semimorto, e meio quente.
E tão feia a garganta se a mostrava,
Que em horror excedia uma cratera;
E tão forte o apetite que nutria,
Que a si próprio comera, se pudera!
Outros muitos heróis refere a história,
Que deixo de narrar, por carunchosos,
De feitos singulares, tão tremendos,
Que os guerreiros deslustram mais famosos.
Desdobre-se a cortina bolorenta
Sobre os nomes dos filhos lá da estranja;
Repimpe-se no templo da vitória
Os brasíleos heróis que comem canja.
Vinde, oh Ninfas cheirosas dos outeiros,
De noturnas essências perfumadas
Mimosas cavalgando urbanos tigres,
Os nomes borrifar-lhes; vinde, oh Fadas!
No vasto panteão quero que brilhem
Os lúcidos varões do meu país;
Em tela de algodão pintados sejam,
Com borra de café, água de giz.
Etéreo Caravaggio trace as linhas
Dos comilões de rúbidos toutiços,
Que o tonel das Danaides tem por pança
Onde cabem, sem custo, mil chouriços.
560
Calem-se os Celtas, Gregos e Romanos;
Silêncio! oh tuba Aônia e Lusitana!
Erguei-vos, oh glutões da minha pátria,
Temos coco, caju, temos banana!
E tu, audaz Macedo, registrante,
De ronceiras façanhas já caducas,
Vê quebrarem-se.as guelas portentosas
Quais se quebram no chão frágeis cumbucas.
Dos Clódios e Milões prodígios altos,
Do ébrio Filoxênio heróicos feitos,
Sem viço, desbotados, já sem cores,
Por terra vão caindo, em pó desfeitos.
Junto deles assoma ousado e forte,
O dente arreganhando, um deputado,
Que com quatro apoiados retumbantes
Nos cofres da Nação tem manducado.
Um longo diplomata aparvalhado,
Com pernas d’aranhiço, extenso pé,
Que na Europa se fez profundo e sábio,
No tráfico do fumo e do café.
Retumbante engenheiro de compasso,
O lume encaixotando nos planetas,
Metendo em Capricónio, Libra e Vênus —
O sonante metal chucha com tretas.
Centenas de empregados — gente limpa,
Que os penedos não rói, por não ter dentes,
Encaixando no fardel das comidelas
A Pátria reduzida a dobrões quentes.
Famintos tubarões, sedentos monstros —
Imortais tesoureiros d’obras pias,
Que engolem pedras, o metal devoram —
Sem que ronque a barriga em tais folias.
Os sagazes carolas d’ordens sacras,
Vigários, andadores, sacristães,
Que tragam num momento, Igreja e Santos
561
Sem meter na contenda os capelães.
Oh, se Deus sobre a terra derramasse
Moedas de quintal, causando horror,
Inda assim saciar não poderia
A fome dum voraz procurador!
Prestante pai da pátria — homem de peso!
Entre rato e baleia — acachapado —
Morde aqui, rói ali, lambe acolá —
Mete dentro do bucho o Corcovado.
Se quereis, ó Leitor, ver já por terra
Cambises, que engoliu sua consorte,
Sim, prodígio maior vos apresento
Um Ministro vos dou — papal Mavorte.
Que abusando das leis da natureza,
À mãe pátria se agarra, como louco;
Cupita a pobre velha, e logo brada,
(Batendo no bandulho) — inda foi pouco!...
Deixemos, pois, atrás a glória antiga,
Das potentes gargantas esfaimadas;
Hosanas entoemos furibundas
As modernas barrigas sublimadas.
Que feitos gloriosos, desta laia
Gravados viverão na lauta história,
No perfume do vinho, e dos guisados
Voarão sobre as asas da memória.
O JANOTA
Sou bonito, sou da moda,
Chibatão de belo gosto;
Sou gamenho, tendo garbo,
Porte airoso e bem composto.
Vivo alegre, passo à larga,
Tenho trinta namoradas,
— Dez viúvas, seis donzelas
Sete velhas , não casadas.
562
Quatro negras, cinco cabras,
Sem contar certa mulata
E a vizinha, que é zanaga.
Com seu beque de fragata.
Aias, amas e criadas,
Das matronas que apontei,
Baronesas e Condessas,
E mais outras, que eu só sei.
Dos janotas sou modelo,
Figurino abaloado,
Calça larga, mangas fofas,
Cabelinho bem frisado.
A luneta ao olho presa,
Sapatinho envernizado.
Casaquim à Dom Murzelo
E o casquete afunilado.
Faço andar em roda viva,
Mil cabeças d’alto bordo;
Mas se um vil credor esbarro,
Foge o sonho, então acordo!
E de Rodes qual colosso,
Fico mudo, altivo e quedo;
Ouço a lenda impertinente,
Sem tugir — como um penedo.
Após um vem grosso bando,
Este grasna, aquele ruge,
Rosna o lorpa taberneiro,
Todo o resto orneja e muge.
Perfilando o colarinho,
Que da orelha passa além,
Corro a mão nas algibeiras,
Mas não puxo nem vintém!
Berra o criado,
Grita o barbeiro;
— Quero dinheiro!
563
Que frioleira!
Eu que, sem gimbo.
Ando pulando,
Vou me safando
Que pagodeira!
Eis que de um canto
Salta, raivosa,
A gordurosa
Da cozinheira;
Pede os salários,
Fala em tomate,
— Eu, em remate,
Dou-lhe a traseira!
Chora de raiva,
— Pobre coitada;
Que vinagreira!
Eu sou da moda,
Chupo o meu trago,
Como o não — pago,
— Por brincadeira.
E se há quem diga,
Que sou tratante,
Sagaz birbante,
É maroteira;
Porque só finto
Parvos mascates,
Maus alfaiates,
— Por bandalheira.
Também por mofa,
Logro os lojistas,
Foros cambistas,
De mão ligeira;
Abelhas mestras,
Ratões livreiros,
Os sapateiros,
E a engomadeira.
Que santa vida,
Meu anjo Bento,
Oh que portento,
564
Que pepineira!
Sempre folgando,
Sem ter cuidado,
Ser namorado,
— Que pagodeira!
Quem deve e paga
Não tem miolo,
É parvo, é tolo,
Não tem bom tino.
Viva a chibança,
Vá de tristeza,
Morra a pobreza,
Que isto é divino!
A UM VATE ENCICLOPÉDICO
Qual cratera lançando lava ardente,
De Pompéia tragando a pobre gente,
Novo Aníbal os mares agitando,
Arbustos e penedos derrubando,
Argentino Quixote se apresenta
Com bulha que as cabeças atormenta!
É Doutor em ciências sociais,
Conhece toda casta de animais;
Em direito, suplanta o Savigny,
Mormente quando toma a — Parati;
E nos fastos da grã filosofia
Diz tais coisas que as carnes arrepia!
Da Medicina o novo Chernoviz,
Faz xaropes, do ferro tira giz!
E, invadindo as baias do Parnaso
O lugar conquistou do tal Pégaso!
A sabença nos cascos se lhe aninha,
É por todos chamado o — Dom Fuinha;
E da torva montanha da cachola,
Pende a velha e cediça c’raminhola!
Um taful que encarou o tal portento
Afirma que o coitado era jumento;
E querendo provar o que dizia,
Mostrava uma castrada poesia:
565
D’asneiras enxurrada furibunda,
Onde o erro falaz superabunda:
Era prosa cediça, mui safada,
Asneira sobre asneira amontoada!
E no fim da maçante frioleira
A firma do grã vate — baboseira.
Correu, em peso, a sábia Academia,
Para ver o planeta que luzia;
Também veio a Polícia, a Medicina,
Discutir tanta asneira em sabatina!
Miraram de alto a baixo o sacripante
E vendo que o maroto era pedante,
Na barca de Caronte o encaixaram,
P’ra casa dos orates o mandaram.
Lá se foi o talento desmedido,
Todo o povo deixando espavorido,
Habitar os salões d’um hospital
Onde cura terá para o seu mal.
566
LUÍS DELFINO
(1834—1910)
LITERATURA BRASILEIRA
ALTAR SEM DEUS
Inda não voltas? — Como a vida salta
Destes quadros de esplêndidas molduras!
Mulheres nuas, raras formosuras...
Só a tua nudez entre elas falta...
Pede-te o espelho de armação tão alta,
Onde revias tuas formas puras;
Pedem-te as cegas, lúbricas alvuras
Do linho, que a Paixão no leito exalta.
Pedem-te os vasos cheios de perfume
Os dunquerques, as rendas, as cortinas,
Tudo quanto a mulher de bom resume,
Escolhido por tuas mãos divinas...
E sai do teu altar vazio, ó nume,
A tristeza indizível das ruínas...
CADÁVER DE VIRGEM
Estava no caixão como num leito,
Palidamente fria e adormecida;
As mãos cruzadas sobre o casto peito,
567
E em cada olhar sem luz um Sol sem vida.
Pés atados com fita em nó perfeito,
De roupas alvas de cetim vestida;
O tronco duro, rígido, direito,
A face calma, lânguida, dorida...
O diadema das virgens sobre a testa,
Níveo lírio entre as mãos, toda enfeitada,
Mas como noiva, que cansou na festa.
Por seis cavalos brancos arrancada...
Onde irás tu passar a longa sesta
Na mole cama, em que te vi deitada?!...
TELA APAGADA
Tecum vivere amem.
Horácio
Como isto aqui mudou!... Agosto, o ano passado,
Tinha mais sol, mais luz, mais calor, menos frio;
Mas tudo o mais é o mesmo: a água do mesmo rio,
A ponte de madeira, as mangueiras, ao lado,
Velhas, grandes, em flor, o lanço esburacado
Do muro, e o líquen nele, e a avenca, e o luzidio
Lacrau, que salta, e vira, e já volta ao desvio;
O cão ganindo; e a um canto, à esquerda, ao longe, o prado;
Bambus em renque, em meio o caminho, e no espaço,
Longe do morro, ao fundo, a casa; e no terraço
Sobre o jardim, talhando o ar cintilante, a imagem
De um anjo, - um áureo nimbo à coma, o olhar humano
Como jamais pintou Corregio ou Ticiano:
Quem, levando-a, apagou a esplêndida paisagem...
ALMA VIÚVA
És uma alma viúva e perturbada:
Foi-te a paixão um vento de passagem,
568
Que indo, lançou do céu na tua imagem
Luxos da noite e jóias da alvorada.
A flor de amor, macia e perfumada,
Não foi de oásis, foi de uma miragem;
Anda por ti, como um rumor de aragem
A um rosal, que deu rosas, pendurada.
Teu negro olhar... o teu olhar esconde
Lasciva flauta de dois tubos, onde
Pã tocara, cantando a selva em coro.
Dentro, o desejo, como instável onda,
Dorme fremendo, quando alguém o sonda,
Como um leão ao sol nas garras d'ouro.
Tem a grandeza antiga e peregrina
Das mulheres da Bíblia, e da Odisséia:
Anda, fala, aparece... e se imagina
Ou Palas ou Judite ou Diana ou Rea.
Mas quando ao campo os passos seus destina,
Sua estatura avulta: - então é Dea:
Jove, para a espiar da azul cortina,
Deixa os deuses no Olimpo em assembléia.
Juno descora... E ela no cercado,
Numa das mãos erguendo os seus vestidos,
Com outra lança às aves pão cortado,
E vê de longe, entre os capins crescidos,
O velho boi de Homero, um boi malhado
De passo tardo e chifres retorcidos.
O MAL DA VIDA
Amor, pois, é a esplêndida loucura,
E a miséria de um sol que nos invade?
Caiu alguém aos pés da formosura
Que lhe não deixe aos pés razão, vontade?
Este delírio vem da eternidade,
Vem de mais longe, eu sei: - quem o procura
569
Acha-o mais velho do que Deus: quem há de
Fugir do mal da vida por ventura?
E o amor é o mal que acaba em paraíso;
E para dar-nos céus num só lampejo
Basta-lhe um pouco, um nada é-lhe preciso:
De sonhos d'oiro e luz calça o desejo:
E então, de dia, em rosa abre o seu riso,
E em ampla estrela, à noite, abre o seu beijo...
CAPRICHO DE SARDANAPALO
"Não dormi toda a noite! A vida exalo
Numa agonia indômita e cruel!
Ergue-te, ó Radamés, ó meu vassalo!
Faço-te agora amigo meu fiel...
Deixa o leito de sândalo... A cavalo!
Falta-me alguém no meu real dossel...
Ouves, escravo, o rei Sardanapalo?
Engole o espaço! É raio o meu corcel!
Não quero que igual noite hoje em mim caia...
Vai, Radamés, remonta-te ao Himalaia,
Ao sol, à lua... voa, Radamés,
Que, enquanto a branca Assíria aos meus pés acho,
Quero dormir também, feliz, debaixo
Das duas curvas dos seus brancos pés!..."
OS SEIOS
Nunca te vejo o peito arfar de enleio,
Quando de amor, ou de prazer te ébrias,
Que não ouça lá dentro as fugidias
Aves, baixo alternando algum gorjeio...
Aves são, e são duas aves, creio,
Que em ti mesma nasceram, e em ti crias,
Ao arrulhar de castas melodias,
No aroma quente e ebúrneo do teu seio;
570
Têm de uns astros irmãos o movimento,
Ou de dois lírios, que balouça o vento,
O giro doce, o lânguido vaivém.
Oh! quem me dera ver no próprio ninho
Se brancas são, como o mais branco arminho,
Ou se asas, como as outras pombas, têm...
IN HER BOOK
Ela andou por aqui; andou. Primeiro,
Porque há traços de suas mãos; segundo,
Porque ninguém, como ela, tem no mundo
Este esquisito, este suave cheiro.
Livro, de beijos meus teu rosto inundo,
Porque dormiste sob o travesseiro
Em que ela dorme o seu dormir, ligeiro
Como um sono de estrela em céu profundo.
Trouxeste dela o odor de uma caçoula,
A luz que canta, a mansidão da rola
E esse estranho mexer de etéreos ninhos...
Ruflos de asas, amoras dos silvedos,
Frescuras d'água, sombras e arvoredos
Dando seca aos rosais pelos caminhos...
PRIMEIRA MISSA NO BRASIL
(A Vítor Meireles)
Céu transparente, azul, profundo, luminoso;
Montanhas longe, encima, à esquerda, empoeiradas
De luz úmida e branca; o oceano majestoso
À direita, em miniatura; as vagas aniladas
Coalham naus de Cabral; mexem-se inda ancoradas;
A praia encurva o colo ardente e gracioso;
Fulge a concha na areia a cintilar; grupadas
As piteiras em flor dão ao quadro um repouso.
571
Serpeja a liana a rir; a mata se condensa,
Cai no meio da tela: um povo estranho a eriça;
Sobre o altar tosco pau ergue-se em cruz imensa.
Da armada a gente ajoelha; a luz golfa maciça
Sobre a clareira; e um frade, ao ar, que a selva incensa,
Nas terras do Brasil reza a primeira missa.
A POESIA
O que é poesia, Helena? O céu invade,
E tudo une e desune e tudo enfeixa;
E tudo mete em sonorosa endeixa,
E tudo quanto foi, e inda ser há de.
É a voz de Deus, o som da tempestade:
Dá músicas ao mar, amor à queixa:
E ela em seu manto embrulha os sóis, e deixa
A ira enleá-la, e é cheia de bondade.
Embala o berço, e faz dançar a boda:
Mesmo ao trágico empresta os seus encantos:
Dá voz sublime à ventania douda.
É de existência dor, sorriso, prantos:
E a grande, a rica natureza toda
Luz, freme, goza, sofre, haure em seus cantos...
EXTRA MUROS
A tarde de ontem!... Longe da cidade,
Eu a esperava à porta do Passeio:
Quando via ir chegando um carro: — há de,
Pensava, ser o carro em que ela veio.
Não era. — Então ficava em novo enleio:
Cada momento era uma eternidade;
E entre a esperança, a dúvida, o receio,
Que inquietação, que angústia, que ansiedade!
Mas de repente o rápido ginete
Estaca, o faéton pára, as longas clinas
572
Sacode o pônei fino e cor de leite:
Sai a deusa: o sol ri, e das colinas
Rola-lhe ao pés a luz, como um tapete
Que ela esgarça na ponta das botinas...
A ÁGUIA
A águia negra, num vôo, de repente
Fura o céu, desprendida da montanha,
E parece levar em feixe ardente
Luz, que às garras metálicas apanha.
Afronta o sol, provoca-o frente a frente,
Deixa as nuvens atrás, remonta em sanha...
E volta irada, triste e lentamente,
Por ver tão longe a luminosa aranha.
Liso, e em foto o areal, como um espelho
Amplo, se estende ao seu olhar vermelho...
Vermelho, como a espuma dos vulcões:
Desce; e por desenfado ao bico enorme,
Enquanto um grupo de gazelas dorme,
Folga arrancando os olhos aos leões.
573
LUÍS VAZ DE CAMÕES
(1524—1579/1580)
LITERATURA PORTUGUESA
AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
SETE ANOS DE PASTOR JACÓ SERVIA
Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel serrana bela,
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prêmio pertendia.
Os dias na esperança de um só dia
574
Passava, contentando-se com vê-la:
Porém o pai usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu a Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,
Começou a servir outros sete anos,
Dizendo: Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida
BABEL E SIÃO
Sôbolos rios que vão
Por Babilônia, me achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião
E quanto nela passei.
Ali, o rio corrente
De meus olhos foi manado;
E, tudo bem comprado,
Babilônia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.
Ali, lembranças contentes
Na alma se representaram;
E minhas cousas ausentes
Se fizeram tão presentes
Como se nunca passaram.
Ali, depois de acordado,
Co rosto banhado em água;
Deste sonho imaginado,
Vi que todo o bem passado
Não é gosto mas é mágoa.
E vi que todos os danos
Se causavam das mudanças
E as mudanças dos anos;
Onde vi quantos enganos
Faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
575
Quão pouco espaço que dura;
O mal quão depressa vem,
O quão triste estado tem
Quem se fia da ventura.
Vi aquilo que mais vale,
Que então se entende melhor,
Quanto mais perdido for;
Vi ao bem suceder mal
E, ao mal, muito pior.
E vi com muito trabalho
Comprar arrependimento.
Vi nenhum contentamento,
E vejo-me a mim, que espalho
Tristes palavras ao vento.
Bem são rios estas águas
Com que banho este papel;
Bem parece ser cruel variedade de mágoas
E confusão de Babel.
Como homem que, por exemplo,
Dos transes em que se achou,
Depois que a guerra deixou,
Pelas paredes do templo
Suas armas pendurou;
Assim, depois que assentei
Que tudo o tempo gastava,
Da tristeza que tomei,
Nos salgueiros pendurei
Os órgãos com que cantava.
Aquele instrumento ledo
Deixei da vida passada,
Dizendo: - Música amada,
Deixo-vos neste arvoredo,
A memória consagrada.
Frauta minha que, tangendo,
Os montes fazíeis vir
P’ra onde estáveis, correndo,
E as águas, que iam descendo.
576
Tornavam logo a subir,
Jamais vos não ouvirão
Os tigres, que se amansavam;
E as ovelhas que pastavam,
Das ervas se fartarão
Que por vos ouvir deixavam.
Já não fareis docemente
Em rosas tornar abrolhos
Na ribeira florescente;
Nem poreis freio à corrente,
E mais se for dos meus olhos.
Não movereis a espessura,
Nem podereis já trazer
Atrás vós a fonte pura,
Pois não pudestes mover
Desconcertos da ventura.
Ficareis oferecida
A Fama, que sempre vela,
Frauta de mim tão querida;
Porque, mudando-se a vida,
Se mudam os gostos dela.
Acha a tenra mocidade
Prazeres acomodados,
E logo a maior idade
Já sente por pouquidade
Aqueles gostos passados.
Um gosto que hoje se alcança,
Amanhã já o não vejo:
Assim nos traz a mudança
De esperança em esperança
E de desejo em desejo.
¿Mas em vida tão escassa
que esperança será forte?
!(ao contrário) Fraqueza de humana sorte,
que quanto da vida passa
está recitando a morte!
577
(idem!) Mas deixar nesta espessura
o canto da mocidade!
Não cuide a gente futura
Que será obra da idade
O que é força da ventura.
Que idade, tempo, o espanto
De ver quão ligeiro passe,
Nunca em mim puderam tanto
Que, posto que deixe o canto,
A causa dele deixasse.
Mas em tristezas e nojos,
Em gosto e contentamento,
Por sol, por neve, por vento,
Tendré presente á los ojos
Por quein muero tan contento.
Órgãos a frauta deixava,
despojo meu tão querido,
no salgueiro que ali estava,
Que para troféu ficava
De quem me tinha vencido.
Mas lembranças da afeição
Que ali cativo me tinha,
Me perguntaram então:
¿que foi daquele cantar
das gentes tão celebrado?
Por que o deixava de usar?
Pois sempre ajuda passar
Qualquer trabalho passado.
Canta o caminhante ledo
No caminho trabalhoso,
Por entre o espesso arvoredo;
E de noite o temoroso,
Cantando, refreia o medo.
Canta o preso docemente,
Os duros grilhões tocando;
Canta o segador contente,
E o trabalhador, cantando,
O trabalho menos sente.
578
Eu, que estas cousas senti
Na alma, de mágoas tão cheias,
¿Como dirá, respondi,
quem alheio está de si
doce canto em terra alheia?
¿Como poderá cantar
Quem em choro banha o peito?
Porque, se quem trabalhar
Canta por menos cansar,
Eu só descansos enjeito.
Que não parece razão
Nem parece coisa idônea
Por abrandar a paixão,
Que cantasse em Babilônia
As cantigas de Sião.
Que, quando a muita graveza
De saudade quebrante
Esta vital fortaleza,
Antes moura de tristeza
Que, por abrandá-la, cante.
Que, se o fino pensamento
Só na tristeza consiste,
Não tenho medo ao tormento:
Que morrer de puro triste,
Que maior contentamento?
Nem na frauta cantarei
O que passo e passei já,
Nem menos o escreverei;
Porque a pena cansará
E eu não descansarei.
Que, se vida tão pequena
Se acrescenta em terra estranha,
E se Amor assim o ordena,
Razão é que canse a pena
De escrever pena tamanha.
Porém se, para assentar
579
O que sente o coração,
A pena já me cansar,
Não canse para voar
A memória em Sião.
Terra bem-aventurada,
Se, por algum movimento,
Da alma me fores mudada,
Minha pena seja dada
A perpétuo esquecimento.
A pena deste desterro,
Que eu mais desejo esculpida
Em pedra ou em duro ferro,
Essa nunca seja ouvida,
Em castigo de meu erro.
E se eu cantar quiser,
Em Babilônia sujeito,
Jerusalém, sem te ver,
A voz, quando a mover,
Se me congele no peito.
A minha língua se apague
Às fauces, pois de perdi,
Se, enquanto viver assi,
Houver tempo em que te negue
Ou que me esqueça de ti!
Mas, ó tu, terra de Glória,
Se eu nunca vi tua essência,
Como me lembras na ausência?
Não me lembras na memória,
Senão na reminiscência.
Que a alma é tábua rasa
Que com a escrita doutrina
Celeste tanto imagina,
Que voa da própria casa
E sobe à pátria divina.
Não é logo a saudade
Das terras onde nasceu
A carne, mas é do Céu,
580
Daquela santa Cidade
De onde esta alma descendeu.
E aquela humana figura,
Que cá me pode alterar,
Não é quem se há de buscar:
É raio da Formosura
Que só se deve de amar.
Que os olhos e a luz que ateia
O fogo que cá sujeita,
Não do sol, mas da candeia –
É sombra daquela idéia
Que em Deus está mais perfeita.
E os cá me cativaram
São poderosos afeitos
Que os corações têm sujeitos;
Sofistas que me ensinaram
Meus caminhos por direitos.
Destes o mando tirano
Me obriga com desatino,
A cantar, ao som do dano,
Cantares de amor profano
Por versos de amor divino.
Mas eu, lustrado co santo
Raio, na terra de dor,
De confusão e de espanto,
¿Como hei de cantar o canto
Que só se deve ao Senhor?
Tanto pode o benefício
Da Graça, que dá saúde,
Que ordena que a vida mude:
E o que tomei por vício
Me faz grau para a virtude.
E fez que este natural
Amor, que tanto se preza,
Suba da sombra ao real,
Da particular beleza
Para a Beleza geral.
581
Fique logo pendurada
A frauta com que tangi,
Ó Jerusalém sagrada,
E tome a lira dourada
Para só cantar de ti;
Não cativo e ferrolhado
Na Babilônia infernal,
Mas dos vícios desatado
E cá desta a ti levado,
Pátria minha natural.
E se eu mãos der a cerviz
A mundanos acidentes,
Duros, tiranos e urgentes,
Risque-se quando já fiz
Do grão livro dos viventes.
E, tomando já na mão
A lira santa e capaz
Doutra mais alta invenção,
(! Ao contrário) Cale-se esta confusão,
cante-se a visão da paz!
Ouça-me o pastor e o rei,
Retumbe este acento santo,
Mova-se no mudo espanto;
Que do que já mal cantei
A palinódia já canto.
A vós se me quero ir,
Senhor e grão capitão
Da alta torre de Sião,
À qual não posso subir,
Se me vós não dais a mão.
No grão dia singular
Que na lira o douto som
Jerusalém celebrar,
Lembrai-vos de castigar
Os ruins filhos de Edom.
Aqueles que tintos vão
582
No pobre sangue inocente,
Soberbos co poder vão,
Arrasai-os igualmente,
Conheçam que humanos são.
E aquele poder tão duro
Dos efeitos com que venho,
Que incendem alma e engenho;
Que já me entraram o muro
Do livre alvídrio que tenho;
Estes, que tão furiosos
Gritando vêem a escalar-me,
Maus espíritos danosos,
Que querem como forçosos
Do alicerce derrubar-me;
Derrubai-os, fiquem a sós,
De forças fracos, imbeles;
Porque não podemos nós
Nem com eles ir a Vós,
Nem sem Vós tirar-nos deles.
Não basta minha fraqueza
Para me dar defensão,
Se vós, santo Capitão,
Nesta minha fortaleza
Não puserdes guarnição.
E tu, ó carne que encantas,
Filha de Babel tão feia,
Toda de misérias cheia,
Que mil vezes te levantas
Contra quem te senhoreia,
Beato só pode ser
Quem com a ajuda celeste
Contra ti prevalecer,
E te vier a fazer
O mal que lhe tu fizeste;
Quem com disciplina crua
Se fere mais que uma vez,
Cuja alma, de vícios nua,
583
Faz nódoas na carne sua,
Que já a carne na alma fez.
E beato quem tomar
Seus pensamentos recentes
E em nascendo os afogar,
Por não virem a parar
Em vícios graves e urgentes;
Quem com eles logo der
Na pedra do furor santo
E, batendo os desfizer
Na Pedra, que veio a ser
Enfim cabeça do Canto;
Quem logo, quando imagina
Nos vícios da carne má,
Os pensamentos declina
Àquela carne divina
Que na cruz esteve já;
Quem do vil contentamento
Cá deste mundo visível,
Quanto ao homem for possível,
Passar logo o entendimento
Para o mundo inteligível:
Ali achará alegria
Em tudo perfeita e cheia
De tão suave harmonia,
Que nem, por pouca, escasseia
Nem, por sobeja, enfastia.
Ali verá tão profundo
Mistério na suma Alteza,
Que, vencida a Natureza,
Os mores faustos do mundo
Julgue por maior baixeza.
Ó tu, divino aposento,
Minha pátria singular,
¿Se só com te imaginar
tanto sobe o entendimento,
que fará se em ti se achar?
584
Ditoso quem se partir
Para ti, terra excelente,
Tão justo e tão pernitente,
Que, depois de a ti subir,
Lá descanse eternamente.
VERDES SÃO OS CAMPOS
Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.
Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.
Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.
TRANSFORMA-SE O AMADOR NA COUSA AMADA
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.
585
Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,
Está no pensamento como ideia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como matéria simples busca a forma.
BUSQUE AMOR NOVAS ARTES, NOVO ENGENHO
Busque Amor novas artes, novo engenho
Pera matar-me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, enquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê,
Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como e dói não sei porquê.
O FOGO QUE NA BRANDA CERA ARDIA,
O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que na alma vejo.
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.
Como de dois ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.
Ditosa aquela flama, que se atreve
586
Apagar seus ardores e tormentos
Na vista do que o mundo tremer deve!
Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela nave
Que queima corações e pensamentos.
ALMA MINHA GENTIL, QUE TE PARTISTE
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
AO DESCONCERTO DO MUNDO
Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.
587
MACHADO DE ASSIS
(1839—1908)
LITERATURA BRASILEIRA
CÍRCULO VICIOSO
Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
- Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
que arde no eterno azul, como uma eterna vela!
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
- Pudesse eu copiar o transparente lume,
que, da grega coluna á gótica janela,
contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:
- Misera! tivesse eu aquela enorme, aquela
claridade imortal, que toda a luz resume!
Mas o sol, inclinando a rutila capela:
- Pesa-me esta brilhante aureola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?
NO ALTO
O poeta chegara ao alto da montanha,
E quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma cousa estranha,
Uma figura má.
588
Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.
Como se perde no ar um som festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento vão,
Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para descer a encosta
O outro lhe deu a mão.
O GRITO DO IPIRANGA
Liberdade!... Farol divinizado! Sob o teu brilho a humanidade e os séculos
Caminham ao porvir. Roma as algemas
Quebrou dos filhos que a opressão lançara
Dentre a sombra de púrpura dos Césares,
Que envolvia Tarquínio em fogo e sangue,
Cheia de tua luz e estimulada
Por teu nome divino - essa palavra
Imensa como as vozes do Oceano.
Sublime como a ideia do infinito!
Tal como Roma a terra americana,
Um dia alevantando ao sol dos trópicos
A fronte que domina os estandartes,
Saudou teu nome majestoso e belo E o brado imenso - Independência ou morte! Soltado lá das margens do Ipiranga.
Foi nos campos soar da eternidade.
Desenrola nas turbas populares
Dos livres a bandeira o herói tão nobre,
Digno dos louros festivais que outrora
Roma dava aos heróis entre os aplausos
Do povo que os levava ao Capitólio!
Ele foi como o César de Marengo;
Sua voz como a lava do Vesúvio
Levada pela voz da imensidade
Foi do Tejo soar nas margens, onde
589
Estremeceu de susto o lusitano!
Ipiranga!... Ipiranga!... A voz das brisas
Este nome repete nas florestas!
Caminhante! Eis ali onde primeiro
Soou o brado - Independência ou morte! O homem secular levando as águias
Por entre os turbilhões de pó, de fumo,
Ostentando nos livres estandartes
O lúcido farol de um século ovante,
Mais sublime não foi nem mais valente
Que Pedro o herói, da América travando
Do farol da sagrada liberdade,
E acordando o Brasil, escravizado,
Sob férreos grilhões adormecido.
Somos livres! - Nas paginas da história
Nosso nome fulgura - ali traçado
Foi por Deus, que do herói guiando o braço,
Nas folhas o escreveu do eterno livro.
Somos livres! - No peito brasileiro
A ideia da opressão não se acalenta!
Somos já livres como a voz do oceano,
Somos grandes também como o infinito,
Como o nome de Pedro e dos Andradas!
Seja bendito o dia em que Colombo
César dos mares, afrontando as ondas,
À Europa revelou um Novo Mundo;
Ele nos trouxe o cetro das conquistas
Nas mãos de Pedro - o fundador do Império!
O herói calcando os pedestais da história,
Ergue soberbo aos séculos vindouros
A fronte majestosa! Imenso vulto!
É ele o sol da terra brasileira!
Neste dia de esplêndidas lembranças
No peito brasileiro se reflete
O nome dele - como um sol ardente
Brilha dourado no cristal dos prismas!
Tomando o sabre, dominou dois mundos
O herói libertador, valente e ousado!
Ele, o tronco da nossa liberdade,
590
Foi como o cedro secular do Líbano,
Que resiste ao tufão e às tempestades!
Ipiranga! Inda o vento das florestas
Que as noites tropicais respiram frescas
Parecem murmurar nos seus soluços
O brado imenso - Independência ou morte!
Qual o trovão nos ecos do infinito!
Disse ao guerreiro o Deus da Liberdade:
Liberta o teu Brasil num brado augusto,
E o herói valente libertou num grito!
A CAROLINA
Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.
Trago-te flores - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.
Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
ERRO
Erro é teu. Amei-te um dia
Com esse amor passageiro
Que nasce na fantasia
E não chega ao coração;
Não foi amor, foi apenas
Uma ligeira impressão;
Um querer indiferente,
591
Em tua presença, vivo
Morto, se estavas ausente,
E se ora me vês esquivo
Se, como outrora, não vês
Meus incensos de poeta
Ir eu queimar a teus pés
É que - como obra de um dia,
Passou-me esta fantasia.
Para eu amar-te devias
Outra ser e não como eras.
Tuas frívolas quimeras,
Teu vão amor de ti mesma.
Essa pêndula gelada
Que chamavas coração,
Eram bem fracos liames
Para que a alma enamorada
Me conseguissem prender;
Foram baldados tentames,
Saiu contra ti o azar,
E embora pouca, perdeste
A glória de me arrastar
Ao teu carro... Vãs quimeras!
Para eu amar-te devias
Outra ser e não como eras...
UMA CRIATURA
Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas
Com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.
Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
592
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.
Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.
Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.
Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as suas forças dobra.
Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.
O DESFECHO
Prometeu sacudiu os braços manietados
E súplice pediu a eterna compaixão,
Ao ver o desfilar dos séculos que vão
Pausadamente, como um dobre de finados.
Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilião,
Uns cingidos de luz, outros ensanguentados...
Súbito, sacudindo as asas de tufão,
Fita-lhe a água em cima os olhos espantados.
Pela primeira vez a víscera do herói,
Que a imensa ave do céu perpetuamente rói,
Deixou de renascer às raivas que a consomem.
Uma invisível mão as cadeias dilui;
Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;
Acabara o suplício e acabara o homem.
MINHA MUSA
A musa, que inspira meus tímidos cantos,
593
É doce e risonha, se amor lhe sorri;
É grave e saudosa, se brotam-lhe os prantos.
Saudades carpindo, que sinto por ti.
A Musa, que inspira-me os versos nascidos
De mágoas que sinto no peito a pungir,
Sufoca-me os tristes e longos gemidos
Que as dores que oculto me fazem trair.
A Musa, que inspira-me os cantos de prece,
Que nascem-me d’alma, que envio ao Senhor.
Desperta-me a crença, que às vezes ‘dormece
Ao último arranco de esp’ranças de amor
A Musa, que o ramo das glórias enlaça,
Da terra gigante - meu berço infantil,
De afetos um nome na idéia me traça,
Que o eco no peito repete: - Brasil!
A Musa, que inspira meus cantos é livre,
Detesta os preceitos da vil opressão,
O ardor, a coragem do herói lá do Tibre,
Na lira engrandece, dizendo: - Catão!
O aroma de esp’rança, que n’alma recende,
É ela que aspira, no cálix da flor;
É ela que o estro na fronte me acende,
A Musa que inspira meus versos de amor!
594
MACIEL MONTEIRO
(1804—1868)
LITERATURA BRASILEIRA
UM SONHO
Ao embarque e partida de uma Senhora.
Ela foi-se! E com ela foi minh’alma
n’asa veloz da brisa sussurrante,
que ufana do tesouro que levava,
ia... corria... e como vai distante!
Voava a brisa e no atrevido rapto
frisava do Oceano a face lisa:
eu que a brisa acalmar tentava insano,
com meus suspiros alentava a brisa!
No horizonte esconder-se anuviado
eu a vi; e dois pontos luminosos
apenas onde ela ia me mostravam:
eram eles seus olhos lacrimosos!
Pouco e pouco empanou-se a luz confusa,
que me sorria lá dos olhos seus;
e d’além ondulando uma aura amiga
aos meus ouvidos repetiu adeus!
Nada mais via eu, nem mesmo um raio
fulgir a furto a esperança bela;
mas meus olhos ilusos descobriram
numa amável visão a imagem dela.
Esvaiu-se a visão, qual nuvem áurea
ao bafejar da vespertina aragem;
se aos olhos eu perdia a imagem sua,
no meu peito eu achava a sua imagem.
Ela foi-se!... E com ela foi minh’alma
595
na asa veloz da brisa sussurrante,
que ufana do tesouro que levava,
ia... corria... e como vai distante!
INSPIRAÇÃO SÚBITA
A Rosina Stoltz em uma representação da "Favorita".
Gênio! Gênio!... inda mais! Supremo esforço
da mão de Deus no ardor do entusiasmo!
És anjo ou és mulher, tu que nos roubas
do culto o amor, o êxtase do pasmo?
Na pujança do vôo a águia soberba
tenta o céu devassar, exausta pára:
nas asas do lirismo, tu de Jeová
ao templo chegas, e te prostras n’ara.
Aí, c’roada de fulgente auréola,
no concerto dos anjos te misturas;
e se cantas na terra, são teus hinos
harmonias que ouviste nas alturas;
aí aspiras o lustral perfume,
que das urnas sagradas se evapora:
eis porque tua voz parece ungida
dos olores da flor, que orvalha a aurora.
Aí do coração na harpa animada,
as cordas descobriste de ouro estreme,
que se vibram de amor, ateiam n’alma
paixão que goza e sofre e canta e geme.
Aí o idioma típico aprendeste,
que entendem todos e que tudo exprime:
é assim teu olhar o verbo vivo,
é teu gesto a linguagem mais sublime.
Mistério augusto que do Eterno ao fiat
surgiste, qual visão que atrai, fascina;
se da mulher teu corpo veste a forma,
arde no gênio tua chama divina.
Mulher ou anjo! Cumpre a missão tua!
Seja a crença deleite, a fé doçura;
toda a terra ame ao céu nos seus prodígios,
adore o Criador na criatura.
FORMOSA
596
Formosa, qual pincel em tela fina
debuxar jamais pôde ou nunca ousara;
formosa, qual jamais desabrochara
na primavera rosa purpurina;
formosa, qual se a própria mão divina
lhe alinhara o contorno e a firma rara;
formosa, qual jamais no céu brilhara
astro gentil, estrela peregrina;
formosa, qual se a natureza e a arte,
dando as mãos em seus dons, em seus lavores
jamais soube imitar no todo ou parte;
mulher celeste, oh! anjo de primores!
Quem pode ver-te, sem querer amar-te?
Quem pode amar-te, sem morrer de amores?!
597
MANUEL BOTELHO DE OLIVEIRA
(1636—1711)
LITERATURA BRASILEIRA
AO SONO
Quando em mágoas me vejo atribulado,
Vem, sono, a meu desvelo padecido,
Refrigera os incêndios do sentido,
Os rigores suspende do cuidado.
Se no monte Cimério retirado
Triste lugar ocupas, te convido
Que venhas a meu peito entristecido,
Porque triste lugar se tem formado.
Se querem noite escura teus intentos,
E se querem silêncio; nas tristezas
Noite, e silêncio têm meus sentimentos:
Porque triste, e secreto nas ternezas,
É meu peito ũ’a noite de tormentos,
É meu peito um silêncio de finezas.
VER, E AMAR
Anarda vejo, e logo
A meu peito atormenta o brando fogo;
Enfim quando me inflama,
Procedendo da luz a bela chama,
Vejo por glórias, sinto por desmaios,
Relâmpagos de luz, de incêndios raios.
DESDÉM, E FERMOSURA
Querendo ver meu gosto
O Cândido e purpúreo de teu rosto,
Sinto o desdém tirano,
Que fulmina teu rosto soberano;
Mata-me o esquivo, o belo me convida,
598
Encontro a morte, quando busco a vida.
QUE HÁ DE SER O AMOR UM SÓ
Uma alma do abrasador
Frecheiro é gloriosa palma;
Quem pois sacrifica ũa alma,
Deve adorar um Amor.
Rende Amor por majestade
Do entender a excelência,
Da memória a persistência,
A inclinação da vontade.
Prendem belas sujeições
O coração nos ardores;
Quem pois cria dois amores,
Há mister dois corações.
Inconstante há de lograr
Dois fogos, por mais que anele:
Pois quando cuida naquele,
Neste já deixa de amar.
Inteiro amante não é,
Que no florido primor,
Partida a flor, não é flor,
Partida a fé, não é fé.
Amor é Sol no sujeito
Que belos incêndios cria;
E se brilha um Sol no dia,
Um amor brilhe no peito.
Veneno amor é julgado;
Mate pois, quando o condeno,
Se um veneno, outro veneno,
Um cuidado, outro cuidado.
Há de ser no coração
Um, ou outro emprego belo,
Agrado sim, não desvelo,
Faísca sim, chama não.
599
Venero enfim, se avalio
Entre muitos um desejo,
Muitas damas no cortejo,
Ũa Anarda no alvedrio.
À ROSA
I
Inundações floridas de Amaltéia
Prodigamente Clóri derramava
E líquida em rocio a sombra feia
No fraudulento Bruto, o Sol brilhava:
Quando entre tanta flor, que Abril semeia,
Fidalgamente a rosa se adornava,
Ostentando por garbo repetido
De ouro o toucado, de âmbar o vestido.
II
Esta gala, que veste generosa,
Deve aos cândidos pés da Deusa amante,
E ficando no orvalho mais lustrosa,
Deve estimar da Aurora o mal constante:
De sorte que no prado fica a Rosa
Com desditas alheias arrogante,
Pois quando se entroniza brilhadora,
Sangue de Vênus tem, pranto de Aurora.
III
Quando esse Deus de raios aparece,
Agrado dando à vista, luz ao prado,
A Deidade das flores amanhece,
Ao prado dando luz, à vista agrado:
E quando a Primavera resplandece
Com gala verde, e brilhador toucado,
Fica sendo no adorno de verdores
Jóia esta flor, e gargantilha as flores.
IV
Em galharda altivez tanto se afina,
Que vestida de púrpura fermosa
Adulação se arroga de divina,
Desprezando o primor de majestosa:
600
Por Deidade do campo peregrina
Não lhe faltam perfumes de olorosa,
E quando Deusa dos jardins e aclamo,
Faz templo do rosal, altar do ramo.
V
Ave purpúrea no jardim lustroso
Soberbamente a considera o dia,
As verdes ervas são ninho frondoso,
Donde a fragrante adulação se cria:
Se respira do alento o deleitoso,
Se desprega da pompa a bizarria,
Forma em tanta beleza, em olor tanto
As folhas asas, a fragrância canto.
VI
Com plácidos requebros assistida
Do Zéfiro fecundo a Rosa amada,
Lhe dá lascivos beijos por querida,
E vermelha se faz de envergonhada:
Já se encalma com chama padecida,
Já respira com ânsia suspirada,
Oh como no jardim, quando se adora
Sente Zéfiro amor, ciúmes Flora!
VII
Como Lua no Céu entre as estrelas,
Campa fermosamente em resplandores
Entre as flores a Rosa, é Lua entre elas,
Brilhando o prado, Céu; astros, as flores:
Por vantagens se jacta horas mais belas,
Nem se escondem c'o sol os seus primores,
Se brilha a Lua; a Rosa vencer trata
Com raios de rubi raios de prata.
VIII
Mas ai, quão brevemente se assegura
A flor purpúrea no primor luzido!
Que não logre isenções a fermosura!
Que a morte de ũa flor rompa o vestido!
Oh da Rosa gentil mortal ventura!
Que logo morta está, quando há nascido,
Sendo o toucado do infeliz tesouro
Em berço de coral sepulcro de ouro.
601
IX
Se vivifica a grã, se olor expira,
Dando lisonja ao prado, ornato à fonte,
No doce alento, e bela grã se admira
De Sido inveja, emulação de Oronte:
Mas se vento aromático respira,
Mas se lhe pinta o luminoso Etonte
Da cor a sombra, passa num momento
Qual sombra a sombra, como vento, o vento.
X
Se abre a Rosa pomposo nascimento,
Se bebe a Rosa nacarada morte,
Se foi Sol no purpúreo luzimento,
Também se iguala Sol na breve sorte:
Se o Sol nasce, e padece o fim violento;
Nasce a Rosa, e padece o golpe forte,
De sorte que por morta, e por luzente
No Ocaso ocaso tem, no Oriente oriente.
XI
Se, Anarda, vibras na beleza ingrata
Raios de esquiva, de fermosa raios,
Adverte, adverte, que um rigor maltrata
Adulação de Abris, primor de Maios:
Ouve na flor, que desenganos trata,
As mudas vozes dos gentis desmaios;
Atente enfim teu néscio desvario,
Que a fermosura é flor, o tempo Estio.
XII
Não queiras, não, perder com cego engano
Dessas flores, que logras, a riqueza,
Vê pois que cada idade por teu dano
É sucessivo Inverno da beleza:
Aprende cedo, Anarda, o desengano
Desta ufana, já morta, gentileza,
Não queiras, não, perder em teu desgosto
Do Dezembro da idade o Abril do rosto.
CRIOU DEUS NA CELESTE ARQUITETURA
602
Criou Deus na celeste Arquitetura
Dois luzeiros com giro cuidadoso,
Um que presida ao dia luminoso,
Outro que presidisse à noite escura.
Dois luzeiros também de igual ventura
Criou na terra o Artífice piedoso;
Um, que foi da Escritura Sol famoso,
Outro, Planeta da ignorância impura.
Brilhando juntos um e outro luzeiro,
Com sábia discrição, siso profundo,
Não podia um viver sem companheiro.
Sucedeu justamente neste Mundo,
Que fenecendo aquele por primeiro,
Este também feneça por segundo.
ESSA DE ILUSTRE MÁQUINA BELEZA
Essa de ilustre máquina beleza,
Que o tempo goza, e contra o tempo atura;
É soberbo primor da arquitetura,
É pródigo milagre da grandeza.
Fadiga da arte foi, que a Natureza
Inveja de seus brios mal segura;
E cada pedra, que nos Arcos dura,
É língua muda da fatal empresa.
Não teme da fortuna os vários cortes,
Nem do tempo os discursos por errantes,
Arma-se firme contra as leis das sortes.
Que nas colunas, e Arcos elegantes,
Contra a fortuna tem colunas fortes,
Contra o tempo fabrica Arcos triunfantes.
SONO POUCO PERMANENTE
Quando, Anarda, o sono brando
Quer suspender meus tormentos,
603
Condenando os sentimentos,
Os desvelos embargando;
Dura pouco, porque quando
Cuido que em belo arrebol
Estou vendo teu farol,
Foge o sono à cova fria;
Porque lhe amanhece o dia,
Porque lhe aparece o Sol.
ESPERANÇAS SEM LOGRO
Se contra minha sorte enfim pelejo,
Que quereis, esperança magoada?
Se não vejo de Anarda o bem que agrada,
Não procureis o bem do que não vejo.
Quando frustrar-se o logro vos prevejo,
Sempre a ventura espero dilatada;
Não vejo o bem, não vejo a glória amada,
Mas que muito, se é cego o meu desejo?
Enfermais do temor, e não se alcança
O que sem cura quer vossa loucura;
E morrereis de vossa confiança.
Esperança não sois, porém se apura,
Que só nisto sereis certa esperança:
Em ser falsa esperança da ventura.
ROSA, E ANARDA
Rosa da fermosura, Anarda bela
Igualmente se ostenta como a rosa;
Anarda mais que as flores é fermosa,
Mais fermosa que as flores brilha aquela.
A rosa com espinhos se desvela,
Arma-se Anarda espinhos de impiedosa;
Na fronte Anarda tem púrpura airosa,
A rosa é dos jardins purpúrea estrela.
Brota o carmim da rosa doce alento,
604
Respira olor de Anarda o carmim breve,
Ambas dos olhos são contentamento:
Mas esta diferença Anarda teve:
Que a rosa deve ao Sol seu luzimento,
O Sol seu luzimento a Anarda deve.
NAUFRÁGIO AMOROSO
Querendo meu cuidado
Navegar venturoso,
Foi logo soçobrado
Em naufrágio amoroso;
E foram teus desdéns contrário vento,
Sendo baixo o meu vil merecimento.
605
MÁRIO ANDRADE
(1893—1945)
LITERATURA BRASILEIRA
MOÇA LINDA BEM TRATADA
Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.
Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.
Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...
Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.
ACEITARÁS O AMOR COMO EU O ENCARO
Aceitarás o amor como eu o encaro?...
606
...Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.
Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.
Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.
Que grandeza... a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.
RETRATO DE NOVEMBRO
I
Os trabalhadores protestam na rua, Excelência.
Não me incomodam!
Como?!
Não vou sair para essas bandas!
Querem avistar-se com Vossa Excelência.
Não os conheço!
Já estão a fazer barulho.
Manda-os embora!
Não abalam.
Manda-os calar!
Não nos escutam, Excelência.
Bom, somos um país livre!
Mas a gritaria vai-nos incomodar.
Fecha as portas e as janelas!
Mesmo assim os ouviremos.
Tapa os ouvidos!
Também não resulta, Excelência.
Então, ignora-os!
Como?!
Finge que não existem!
Vai ser difícil, Excelência.
Mas não impossível!
607
II
E os massacres no Alentejo, Excelência?
Oh nada de extraordinário a assinalar
Senão os coveiros já teriam reclamado
Horas suplementares!
POEMAS DA AMIGA
A tarde se deitava nos meus olhos
E a fuga da hora me entregava abril,
Um sabor familiar de até-logo criava
Um ar, e, não sei porque, te percebi.
Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança.
Estavas longe doce amiga e só vi no perfil da cidade
O arcanjo forte do arranha-céu cor de rosa,
Mexendo asas azuis dentro da tarde.
Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus amigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.
Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.
Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia
Sereia.
O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...
608
Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...
As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.
CANTAM PÁSSAROS EXÓTICOS NO TEU PÚBIS
Cantam pássaros exóticos no teu púbis.
Como espelhar graficamente
uma melodia de sonho?
Cantam pássaros exóticos no teu púbis.
Como definir a breve vertigem
nos momentos de lucidez?
Cantam pássaros exóticos no teu púbis.
Como descrever o frêmito singular
com as palavras banais de todos os dias?
Cantam pássaros exóticos no teu púbis.
Cantam. Ou imagino-os.
Oiço-os. Ou adivinho-os.
Quantas decepções cabem no abismo
que separa A Sensação de A Palavra?
Cantam pássaros exóticos no teu púbis.
Para nós ambos, no vórtice do delírio.
Como ouvi-los sem ser a deliberar?
E como delirar sem os ouvir?
Cantam pássaros exóticos no teu púbis.
O êxtase está além do abraço desesperado
além dos copos do peito além da sanguessuga
labiar além das ancas convulsivas além
dos rostos de mármore esbraseados
Cantam pássaros exóticos no teu púbis.
609
E só ouvindo-os nos amamos como sonhamos.
DESCOBRIMENTO
Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.
Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu.
ACEITARÁS O AMOR COMO EU O ENCARO?
...Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.
Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.
Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.
Que grandeza... a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.
A SERRA DO ROLA-MOÇA
610
A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não...
Eles eram do outro lado,
Vieram na vila casar.
E atravessaram a serra,
O noivo com a noiva dele
Cada qual no seu cavalo.
Antes que chegasse a noite
Se lembraram de voltar.
Disseram adeus pra todos
E se puserem de novo
Pelos atalhos da serra
Cada qual no seu cavalo.
Os dois estavam felizes,
Na altura tudo era paz.
Pelos caminhos estreitos
Ele na frente, ela atrás.
E riam. Como eles riam!
Riam até sem razão.
A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não.
As tribos rubras da tarde
Rapidamente fugiam
E apressadas se escondiam
Lá embaixo nos socavões,
Temendo a noite que vinha.
Porém os dois continuavam
Cada qual no seu cavalo,
E riam. Como eles riam!
E os risos também casavam
Com as risadas dos cascalhos,
Que pulando levianinhos
Da vereda se soltavam,
Buscando o despenhadeiro.
Ali, Fortuna inviolável!
O casco pisara em falso.
Dão noiva e cavalo um salto
Precipitados no abismo.
611
Nem o baque se escutou.
Faz um silêncio de morte,
Na altura tudo era paz...
Chicoteado o seu cavalo,
No vão do despenhadeiro
O noivo se despenhou.
E a Serra do Rola-Moça
Rola-Moça se chamou.
ODE AO BURGUÊS
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi!
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
— Um colar... —Conto e quinhentos!!!
Más nós morremos de fome!"
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
612
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!...
LUNDU DO ESCRITOR DIFÍCIL
Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente enquizila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar duma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez.
Cortina de brim caipora,
Com teia caranguejeira
E enfeite ruim de caipira,
Fale fala brasileira
Que você enxerga bonito
Tanta luz nesta capoeira
Tal-e-qual numa gupiara.
Misturo tudo num saco,
Mas gaúcho maranhense
Que pára no Mato Grosso,
Bate este angu de caroço
Ver sopa de caruru;
A vida é mesmo um buraco,
Bobo é quem não é tatu!
613
Eu sou um escritor difícil,
Porém culpa de quem é!...
Todo difícil é fácil,
Abasta a gente saber.
Bajé, pixé, chué, ôh "xavié"
De tão fácil virou fóssil,
O difícil é aprender!
Virtude de urubutinga
De enxergar tudo de longe!
Não carece vestir tanga
Pra penetrar meu caçanje!
Você sabe o francês "singe"
Mas não sabe o que é guariba?
— Pois é macaco, seu mano,
Que só sabe o que é da estranja.
614
MÁRIO BEIRÃO
(1890—1965)
LITERATURA PORTUGUESA
CINTRA
A Teixeira de Pascoaes
Oh Pena, altar de nuvens sobre a Serra,
Paço de sombras reais, feito em granito
E séculos de Azul, — olhando a Terra
Das janelas que ogivam o Infinito!
Oh vôo das florestas que se esfolham,
Tontas de céus, fragrância!
Oh tardas sombras roxas da Distância!
Ruínas — noite donde as águias olham!
Oh cedros esmanchando as ramarias,
Afofando penumbras!
Crepúsculos longínquos de arcarias!
Água que, ao pôr-do-sol, és múrmura e deslumbras,
Que deslumbras meus olhos, meus ouvidos,
E, incerta de gemidos,
Vais esculpindo a diáfanos lavores
As pedras onde o sol desmaia e verte cores!
Oh paisagem do céu! Cintra! Visão suprema!
Arquitetura dos acordes dum poema!
Em ti as mãos do Vento em fúria batalharam!
O Gênio e a Lenda para alem te perpetuaram!
615
Oh Graça que desceste à Terra por encanto,
Granitos que, ao luar, sois brancos alabastros,
Ramos verdes, à noite, onde estremecem astros,
Meu canto vem de vós, é para vós meu canto!
Fraguedos, serrania,
Do alto de vós olhando,
Tolhidos de invernia,
Alados de neblinas!
Nos longes acenais, notívagos, em bando,
Franjas, espuma vaga de cortinas,
Aéreas e nevadas,
Farrapos onde a Noite esconde as madrugadas…
Oh figuras dum drama subterrâneo,
Gélidas do pavor das sombras que repassam!
Fragas, espectros vãos, que a um rasgo momentâneo,
O vento esculpe e os raios despedaçam!
E ao longe o Mar é um canto de epopéia
Memorando naufrágios…
Profundo ferve, anseia,
Lívido estagna, e sonha, e pára no caminho!
Eis que numa revolta, amargo de presságios,
Lavra de espuma e som visões em desalinho,
Rasga o pano da Noite e, monstro de águas, uiva,
E tomba doido a rir, sobre os areais, exausto…
A areia escalda ao sol… Ígnea de sede ruiva,
Mina-se de água e Azul, absorve o mar num hausto!
Oh Cintra, rente ao céu, o Mar te afaga,
Floresces em murmúrio, em hálitos de vaga…
De ti eu dominei, varei os horizontes,
Estou cansado já, fui Júpiter na Terra!
Nas tuas fontes,
Onde um crepúsculo erra
E o ar é de abandono,
Que eu fosse o musgo em sombra verdecendo,
A voz de longe e Outono,
Baixinho fenecendo…
616
Fosse a humildade!
Os úmidos recantos
Onde a sombra se esquece, incerta de saudade,
E a chuva caiem prantos…
Fosse o tronco musgoso, enverrugado,
Onde — lembrança eterna,
Um coração se vê de setas trespassado!
Fosse a Elegia do Ar quando o Ar inverna,
Rumores de água, queixas…
…Mansa, como rezando,
" — Porque me deixas!"
Como que a Sombra diz no seu silêncio frio
Á fonte de esquecida memorando,
Lucilante de lágrimas a fio…
Ah, pudesse eu viver pela espessura
Dos bosques rumorosos,
Ás horas em que a Sombra as coisas transfigura!
Ser o Outono, o crepúsculo, a harmonia
Das aves cuja voz é um hálito de luz
De poentes que morrem de saudosos!
Vestir os troncos nus,
Chorar melancolia…
Á tarde quando a luz penumbras vem rezando
A Forma é Aparição,
Há lágrimas de Azul as almas orvalhando,
A Cor é emanação…
Tudo se transfigura:
Há paisagens, cenários pela Altura!
Eu deixo de existir
Para mais dentro em mim viver, sentir…
É a hora transcendente
Em que o Passado surge evocador do escuro,
E, sôfrego, o Presente
Dissolve a nevoa do Futuro.
Oh Pena ao alto erguida,
Recortada na sombra — aza de águia perdida,
617
Nas rochas esfarpando-se!
Nuvem numa outra nuvem evolando-se…
Oh Cintra, ao poente, a fumos de viuvez,
Subindo num adeus,
Quimérica de longe a Terra já não vês:
É uma ânsia de Infinito a que te abrasa,
Oh verde forma de aza
Com frêmitos de céus!
Oh Cintra és já Distância
Na comunhão dos astros!
Teus granitos transformam-se: alabastros,
De brancos a rezar… Ideal sonância!
E, eu que vivi em ti, rezo contigo,
Eu, o incerto, misérrimo mendigo,
Trago nos olhos tristes pedrarias,
Astros radiando pálidos fulgores,
Desmaios de harmonias,
No concerto mais intimo das cores.
E a Noite escuta, empalidece,
Um murmúrio de voz esvoaça numa prece:
Flébil, o ar magoando,
Idílios suspirando,
Duma estrela que nasce ao pôr-do-sol
O canto chora… lágrimas sem fim!
A alma dum rouxinol
Sonha com Bernardim.
E desfez-se, apagou-se
Em ondas de saudade — o olor mais doce…
Súbito, heróico de saudades,
Um canto acorda, funde o bronze das Idades!
Oh canto pela noite, em prantos marulhado,
Memória em cujo olor há mortas primaveras,
Pelos astros, o Espaço cadenciado,
Ungido pela benção das Esferas,
Falas da minha raça, dos profetas
Invectivando o Mar,
618
De mouros pela areia, cujas setas
Eram menos mortíferas que o olhar!
Oh ritmo das oitavas
Nas veias do meu sangue a tumultuar!
Oh lira de Camões, acordes de ondas bravas!
E, brônzea a voz sucumbe: os céus ficam arfando,
Reboando, ecoando…
Mas a candura, a graça do sorriso,
De quem vive a morrer,
E tem no olhar de magoa o Paraíso,
E Deus no coração sem o saber,
Desfolham-se num hálito de outono
Pelos céus, pelas almas de abandono…
Oh moreno cantor a ouvir de bruços,
Das góticas ogivas merencórias,
Musgosas de saudade,
Ecos duma outra Idade,
Vozes de viola zoando moribundas,
Morrendo gemebundas;
Crepúsculo de som, penumbra de memórias…
Oh Lusíada absorto
Na quimera do Alem! Infante é tudo morto,
De que serve esperar!
Falas de longe: a Morte diz à Vida
A sua grande, eterna despedida…
Em ti, meu pálido Anto,
Há mortos a falar!
Oh moribunda voz em lágrimas de canto…
E eis-me perdido e só, como um ceguinho,
Tateio céus de extática harmonia,
E vejo Deus em mim a ungir-me de carinho,
E sou onda de luz em melodia…
Morri para viver alem da Morte:
Meu negro olhar agora é azul-celeste,
619
Ouço na minha lira o meu transporte,
Senhor! Bendita a morte que me deste!
Oh floresta! Oh granitos revestidos
De auroras e crepúsculos e Lenda:
Que o som da minha lira a vós ascenda!
Vossa escultura de intima harmonia
Seja acordes em echos desferidos,
Eternidade, Azul, melancolia…
Quero inclinar a fronte,
Quero dormir ouvindo de Além-Mundo
Meu carme gemebundo
Rasgando nuvens, céus, aladamente,
E, baixinho, humaníssimo, contente,
Umedecendo ressequida fonte…
E eis-me esculpindo formas de florestas,
Eis-me gravando a som um tronco esquálido,
Abrindo nas prisões esguias frestas,
Por onde o luar se escoa muito pálido…
Eis-me gravado a som, eis-me esculpindo
Oh Cintra o teu perfume pelo Outono…
Eis-me sagrado e lindo,
Rasgando a luz a noite do meu sono…
E vivo a Eternidade no meu canto!
Atônito de mim, revolvo mundos,
Sou mágico de encanto,
Erro pelos abismos mais profundos,
E trago auroras rútilas nos olhos
E harmonizo de paz os horizontes!
Sou melodia úmida do mar
Rezada nos escolhos…
E, ao vir do Outono, incerto de Distância,
Saudoso olor memora a minha infância,
Vou ausente de mim por mim a andar…
Tudo o que eu fui acorda! É água viva…
Cintra, vagueio em ti! Nas tuas fontes
Minha saudade em lágrimas deriva,
E o Outono é o meu fantasma a recordar!
620
MÁRIO DE LIMA
(1886—1936)
LITERATURA BRASILEIRA
VIRGEM AUXILIADORA
Minha Nossa Senhora Auxiliadora,
Mãe de misericórdia e de perdão,
Sê, por piedade, a minha protetora
nas amarguras deste mundo vão.
Em minha alma teus zelos entesoura...
Nunca olvides meu pobre coração...
E fulge, sempre, ó luz consoladora,
em meio às sombras que o envolvendo estão.
Ó milagrosa Virgem de D. Bosco,
ouve a súplica humilde, o verbo tosco,
de um frágil pecador, mísero réu...
Acompanha na vida o meu fadário...
E seja, à hora da morte, o teu rosário,
a escada augusta que me leve ao céu!
PÓLOS
Há dois pólos na vida, ambos sinistros, ambos
possuindo a gelidez extrema da Sibéria:
o Luxo, a sanguessuga insaciada; e, em molambos,
o rebotalho vil, famulento - a Miséria.
621
Não sei quem seja mais miserável: se os bambos,
broncos vultos que dão, a troco de uma féria
mesquinha, anos de vida, ou se os tipos estrambos
que nadam no ouro desde o berço à urna funérea...
Entre esses pólos vaga a gente que tem fome
e pede mais amor, mais justiça lhe assista...
E tirita de frio e a lidar se consome...
Ai dos pequenos! Ai dos vencidos! À vista
dessa desigualdade imoral e sem nome,
rompe de cada peito um grito socialista.
PRIMAVERA
Vem, Primavera! Abre o sendal de flores na terra,
Estende o pálio azul no espaço,
lava num beijo o firmamento baço,
traz a magia das luzes e das cores!
Com teus perfumes entontecedores, aromatiza as balsas.
Passo a passo acorda os ninhos
e de teu regaço
lança a mãos plenas rosas, esplendores.
A natureza em júbilo te espera:
aclamando-te os pássaros bisonhos
já se põem a cantar, Mãe da quimera.
E em minh'alma, entre frêmitos risonhos,
em febril disparada,
ó Primavera,
passa a galope o batalhão dos sonhos...
622
MARIA FIRMINA DOS REIS
(1825—1917)
LITERATURA BRASILEIRA
O MEU DESEJO
Na hora em que vibrou a mais sensível
Corda de tu’alma – a da saudade,
Deus mandou-te, poeta, um alaúde,
E disse: Canta amor na soledade.
Escuta a voz do céu, – eia, cantor,
Desfere um canto de infinito amor.
Canta os extremos duma mãe querida,
Que te idolatra, que te adora tanto!
Canta das meigas, das gentis irmãs,
O ledo riso de celeste encanto;
E ao velho pai, que tanto amor te deu,
Grato oferece-lhe o alaúde teu.
E a liberdade, – oh! poeta, – canta,
Que fora o mundo a continuar nas trevas?
Sem ela as letras não teriam vida,
menos seriam que no chão as relvas:
Toma por timbre liberdade, e glória,
Teu nome um dia viverá na história.
Canta, poeta, no alaúde teu,
Ternos suspiros da chorosa amante;
Canta teu berço de saudade infinda,
Funda lembrança de quem está distante:
623
Afina as cordas de gentis primores,
Dá-nos teus cantos trescalando odores.
Canta do exílio com melífluo acento,
Como Davi a recordar saudade;
Embora ao riso se misture o pranto;
Embora gemas em cruel soidade...
Canta, poeta, – teu cantar assim,
Há de ser belo enlevador enfim.
Nos teus harpejos juvenil poeta,
Canta as grandezas que se encerram em Deus,
Do sol o disco, – a merencória lua,
Mimosos astros a fulgir nos céus;
Canta o Cordeiro, que gemeu na Cruz,
Raio infinito de esplendente luz.
Canta, poeta, teu cantar singelo,
Meigo, sereno com um riso d’anjos;
Canta a natura, a primavera, as flores,
Canta a mulher a semelhar arcanjos.
Que Deus envia à desolada terra,
Bálsamo santo, que em seu seio encerra.
Canta, poeta, a liberdade, – canta.
Que fora o mundo sem fanal tão grato...
Anjo baixado da celeste altura,
Que espanca as trevas deste mundo ingrato.
Oh! sim, poeta, liberdade, e glória
Toma por timbre, e viverás na história.
***
Eu não te ordeno, te peço,
Não é querer, é desejo;
São estes meus votos – sim.
Nem outra cousa eu almejo.
E que mais posso eu querer?
Ver-te Camões, Dante ou Milton,
Ver-te poeta – e morrer.
AH! NÃO POSSO
624
Se uma frase se pudesse
Do meu peito destacar;
Uma frase misteriosa
Como o gemido do mar,
Em noite erma, e saudosa,
De meigo, e doce luar.
Ah! se pudesse!... mas muda
Sou, por lei, que me impõe Deus!
Essa frase maga encerra,
Resume os afetos meus;
Exprime o gozo dos anjos,
Extremos puros dos céus.
Entretanto, ela é meu sonho,
Meu ideal inda é ela;
Menos a vida eu amara
Embora fosse ela bela.
Como rubro diamante,
Sob finíssima tela.
Se dizê-la é meu empenho,
Reprimi-la é meu dever:
Se se escapar dos meus lábios,
Oh! Deus, - fazei-me morrer!
Que eu pronunciando-a não posso
Mais sobre a terra viver.
CONFISSÃO
Embalde, te juro, quisera fugir-te,
Negar-te os extremos de ardente paixão:
Embalde, quisera dizer-te: - não sinto
Prender-me à existência profunda afeição.
Embalde! é loucura. Se penso um momento,
Se juro ofendida meus ferros quebrar:
Rebelde meu peito, mais ama querer-te,
Meu peito mais ama de amor delirar.
E as longas vigílias, - e os negros fantasmas,
Que os sonhos povoam, se intento dormir,
Se ameigam aos encantos, que tu me despertas,
Se posso a teu lado venturas fruir.
625
E as dores no peito dormentes se acalmam.
E eu julgo teu riso credor de um favor:
E eu sinto minh'alma de novo exaltar-se,
Rendida aos sublimes mistérios do amor.
Não digas, é crime - que amar-te não sei,
Que fria te nego meus doces extremos...
Eu amo adorar-te melhor do que a vida,
melhor que a existência que tanto queremos.
Deixara eu de amar-te, quisera um momento,
Que a vida eu deixara também de gozar!
Delírio, ou loucura - sou cega em querer-te,
Sou louca... perdida, só sei te adorar.
SEU NOME
Seu nome! em repeti-lo a planta, a erva,
A fonte, a solidão, o mar, a brisa
Meu peito se extasia!
Seu nome é meu alento, é-me deleite;
Seu nome, se o repito, é dúlia nota
De infinda melodia.
Seu nome! vejo-o escrito em letras d'ouro
No azul sideral à noite quando
Medito à beira-mar:
E sobre as mansas águas debruçada,
Melancólica, e bela eu vejo a lua,
Na praia a se mirar.
Seu nome! é minha glória, é meu porvir,
Minha esperança, e ambição é ele,
Meu sonho, meu amor!
Seu nome afina as cordas de minh'harpa,
Exalta a minha mente, e a embriaga
De poético odor.
Seu nome! embora vague esta minha alma
Em páramos desertos, - ou medite
Em bronca solidão:
Seu nome é minha idéia - em vão tentara
Roubar-mo alguém do peito - em vão - repito,
Seu nome é meu condão.
626
Quando baixar benéfico a meu leito,
Esse anjo de deus, pálido, e triste
Amigo derradeiro.
No seu último arcar, no extremo alento,
Há de seu nome pronunciar meus lábios,
Seu nome todo inteiro!...
A UMA AMIGA
Eu a vi - gentil mimosa,
Os lábios da cor da rosa,
A voz um hino de amor!
Eu a vi, lânguida, e bela:
E ele a rever-se nela:
Ele colibri - ela flor.
Tinha a face reclinada
Sobre a débil mão nevada:
Era a flor à beira-rio.
A voz meiga, a voz fluente,
Era um arrulo cadente,
Era um vago murmúrio.
No langor dos olhos dela
Havia expressão tão bela,
Tão maga, tão sedutora,
Que eu mesmo julguei-a anjo,
Eloá, fada, ou arcanjo,
Ou nuvem núncia d'aurora.
Eu vi - o seio lhe arfava:
E ela... ela cismava,
Cismava no que lhe ouvia;
Não sei que frase era aquela:
Só ele falava a ela,
Só ela a frase entendia.
Eu tive tantos ciúmes!...
Teria dos próprios numes,
Se lhe falassem de amor.
Porque, querê-la - só eu.
Mas ela! - a outra ela deu
meigo riso encantador...
627
Ela esqueceu-se de mim
Por ele... por ele, enfim.
ELA!
(A pedido)
Ela! Quanto é bela, essa donzela,
A quem tenho rendido o coração!
A quem votei minh'alma, a quem meu peito
Num êxtase de amor vive sujeito...
Seu nome!... não - meus lábios não dirão!
Ela! minha estrela, viva e bela,
Que ameiga meu sofrer, minha aflição;
Que transmuda meu pranto em mago riso.
Que da terra me eleva ao paraíso...
Seu nome!... Oh! meus lábios não dirão!
Ela! virgem bela, tão singela
Como os anjos de deus. Ela... oh! não,
Jamais o saberá na terra alguém,
De meus lábios, o nome que ela tem...
Que esse nome meus lábios não dirão.
MEDITAÇÃO
(À minha querida irmã - Amália Augusta dos Reis)
Vejamos pois esta deserta praia,
Que a meiga lua a pratear começa,
Com seu silêncio se harmoniza esta alma,
Que verga ao peso de uma sorte avessa.
Oh! meditemos na soidão da terra,
Nas vastas ribas deste imenso mar;
Ao som do vento, que sussurra triste,
Por entre os leques do gentil palmar.
O sol nas trevas se envolveu, - mistérios
Encerra a noite, - ela compr'ende a dor;
Talvez o manto, que estendeu no bosque,
Encubra um peito que gemeu de amor.
E o mar na praia como liso ondeia,
628
gemendo triste, sem furor - com mágoas...
Também meditas, oh! salgado pego Também partilhas desta vida as frágoas?...
E a branca lua a divagar no céu,
Como uma virgem nas soidões da terra;
Que doce encanto tem seu meigo aspecto,
E tanto enlevo sua tristeza encerra!
Sim, meditemos... quem gemeu no bosque,
Onde a florzinha a perfumar cativa?
Seria o vento? Ele passando ergueu
Do tronco a copa sobranceira, altiva.
Passou. E agora sufocando a custo
Meu peito o doce palpitar do amor,
Delícias bebe desterrando o susto,
Que a noite incute a semear pavor.
E um deleite inda melhor que a vida,
langor, quebranto, ou sofrimento ou dor;
Um quê de afetos meditando eu sinto,
Na erma noite, a me exaltar de amor.
Então a mente a divagar começa,
Criando afouta seu sonhado amor;
Zombando altiva de uma sorte avessa,
Que oprime a vida com fatal rigor.
E nessa hora a gotejar meu pranto,
Nas ermas ribas de saudoso mar,
Vagando a mente nesse doce encanto,
Dá vida ao ente, que criei p'ra amar.
E a doce imagem vaporosa, e bela,
Que a mente erguera, engrinaldou de amor,
Ergue-se vaga, melindrosa, e grata
Como fragrância de mimosa flor.
E o peito a envolve de extremoso afeto,
E dá-lhe a vida, que lhe dera Deus;
Ergue-lhe altares - lhe engrinalda a fronte,
Rende-lhe cultos, que só dera aos céus.
629
Colhe p'ra ela das roseiras belas,
Que aí cultiva - a mais singela flor:
E num suspiro vai depor-lhe as plantas,
Como oferenda - seu mimoso amor.
Mas, ah! somente a duração dum ai
Tem esse breve devanear da mente.
Volve-se a vida, que é só pranto, e dor,
E cessa o encanto do amoroso ente.
630
MARTINS FONTES
(1884—1927)
LITERATURA BRASILEIRA
MINHA MÃE
Beijo-te a mão, que sobre mim se espalma
Para me abençoar e proteger,
Teu puro amor o coração me acalma;
Provo a doçura do teu bem-querer.
Porque a mão te beijei, a minha palma
Olho, analiso, linha a linha, a ver
Se em mim descubro um traço de tua alma,
Se existe em mim a graça do teu ser.
E o M, gravado sobre a mão aberta,
Pela sua clareza, me desperta
Um grato enlevo, que jamais senti:
Quer dizer — Mãe! este M tão perfeito,
E, com certeza, em minha mão foi feito
Para, quando eu for bom, pensar em ti.
INOCÊNCIA
Criança ingênua, o dia inteiro,
com os meus caniços de taquara,
ficava eu, ao sol de então,
junto dos tanques, no terreiro,
soprando a espuma, leve e clara,
631
fazendo bolhas de sabão.
Corando a roupa, entre cantigas,
as lavadeiras, que passavam,
interrompiam a canção...
Riam-se as pobres raparigas,
vendo as imagens que brilhavam,
nas minhas bolhas de sabão.
Cresci. Sofri. Sonhando vivo.
E, homem e artista, ainda agora,
me apraz aquela distração...
E fico, às vezes, pensativo,
fazendo versos, como outrora
fazia bolhas de sabão.
E velho, um dia, de repente,
sem ter, de fato, sido nada,
pois tudo é apenas ilusão,
há de extinguir-se a alma inocente
que em mim fulgura, evaporada
como uma bolha de sabão.
SER PAULISTA
Ser paulista! é ser grande no passado
E inda maior nas glórias do presente!
E ser a imagem do Brasil sonhado,
E, ao mesmo tempo, do Brasil nascente.
Ser paulista! é morrer sacrificado
Por nossa terra e pela nossa gente!
É ter dó das fraquezas do soldado
Tendo horror à filáucia do tenente.
Ser paulista! é rezar pelo Evangelho
De Rui Barbosa — o sacrossanto velho
Civilista imortal de nossa fé.
Ser paulistal em brasão e em pergaminho
É ser traído e pelejar sozinho,
É ser vencido, mas cair de pé!
632
BALADA MADRIGALESCA
À moda clássica, ao sabor
da antiga métrica francesa,
venha brindar um rimador
a uma princesa portuguesa.
Fulgure a pedraria acesa
das rimas rútilas do ideal,
para eu cantar em Sua Alteza
a flor-de-lis de Portugal.
Há nos seus olhos o negror
das noites cheias de tristeza,
e o vivo e cálido esplendor
do sol de Nice ou de Veneza.
E a sua mão tem, com certeza,
o alvor da neve boreal:
É o lírio branco da nobreza,
a flor-de-lis de Portugal.
Pajem galante e trovador,
cumpro, encantado, a doce empresa
de demonstrar que numa flor
se espelha a sua gentileza.
E, com sutil delicadeza,
digo, ao findar o madrigal:
Dona Leonor é, na pureza,
a flor-de-lis de Portugal.
OTELO
Quem minha angústia suportar, prefira
a morte, redentora, à desventura
de não poder, nas vascas da loucura,
distinguir a verdade da mentira.
Infrene dúvida, implacável ira,
esta que me alucina e me tortura!
— Ter ciúmes da luz, formosa e pura,
do chão, da sombra e do ar que se respira!
Invejo a veste que te esconde! a espuma
633
que, beijando teu corpo, linha a linha,
toda do teu aroma se perfuma!
Amo! E o delírio desta dor mesquinha,
faz que eu deseje ser tu mesma, em suma,
para ter a certeza de que és minha!
CREPÚSCULO
Alada, corta o espaço uma estrela cadente.
As folhas fremem. Sopra o vento. A sombra avança.
Paira no ar um langor de mística esperança
E de doçura triste, inexprimivelmente.
À surdina da luz irrompe, de repente,
O coro vesperal das cigarras. E mansa,
E marmórea, no céu, curvo e claro, balança
Entre nuvens de opala, a concha do crescente.
Na alma, como na terra, a noite nasce. É quando,
Da recôndita paz das horas esquecidas,
Vão, ao luar da saudade, os sonhos acordando...
E, na torre do peito, em plácidas batidas,
Melancolicamente, o coração pulsando,
Plange o réquiem de amor das ilusões perdidas.
NOSCE TE IPSUM
Quem serei? Quem sou eu? Não me conheço
e tu, meu sósia, te conheces já?
Estudaste a tua alma pelo avesso,
tua mortalidade que será?
Nota-me bem. Feito do mesmo gesso,
que o mesmo em tudo sejas. Oxalá!
E, sendo assim, contigo me pareço,
e, o que és, comigo se parecerá.
Verás, a olhar-me, tua imagem cara,
que a face é minha, mas o rosto é teu,
e a exatez a aparência desmascara.
634
Relembrarás alguém que ontem morreu,
e, reencarnando em mim, hoje te encara,
sem saber quem tu és, ou quem sou eu.
635
NICOLAU TOLENTINO DE ALMEIDA
(1740—1811)
LITERATURA PORTUGUESA
QUINTILHAS
Oferecidas ao Ilustríssimo, e Excelentíssimo Senhor Conde de S. Lourenço.
Ante vós, Claro Senhor,
Que pondes os sãos cuidados
De bons estudos no amor,
E que d'homens aplicados
Sois o exemplo, e o protetor;
Levanto sem pejo a voz;
Que essa alma nunca despreza
O pouco que encontra em nós;
Não produz a Natureza
Muitos homens como vós;
Pois vi outrora amparado
O discreto, e doce Brito,
Triste moço, em flor cortado,
Que ia alevantando o espírito,
De vossas luzes guiado;
Pois na vida lhe adoçastes
De seu fado a má ventura,
E não vos envergonhastes,
Quando a fria sepultura
Com as lágrimas lhe honrastes;
Se os seus Versos sonorosos
Inda repetis com mágoa;
E pensamentos saudosos
Vos trazem aos olhos água,
Que os deixa, Senhor, formosos;
Hoje, outro triste vos faça
Nascer iguais sentimentos;
Com os vossos pés se abraça;
Não tem os mesmos talentos;
Mas tem a mesma desgraça;
636
Nascido em baixa pobreza,
Quis buscar uma Coluna,
Foi sempre baldada a empresa,
Achou ingrata a fortuna,
Inda mais, que a natureza.
Em vão paternal ternura
Com vivo zelo me assiste;
Foi trabalho sem ventura;
Crescia no Filho triste,
Com a idade, a desventura;
Das boas Artes no estudo
Bom Pai empenhar-me quis;
Traçava o velho sisudo
Que fosse um Filho feliz
Dos outros Filhos o escudo;
Foram seus intentos vãos;
Zombou desgraça importuna
Destes pensamentos sãos;
Para vencer a fortuna
Não há lágrimas, nem mãos;
Cortado então de agonias,
Só esperei ter ventura,
Quando envolto em cinzas frias
Escondesse a sepultura
Meu nome, e meus tristes dias;
E em quanto o vento forceja,
E no mar, que em flor rebenta,
Meu fraco lenho veleja,
Demando, em tanta tormenta,
Por porto a Casa de Angeja;
Surgi em lugar seguro,
Onde achei mil acolhidos;
Clareou o dia escuro;
E meus molhados vestidos
Pelas paredes penduro;
De meu fado a força dura
Foi um pouco enfraquecendo;
637
E ainda que em sombra escura,
Vem-me ao longe aparecendo
O bom rosto da Ventura;
Vossos Sobrinhos me dão
(Porque de meus males sabem)
Princípios de proteção;
Mandai-lhe que em mim acabem
Esta obra da sua mão.
Mandai, que apressem o passo,
Que inda longe a meta vejo,
Pois nas súplicas que faço,
Não se vence com desejo,
Vence-se á forca de braço;
Mandai, pois tendes direito,
Que o turvo mar arrostando,
À corrente ponham peito;
Falai, Senhor, que em falando,
O vosso mandado é feito.
Não vedes venal incenso
Por astuta mão queimado;
Falo, Senhor, como penso;
Eu sei quanto é respeitado
O Erudito São Lourenço;
Eu sei bem o alto conceito,
E as gerais estimações,
Que todos de vós tem feito;
Ouço ternas expressões,
Filhas de amor, e respeito;
Do bom Irmão, e Sobrinhos
Ouço tod'ora louvar-vos;
Ouço-lhes doces carinhos;
De poderem agradar-vos
Desejam achar caminhos;
Vosso Irmão, e pregoeiro
Ordena, como sisudo,
Ao Ilustre Neto, e Herdeiro,
638
Que das Ciências no estudo
Vai dar o passo primeiro,
Se encoste a vós, sem desvio,
Qual ao Choupo Hera silvestre;
Que em Artes, virtude, e brio,
Mais, do que as regras do Mestre,
Siga os ditames do Tio;
Com que gosto ouço, e contemplo,
Dizer-lhe Se ao bem te inclinas,
Segue-o no estudo, e no Templo;
Ele te dê as doutrinas;
Ele te sirva de Exemplo.
Mas sigo inútil empresa,
Pois sabeis quais são seus peitos,
Mistura-se esta fineza
Com os sagrados direitos
Do sangue, e da natureza;
Todo o mundo, em vosso abono,
Põe na boca os corações,
E deles vos chama dono;
Ouço mil aclamações
Desde a plebe até ao Trono;
A geral estimação
Nos arma de autoridade;
Vinde pôr nesta obra a mão,
E dai-me felicidade,
Como me dais instrução;
Sabeis a fundo, e de cor,
Tudo quanto há bom, escrito;
Juntai extremos, Senhor;
Ao homem mais erudito,
Juntai o mais benfeitor.
Pois sabeis da Antiguidade
Prosas sãs, e sã poesia,
Deveis sentir mais piedade;
Quem tem mais filosofia,
Vê melhor a humanidade:
639
Que eu nesta fresca espessura,
Entre estes Louros sagrados,
Sentado sobre a verdura,
Cantarei Versos limados
A quem me fez ter ventura.
Deixarei em mil letreiros
O vosso Nome entalhado
Nos troncos destes Loureiros;
Possa ele ser respeitado
Do negro vento, e chuveiros;
Ramos sobre ele estendendo,
Dafne no seu peito o tome;
E eu, doces hinos tecendo,
Verei ir o tronco, e o Nome
Té ás Estrelas crescendo.
640
OLAVO BILAC
(1865—1918)
LITERATURA BRASILEIRA
OUVIR ESTRELAS
Ora (direis) ouvir estrelas!
Certo, perdeste o senso!
E eu vos direi, no entanto
Que, para ouvi-las,
muitas vezes desperto
E abro as janelas, pálido de espanto
E conversamos toda a noite,
enquanto a Via-Láctea, como um pálio aberto,
Cintila.
E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas?
Que sentido tem o que dizem,
quando estão contigo? "
E eu vos direi:
"Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas
UM BEIJO
641
Foste o beijo melhor da minha vida,
ou talvez o pior...Glória e tormento,
contigo à luz subi do firmamento,
contigo fui pela infernal descida!
Morreste, e o meu desejo não te olvida:
queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
e do teu gosto amargo me alimento,
e rolo-te na boca malferida.
Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo,
batismo e extrema-unção, naquele instante
por que, feliz, eu não morri contigo?
Sinto-me o ardor, e o crepitar te escuto,
beijo divino! e anseio delirante,
na perpétua saudade de um minuto...
VIA LÁCTEA
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda a noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e entender estrelas".
MALDIÇÃO
Se por vinte anos, nesta furna escura,
642
Deixei dormir a minha maldição,
_ Hoje, velha e cansada da amargura,
Minha alma se abrirá como um vulcão.
E, em torrentes de cólera e loucura,
Sobre a tua cabeça ferverão
Vinte anos de silêncio e de tortura,
Vinte anos de agonia e solidão...
Maldita sejas pelo ideal perdido!
Pelo mal que fizeste sem querer!
Pelo amor que morreu sem ter nascido!
Pelas horas vividas sem prazer!
Pela tristeza do que eu tenho sido!
Pelo esplendor do que eu deixei de ser!...
VELHAS ÁRVORES
Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores moças, mais amigas,
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...
O homem, a fera e o inseto, à sombra delas
Vivem, livres da fome e de fadigas:
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.
Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo. Envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem,
Na glória de alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!
O SONHO
Quantas vezes, em sonho, as asas da saudade
Solto para onde estás, e fico de ti perto!
Como, depois do sonho, é triste a realidade!
Como tudo, sem ti, fica depois deserto!
Sonho... Minha alma voa. O ar gorjeia e soluça.
Noite... A amplidão se estende, iluminada e calma:
643
De cada estrela de ouro um anjo se debruça,
E abre o olhar espantado, ao ver passar minha alma.
Há por tudo a alegria e o rumor de um noivado.
Em torno a cada ninho anda bailando uma asa.
E, como sobre um leito um alvo cortinado,
Alva, a luz do luar cai sobre a tua casa.
Porém, subitamente, um relâmpago corta
Todo o espaço... O rumor de um salmo se levanta
E, sorrindo, serena, apareces à porta,
Como numa moldura a imagem de uma Santa...
CRIAÇÃO
Há no amor um momento de grandeza,
que é de inconsciência e de êxtase bendito:
os dois corpos são toda a Natureza,
as duas almas são todo o Infinito.
Um mistério de força e de surpresa!
Estala o coração da terra, aflito;
rasgá-se em luz fecunda a esfera acesa,
e de todos os astros rompe um grito.
Deus transmite o seu hálito aos amantes;
cada beijo é a sanção dos Sete Dias,
e a Gênese fulgura em cada abraço;
porque, entre as duas bocas soluçantes,
rola todo o Universo, em harmonias
e em glorificações, enchendo o espaço!
RESPOSTAS NA SOMBRA
"Sofro... Vejo envasado em desespero e lama
Todo o antigo fulgor, que tive na alma boa;
Abandona-me a glória; a ambição me atraiçoa;
Que fazer, para ser como os felizes?"
- Ama!
"Amei... Mas tive a cruz, os cravos, a coroa
644
De espinhos, e o desdém que humilha, e o dó que infama;
Calcinou-me a irrisão na destruidora chama;
Padeço! Que fazer, para ser bom?"
- Perdoa!
"Perdoei... Mas outra vez, sobre o perdão e a prece,
Tive o opróbrio; e outra vez, sobre a piedade, a injúria;
Desvairo! Que fazer, para o consolo?"
- Esquece!
"Mas lembro... Em sangue e fel, o coração me escorre:
Ranjo os dentes, remordo os punhos, rujo em fúria...
Odeio! Que fazer, para a vingança?"
- Morre!
O PÁSSARO CATIVO
Armas, num galho de árvore, o alçapão.
E, em breve, uma avezinha descuidada, batendo as asas cai na escravidão.
Dás-lhe então, por esplêndida morada, a gaiola dourada.
Dás-lhe alpiste, e água fresca, e ovos, e tudo.
Por que é que, tendo tudo, há de ficar o passarinho
mudo, arrepiado e triste, sem cantar?
É que, criança, os pássaros não falam.
Só gorgeando a sua dor exalam, sem que os homens os possam entender.
Se os pássaros falassem,
talvez os teus ouvidos escutassem este cativo pássaro dizer:
"Não quero o teu alpiste!
Gosto mais do alimento que procuro na mata livre em que a voar me viste.
Tenho água fresca num recanto escuro.
Da selva em que nasci; da mata entre os verdores,
tenho frutos e flores, sem precisar de ti!
Não quero a tua esplêndida gaiola!
Pois nenhuma riqueza me consola de haver perdido aquilo que perdi...
645
Prefiro o ninho humilde, construído de folhas secas, plácido, e escondido.
Entre os galhos das árvores amigas...
Solta-me ao vento e ao sol!
Com que direito à escravidão me obrigas?
Quero saudar as pompas do arrebol!
Quero, ao cair da tarde, entoar minhas tristíssimas cantigas!
Por que me prendes? Solta-me, covarde!
Deus me deu por gaiola a imensidade!
Não me roubes a minha liberdade...
QUERO VOAR! VOAR!..."
Estas coisas o pássaro diria, se pudesse falar.
E a tua alma, criança, tremeria, vendo tanta aflição.
E a tua mão, tremendo, lhe abriria a porta da prisão...
DUALISMO
Não és bom, nem és mau: és triste e humano...
Vives ansiando, em maldições e preces,
Como se, a arder, no coração tivesses
O tumulto e o clamor de um largo oceano.
Pobre, no bem como no mal, padeces;
E, rolando num vórtice vesano,
Oscilas entre a crença e o desengano,
Entre esperanças e desinteresses.
Capaz de horrores e de ações sublimes,
Não ficas das virtudes satisfeito,
Nem te arrependes, infeliz, dos crimes:
E, no perpétuo ideal que te devora,
Residem juntamente no teu peito
Um demônio que ruge e um deus que chora.
646
PAULO SETÚBAL
(1893—1937)
LITERATURA BRASILEIRA
A FAZENDA
Ao meu querido Laerte
Seis horas... Salto do leito.
Que céu azul! Que bom ar!
Ai, como eu sinto no peito,
Moço, vivo, satisfeito,
O coração a cantar!
No meu quarto, alegre e claro,
Há rosas e girassóis.
Eu, com enlevo, reparo
No mínimo do seu preparo,
Na alvura dos seus lençóis.
Que doce encanto, e que graça,
Nesta simpleza aldeã,
Têm, sobre os vãos da vidraça,
Leves cortinas de cassa,
Bailando ao sol da manhã!
E da florida janela
Que eu abro de par em par,
- Verde painel, larga tela,
Da cor mais viva e mais bela,
Desdobra-se ao meu olhar!
647
A manhã, que é fresca e branda,
A rir, gloriosa e feliz,
Doura a casa veneranda,
Com sua quieta varanda
Cheirosa de bogaris...
Um renque de altos coqueiros
Circunda o velho pomar;
Toscos, enormes tabuleiros,
Ficam em frente os terreiros,
Com grãos em coco a secar.
Num quadro, curvo e sozinho,
Um pobre negro, o Bié,
A passo, devagarinho,
Com seu rumoroso ancinho,
Lá vai, rodando o café...
Depois - a máquina, a tulha,
O alpendre, o farto paiol:
Ah, como a roça se orgulha
De ver subir a fagulha
Que lança a máquina ao sol!
Branca, entre tufos, a escola,
Na estrada logo se vê:
Aí, nessa casinhola,
A filha de nhá Carola
Vive a ensinar o a b c.
Fulgem, na estrada tranquila,
Casinhas brancas de cal:
É a colônia que cintila,
Graciosa como uma vila,
Risonha como um pombal.
Ao longe, o pasto, a cancela,
- Um boi deitado no chão:
Paisagem rude e singela,
Daria fina aquarela
De puro estilo aldeão.
E além, para lá da ponte,
648
Ao lado do matagal,
Por sobre as lombas do monte,
Por todo o imenso horizonte,
- Alastra-se o cafezal!
O olhar, tonto, se extasia
Na cena rústica e chá;
E a gente sente a poesia.
Sente a radiosa alegria
De tão soberba manhã!
Absorto no panorama
Que assim contemplo, de pé,
Eis que uma velha mucama,
Surgindo à porta, me chama:
"Nhonhô, tá pronto o café...
A GENTE
Saio a passear... Claro e quente,
O sol na altura sorri.
Eu sigo, de alma contente,
Saudando esta boa gente
Dos sítios onde nasci!
Lá vou, por entre este povo,
Com tanta ingênua emoção,
Que eu, sem querer, me comovo,
Revendo agora, de novo,
Nhô Lau, seu Juca, o Bastião...
***
Aquele... Nossa Senhora!...
- Aquele é o seu Nicanor:
O mesmo, tão curvo agora,
Que foi, nos tempos de outrora,
O meu grande professor!
É um velho... Um republicano
Desde o tempo que lá vai!
Vive a falar no Floriano,
Dizendo que é veterano
649
Da guerra do Paraguai...
***
E este?... O Mendonça afamado,
O célebre caçador!
Traz a lapeana de lado,
E um perdigueiro malhado
Que salta no carreador.
Rude, feroz, barba intonsa,
Com a sua desfaçatez,
A todos narra o Mendonça
Terríveis caçadas de onça,
- Caçadas que nunca fez.
***
Lá está na foice, roçando,
O velho Jeca Morais:
Caboclo bom, gênio brando,
Apenas, de quando em quando,
Bebe algum trago demais.
***
No dia em que se endominga,
Vai ao povoado passear;
E à volta, cheirando à pinga,
Discute, provoca, xinga,
Querendo à força brigar!
***
Junto, o Nicola persiste
Em consertar um moirão;
Não sei se no mundo existe
Outro violeiro mais triste
Que esse infeliz mocetão.
Louca paixão, louca e imensa,
Sempre em angústias o traz:
É que ele, o poeta, só pensa
Na filha do Quim Proença,
650
Que gosta de outro rapaz.
Quando o luar desenrola,
No espaço, o místico alvor,
Sonhando um sonho, o Nicola
Põe-se a chorar na viola
As mágoas do seu amor...
***
Guiando os bois do seu carro,
Que ringe num alto som,
Nhô João, na estrada de Barro,
Lá vai, pitando um cigarro,
Cheiroso de fumo bom.
Com seu enorme trabuco,
Calça xadrez, pé no chão,
Na venda do Zé Macuco,
Sentado à mesa do truco,
- Que noites passa nhô João!
***
Ao longe, num largo trote,
Com elegâncias de peão,
- Bombacha, espora e chicote Passa na estrada o Mingote,
Montado num alazão.
Moço dos mais arrogantes,
De claro olhar, claro e azul,
Conta as paixões delirantes
Que teve em terras distantes,
Ao vir com tropas do Sul...
***
Eu sigo... Festivamente,
O sol na altura sorri;
Assim, risonho e contente,
Revejo toda esta gente
Dos sítios onde eu nasci...
651
VIDA CAMPÔNIA
Como um caboclo bem rude,
Eu vivo aqui, nesta paz,
Recuperando a saúde,
Que eu esbanjei, quanto pude,
Nas tonteiras de rapaz.
Mal brilha o primeiro raio
Da aurora rubra e louçã,
Eu monto um fogoso baio,
E alegre, e lépido, saio
Pelo esplendor da manhã.
Lorde, o meu bravo cachorro,
Vem pela estrada a saltar:
E a várzea, e os pastos, e o morro,
Tudo, a galope, eu percorro,
Numa alegria sem par.
Do mato, cerrado e umbroso,
Vêm cheiros de manacás;
Num pau-d'alho, alto e frondoso,
Vai um concerto furioso
De bem-te-vis e sabiás.
Vespas, cor de ouro brunido,
Lentejouladas de luz,
Fazem, com surdo zumbido,
Num tronco já carcomido,
O escasso mel dos enxus.
Fulguram, pelos caminhos,
Gotas de luz, como sóis;
Ruflos, canções, burburinhos,
Noivado em todos os ninhos,
Por toda a relva, aranhóis.
E em tudo quanto eu diviso,
Há tal brilho tal clarão,
Como se, do paraíso,
Deus acendesse um sorriso
Em cada ervinha do chão.
652
Volto... Os caboclos, no eito,
Vão desbastando os juás.
Eu venho tão satisfeito,
Como se houvesse em meu peito
- Um baile de tangarás!
Apeio. E então vivo e moço,
No claro terno de brim,
Vou eu, com grande alvoroço,
Sentar-me à mesa do almoço,
Que espera apenas por mim.
Risonha, a fumaça voa
Em densos, cálidos véus:
É o lombo, é a fava, é a leitoa,
- Toda a cópia, farta e boa,
Dos nossos ricos pitéus!
Depois, ao longo do dia,
Ferve, requeima o verão.
E há o pêssego, a melancia,
A fruta nova e sadia
Colhida em plena estação.
À noite, o luar, que fulgura,
Por tudo estende o seu véu.
Brilham estrelas na altura.
Uma infinita doçura
Penetra os campos e o céu.
Nessa calma, enquanto rola
A lua pela amplidão,
Subitamente se evola
O som duma grafonola,
Quebrando a paz do sertão.
Num timbre gasto e confuso,
Pelo silêncio rural,
Ecoa a voz do Caruso,
Velhas canções em desuso,
E fados de Portugal...
Nisto, o relógio badala:
653
Dez horas. Quê? Já é tarde assim?
Toca a dormir! Fechem a sala!
A casa inteira se cala,
Tomba um silêncio sem fim
Cheiro acre, de mangerona,
Lá fora embalsama o ar;
Tudo se aquieta. Ressona...
Eis que uma tarda sanfona
Passa na estrada, a chorar.
CHIQUITA
"Bom dia! Sempre bonita?"
- É assim que eu vou, de manhã,
Saudar a linda Chiquita,
Que, toda em frios, tirita
No seu vestido de lã.
Maneiras brandas e amenas,
Olhos de negro fulgor,
Chiquita, a flor das morenas,
Com seus quinze anos apenas,
É um mimo de graça e amor.
De estranho tédio ferida
No seu colégio francês,
Quisera, langue e abatida,
Mudar um pouco de vida,
Passar nos campos um mês.
E em festa e risos, agora,
Nos ares bons do sertão,
Chiquita se revigora,
E alegra-se, e viça, e cora,
Como uma rosa em botão.
Mal surge, fresca e orvalhada,
No céu azul, a manhã,
Saímos nós pela estrada,
Com alma leve, e dourada
Pela alegria mais sã.
654
Que graça!... Ela tudo admira:
O campo, as roças, os bois.
Às vezes passa um caipira,
Que, com espanto, nos mira,
E fica a rir de nós dois!
Em casa, o dia inteiro, ela
Faz mil perguntas pueris.
Ah, como é ingênua e singela!
Conversa. Ri. Tagarela.
É um pássaro feliz!
Sol a pino, a todo transe,
Quer ir saltar no café;
E à volta, sem que descanse,
Começa a ler um romance,
Ou trabalhar num crochê
De quando em quando, um espinho
Sangrar o peito me vem.
A tarde inteira, sozinho,
Sentado ao pé do caminho,
Fico a lembrar-me de alguém.
Eis que ela chega, de branco,
Cabelo negro, em bandós;
Festiva, num riso franco,
Ali, no pobre barranco,
Sentamos os dois a sós...
Na tarde azul, merencória,
Dum sossego espiritual,
Chiquita, como uma glória,
Repete-me toda a história
Da vida de colegial.
Então, nesse ermo pacato,
Ela, menina e mulher,
Relembra, fato por fato,
As diversões do internato,
Os ralhos da Notre-Mère...
Fala... E eu, ouvindo a macia
Brandura do seu falar,
655
Sinto, no olhar que me envia,
A doce melancolia
Do seu nostálgico olhar.
Não há feitiço que prenda
Como o dulçor dessa voz.
Assim, sem que ela o compreenda,
Chiquita é o sol da fazenda,
É a festa de todos nós!
656
PEDRO LUÍS
(1839—1884)
LITERATURA BRASILEIRA
TERRIBILIS DEA
(Impressões do combate de Riachuelo)
Quando ela apareceu no escuro do horizonte,
O cabelo revolto e a palidez na fronte...
Aos ventos sacudindo o rubro pavilhão,
Resplandente de sol, de sangue fumegante,
O raio iluminou a terra... Nesse instante
Frenética e viril ergueu-se uma nação!
Quem era? De onde vinha aquela grande imagem
Que turbara do céu a límpida miragem,
E de luto cobrira a senda do porvir?
De que abismo saiu? do túmulo? do inferno?
Pode o anjo do mal desafiar o Eterno?
Da fria sepultura o espetro ressurgir?
Deixai que se levante a grande divindade!
Seu templo é a terra e o mar, seu culto a mortandade;
Enche-lhe o peito o sopro das paixões.
É uma mulher fantasma! Uma visão de Dante,
Dos campos da batalha a hórrida bacante,
Que mergulha no sangue e ri das maldições!
A deusa do sepulcro! A pálida rainha!
A morte é sua vida. Impávida caminha,
Ora grande, ora vil, nas trevas ou na luz;
A corte que a rodeia é lúgubre coorte;
Tem gala e traja luto: é o séquito da morte,
A miséria que chora, a glória que seduz.
657
Desde que o mal nasceu, nasceu aquele espetro!
De raios coroou-se! Ao peso de seu cetro
A terra tem arfado em transes infernais.
Do mundo as gerações têm visto em toda a idade,
Sinistra, aparecer aquela divindade,
Celebrando no sangue as grandes saturnais!
No seu olhar de fogo há raios de loucura...
Tem cantos de prazer! tem risos de amargura!
Muda sempre de céu, de rumo, de farol.
Aqui - pede ao direito a voz forte e serena,
Ali - ruge feroz, feroz como uma hiena,
Assassina nas trevas, mata à luz do sol!...
Levanta o gládio nu em nome da Verdade,
Acorda em fúria acesa à voz da Liberdade,
E no punho viril derrete-se o guilhão!
Como é bela!... Depois... sem fé, sem heroísmo,
Despedaça a justiça, e atira com cinismo
A virgem Liberdade nos braços da Opressão!
É uma deusa fatal! Quer sangue e atira flores!
Abraça, prende, esmaga os seus adoradores,
Embriaga-os de glórias e os cerca de esplendor:
E esses loucos - depois de feitos de gigantes A túnica lhe beijam ardentes, delirantes,
E morrem a seus pés na febre desse amor.
Quando Átila, o monstro, - o tigre cavaleiro,
Espumando a correr, calcava o mundo inteiro,
A deusa o acompanhava, e ria-se... a cruel!
Tinha a face vermelha, ardia de coragem,
Dava beijos de amor na face do selvagem,
Enterrando o aguilhão nos flancos do corcel.
Era ela que em Roma erguia-se funesta!
O ídolo do povo em sempiterna festa!
O amor de Cipião, de César, de Pompeu.
Vergava com seu braço o braço do destino...
Prendeu nações e reis ao monte Palatino,
E em douda bacanal depois desfaleceu.
Foi de Carlos o Grande a excelsa companheira:
Deu-lhe o trono de bronze, a espada aventureira,
E o globo imperial, glórias e troféus...
Quando no escuro val, Rolando, moribundo,
Embocava a trombeta a despertar o mundo,
Erguia o colo a deusa além dos Pireneus...
Seguiu Napoleão da França até o Egito,
Nos mares, nos desertos, em busca do Infinito,
658
Das terras do Evangelho às terras do Coran,
Dos delírios da Europa aos sonhos do Oriente...
Teve medo afinal daquela febre ardente;
Lá no meio do mar prendeu esse Titan!
Ela estava também serena e triunfante
Ao pé de Farragut, o intrépido almirante,
Lá no tope do mastro, enquanto o monitor,
Em doudas convulsões, das túmidas entranhas
Vomitava metralha a derribar montanhas,
E do mundo arrancava um grito de terror...
Ela estava também - espetro pavoroso Do Amazonas a bordo, ao lado do Barroso,
De pólvora cercada, em pé sobre o convés...
Quando, à voz do valente, o monstro foi bufando,
Calados os canhões, navios esmagando,
A deusa varonil de amor caiu-lhe aos pés!...
Salve da guerra, deusa, arcanjo da batalha,
Que voas no vapor, que ruges na metralha,
Que cantas do combate os infernais clarões,
Quando arrancas do bronze os cânticos malditos:
O céu é fogo e aço, o ar - pólvora e gritos E corre e ferve o sangue em quentes borbotões.
Salve, tu, que nos deste o sangue da vingança!
O gládio da justiça, o raio da esperança,
E da glória cruenta o mágico esplendor!
É para te saudar que brame a artilharia
E que repete ao longe a voz da ventania
Das trombetas da morte o hórrido clangor!
....................................................................................
Quando ela apareceu no escuro do horizonte
O cabelo revolto, a palidez na fronte,
Aos ventos sacudindo o rubro pavilhão,
Resplandente de sol, de sangue fumegante,
O raio iluminou a terra... Nesse instante
Frenética e viril ergueu-se uma nação!...
O LEQUE DE MARFIM
Ela estava bonita a enlouquecer a gente!
Viva, fresca, feliz... gostei de vê-la assim!
Da música ao murmúrio estremecia ardente
E, rindo, machucava o leque de marfim.
Seus olhos eram negros, veludosos, puros...
659
Dois abismos! Dois céus! Fitei-os a tremer!
Costumado a trilhar caminhos sempre escuros,
Tenho medo da luz... Meu Deus, eu não quis ver.
Mas ela fascinava... Era um olhar, mais nada...
Rebelde, o coração nessa hora me traiu!
Aos dedos dessa virgem a ânfora sagrada
Entornando perfume à luz do sol se abriu.
Encostei-me ao piano. A chácara viçosa
Entoava das flores lânguida canção.
Eu cismava... - sei lá! - no céu, no mar, na rosa...
E minh'alma se foi nas asas da paixão.
Bem como o viajante em regiões polares
Que recorda chorando o seu torrão natal,
E avista de repente, incendiando os mares,
O divino esplendor da aurora boreal,
Assim eu triste, só, sem sombra d'esperança,
Dos gelos da descrença aonde vim parar
Sondei aquele riso! Amei essa criança,
Foi-me aurora de amor o negrejante olhar.
Brilhe embora uma vez... Banhou-me a luz divina
Vale uma eternidade um dia sempre assim...
Sempre hei de me lembrar da cândida menina
Que rindo machucava o leque de marfim.
660
PEDRO RABELO
(1868—1905)
LITERATURA BRASILEIRA
QUADRAS
Do escuro norte, ave prófuga,
Fugiste em busca do sul...
Mas todo o espaço hoje é límpido,
E é todo o espaço hoje azul.
Vem, que hoje o sol doira as árvores
E doira os campos em flor...
Terás a carícia intérmina
Do meu intérmino amor.
Dá que me envolvam teus lúcidos
Olhos, num lúcido olhar,
Qual me envolvera uma esplêndida
Auréola feita do luar...
Vem! A tua face puríssima
Seja-me sempre louçã,
Tanto ao tombar do crepúsculo,
Como ao romper da manhã...
Dá que em teus lábios eu, sôfrego,
Sorva esse olor que eles tem,
Como, ávido, um beduíno a um cântaro
Sorve o líquido também...
Vem! Que te importa que inóspita
Seja a existência depois...
Doce embora, embora aspérrima,
Vivê-la-emos nós dois!
661
PAÍS DISTANTE
Doido, talvez, se o sol que me alumia
Claro, e belo, e brilhante,
Rompe, a treva a espancar desta noite sem dia;
Fico a sonhar um lúcido e distante
País, onde serena
Fosse toda a existência e todo o amor constante,
Onde, de alegre e tímida camena,
Docemente tranquila,
Pudesse a voz ouvir em meio à noite amena.
Enquanto que também lúcido, a ouvi-la,
Do azul em cada fresta,
Brilhasse um sol assim como o outro sol rutila.
- Um país onde nunca a atra e funesta
Mágoa fosse, enfadonha,
De pranto encher o olhar que o contemplasse em festa.
Lá, julgado feliz como quem sonha,
Por certo que invocara
Tua imagem feliz, e adorada, e risonha.
E se àquela de gozos fonte rara
Tu chegasses ainda.
E se ainda a tua alma esses gozos achara;
Por certo o nome dessa estranha e infinda
Fonte de primaveras,
Tu pediras, e então eu te dissera, Linda:
- "Chama-se este país, o país das quimeras!"
DISTANTE
A Álvares de Azevedo Sobrinho.
Hoje soluça o vento nas palmeiras
E um gemido das árvores arranca...
Partiu! Corra mais límpida e mais franca
A torrente das lágrimas ligeiras.
Partiu! De longes terras estrangeiras
O bálsamo que as lágrimas estanca.
Traga-mo a asa tenuíssima, a asa branca
Da mais branca das pombas mensageiras.
Vendo-a. Cale-se a dor, vão-se os soluços...
Fique ela só de longes terras vinda
Para consolo desta soledade,
662
Fique, e possa eu contar como, de bruços,
Doido, chorei sobre as tuas cartas, e inda
Como punge esta indômita saudade!
TENEBRAS
A Aluísio Azevedo
Porque mais te não vejo, mais te sinto
Perto... Mais perto dos teus olhos ando.
Diz-mo não sei que delicioso e brando,
Como os vagos instintos, vago instinto.
Estás perto, sinto-te... E de quando em quando,
"Busca-a!" - manda uma voz. "Busca-a!" Consinto.
E ando de labirinto em labirinto,
Cego, paredes úmidas tateando...
Quem me há de os olhos descerrar? Teus olhos,
Pela doce alegria de trazer-mos,
Quem mos há de mostrar nesta ansiedade?
E amontoam-me escolhos sobre escolhos...
- Almas enfermas, corações enfermos,
Qual de vós é que sofre esta saudade?
PELA NOITE
A Rodrigo Otávio
Digam do amor com que eu acarinhava,
Todos os astros, todas as estrelas...
Digam quanto as fitava e como, ao vê-las,
Ela, a estrela mais lúcida lembrava.
Dos céus em fora, pela noite, e pelas
Nuvens que eu tristemente contemplava,
Digam como daquele afeto escrava
Minh'alma ansiava por compreendê-las.
Tudo contem... Do meu estranho afeto
Falem da minha dor contida
Por largos meses e por largos anos,
E esse que for o astro mais indiscreto
Conte como me viu a alma ferida,
Por desenganos sobre desenganos.
PÁGINA 102
663
A Alcindo Guanabara
Mágoa horrenda, ânsia horrenda, ciúme horrendo
Esta mísera página continha,
E Ela, por lê-la, dos seus olhos vinha,
Vinha um fio de lágrimas descendo...
Esta os seus olhos que choravam lendo,
Mais do que as outras páginas detinha,
E àquele pranto pela angústia minha
Iam-me os versos desaparecendo...
A sua última lágrima desfê-los...
Hoje estes mesmos pobres versos choram
O lugar dos antigos ocupando,
E estes, como os primeiros, que os seus belos,
Seus tristes olhos apagando foram,
Vão-se-me agora aos poucos apagando.
664
RAIMUNDO CORREIA
(1859—1911)
LITERATURA BRASILEIRA
BANZO
Visões que na alma o céu do exílio incuba,
Mortais visões! Fuzila o azul infando...
Coleia, basilisco de ouro, ondeando
O Níger... Bramem leões de fulva juba...
Uivam chacais... Ressoa a fera tuba
Dos cafres, pelas grotas retumbando,
E a estrelada das árvores, que um bando
De paquidermes colossais derruba...
Como o guaraz nas rubras penhas dorme,
Dorme em nimbos de sangue o sol oculto...
Fuma o saibro africano incandescente...
Vai com a sombra crescendo o vulto enorme
Do baobá... E cresce na alma o vulto
De uma tristeza, imensa, imensamente...
OS CIGANOS
A Jose Veríssimo
Um adia, ao fim de incomoda jornada,
De uma longa jornada por mim feita,
Com perigos não menos do que danos,
665
Ao crepúsculo vi, na volta estreita
De sinuosa estrada,
Três farrapados, míseros ciganos.
Um ─ de viola amiga, unida ao peito,
Dedilhando as corda, indolente,
Tirava brandos sons... Que ar satisfeito!
No seu moreno rosto, que o poente
De rubra e vigorosa cor tingia!
Outro ─ aspirando o seu cachimbo, ocioso,
Nas aspirais do fumo azul deixava
Pascerem-se-lhe os olhos, descuidoso...
E tinha, entre farrapos, o ar tranquilo,
O ar de quem de mais nada precisava,
O de quem para bastava aquilo.
Dormia o último à sombra da ramagem,
E sobre a oscilar ─ quadro risonho! ─
Pendia um par de címbalos que a aragem
Ressonava ao passar, leve e fugace...
Também a doce aragem de algum sonho
Pelo seu coração talvez passasse...
Os três ciganos míseros... Que digo?
Míseros somos nós; mísero o louco,
Como eu ou tu, amigo,
Que, tendo em muito o que eles têm em pouco,
Em pós de um sonho vão em vão se cansa.
Qual! nem esse apetite imoderado
De glória e de fortuna;
Nem viver da saudade e da esperança;
Nem rever o passado,
Ou prever o futuro a alma conforta.
Antes pela existência andar à tuna:
Sono, viola e fumo, e ao Deus dará...
O que passou, já lá se foi ─ que importa? ─
E o que há de vir, por sua vez virá!
Para a dor de viver, que nos devasta
E que o beijo nenhum de amor consola,
Os ciganos fizeram-me sentir,
Que, das três coisas, uma só nos basta:
Tocar viola, fumar cachimbo, ou dormir.
666
PLENILÚNIO
Além nos ares, tremulamente,
Que visão branca das nuvens sai!
Luz entre as franças, fria e silente;
Assim nos ares, tremulamente,
Balão aceso subindo vai...
Há tantos olhos nela arroubados,
No magnetismo do seu fulgor!
Lua dos tristes e enamorados,
Golfão de cismas fascinador!
Astros dos loucos, sol da demência,
Vaga, noctâmbula aparição!
Quantos, bebendo-te a refulgência,
Quantos por isso, sol da demência,
Lua dos loucos, loucos estão!
Quantos à noite, de alva sereia
O falaz canto na febre a ouvir,
No argênteo fluxo da lua cheia.
Alucinados se deixam ir...
Também outrora, num mar de lua,
Voguei na esteira de um louco ideal;
Exposta aos éolos a fronte nua,
Dei-me ao relento, num mar de lua,
Banhos de lua que fazem mal.
Ah! quantas vezes, absorto nela,
Por horas mortas postar-me vim
Cogitabundo, triste, à janela,
Tardas vigílias passando assim!
E assim, fitando-a noites inteiras,
Seu disco argênteo na alma imprimi;
Olhos pisados, fundas olheiras,
Passei fitando-a noites inteiras,
Fitei-a tanto, que enlouqueci!
Tantos serenos tão doentios,
667
Friagens tantas padeci eu;
Chuva de raios de prata frios
A fronte em brasa me arrefeceu!
Lunárias flores, ao feral lume,
— Caçoilas de ópio, de embriaguez
— Evaporaram letal perfume...
E os lençóis d'água, do feral lume
Se amortalhavam na lividez...
Fúlgida névoa vem-me ofuscante
De um pesadelo de luz encher,
E a tudo em roda, desde esse instante,
Da cor da lua começo a ver.
E erguem por vias enluaradas
Minhas sandálias chispas a flux...
Há pó de estrelas pelas estradas...
E por estradas enluaradas
Eu sigo às tontas, cego de luz...
Um luar amplo me inunda, e eu ando
Em visionária luz a nadar,
Por toda a parte, louco, arrastando
O largo manto do meu luar...
TRISTEZA DE MOMO
Pela primeira vez, ímpias risadas
Susta em pranto o deus da zombaria;
Chora; e vingam-se dele, nesse dia,
Os silvanos e as ninfas ultrajadas;
Trovejam bocas mil escancaradas,
Rindo; arrombam-se os diques da alegria;
E estoira descomposta vozeria
Por toda a selva, e apupos e pedradas...
Fauno, indigita; a Náiade o caçoa;
Sátiros vis, da mais indigna laia,
Zombam. Não há quem dele se condoa!
E Eco propaga a formidável vaia,
668
Que além por fundos boqueirões reboa
E, como um largo mar, rola e se espraia...
A CAVALGADA
A lua banha a solitária estrada...
Silêncio!... mas além, confuso e brando,
O som longínquo vem se aproximando
Do galopar de estranha cavalgada.
São fidalgos que voltam da caçada;
Vêm alegres, vêm rindo, vêm cantando,
E as trompas a soar vão agitando
O remanso da noite embalsamada...
E o bosque estala, move-se, estremece...
Da cavalgada o estrépito que aumenta
Perde-se após no centro da montanha...
E o silêncio outra vez soturno desce,
E límpida, sem mácula, alvacenta
A lua a estrada solitária banha...
O MONGE
—"O coração da infância", eu lhe dizia,
"É manso." E ele me disse: — "Essas estradas,
Quando, novo Eliseu, as percorria,
As crianças lançavam-me pedradas..."
Falei-lhe então na glória e na alegria;
E ele— Alvas barbas longas derramadas
No burel negro —o olhar somente erguia
Às cérulas regiões ilimitadas...
Quando eu, porém, falei no amor, um riso
Súbito as faces do impassível monge
Iluminou... Era o vislumbre incerto,
Era a luz de um crepúsculo indeciso
Entre os clarões de um sol que já vai longe
E as sombras de uma noite que vem perto!...
669
JÓ
Quem vai passando, sinta
Nojo embora, ali pára. Ao princípio era um só;
Depois dez, vinte, trinta
Mulheres e homens... tudo a contemplar o Jó.
Qual fixa boquiaberto;
Qual à distância vê; qual se aproxima altivo,
Para olhar mais de perto
Esse pântano humano, esse monturo vivo.
Grossa turba o rodeia...
E o que mais horroriza é vê-lo a mendigar,
E ninguém ter a idéia
De um só vintém às mãos roídas lhe atirar!
Não! Nem ver que a indigência
Em pasto o muda já de vermes; e lhe impera,
Na imunda florescência
Do corpo, a podridão em plena primavera;
Nem ver sobre ele, em bando,
Os moscardos cruéis de ríspidos ferrões,
Incômodos, cantando
A música feral das decomposições;
Nem ver que, entre os destroços
De seus membros, a Morte, em blasfêmias e pragas,
Descarnando-lhe os ossos,
Os dentes mostra a rir, pelas bocas das chagas;
Nem ver que só o escasso
Roto andrajo, onde a lepra horrível que lhe prui
Mal se encobre, e o pedaço
De telha, com que a raspa, o mísero possui;
Nem do vento às rajadas
Ver-lhe os farrapos vis da roupa flutuante,
Voando — Desfraldadas
Bandeiras da miséria imensa e triunfante!
670
Nem ver... Jó agoniza!
Embora; isso não é o que horroriza mais.
— O que mais horroriza
São a falsa piedade, os fementidos ais;
São os consolos fúteis
Da turba que o rodeia, e as palavras fingidas,
Mais baixas, mais inúteis
Do que a língua dos cães, lambendo-lhe as feridas;
Da turba que se, odienta,
Com a pata brutal do seu orgulho vão
Não nos magoa, inventa,
Para nos magoar, a sua compaixão!
Se há, entre a luz e a treva,
Um termo médio, e em tudo há um ponto mediano,
É triste que não deva
Haver isso também no coração humano!
Porque n'alma não há de
Um meio termo haver dessa gente também,
Entre a inveja e a piedade?
Pois tem piedade só, quando inveja não tem!
SER MOÇA E BELA SER
Ser moça e bela ser, por que é que lhe não basta?
Porque tudo o que tem de fresco e virgem gasta
E destrói? Porque atrás de uma vaga esperança
Fátua, aérea e fugaz, frenética se lança
A voar, a voar?...
Também a borboleta,
Mal rompe a ninfa, o estojo abrindo, ávida e inquieta,
As antenas agita, ensaia o vôo, adeja;
O finíssimo pó das asas espaneja;
Pouco habituada à luz, a luz logo a embriaga;
Bóia do sol na morna e rutilante vaga;
Em grandes doses bebe o azul; tonta, espairece
No éter; voa em redor, vai e vem; sobe e desce;
Torna a subir e torna a descer; e ora gira
Contra as correntes do ar, ora, incauta, se atira
Contra o tojo e os sarcais; nas puas lancinantes
671
Em pedaços faz logo às asas cintilantes;
Da tênue escama de ouro os resquícios mesquinhos
Presos lhe vão ficando à ponta dos espinhos;
Uma porção de si deixa por onde passa,
E, enquanto há vida ainda, esvoaça, esvoaça,
Como um leve papel solto à mercê do vento;
Pousa aqui, voa além, até vir o momento
Em que de todo, enfim, se rasga e dilacera.
ó borboleta, pára! ó mocidade, espera!
SAUDADE
Aqui outrora retumbaram hinos;
Muito coche real nestas calçadas
E nestas praças, hoje abandonadas,
Rodou por entre os ouropéis mais finos...
Arcos de flores, fachos purpurinos,
Trons festivais, bandeiras desfraldadas,
Girândolas, clarins, atropeladas
Legiões de povo, bimbalhar de sinos...
Tudo passou! Mas dessas arcarias
Negras, e desses torreões medonhos,
Alguém se assenta sobre as lájeas frias;
E em torno os olhos úmidos, tristonhos,
Espraia, e chora, como Jeremias,
Sobre a Jerusalém de tantos sonhos!...
AS POMBAS...
Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada...
E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...
672
Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;
No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...
MAL SECRETO
Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!
Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!
Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!
O VINHO DE HEBE
Quando do Olimpo nos festins surgia
Hebe risonha, os deuses majestosos
Os copos estendiam-lhe, ruidosos,
E ela, passando, os copos lhes enchia...
A Mocidade, assim, na rubra orgia
Da vida, alegre e pródiga de gozos,
Passa por nós, e nós também, sequiosos,
Nossa taça estendemos-lhe, vazia...
E o vinho do prazer em nossa taça
Verte-nos ela, verte-nos e passa...
673
Passa, e não torna atrás o seu caminho.
Nós chamamo-la em vão; em nossos lábios
Restam apenas tímidos ressábios,
Como recordações daquele vinho.
VULNUS
Com bons olhos, quem ama, em torno tudo vê!
Folga, estremece, ri, sonha, respira e crê;
A crença doira e azula o círculo que o cinge;
Da volúpia do bem o grau supremo atinge!
Eu também atingi esse supremo grau:
Também fui bom e amei, e hoje odeio e sou mau!
E as culpadas sois vós, visões encantadoras,
Virgínias desleais, desleais Eleonoras!
Minha alma juvenil, ígnea, meridional,
Num longo sorvo hauriu o pérfido e letal
Filtro do vosso escuro e perigoso encanto!
A vossos pés rasguei tantos castelos! Tanto
Sonho se esperdiçou! Tanta luz se perdeu!...
Amei: nem uma só de vós me compreendeu!
RIMA
Rondo pela noite
Imaginando mil coisas
Meditando sozinho
Até a madrugada
Isto tudo é tão contrário
Medo e coragem
Amor e ódio
Revolta e compreensão
Mas nada rima nesse mundo
Apenas eu e você restávamos
Resto do que o mundo já foi
Intensamente, imensamente, eternamente
674
Até mesmo nós sucumbimos
Reavaliamos nossa condição
Indiferentes, deixamos de rimar
Menos um casal no mundo
Agora ando sozinho
Meditando noite adentro
Imaginando e esquecendo mil e uma coisas
Rondando até a madrugada
AMOR E VIDA
Esconde-me a alma, no íntimo, oprimida,
Este amor infeliz, como se fora
Um crime aos olhos dessa, que ela adora,
Dessa, que crendo-o, crera-se ofendida.
A crua e rija lâmina homicida
Do seu desdém vara-me o peito; embora,
Que o amor que cresce nele, e nele mora,
Só findará quando findar-me a vida!
Ó meu amor! como num mar profundo,
Achaste em mim teu álgido, teu fundo,
Teu derradeiro, teu feral abrigo!
E qual do rei de Tule a taça de ouro,
Ó meu sacro, ó meu único tesouro!
Ó meu amor! tu morrerás comigo!
DESDÉNS
Realçam no marfim da ventarola
As tuas unhas de coral felinas
Garras com que, a sorrir, tu me assassinas,
Bela e feroz... O sândalo se evolua;
O ar cheiroso em redor se desenrola;
Pulsam os seios, arfam as narinas...
Sobre o espaldar de seda o torso inclinas
Numa indolência mórbida, espanhola...
Como eu sou infeliz! Como é sangrenta
Essa mão impiedosa que me arranca
A vida aos poucos, nesta morte lenta!
Essa mão de fidalga, fina e branca;
675
Essa mão, que me atrai e me afugenta,
Que eu afago, que eu beijo, e que me espanca!
O MISANTROPO
A boca, às vezes, o louvor escapa
E o pranto aos olhos; mas louvor e pranto
Mentem: tapa o louvor a inveja, enquanto
O pranto a vesga hipocrisia tapa.
Do louvor, com que espanto, sob a capa
Vejo tanta dobrez, ludíbrio tanto!
E o pranto em olhos vejo, com que espanto,
Que escarnecem dos mais, rindo à socapa!
Porque, desde que esse ódio atroz me veio,
Só traições vejo em cada olhar venusto?
Perfídias só em cada humano seio?
Acaso as almas poderei sem custo
Ver, perspícuo e melhor, só quando odeio?
E é preciso odiar para ser justo?!
ÚLTIMO PORTO
Este o país ideal que em sonhos douro;
Aqui o estro das aves me arrebata,
E em flores, cachos e festões, desata
A Natureza o virginal tesouro;
Aqui, perpétuo dia ardente e louro
Fulgura; e, na torrente e na cascata,
A água alardeia toda a sua prata,
E os laranjais e o sol todo o seu ouro...
Aqui, de rosas e de luz tecida,
Leve mortalha envolva estes destroços
Do extinto amor, que inda me pesam tanto;
E a terra, a mãe comum, no fim da vida,
Para a nudeza me cobrir dos ossos,
Rasgue alguns palmos do seu verde manto.
NUVEM BRANCA
Dizei-me: é ela a noiva casta e pura,
Que no alvor dessa nuvem rutilante,
676
Passa agora? Dizei-me, neste instante,
Turbilhões de translúcida brancura;
Colar, broches de pérolas e opalas;
Gaza que, em níveos flocos, por formosas,
Rijas pomas de mármore, ondulosas
Curvas e espáduas de marfim, resvalas...
Dizei-me, branca, virginal capela;
Nítida espuma de nevadas rendas;
Alvos botões de laranjeira; prendas
Simbólicas do amor; dizei-me: é ela?
É ela a noiva? É mesto, ou prazenteiro,
Seu doce olhar? Sorri alegre, ou chora,
Seu semblante gentil oculto agora
Do espesso véu no alvíssimo nevoeiro?
É ela, sim! Su'alma, entre os fulgores
Das claras tochas cândidas e ardentes,
Nas querúbicas azas transparentes,
Voa, festiva, a um tálamo de flores...
Mistérios nupciais, só vos devassa
Um louco amante! Ao seu olhar ansioso
Velais debalde arcanjo, o astro radioso
Que, dentro dessa nuvem branca, passa...
PLENA NUDEZ
Eu amo os gregos tipos de escultura:
Pagãs nuas no mármore entalhadas;
Não essas produções que a estufa escura
Das modas cria, tortas e enfezá-las.
Quero em pleno esplendor, viço e frescura
Os corpos nus; as linhas onduladas
Livres; da carne exuberante e pura
Todas as saliências destacadas...
Não quero, a Vênus opulenta e bela
De luxuriantes formas, entrevê-la
Da transparente túnica através:
677
Quero vê-la, sem pejo, sem receios,
Os braços nus, o dorso nu, os seios
Nus... toda nua, da cabeça aos pés!
ANOITECER
A Adelino Fontoura
Esbraseia o Ocidente na agonia
O sol... Aves em bandos destacados,
Por céus de oiro e de púrpura raiados,
Fogem... Fecha-se a pálpebra do dia...
Delineiam-se, além, da serrania
Os vértices de chama aureolados,
E em rudo, em torno, esbatem derramados
uns tons suaves de melancolia...
Um mundo de vapores no ar flutua...
Como uma informe nódoa, avulta e cresce
A sombra à proporção que a luz recua...
A natureza apática esmaece...
Pouco a pouco, entre as árvores, a lua
Surge trêmula, trêmula... Anoitece.
678
RAUL DE LEONI
(1895—1926)
LITERATURA BRASILEIRA
CREPUSCULAR
Poente no meu jardim... O olhar profundo
Alongo sobre as árvores vazias,
Essas em cujo espírito infecundo
Soluçam silenciosas agonias.
Assim estéreis, mansas e sombrias,
Sugerem à emoção em que as circundo
Todas as dolorosas utopias
De todos os filósofos do mundo.
Sugerem... Seus destinos são vizinhos:
Ambas, não dando frutos, abrem ninhos
Ao viandante exânime que as olhe.
Ninhos, onde vencida de fadiga,
A alma ingênua dos pássaros se abriga
E a tristeza dos homens se recolhe...
PLATÔNICO
As idéias são seres superiores,
— Almas recônditas de sensitivas —
Cheias de intimidades fugitivas,
De crepúsculos, melindres e pudores.
679
Por onde andares e por onde fores,
Cuidado com essas flores pensativas,
Que tem pólen, perfumes, órgãos e cores
E sofrem mais que as outras cousas vivas.
Colhe-as na solidão... são obras-primas
Que vieram de outros tempos e outros climas
Para os jardins de tua alma que transponho,
Para com ela teceres, na subida,
A coroa votiva do teu Sonho
E a legenda imperial da tua Vida.
ARTISTA
Por um destino acima do teu Ser,
Tens que buscar nas coisas inconscientes
Um sentido harmonioso, o alto prazer
Que se esconde entre as formas aparentes.
Sempre o achas, mas ao tê-lo em teu poder
Nem no pões na tua alma, nem no sentes
Na tua vida, e o levas, sem saber,
Ao sonho de outras almas diferentes...
Vives humilde e inda ao morrer ignoras
O Ideal que achaste... (Ingratidão das musas!)
Mas não faz mal, meu bômbix inocente:
Fia na primavera, entre as amoras.
A tua seda de ouro, que nem usas
Mas que faz tanto bem a tanta gente...
CRISTIANISMO
Sonho um cristianismo singular
Cheio de amor divino e de prazer humano;
O Horto de Mágoas sob um céu virgiliano,
A beatitude com mais luz e com mais ar...
Um pequeno mosteiro em meio de um pomar,
680
Entre loureiros-rosa e vinhas de todo o ano.
Num misticismo lírico, a sonhar
Na orla florida e azul de um lago italiano...
Um cristianismo sem renúncia e sem martírios,
Sem a pureza melancólica dos lírios.
Temperado na graça natural...
Cristianismo de bom humor, que não existe,
Onde a Tristeza fosse um pecado venial,
Onde a Virtude não precisasse ser triste...
IRONIA!
Ironia! Ironia!
Minha consolação! Minha filosofia!
Imponderável máscara discreta
Dessa infinita dúvida secreta,
Que é a tragédia recôndita do ser!
Muita gente não te há de compreender
E dirá que és renúncia e covardia!
Ironia! Ironia!
És a minha atitude comovida:
O amor-próprio do Espírito, sorrindo!
O pudor da Razão diante da Vida!
INGRATIDÃO
Nunca mais me esqueci!... Eu era criança
E em meu velho quintal, ao sol-nascente,
Plantei, com a minha mão ingênua e mansa,
Uma linda amendoeira adolescente.
Era a mais rútila e íntima esperança...
Cresceu... cresceu... e aos poucos, suavemente,
Pendeu os ramos sobre um muro em frente
E foi frutificar na vizinhança...
Daí por diante, pela vida inteira,
Todas as grandes árvores que em minhas
Terras, num sonho esplêndido semeio,
681
Como aquela magnífica amendoeira,
E florescem nas chácaras vizinhas
E vão dar frutos no pomar alheio...
DECADÊNCIA
Afinal, é o costume de viver
Que nos faz ir vivendo para a frente.
Nenhuma outra intenção, mas, simplesmente
O hábito melancólico de ser...
Vai-se vivendo... é o vício de viver...
E se esse vício dá qualquer prazer à gente,
Como todo prazer vicioso é triste e doente,
Porque o Vício é a doença do Prazer...
Vai-se vivendo... vive-se demais,
E um dia chega em que tudo que somos
É apenas a saudade do que fomos...
Vai-se vivendo... e muitas vezes nem sentimos
Que somos sombras, que já não somos mais nada
Do que os sobreviventes de nós mesmos!...
A HORA CINZENTA
Desce um longo poente de elegia
Sobre as mansas paisagens resignadas;
Uma humaníssima melancolia
Embalsama as distancias desoladas...
Longe, num sino antigo, a Ave-Maria
Abençoa a alma ingênua das estradas;
Andam surdinas de anjos e de fadas,
Na penumbra nostálgica, macia...
Espiritualidades comoventes
Sobem da terra triste, em reticência
Pela tarde sonâmbula, imprecisa...
Os sentidos se esfumam, a alma é essência
682
E entre fugas de sombras transcendentes,
O pensamento se volatiliza...
683
RONALD DE CARVALHO
(1893—1935)
LITERATURA BRASILEIRA
EPIGRAMA
Enche o teu copo, bebe o teu vinho,
enquanto a taça não cai das tuas mãos…
Há salteadores amáveis pelo teu caminho.
Repara como é doce o teu vizinho,
repara como é suave o olhar do teu vizinho,
e como são longas, discretas, as suas mãos…
UMA NOITE EM LOS ANDES
“Naquela noite de Los
Andes eu amei como nunca o Brasil.
De repente,
Um cheiro de Bogari, um cheiro de varanda
carioca balançou no ar…
Vinha não sei de onde o murmúrio de um
córrego tranquilo,
escorregando como um lagarto pela terra
molhada.
A sombra vestia uma frescura de folhas
úmidas.
684
Um vagalume grosso correu no mato.
Queimou-se no sereno.
Eu fiquei olhando uma porção de cousas
doces maternais…
Eu fiquei olhando, longo tempo o céu da
noite chilena as quatro estrelas de um
cruzeiro pendurado fora do lugar…”
ANTHROPOMORPHISMO
A Luz sinuosa salta sobre os troncos duros.
De ramos em ramo as folhas todas se lambem,
línguas tremulas, breves, céleres batendo!
Escorre mel do ar...
As mãos do vento baixam sobre o corpo moreno da terra áspera, excitante.
No silencio mono, fatigado, vertiginoso,
caem gotas pesadas de resina pelo chão...
SABEDORIA
Enquanto disputam os doutores gravemente
sobre a natureza
do bem e do mal, do erro e da verdade,
do consciente e do inconsciente;
enquanto disputam os doutores sutilíssimos,
aproveita o momento!
Faze da tua realidade
uma obra de beleza
Só uma vez amadurece,
efêmero imprudente,
o cacho de uvas que o acaso te oferece...
VIDA
685
Para um destino incerto caminhamos,
Tontos de luz, dentro de um sonho vão;
E finalmente, a gloria que alcançamos
Nem chega a ser uma desilusão!
Levanta-se da sombra, entre altos ramos,
Como um fumo a subir, lento, do chão,
A distancia que tanto procuramos,
E os nossos braços nunca atingirão.
Mas um dia, perdidos, hesitante,
A alma vencida e farta, as mãos tateantes,
De repente, paramos de lutar;
E ao nosso olhar, cansado de amargura,
As montanhas têm muito mais altura,
O céo mais astros, e mais água o mar
686
SOUSA CALDAS
(1762—1814)
LITERATURA BRASILEIRA
AO HOMEM SELVAGEM
Ó homem, que fizeste? tudo brada:
Tua antiga grandeza
De todos se eclipsou; a paz doirada,
A liberdade com ferros se vê presa,
E a pálida tristeza
Eu teu rosto esparzida desfigura
De Deus, que te criou, a imagem pura.
Na cítara, que empunho, as mãos grosseiras
Não pôs cantor profano;
Emprestou-ma a verdade, que as primeiras
Canções nela entoara; e o vil engano,
O erro desumano,
Sua face escondeu espavorido,
Cuidando ser do mundo em fim banido.
Dos céus desce brilhando
A altiva independência, a cujo lado
Ergue a razão o cetro sublimado,
Eu a ouço ditando
Versos jamais ouvidos: reis da terra,
Tremei à vista do que ali se encerra.
Que montão de cadeias vejo alçadas
Com o nome brilhante
De leis, ao bem dos homens consagradas.
A natureza simples e constante,
Com pena de diamante,
Em breves regras escreveu no peito
687
Dos humanos as leis, que lhes tem feito.
O teu firme alicerce eu não pretendo,
Sociedade santa,
Indiscreto abalar; sobre o tremendo
Altar do calvo tempo, se levanta
Uma voz que me espanta,
E aponta o denso véu da antiguidade,
Que à luz esconde a tua longa idade.
Da dor o austero braço
Sinto no aflito peito carregar-me,
E as trêmulas entranhas apertar-me.
Ó céus! Que imenso espaço
Nos separa daqueles doces anos
Da vida primitiva dos humanos!
Salve dia feliz, que o loiro Apolo
Risonho alumiava,
Quando da natureza sobre o colo
Sem temor a inocência repousava,
E os ombros não curvava
Do déspota ao aceno enfurecido,
Que inda a terra não tinha conhecido.
Dos férvidos Etontes debruçado
Nos ares se sustinha,
E contra o tempo de furor armado,
Este dia alongar por glória tinha;
Quando nuvem mesquinha
De desordens seus raios eclipsando,
A noite foi do averno a fronte alçando.
Saiu do centro escuro
Da terra a desgrenhada enfermidade,
E os braços com que, unida à crueldade,
Se aperta em laço duro,
Estendendo, as campinas vai talando,
E os míseros humanos lacerando.
Que augusta imagem de esplendor subido
Ante mim se figura!
Nu; mas de graça e de valor vestido
O homem natural não teme a dura
Feia mão da ventura:
No rosto a liberdade traz pintada
De seus sérios prazeres rodeada.
Desponta cego amor, as setas tuas:
O pálido ciúme,
Filho da ira, com as vozes suas
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Num peito livre não acende o lume.
Em vão bramindo espume,
Que ele indo apôs a doce natureza
Da fantasia os erros nada preza.
Severo volteando
As asas denegridas, não lhe pinta
O nublado futuro em negra tinta
De males mil o bando,
Que, de espectros cingindo a vil figura,
Do sábio tornam a morada dura.
Eu vejo o mole sono sussurrando
Dos olhos pendurar-se
Do frouxo caraíba que, encostando
Os membros sobre a relva, sem turbar-se,
O sol vê levantar-se,
E nas ondas, de Tétis entre os braços,
Entregar-se de amor aos doces laços.
Ó razão, onde habitas?... na morada
Do crime furiosa,
Polida, mas cruel, paramentada
Com as roupas do vício; ou na ditosa
Cabana virtuosa
Do selvagem grosseiro!... Dize... onde?
Eu te chamo, ó filósofo! Responde.
Qual o astro do dia,
Que nas altas montanhas se demora,
Depois que a luz brilhante e criadora,
Nos vales já sombria,
Apenas aparece; assim me prende
O homem natural; e o estro acende.
De tresdobrado bronze tinha o peito
Aquele ímpio tirano,
Que primeiro, enrugando o trovo aspeito,
Do meu e teu o grito desumano
Fez soar em seu dano:
Tremeu a sossegada natureza,
Ao ver deste mortal a louca empresa.
Negros vapores pelo ar se viram
Longo tempo cruzando,
Té que bramando mil trovões se ouviram
As nuvens entre raios decepando
Do seu seio lançando
Os cruéis erros, e a torrente ímpia
Dos vícios, que combatem, noite e dia.
689
Cobriram-se as virtudes
Com as vestes da noite; e o lindo canto
Das musas se trocou em triste pranto.
E desde então só rudes
Engenhos cantam o feliz malvado,
Que nos roubou o primitivo estado.
A CRIAÇÃO
Já do tempo voraz se divisava
A férrea, curva foice reluzindo;
Desapiedado, umas vezes meneava,
Outras vezes ao longe desferindo,
Em torno de si mesmo a agitava;
Quando o Numen potente
A cujo aceno o tempo audaz nascera,
Fez retumbar a voz, que tudo impera;
Os abismos do nada estremeceram
E ao Deus grande e clemente
Os possíveis tremendo obedeceram:
Atônito levanta a escura frente
O caos rodeado
De confusão e horror: inda a beleza
Com pincel variado
Não ornava a recente natureza.
Tranquilas jazendo,
As ondas dormiam
Que a face cobriam
Do caos horrendo.
Ao leve soprar
De um zéfiro brando
Vida vai cobrando
O lânguido mar:
Do vasto Oceano
No seio se encerra;
E a mádida terra
Deixa respirar.
A luz resplandeceu, e o firmamento
Que em denegridas sombras se envolvia,
Mostrou formoso o seu soberbo assento:
De graças e esplendor se revestia
O majestoso dia;
Quando cheio de pompa e luzimento,
690
O sol rompeu nos ares, dardejando
De animante calor celestes raios.
Enternecido, triste sentimento
Mágoa o rosto lindo
Da noite descontente,
Que a ausência de Febo luminoso
Assim terna anuncia:
Entanto desferindo
Escassa luz em trono tenebroso,
Sobre nuvens o cetro reclinando,
A luz dos céus e terras alumia.
Fulgentes estrelas
Nos céus resplandecem;
Na terra verdecem
Mil árvores belas.
Os montes erguidos
Os vales retumbam
Ao som dos rugidos,
Dos feros leões.
Nas asas sustidas,
As aves revoam:
Nos ares entoam
Sonoras canções.
Ó terra! Ó céus! Ó muda natureza!
Transbordai de alegria: triunfante
Das entranhas do nada surge o homem:
Eis aparece; e a cândida beleza
O sisudo semblante lhe enobrece.
Seu majestoso porte.
Soberano do mundo o patenteia.
Gravada mostra n’alma a augusta imagem
Do Senhor adorável
Que o imenso universo senhoreia:
De sua pura carne se teceram
As meigas graças, que no rosto amável,
Da mulher carinhosa,
Com suave doçura resplandecem.
Apenas o divisa transportado,
Tu és o meu prazer, que novo encanto
Eu vejo lhe dizia: e arrebatado
Em delírio amoroso,
Mil vezes em seus braços a apertava,
E todo o extenso mundo,
Por ela só, deixar pouco julgava
691
Qual rosa engraçada
Que zéfiro adora,
Terna e delicada,
Enredo de Flora:
Assim é mimosa
E linda a mulher
E o homem se goza
Em se lhe render.
Qual grita entre as feras
Leão rugidor,
Derramando em torno
Gélido terror:
Tal se mostra o homem
Sobre toda a terra;
Tudo rende e aterra
Em arte e valor.
O mundo era criado, e transluzia
Em toda parte o braço onipotente,
Que fizera raiar a noite e o dia.
Da frígida semente
Outra vez novo ser se produzia,
Animada ao calor do sol ardente:
Tudo em vida fervendo parecia.
Virtude de crescer, multiplicar-se,
O animal que à fera
Ímpia morte soubera sujeitar-se.
Então o Criador arrebatado
Em divino prazer, almo, infinito,
Olhou dos céus o livro sublimado
Que com as suas mãos havia escrito,
E assim falou: ouvi cheios de susto,
Mortais, a voz do Deus imenso e justo.
Os céus entoam
Minha grandeza,
Os seres todos
Juntos pregoam,
Por vários modos,
Do eterno ser
O incomparável,
Grande, inefável,
Alto poder.
A minha glória,
Homem, respeita;
Rendido, aceita
692
Meu mandamento:
Traze à memória
Que o firmamento
Por ti criei;
Que o mar e a terra,
E o que ela encerra
Tudo te dei.
Sem me adorares
Com vivo amor,
E me ofertares
Santo temor;
Por mim o juro,
Minha presença
Ao peito puro
Eu mostrarei,
Em recompensa
Tua serei.
Mas se quebrares
O meu preceito,
E sem respeito,
O profanares,
Da morte fera
A mão severa
Tu sentirás.
E em vão gemendo,
No averno horrendo,
Me chamarás.
SONETO
Oito anos apenas eu contava,
Quando à fúria do mar, abandonando
A vida, em frágil lenho e demandando
Novos climas, da pátria me ausentava.
Desde então à tristeza começava
O tenro peito a ir acostumando;
E mais tirana sorte adivinhando
Em lágrimas o pai e a mãe deixava.
Entre ferros, pobreza, enfermidade
Eu vejo, ó céus! que dor! que iníqua sorte!
O começo da mais risonha idade.
A velhice cruel, (ó dura morte!)
Que faz tremer tão triste mocidade,
693
Para poupar-me descarrega o corte.
A IMORTALIDADE DA ALMA
Sim, eu sou mortal. Bramindo espume
A maldade cruel; e desgrenhada
Morda-se embora, pois não pode irada
Extinguir da razão o vivo lume.
Crede, caros amigos, não consome
Do tempo estragador a foice ervada
Esta viva faísca, que abrasada
Caiu do sopro do Supremo Nume.
O justo sobre a terra, aos céus erguendo
Os algemados braços, e o tirano
Vício do trono com o pé batendo,
Fazem fugir o refalsado engano
Que em vão forceja, para ver gemendo
Da verdade o sisudo desengano.
NA PRESENÇA DE UMA GRANDE TROVOADA
Tremei, humanos: toda a natureza.
Do seu Deus ao aceno convocada,
Sobre negros trovões surge sentada,
Em cruel fúria contra nós acesa.
Do rosto seu escondem a beleza,
Medonha escuridade acompanhada
De abrasadores raios, e pesada
Saraiva que no ar estava presa.
Agora perde a cor de medo cheio,
O monarca feliz e poderoso,
Que o vil orgulho abriga no seu seio.
Tu descoras também, ateu vaidoso,
E menos cego sem achar esteio,
A mão, que negas, beijas duvidoso.
AOS ANOS DE UMA MENINA
Não creias, gentil Márcia, na pintura
Com que malignos Gênios figuraram
O veloz Tempo, quando a mão lhe armara
694
De cruenta, implacável foice dura.
Inimigo fatal da formosura,
Com fantásticas cores o pintaram;
E nem ser ele, ao menos, acenaram
Quem desenvolve as graças da figura.
Qual cerrado botão de fresca rosa,
Que o ligeiro volver de um novo dia
Abre, e transforma em flor a mais mimosa:
Tal, a infantil beleza, inerte e fria,
De ano em ano se torna mais formosa,
E novo brilho, novas graças cria.
695
SOUSÂNDRADE
(1832—1902)
LITERATURA BRASILEIRA
SAUDADES NO PORVIR
Eu vou com a noite
Pálida e fria
Na penedia
Me debruçar:
O promontório
De negro dorso,
Qual nau de corso
Se alonga ao mar.
Dormem as horas,
A flor somente
Respira e sente
Na solidão;
A flor das rochas,
Franzina e leve,
Ao sopro breve
Da viração.
Cantando o nauta
Desdobra as velas
Argênteas, belas
Azas do mar;
Branqueia a proa
Partindo as vagas,
Que n' outras plagas
696
Se vão quebrar.
Eu ponho os olhos
No firmamento:
Que isolamento,
Oh, minha irmã!
Apenas o astro
Que a luz duvida,
Promete a vida
Para amanhã.
Naquela nuvem
Te vejo morta;
Meu peito corta
Cruel sentir ï
Da lua o túmulo
Na onda ondula,
E o mar modula
Como um porvir...
DÁ MEIA-NOITE
Dá meia-noite em céu azul-ferrete
Formosa espádua a lua
Alveja nua,
E voa sobre os templos da cidade.
Nos brancos muros se projetam sombras;
Passeia a sentinela
À noite bela
Opulenta da luz da divindade.
O silêncio respira; almos frescores
Meus cabelos afagam;
Gênis vagam,
De alguma fada no ar andando à caça.
Adormeceu a virgem; dos espíritos
Jaz nos mundos risonhos –
Fora eu os sonhos
Da bela virgem… uma nuvem passa.
697
VINTE E OITO DE JULHO
Os lábaros verdes nos ares ondulam,
Na glória da pátria, na crença de Deus!
Os peitos levantam-se, os hinos modulam,
Na terra cantados, ouvidos nos céus!
Nas róseas torrentes que descem d'aurora,
Nos ventes, nos mares convulsos de amor
Os cantos formosos s'entoam d'outrora,
Que as frontes incendem de eterno fulgor!
Os louros não murcham na pátria dos lírios!
Os cravos não tomba m dos braços da cruz!
-Se pungem com sangue, com fundos martírios,
Sabeis que transformam-se em astros de luz!
Dobrai os joelhos! beijai esta terra
De nobres passados! sabei ter-lhe amor!
Sabei defendê-la nos campos da guerra —
Sois livres! sois filhos do sol do equador!
EU VI A FLOR DO CÉU
Eu vi a flor do céu — meiga esperança
Sorrindo para mim, Deus verdadeiro!
EU amei como um doido a formosura,
E eu não tinha dinheiro...
Então senti minha alma degradada,
Como à bandeira que hasteou-Tarquinó,
Quando o fogo da febre lhe lavrava
Nas veias do assassino.
E do mundo aos aplausos, minha fronte
Pálida entristeceu, mal resignada,
Como essas flores, cuja alvura indica
Flórea estação passada.
MARIA
698
Onde foram os encantos divinos,
Onde a crença de eterna magia,
Fonte meiga da luz e dos hinos,
Onde estas? onde foste, Maria?
Tens a fronte que tinhas na infância,
Pura e branca, inda toda harmonia:
Mas, da bela inocência a fragrância...
Onde estas? onde foste, Maria?
Ter em ti eu pensava encontrado
Meu sublime ideal da poesia;
Encontrei a mulher em seu fado —
Onde estas? onde foste, Maria?
Se hoje choro, aos que estavam descentes
Já mostrei meu amor na alegria:
Terno orgulho dos dias contentes,
Onde estas? onde foste, Maria?
Onde foste? onde foste? — procuro
O que na alma cantando te ouvia,
E já temo de ouvir-te — e murmura:
Onde estas? onde foste, Maria?
Onde foram os divinos encantos,
Onde o mundo em que eu dantes vivia?
Porque a fonte do riso é dos prantos?
Onde estas? onde foste, Maria?
699
TEIXEIRA DE MELO
(1833—1907)
LITERATURA BRASILEIRA
ESTÂNCIAS
Lembra-te, ó anjo, que eu te amei um dia;
Lembra-te, ó anjo, que eu por ti chorei.
LUÍS DELFINO
Oh! laisse-moi t’aimer pour souffrir en moi-même;
Pour te donner ma vie et n’en parler jamais!
Oh! tais-toi; ne crains rien; si tu veux que je t’aime
Je te remercierai comme si tu m’aimais!
F. SOULIÉ
Lembra-te, virgem, lembra-te um momento
Do teu último dia de criança,
Que o teu silêncio sem querer enchia
De hinos de amor ungidos d’esperança!
Tinhas então no olhar a morbideza
Da infância que pressente a mocidade;
Tinhas na fronte o selo da beleza
E n’alma a sombra vaga da saudade.
O tempo foge, ó virgem, como o vento!
A mocidade é flor que pouco dura!
Tudo sussurra e passa... até que apenas
Um ciprestre nos marque a sepultura.
Amemos como à luz as mariposas,
Como a flor ama o orvalho que a remoça!
700
Amar não é topar pela existência,
Como a topaste, um’alma irmã da nossa?
O amor é a vida na mulher que um dia Ao passar pelo espelho - se achou linda.
Ama e vive, mulher! quando morreres...
Quando morrermos... viverás ainda!
Viverás nestas pálidas endechas
Como a imagem louçã da mocidade:
A primavera foge, mas meus cantos
Talvez levem teu nome à eternidade...
A vida sem amor é um deserto
Em que a sede desvaira a caravana!
É como o mar, que indiferente canta
E arremeda o carpir da dor humana!
Amemos hoje que a tormenta foge
E vai por outros céus rugir agora!
A mim, que te hei de amar por toda a vida,
Branca pomba do céu, ama-me um’hora!
Se não podes amar-me ao menos deixa
Que eu te dê meu porvir e mocidade:
Ninguém o saberá! Hei de escondê-las
Essas horas de amor e felicidade!
Hei de esquivar da luz os meus suspiros,
Embalar no silêncio o meu amor;
Mas deixa o coração seguir-te ao menos
Como a sombra da flor persegue a flor!
Hei de abafar o coração no peito!
Hás de mesmo pensar que te esqueci!
Mas não hei de sofrer os teus sarcasmos,
Embora eu me votasse inteiro a ti.
Ai mulher! ai mulher! que eu não te veja
Messalina de amor vender teus beijos,
Tu, que tens no pudor um véu d’encantos
Que o mundo não manchou com seus desejos.
Deixa que eu beba o ar que povoares
Das lembranças de tempos mais serenos;
Não hei de não trair-me, embora sofra!
Deixa o meu pensamento amar-te ao menos.
Sempre risonho, descuidado sempre,
Embora morra, hipócrita da dor!
Hei de fugir de ti, embora a vida
Também me fuja a mim com teu amor.
Quando passares rezarei baixinho
Uma prece por ti - tímida e pura;
701
Depois, quando eu morrer, vai tu sozinha
Desfolhá-la na minha sepultura.
No tronco do chorão que me der sombra
(Não tremas de remorso ou de piedade!)
Grava teu nome e passa... e vai bem longe
Vender a um outro a tua mocidade.
Que suplício, mulher! que dor de Tântalo
Suspirar pela morte amando a vida!
Que nunca saibas, tu, como eu te amava,
Nem como a minha dor é desabrida!
O sol dessa ventura que me negas
Alumie teus últimos momentos!
Depois... pelos teus sonhos vaporosos
Hás de ouvir, mas já tarde, os meus lamentos.
Então te lembrarás dos meus medrosos
Cantos de amor ungidos de esperança...
Lembra-te, virgem! lembra-te um momento
Do teu doce abandono de criança!
FANTASIA
Náiade viva da legenda antiga,
Deixa o seio do rio em que te encantas!
Dá-me um riso d’amor, gota do orvalho
Que em noites de verão desperta as plantas.
Vem às horas dos pálidos vampiros
Sobre as asas em pó das borboletas!
Algum silfo talvez te espere em cuidos
Sobre os seios azuis das violetas!
Não vês a natureza a sono solto
Nos braços do silêncio, imóvel, fria?
A alma vagando, estrela d’outros mundos,
Pelos campos da loira fantasia?
E os ventos que adormecem como a noite
Nos cabelos das árvores do vale?
Nem soluçam gemidos que te assustem
Esse mortos que dormem no ervaçal.
Desce às horas do amor e dos mistérios!
Poisa o pé sem temor... é chão de flores!
Quando os vivos ressonam como os mortos,
Vem banhar-te comigo em mar de amores!
Do luar aos clarões que te acordaram
Ouve-se a estrela a cintilar dormindo;
702
Ouve-se a brisa a desfolhar saudades;
Ouve-se a folha a suspirar caindo!
Vem, flor do rio perfumada em risos!
Vem, flor dos bosques orvalhada em pranto!
Mas, se inda assim o coração te treme,
Dessas asas que tens faze o teu manto.
Dá-me um hino dos teus na voz magoada;
Dá-me um canto do céu na voz tristinha!
Já que o mundo dos vivos me abandona,
Vem, princesa do vale, vem tu ser minha!
Vem teus sonhos de amor que a alma embalsama
Desfolhar sobre mim e o meu futuro!
O mundo não te espreita! e só da noite
Brilham olhos de Deus no manto escuro.
Mas, se a aurora acordar teu pai que dorme?!
Se a brisa despertar no campo as flores?!
Vem sempre! um anjo deve amar mais cedo,
Mais cedo enlanguescer, morrer de amores!
FASCINAÇÃO
Se a mão te aperto trêmula, gelada,
Minh’alma inteira embebe-se na tua;
Quando me fitas teu olhar tranquilo
Todo o meu sangue ao coração recua.
Quando te cravo os olhos meus, pudica
Baixas os teus com um olhar tão triste!...
Não devo amar-te; no entretanto eu te amo!
- E quem a tal fascinação resiste?...
Sinto em minh’alma comoções estranhas
Quando a descuido o teu olhar me lanças:
Creio-me outro, mais gentil, mais puro;
Sonho mil sonhos cheios de esperanças.
Na branca flor que no jardim floresce,
Na rola que soluça na folhagem,
Do céu no azul, no verde do cipestre:
Por toda a parte vejo a tua imagem.
Às vezes julgo surpreender-te um gesto
Que o ser me afoga em ondas de alegria;
Mas logo, pobre sonhador, conheço
Que o sonho mente e mente a fantasia.
Tu és a luz da minha vida, a crença
Que a minha morta mocidade chora;
703
Minh’alma adeja na amplidão, suspensa,
Quando não vejo o teu sorrir de aurora....
De aurora, sim! - pois a neblina imensa
Em que me envolvo - toda se adelgaça
Ao teu sorriso angelical e às vezes
Que ao pé de mim o teu vestido passa.
Sinto que te amo desse amor vertigem
Que num momento a vida nos consome:
Sinto ao teu nome estremecer-me o seio...
- Tem-me sido fatal teu doce nome!
Nunca disseste uma palavra, nunca
Um gesto só traiu teu pensamento:
Não sei como este amor me irrompeu n’alma!
Mas sei bem que ele faz o teu tormento.
Foi como o sutil fluido que evapora
A natureza em plena primavera:
Um nada que resume a vida inteira,
Um riso, um som que passa, uma quimera!
Eu sei que o nosso amor seria um crime
Perante o mundo e a própria consciência:
Seria atar o riso à desventura
O perturbar-te a angélica inocência.
Assim pois, meu amor, guarda os teus sonhos
E as castas ilusões da mocidade
Para o mortal que os fados te destinam:
Que ele te dê - por mim - a felicidade.
Que ele alcatife o teu passar de flores;
Que o sonho teu... Meu Deus! oh como o invejo
Que entenda, oh anjo, o teu menor sorriso
E que adivinhe o teu menor desejo...
Eu fugirei para remotas plagas,
Onde o não veja, pálido, a teu lado!...
Mas lá tão longe, em toda a parte e sempre
Hei de arrastar o meu grilhão pesado!
704
TEÓFILO DIAS
(1854—1889)
LITERATURA BRASILEIRA
CISMAS À BEIRA-MAR
I
Mar longínquo e profundo! A terra erguida
Lançou-te ao largo, furibundo colo
Duros anéis d'aspérrima cadeia,
Por que, batendo nos fuzis de bronze,
Ao rugido das vagas concertasses
Teu hino eterno ao criador dos mundos.
Leão terrível, que um Titã robusto
No seio encarcerou de jaula estreita,
Serás eterno ali! - Raivoso embalde
As férreas grades violento açoitas
Com a juba hirsuta, e as crinas distendidas
Dos flancos ofegantes! - Irritado
Da tenaz resistência e luta insana,
Em vão colhes a fúria inquebrantável.
E as forças concentrando, horrendo exalas
No esforço derradeiro o extremo alento!
Amo-te assim, oh mar! quando iracundos,
Belicosos, galgando o dorso impávido
Dos marinhos corcéis, - arrancam, pula,
Teus longos esquadrões de bravas ondas
Dum pólo e doutro pólo, erguendo as frontes
De úmidas, brancas flores rociadas!
Quando sentindo, ao recuar das águas,
Nuas as negras, fúnebres cavernas,
705
Com medonho estridor nas trevas uiva
abismo tenebroso! - quando voam
Sobre as ondas os gênios invisíveis,
As bandeiras de fogo desfraldando
Aos vendavais revoltos, - ou mordendo
Com a boca cintilante as ancas lúbricas
Dos marciais ginetes, que insofridos
Franjam, doiram de rápidas fagulhas
Os rutilantes freios encantados!
Quando, do vítreo olhar e largas ventas
Lava e súlfur soprando em bastos rolos,
E as estrondosas patas retumbando
No rouco chão dos pólos acendidos,
Ruem teus esquadrões pujantes - contra
A indômita barreira e brônzeo círculo!
Ou quando, roto o ar aos choques rudes,
Os orbes estalados retinindo
na imensidade pávida reboam,
Prolongando o fragor nos ecos surdos!
II
Portentoso oceano! Mar sonoro
De vagas turbulentas que murmuram,
Do fugitivo céu beijando as nuvens!
Que mão divina burilou-te à face
Da criação, relevo do infinito?
Meus olhos quando atônitos alongo
No azul sombrio teu, - e os meus ouvidos
Teu cântico ruidoso atentos sorvem,
Não sei que sacro horror minha alma embebe!
Na tua placidez se me afigura
Os olhares de Deus fulgirem rubros
E a voz de Jeová gemer profunda.
Simpática atração me arrouba inteiro
Aos combros de esmeraldas que balouças
No colo intumescido... Um vago anelo,
Mais forte agora, agora mais ardente,
Se acorda no meu ser - de além contigo
Subir, - subir onde o rumor dos ventos
Com as duras asas não te errice as crinas,
Onde mal chega o pensamento, - e o raio,
Perdendo a força, não desperta um eco,
E expira como um som de último arranco
Num peito moribundo! Ah! quem me dera
706
Transformar-se minha alma nessa vagas
Que no teu ventre mádidas se empolam!
Então, senhor do espaço, a sós comigo,
E orgulhoso de mim, varrendo as nuvens,
E varejando a abóbada sem termos,
Cônscio de meu valor, louco de raiva,
Atordoando os céus espavoridos,
Fora insensato abalroar os mundos
Que neles se penduram! Fora ousado
Mover no firmamento as nebulosas
E a cortina cerúlea, desdobradas
Como um manto de rei sobre o meu dorso!
Eu saciara de infinito - a sede
Que todo me devora - no áureo pranto
Que as estrelas, abrindo os louros cílios,
Por claras noites, - sem luar, - sem nuvens,
Choram no éter azul! Eu te acendera
Nos raios das tormentas invencíveis
Que fervem-me no seio! e grande, e altivo,
Ao livre espaço o cântico dos livres
Mandara além do páramo - onde voa
A poeira dos astros desparzida!
A POESIA MODERNA
A POMPÍLIO DE ALBUQUERQUE
Ó cândida poesia, ó virgem branca e pura!
Águia do pensamento, errante, foragida!
Onde pairas, que em vão te anseia, te procura,
Sequiosa de luz, minha alma consumida?
De que monte sublime, aos altos céus vizinho,
Foste ouvir de mais perto os cantos siderais?
Que nova brisa embala o palpitante ninho
De novos ideais?
Envolve a tua fronte a tênebra sombria?
Que ignota mão sustém o pomo do futuro
Sobre o abismo do tempo, ó santa poesia,
Que rebrame a teus pés, profundo, horrendo, escuro?
Como, quando remuge a rábida tormenta,
Resvala a indócil nau aos férvidos parcéis,
Ó Arte, - rolarão na onda que rebenta
Teus válidos pincéis?
Poesia, onde estás? Teu corpo voluptuoso
707
No bosque do ideal repousa adormecido,
Na alfombra que margeia o rio harmonioso,
Que beija-te chorando o trêmulo vestido?
Esmoreceu-te o sono a pálpebra brilhante
Por onde irradiava a luz do teu olhar,
De que uma réstia só talvez fosse bastante
Para o mundo salvar?
Estancou-se o caudal fresquíssimo e fecundo
Onde os bravos leões, batidos pela calma,
Vinham umedecer o lábio sitibundo,
E reviver de novo à sombra de tua alma?
- Já não ousam volver os plainos devastados?
Ó sagrada vestal, é certo, pois, que em vão
Espreita o teu dormir, com os olhos encovados,
O estudo, teu irmão?
Do mundo que desaba a poeira te sufoca?
Das lepras sociais minada surdamente,
Sentindo a vasa rir, cerraste a casta boca,
E o rosto virginal voltaste descontente?
- Oh! Não! - Voaste além, librada nos espaços,
De onde vibres melhor a tua ardente voz,
Enquanto a sociedade estorce-se nos braços
Da corrupção atroz.
Ergueste o vôo além - e viste das alturas,
Nas amplas espirais do vasto precipício
Torcerem-se do mal as vítimas escuras,
A luta das paixões, a cólera do vício;
Depois, sobre um altar, com diamantinos cravos,
Tu viste um áureo Cristo, enorme, preso à cruz,
E ouviste soluçar nas trevas os escravos
Repelidos da luz.
O nédio aristocrata o corpo preguiçoso
Viste estirar, e abrindo a boca enfastiada
Contratar sem pudor, com riso caviloso,
O preço por que deve a honra ser comprada;
A altiva Liberdade, a tua irmã divina,
Sofismada, negada; - e ouviste sussurrar
Da febre da vingança a onda purpurina
No peito popular.
Tu viste a populaça, amarelenta e nua,
No lodo da miséria exausta se arrastando;
Um prostíbulo infame aberto em cada rua;
A embriaguez a rir; crianças soluçando;
O poder apoiando as pontas das espadas
708
Ao corpo social que verga-se ao grilhão,
E nota espavorido as fauces esfaimadas
Que o fitam, do canhão.
Viste mais... E um tropel de Eumênides e harpias,
Minaz fermentação de ignívomo elemento,
Lançaste sobre o mundo em legiões sombrias,
Com o surdo horror do mar e as cóleras do vento,
"Roei da sociedade a vacilante base!"
Bradaste à inundação com lábio varonil;
"O edifício fatal de uma só vez se arrase,
Desfeito em cinza vil!"
E és hoje a grande luz da tempestade invicta!
De cada consciência entraste nos arcanos,
E o militar venal, e o ignóbil jesuíta
Ameaçam-te em vão com o cetro dos tiranos!
És a deusa viril da Ilíada sagrada!
És o raio de paz com brados de trovão!
Empunhas da Justiça a lança imaculada,
E o escudo da Razão!
O OCEANO, A SERPENTE, LEVIATÃ, VINATEINA, O PEIXE MACÁR
Basta, Senhor, de acumular as vagas
Sobre o meu largo peito
Que com o líquido peso imenso esmagas.
Como de espaço estreito,
A tua urna cheia já despede,
Pela borda escorrendo as gotas de ouro.
É cheio o bebedouro:
Quem virá, Senhor, matar a sede
Teu rebanho ofegante?
- Tu com o sopro me abates;
Tu flagelas-me os flancos; tu me feres
A ilharga fumegante;
E nem há mais que esperes
Que, à pressão, dos agudos acicates,
Possa correr mais rápido; e precipite,
Cedendo à força tua,
Lamber com a vaga ao céu o azul limite,
Que, quanto mais avanço, mais recua.
Em vão do abismo o fundo pulso e cavo
Com as patas orvalhosas;
Em vão, túrbido e bravo,
Longe sacudo as crinas espumosas;
709
Em vão remoinho, cheio de furor:
- Onde vamos, Senhor?
Há muito tempo que amontôo e rolo,
Pelo caminho, as ondas em voragem;
E não tenho o consolo
De ver jamais o termo da viagem.
Viverei a fitar, sempre, isolado,
Na minha imensidade, a própria imagem?
Nunca me será dado
Escutar outra voz
Ressoar-me no ouvido?
- Outro som, que não seja o meu rugido
Horríssono e feroz?
Ontem, quando festivo
Do nascente luar o raio intenso
Roçou-me o cimo ondeiante e fugitivo,
Senti um gozo imenso.
Pareceu-me, Senhor, que me afagava
A tua mão com lânguidas carícias;
Correu-me o dorso um trêmulo arrepio,
Quando julguei-a ver, que me enlaçava
A colo um áureo fio;
E penetrado de íntimas delícias
Fiquei-me palpitando,
Como se uma asa elétrica, espalmada,
Passasse-me, voando,
Por sobre a crina crespa e desgrenhada;
Mas tanto que tocou-me o ansioso peito,
Vi o raio saltar, todo desfeito,
Em fofa espuma, rórida e nevada.
Ah! Se me fosse deparada alguma
Amiga praia, - um mundo que não eu,
N'essa praia eu faria o leito meu,
E todo o fabricara de alva espuma,
Da poeira as pérolas mais finas,
De rútilos cristais,
Raízes de alga, conchas purpurinas,
E vistosos corais
Minhas águas veria
Brilharem no meu leito, ébrias de amor,
Como o gládio, que pende e que irradia
Do teu cinto, Senhor!
Leviatã, lançando-se do abismo
710
Quem do abismo arremessou-me?
Quem de escamas cintilantes
O rude corpo forrou-me?
Que mão potente rasgou-me
As mandíbulas hiantes?
A onda inquieta rasteja
Nas praias a murmurar;
O vento surdo rouqueja,
Nos penedos, ao passar;
Dormem as ilhas nas brumas;
Fervem cândidas espumas
No crespo dorso do mar.
Longe, as vagas se encapelam
Em montes alevantados,
E túrbidos se atropelam
Como famintas ninhadas
De crocodilos, que lutam
- Como que a posse disputam
Do regaço maternal,
E à doce luz virginal
Que esparge em torno à manhã
Brilham as cristas doiradas
Das montanhas elevadas,
Como escamas trituradas
Nos dentes de Leviatã.
A SERPENTE
Tivesse eu asas, como as tuas! - Fora,
Em antes de falar,
Rasgando o céu por esse espaço afora,
Às nuvens mais altívolas pairar;
E em torno perscrutar
O que vai pelo mundo.
Mas, não as tenha embora,
Eu me erguerei do fundo
Da lama, para ver
O universo ao nascer.
É esta, é esta a árvore da vida!
Em volta do seu tronco e dos seus ramos
Vou enroscar-me, estreitamente unida.
Agora, assim, vejamos
D'este universo a imagem.
711
Com a minha cuada imensa o chão rastejo,
Com mil cabeças erriçadas beijo
O vasto céu por cima da folhagem;
Com mil olhos perscruto a terra toda;
Com mil línguas dardejo
Atro veneno em roda.
Mas em verdade nada mais eu vejo
Que altas montanhas, que em anéis ondeiam,
Mil rios, que serpeiam,
Sob as florestas deslizando lentos,
E o corcel Semeheu que, enfurecido,
Pelas garras dos djins corre pungido,
A argêntea cauda sacudindo aos ventos.
Ei-lo muda de cor a cada instante,
Já pálido, já negro, já brilhante,
Já revestindo o azul do céu sereno,
Já da cor do veneno
Que me escorre da boca fumegante.
Causa piedade e dó.
712
TOBIAS BARRETO
(1839—1889)
LITERATURA BRASILEIRA
VICTOR HUGO
Mostras na fonte os estragos
Dos raios que a sorte tem;
Na falange dos teus Magos
Tu és um mago também.
Joelhas, quebro da idéia,
Ante a luz que bruxuleia
Dos futuros através!
Por grande, os teus te renegam;
Cem anátemas fumegam
Sufocados a seus pés...
O estilo d'oiro que empunhas,
Foi o Senhor quem t'o deu.
Leva a águia a presa nas unhas,
Ninguém lhe diz: isto é meu!
Estrelas, mundos, idéias,
Bíblias, monstros, epopéias,
Tudo que empolga é teu...
Cabeça que pesa um astro
Na mente de Zoroastro,
Na mão de Ptolomeu!
DOIS DE JULHO
713
Na frente dos belos dias
Que trajam mais viva luz,
Desfilando entre harmonias
No vasto império da cruz,
Passa um dia sublimado,
Qual guerreiro namorado,
Valente, bravo e gentil,
Que traz a glória estampada,
Na face meio embaçada
Pelo alento do fuzil.
Neste dia, sempre novo,
Entre os aplausos do mar,
Entre os ruídos do povo,
Vai a cidade falar...
Atriz majestosa e bela,
Falando só e só ela
Diante de duas nações,
Representa um alto feito,
Que arranca brados do peito
De emudecidos canhões.
A ESCRAVIDÃO
Se Deus é quem deixa o mundo
Sob o peso que o oprime,
Se ele consente esse crime,
Que se chama a escravidão,
Para fazer homens livres,
Para arrancá-los do abismo,
Existe um patriotismo
Maior que a religião.
Se não lhe importa o escravo
Que a seus pés queixas deponha,
Cobrindo assim de vergonha
A face dos anjos seus,
Em seu delírio inefável,
Praticando a caridade,
Nesta hora a mocidade
Corrige o erro de Deus!...
714
QUE MIMO!
Tu és morena e sublime
Como a hora do sol posto.
E, no crepúsculo eterno
Que te envolve o lindo rosto,
O céu desfolha canduras
De alvoradas e jasmins,
E passam roçando n'alma
As asas dos querubins...
Teu corpo que tem o cheiro
De cem capelas de rosas,
Que t'enche a roupa de quebros,
De ondulações graciosas,
Teu corpo derrama essências
Como uma campina em flor:
Beijá-lo!... fora loucura;
Gozá-lo!... morrer de amor...
O BEIJA-FLOR
Era uma moça franzina,
Bela visão matutina
Daquelas que é raro ver,
Corpo esbelto, colo erguido,
Molhando o branco vestido
No orvalho do amanhecer.
Vede-a lá: tímida, esquiva...
Que boca! é a flor mais viva,
Que agora está no jardim;
Mordendo a polpa dos lábios
Como quem suga o ressábio
Dos beijos de um querubim!
Nem viu que as auras gemeram,
E os ramos estremeceram
Quando um pouco ali se ergueu...
Nos alvos dentes, viçosa,
Parte o talo de uma rosa,
Que docemente colheu.
715
E a fresca rosa orvalhada,
Que contrasta descorada,
Do seu rosto a nívea tez,
Beijando as mãozinhas suas,
Parece que diz: nós duas!...
E a brisa emenda: nós três!...
Vai nesse andar descuidoso,
Quando um beija-flor teimoso
Brincar entre os galhos vem,
Sente o aroma da donzela,
Peneira na face dela,
E quer-lhe os lábios também
Treme a virgem de surpresa,
Leva do braço em defesa,
Vai com o braço a flor da mão;
Nas asas d’ave mimosa
Quebra-se a flor melindrosa,
Que rola esparsa no chão.
Não sei o que a virgem fala,
Que abre o peito e mais trescala
Do trescalar de uma flor:
Voa em cima o passarinho...
Vai já tocando o biquinho
Nos beiços de rubra cor.
A moça, que se envergonha
De correr, meio risonha
Procura se desviar;
Neste empenho os seios ambos
Deixa ver; inconhos jambos
De algum celeste pomar!...
Forte luta, luta incrível
Por um beijo! É impossível
Dizer tudo o que se deu.
Tanta coisa, que se esquece
Na vida! Mas me parece
Que o passarinho venceu!...
Conheço a moça franzina
Que a fronte cândida inclina
716
Ao sopro de casto amor:
Seu rosto fica mais lindo,
Quando ela conta sorrindo
A história do beija-flor.
AMAR
Amar é fazer o ninho,
Que duas almas contém,
Ter medo de estar sozinho,
Dizer com lágrimas: vem,
Flor, querida, noiva, esposa…
Cabemos na mesma lousa…
Julieta, eu seu Romeu:
Correr, gritar: onde vamos?
Que luz! que cheiro! onde estamos?
E ouvir uma voz: no céu!
Vagar em campos floridos
Que a terra mesma não tem;
Chegamos loucos, perdidos
Onde não chega ninguém…
E, ao pé de correntes calmas,
Que espelham virentes palmas,
Dizer-te: senta-te aqui;
E além, na margem sombria,
Ver uma corça bravia,
Pasmada olhando pra ti!
IGNORABIMUS
Quanta ilusão!... O céu mostra-se esquivo
E surdo ao brado do universo inteiro...
De dúvidas cruéis prisioneiro,
Tomba por terra o pensamento altivo.
Dizem que o Cristo, o filho de Deus vivo,
A quem chamam também Deus verdadeiro,
Veio o mundo remir do cativeiro,
E eu vejo o mundo ainda tão cativo!
Se os reis são sempre os reis, se o povo ignavo
717
Não deixou de provar o duro freio
Da tirania, e da miséria o travo,
Se é sempre o mesmo engodo e falso enleio,
Se o homem chora e continua escravo,
De que foi que Jesus salvar-nos veio?...
QUE MIMO
Tu és morena e sublime,
Como a hora do sol posto.
E, no crepúsculo eterno
Que te envolve o lindo rosto,
O céu desfolha canduras
De alvoradas e jasmins,
E passam roçando n´alma
As asas dos querubins...
Teu corpo que tem o cheiro
De cem capelas de rosas,
Que t´enche a roupa de quebros,
De ondulações graciosas,
Teu corpo derrama essências
Como uma campina em flor:
Beijá-lo!... fora loucura;
Gozá-lo!... morrer de amor...
O GÊNIO DA HUMANIDADE
Sou eu quem assiste às lutas,
Que dentro d´alma se dão,
Quem sonda todas as grutas
Profundas do coração:
Quis ver dos céus o segredo;
Rebelde, sobre um rochedo
Cravado, fui Prometeu;
Tive sede do infinito,
Gênio, feliz ou maldito,
A Humanidade sou eu.
Ergo o braço, aceno aos ares,
E o céu se azulando vai;
718
Estendo a mão sobre os mares,
E os mares dizem: passai!...
Satisfazendo ao anelo
Do bom, do grande e do belo,
Todas as formas tomei:
Com Homero fui poeta,
Com Isaías profeta,
Com Alexandre fui rei.
Ouvi-me: venho de longe,
Sou guerreiro e sou pastor;
As minhas barbas de monge
Têm seis mil anos de dor:
Entrei por todas as portas
Das grandes cidades mortas,
Aos bafos do meu corcel,
E ainda sinto os ressábios
Dos beijos que dei nos lábios
Da prostituta Babel.
E vi Pentapólis nua,
Que não corava de mim,
Dizendo ao sol: eu sou tua,
Beija-me... Queima-me assim!
E dentro havia risadas
De cinco irmãs abraçadas
Em voluptuoso furor...
Ânsias de febre e loucura,
Chiando em polpas de alvura,
Lábios em brasas de amor!...
Travei-me em lutas imensas,
Por vezes, cansado e nu,
Gritei ao céu: em que pensas?
Ao mar: de que choras tu?
Caminho... e tudo que faço
Derramo sobre o regaço
Da história, que é minha irmã:
Chamem-me Byron ou Goethe,
Na fronte do meu ginete
Brilha a estrela da manhã.
E no meu canto solene
Vibra a ira do Senhor:
719
Na vida, nesse perene
Crepúsculo interior,
O ímpio diz: anoitece!
O justo diz: amanhece!
Vão ambos na sua fé...
E às tempestades que abalam
As crenças d´alma, que estalam,
Só eu resisto de pé!...
De Deus ao imenso ouvido
A Humanidade é um tropel,
E a natureza um ruído
Das abelhas com seu mel,
Das flores com seu orvalho,
Dos moços com seu trabalho
De santa e nobre ambição,
De pensamentos que voam,
De gritos d´alma, que ecoam
No fundo do coração!...
GLOSA
(Improviso)
“Quando os teus olhos me fitam,
Minh´alma acredita em Deus.”
Eu sinto que se me agitam
As profundezas do ser,
Que mais um raio é morrer,
Quando os teus olhos me fitam.
Que pensamentos excitam
Os olhos fagueiros teus!
São rompimentos de céus
Olhares que a tudo abalam...
Quando os teus olhos me fitam,
Minh´alma acredita em Deus!...
720
TRINDADE COELHO
(1885—1934)
LITERATURA PORTUGUESA
PARÓDIA AOS LUSÍADAS
Os grandes paspalhões assinalados,
Que nas reuniões da Academia
Foram solenemente apepinados
Por sua telha ou sua fidalguia,
Que nas guerras das mocas esforçados
Mais do que a força humana permitia
No Teatro Acadêmico asnearam
Tolices de que todos se espantaram;
E também as façanhas gloriosas
Dos Cabrais e Waldecks e quejandos,
Que à noite, com as vozes mais fanhosas,
andam o nível a pedir em bandos;
E as diabólicas fúrias deliciosas
De certos quintanistas memorandos,
Cantando espalharei por toda a parte.
Há-de-se rir o mundo até que farte.
Ó musa da ironia e da arruaça,
Que tens excepcionais o gesto e o peito,
Vira-te para mim e põe-te a jeito
De inspirar um poema de chalaça;
Quero um poema esplêndido, perfeito,
Que vos celebre e que subir vos faça,
Num pulo só, da glória à mor altura,
Cavaleiros da mais triste figura!
721
Haviam sido há pouco apepinados
Os meus heróis, que andavam murmurando
Que na Trindade ou para aqueles lados
Se estava contra eles conspirando,
Quando uma noite andando endiabrados
Pela Feira sobre isto conversando,
Uma moca que os ares escurece
Sobre as suas cabeças aparece.
Viu-se o Waldeck! Vinha carregado
Com a moca que pôs a todos medo.
"Ai rapazes!, bradou, venho estafado
Qual se trouxesse às costas um rochedo!
Deixai-me descansar só um bocado
Para depois contar-vos um segredo."
E diziam os outros: "Co'esta moca
'Stamos seguros, pois ninguém nos toca."
722
VICENTE DE CARVALHO
(1866—1924)
LITERATURA BRASILEIRA
ADORMECIDA
Ela dormia... Sobre o alvor do leito
Desenhava-se, esplêndida miragem,
Seu lindo corpo, escultural, perfeito.
Encrespado das rendas da roupagem,
Seu seio brandamente palpitava
Como a lagoa no tremor da aragem.
Solto, o cabelo se desenrolava
Sobre os lençóis, em plena rebeldia,
Como um revolto mar que os alagava.
Como no céu, quando desponta o dia,
A aurora raia, de um sorriso a aurora
Pelo seu meigo rosto se expandia.
E ela dormia descuidada... Fora,
O mar gemia um cântico plangente
Como uma alma perdida que erra e chora.
Um raio de luar, branco e tremente,
Pela janela mal cerrada veio
Entrando, surda, sorrateiramente...
Ia beijá-la em voluptuoso anseio;
Mas, ao vê-la dormindo entre as serenas
Ondas daquele sono sem receio,
723
Hesitou em beijar-lhe as mãos pequenas,
E humildemente, e como ajoelhando,
Beijou-lhe a fímbria do vestido apenas...
E o lindo quadro, estático, fitando,
Senti não sei que mística ternura
Por toda a alma se me derramando
Porque acima daquela formosura
Do corpo, os seus quinze anos virginais
Envolviam-lhe a angélica figura
Na sombra de umas asas ideais.
A MINHA IRMÃ
Entregaram-te enfim à paz do cemitério,
Deixaram-te na cova o corpo delicado,
E a funda escuridão enorme do Mistério
Para sempre engoliu-te, ó lírio desfolhado!
Agora, na umidade aspérrima do solo,
Terás para abrigar-te o derradeiro sono
- Em vez do olhar materno e do materno colo A tristeza glacial de um lúgubre abandono.
E lá - ir-te-ão roçar a alvíssima epiderme,
E, roendo-te a carne, apodrecer-te os ossos,
O contato nojento e túrbido do verme,
E as negras podridões dos charcos e dos poços.
E enquanto adormecida à sombra desolada
Dos ciprestes, tua carne apodrentar-se, as feras
Hão de sorver a luz ao cálix da alvorada
E hão aspirar o aroma às frescas primaveras.
E enquanto na funérea escuridão dormires,
A terra há de sorrir nas expansões da flora,
Hão de enfaixar o céu as cores do arco-íris,
E o sol há de fulgir nas púrpuras da aurora.
E tu... não hás de mais colher pelos caminhos
A rubra flor aberta à madrugada; e à ave
724
Não mais imitarão a música dos ninhos
As doces vibrações de tua voz suave!
Amanhã tu serás o lodo de um monturo,
Uma caveira a rir um riso de idiota;
E surgirás no limo, e hás de ser verme impuro,
E virás na erva ruim que a sepultura brota...
Embora! Terás sempre a alvura do alabastro
À vista espiritual de uma ilusão materna...
Ao olhar de tua mãe tu serás sempre um astro
Esculpido no azul de uma saudade eterna!
MENINA E MOÇA
Tu, que és quase uma criança
E que enlevada sorris
À tentadora esperança
De ser amada, e feliz:
Sê formosa; entre as formosas
Reina e brilha, se puderes:
Que a beleza nas mulheres
É como o viço nas rosas.
Sendo bonita e mais nada
Cumpre a mulher com fulgor
Sobre a terra iluminada
O seu destino de flor.
Sê bondosa; entre as melhores
Sê a melhor, se puderes:
Que a bondade nas mulheres
É como o aroma nas flores.
Meiga, formosa, querida,
Ama e sê amada: o amor
Na areia solta da vida
Brota roseiras em flor.
Serás feliz? Ai, não queiras
Ser feliz: às mais ditosas
Brotam mágoas entre as rosas
725
Como espinhos nas roseiras...
Tu, que és quase uma criança
E acreditas quanto diz
A enganadora esperança
De ser amada e feliz,
Sê resignada: a roseira
Que mais viça e mais prospera
Dá rosas na primavera
E espinhos a vida inteira...
A INVENÇÃO DO DIABO
Deus, entregando ao Diabo a metade do mundo,
Deu-lhe a parte pior, como era de razão;
E, para arrecadar seu patrimônio, o Imundo
Foi forçado a varrer todo o cisco do chão.
Tomando para si todo o imenso tesouro
Da Bondade e da Luz, do Amor e da Harmonia,
Pode o Senhor fazer esbanjamento de ouro
Nas estrelas da noite e no esplendor do dia.
Pode esparzir na areia as pérolas do orvalho,
Marchetar de rubis a asa de um beija-flor,
Fazer a primavera — e por em cada galho
O gorjeio de uma ave e o riso de uma flor...
A Satanás, porém, coube em partilha a treva,
O ódio como prazer, como covil um poço,
E ele lá no seu reino escuro a vida leva
De um cão magro a que dão muita pancada e um osso.
E, enquanto a mão de Deus, abrindo-se, semeia
Astros de ouro no céu, messes de ouro no pó,
Satanás, furioso, a mão sacode, cheia
De lepra e maldição como o punho de Jó.
Só uma vez Satã respirou satisfeito,
E arregaçou-lhe o beijo um pérfido sorriso:
Quando, acaso, ao sair do seu covil estreito,
De repente se achou dentro do Paraíso.
726
A primeira impressão que teve foi de inveja:
Daquele estranho quadro o imprevisto esplendor,
Só lhe pode arrancar à boca malfazeja
Uivos de cão ferido, imprecações de dor.
Mas, de repente, como o corisco clareia
O tenebroso céu nas borrascas de agosto,
Uma idéia triunfante, uma sinistra idéia,
Fuzilou-lhe no olhar e iluminou-lhe o rosto.
Sobre um macio chão todo em musgos e rosas,
Eva, formosa e nua, adormecera ao luar:
E sobre a alva nudez dessas formas graciosas
Satã deixou cair um desdenhoso olhar...
Mas num sonho talvez de cousas ignoradas,
Num desejo sem alvo, imperfeito e indeciso,
Eva os lábios abriu — e abriram-se, orvalhadas,
De um suspiro de amor, as rosas de um sorriso.
Espantado, Satã viu que esse mármore era
Animado e gentil, ardente e encantador;
Como um resumo viu de toda a primavera
Na frescura sem par daquela boca em flor.
E foi somente então que o Príncipe das Treva
Imaginou o Amor furioso e desgrenhado,
E resolveu fazer dos róseos lábios de Eva
O cálix consagrado às missas do Pecado.
Lábios feitos de mel, de rosas ao sereno,
De céu do amanhecer franjado em rosicler...
Entreabriu-os Satã, e enchendo-os de veneno,
Sorriu. Tinha inventado o beijo da mulher.
FUGINDO AO CATIVEIRO
Horas mortas. Inverno. Em plena mata. Em plena
Serra do Mar.
I
Em cima, ao longe, alta e serena,
A ampla curva do céu das noites de geada:
727
Como a palpitação vagamente azulada
De uma poeira de estrelas...
Negra, imensa, disforme,
Enegrecendo a noite, a desdobrar-se pelas
Amplidões do horizonte, a cordilheira dorme.
Como um sonho febril no seu sono ofegante,
Na sombra em confusão do mato farfalhante,
Tumultuando, o chão corre às soltas, sem rumo;
Trepa agora alcantis por escarpas a prumo,
Eriça-se em calhaus, bruscos como arrepios;
Mais repousado, além levemente se enruga
Na crespa ondulação de cômoros macios:
Resvala num declive; e logo, como em fuga
Precípite, através da escuridão noturna,
Despenha-se de chofre ao vácuo de uma furna.
Do fundo dos grotões outra vez se subleva,
Surge, recai, ressurge... E, assim, como em torrente
Furiosa, em convulsões, vai rolando na treva
Despedaçadamente e indefinidamente...
Muge na sombra a voz rouca das cachoeiras.
Rajadas sorrateiras
De um vento preguiçoso arfam de quando em quando
Como um vasto motim que passa sussurrando:
E em cada árvore altiva, e em cada humilde arbusto,
Há contorções de raiva ou frêmitos de susto.
A mata é tropical: basta, quase maciça
De tão cerrada. Ao pé do tronco dominante,
Que, imperturbavelmente imóvel, inteiriça
Sob a rija galhada o torso de gigante.
- Uma vegetação turbulenta e bravia
Rasteja, alastra, fura, enrosca-se, porfia:
Moitas de craguatás agressivos; rasteiras
Trapoeirabas tramando o chão todo; touceiras
De brejaúva,em riste as flechas oriçadas
De espinhos; e por tudo, e em tudo emaranhadas,
As trepadeiras, em redouças balouçando
Hastes vergadas, galho a galho acorrentando
Árvores, afogando arbustos, brutalmente
728
Enlaçando à jissara o talhe adolescente...
Cem espécies formando a trama de uma sebe,
Atulhando o desvão de dois troncos; a plebe
Da floresta, oprimida e em perpétuo levante.
Acesa num furor de seiva transbordante,
Toda essa multidão desgrenhada - fundida
Como a conflagração de cem tribos selvagens
Em batalha - a agitar cem formas de folhagens
Disputa-se o ar, o chão, o orvalho, o espaço, a vida.
Na confusão da noite, a confusão do mato
Gera alucinações de um pavor insensato,
Aguça o ouvido ansioso e a visão quase extinta:
Lembra - e talvez abafe - urros de onça faminta
A mal ouvida voz da trêmula cascata
Que salta e foge e vai rolando águas de prata.
Rugem sinistramente as moitas sussurrantes.
Acoitam-se traições de abismo numa alfombra.
Penedos traçam no ar figuras de gigantes.
Cada ruído ameaça, e cada vulto assombra.
Uns tardos caminhantes
Sinistros, meio nus, esboçados na sombra,
Passam, como visões vagas de um pesadelo...
São cativos fugindo ao cativeiro. O bando
É numeroso. Vêm de longe, no atropelo
Da fuga perseguida e cansada. Hesitando,
Em recuos de susto e avançadas afoitas,
Rompendo o mato e a noite, investindo as ladeiras,
Improvisam o rumo ao acaso das moitas.
Vão arrastando os pés chaga dos de frieiras...
De furna em furna a Serra, imensa, se desdobra,
De sombra em sombra a noite, infinda, se prolonga;
E flexuosa, em vaivéns, como de dobra em dobra,
A longa fila ondula e serpenteia, e a longa
Marcha através da noite e das furnas avança...
Vão andrajosos, vão famintos, vão morrendo.
Incita-os o terror, alenta-os a esperança:
Fica-lhes para trás, para longe, o tremendo
Cativeiro... E através desses grotões por onde
729
Se arrastam, do sertão que os esmaga e os esconde.
Da vasta escuridão que os cega e que os ampara,
Do mato que obsta e apaga os seus passos furtivos,
Seguem, almas de hebreus, rumo do Jabaquara
- A Canaã dos cativos.
Vão calados, poupando o fôlego. De quando
Em quando - fio d'água humilde murmurando
As tristezas de um lago imenso - algum gemido,
Um grito de mulher, um choro de criança,
Conta uma nova dor em peito já dorido,
Um bruxoleio mais mortiço da esperança,
A rajada mais fria arrepiando a floresta
E a pele nua; o espinho entrando a carne; a aresta
De um seixo apunhalando o pé já todo em sangue:
Uma exacerbação nova da fome velha,
A tortura da marcha imposta ao corpo exangue;
O joelho exausto que, contra a vontade, ajoelha...
E a longa fila segue: a passo, vagarosa,
Galga de fraga em fraga a montanha fragosa,
Bem mais fragosa, bem mais alta que o Calvário...
Um, tropeçando, arrima o pai octogenário:
Os mais valentes dão apoio aos mais franzinos;
E Mães, a agonizar de fome e de cansaço,
Levam com o coração mais do que com o braço
Os filhos pequeninos.
II
Ei-lo, por fim, o termo desejado
Da subida: a montanha avulta e cresce
De um vale escuro ao céu todo estrelado;
E o seu cume de súbito aparece
De um resplendor de estrelas aureolado.
Mas ai! Tão longe ainda!... E de permeio
A vastidão da sombra sem caminhos,
Um fundo vale, tenebroso e feio,
E o mato, o mato das barrocas, cheio
De fantasmas, de estrépitos, de espinhos.
Tão longe ainda!...E os peitos arquejantes,
E as forças e a coragem sucumbindo...
730
Estacando, aterrados, por instantes
Pensam que a morte hão de encontrar bem antes
Do termo desse itinerário infindo...
Tiritando, a chorar, uma criança
Diz com voz débil: "Mãe, faz tanto frio!..."
E a mãe os olhos desvairados lança
Em torno, e vê apenas o sombrio
Manto de folhas que o tufão balança...
"Mãe, tenho fome!" a criancinha geme,
E ela, dos trapos arrancando o seio,
Põe-lho na boca ansiosa, aperta e espreme...
Árido e seco!...E do caminho em meio
Ela, aterrada e muda, estaca e treme.
Vai-lhe morrer, morrer nos próprios braços,
Morrer de fome, o filho bem-querido;
E ela, arrastando para longe os passos,
O amado corpo deixará, perdido
Para os seus beijos, para os seus abraços...
Esse cadáver pequenino, e o riso
Murcho no lábio, e os olhos apagados,
Toda essa vida morta de improviso,
Hão de ficar no chão, abandonados
À inclemência dos sóis e do granizo;
Esse entezinho débil e medroso,
Que ao mais leve rumor se assusta e busca
O asilo do seu seio carinhoso,
Há de ficar sozinho; e, em torno, a brusca
Voz do vento ululante e cavernoso...
E, em torno, a vasta noite solitária
Cheia de sombra, cheia de pavores,
Onde passa a visão errante e vária
Dos lobisomens ameaçadores
Em desfilada solta e tumultuária...
Desde a cabeça aos pés, toda estremece;
Falta-lhe a força, a vista se lhe turva,
Toda a coragem na alma lhe esmorece,
E, afastando-se, ao longe, numa curva
731
O bando esgueira-se, e desaparece...
Ficam sós, ela e o filho, agonizando,
Ele a morrer de fome, ela de medo.
Ulula o furacão de quando em quando,
E sacudindo os ramos e o folhedo
Movem-se as árvores gesticulando.
Ela ergue os olhos para o céu distante
E pede ao céu que descortine a aurora:
Dorme embuçado em sombras o levante,
Mal bruxuleia pela noite fora
Das estrelas o brilho palpitante...
Tenta erguer-se, e recaí; soluça e brada,
E apenas o eco lhe responde ao grito;
Os olhos fecha para não ver nada,
E tudo vê com o coração aflito,
E tudo vê com a alma alucinada.
Dentro se lhe revolta a carne; explode
O instinto bruto, e quebra-lhe a vontade:
Mães, vosso grande amor, que tanto pode,
Pode menos que a indômita ansiedade
Em que o terror os músculos sacode!
Ela, apertando o filho estreitamente,
Beija-lhe os olhos úmidos, a boca...
E desvairada, em pranto, ébria e tremente,
Arrancando-o do seio, de repente
Larga-o no chão e foge como louca.
III
Aponta a madrugada:
Da turva noite esgarça o úmido véu,
E espraia-se risonha, alvoroçada,
Rosando os morros e dourando o céu.
A caravana trôpega e ansiosa
Chega ao tope da Serra...
O olhar dos fugitivos
Descansa enfim na terra milagrosa
Na abençoada terra
Onde não há cativos.
732
Em baixo da montanha, logo adiante,
Quase a seus pés, uma planície imensa,
Clara, risonha, aberta, verdejante:
E ao fundo do horizonte, ao fim da extensa
Macia várzea que se lhes depara
Ali, próxima, em frente,
Esfumadas na luz do sol nascente,
As colinas azuis do Jabaquara...
O dia de ser livre, tão sonhado
Lá do fundo do escuro cativeiro,
Amanhece por fim, leve e dourado,
Enchendo o céu inteiro.
Uma explosão de júbilo rebenta
Desses peitos que arquejam, dessas bocas
Famintas, dessa turba macilenta:
Um burburinho de palavras loucas,
De frases soltas que ninguém escuta
Na vasta solidão se ergue e se espalha,
E em pleno seio da floresta bruta
Canta vitória a meio da batalha.
Seguindo a turba gárrula e travessa
Que se alvoroça e canta e salta e ri-se,
Um coitado, com a trêmula cabeça
Toda a alvejar das neves da velhice,
Tardo, trôpego, só, desamparado,
Chega afinal, exsurge à superfície
Do alto cimo; repousa, consolado,
Longamente, nos longes da planície
O olhar quase apagado;
Distingue-a mal, dúvida; resmungando,
Fita-a; compreende-a pouco a pouco; vê-a
Anunciando próxima, esboçando
- No chão que brilha de um fulgor de areia,
Num verde-claro de ervaçal que ondeiaA aparição da Terra Prometida...
Todo trêmulo, ajoelha; e ajoelhado,
De mãos postas, nos olhos a alma e a vida,
733
Ele, o mesquinho e o bem-aventurado,
Adora o Céu nessa visão terrena...
E de mãos postas sempre, extasiado,
Murmura, reza esta oração serena
Como um tosco resumo do Evangelho:
"Foi Deus Nosso Senhor que teve pena
De um pobre negro velho..."
Seguem. Começa a íngreme descida.
Descem. E recomeça
A peregrinação entontecida
No labirinto da floresta espessa.
Sob o orvalho das folhas gotejantes,
Entre as moitas cerradas de espinheiros,
Andrajosos, famintos, triunfantes,
Descem barrancos e despenhadeiros.
Descem rindo, a cantar... Seguem, felizes,
Sem reparar que os pés lhes vão sangrando
Pelos espinhos e pelas raízes;
Sem reparar que atrás, pelo caminho
Por onde fogem como alegre bando
De passarinhos da gaiola escapo
- Fica um pouco de trapo em cada espinho
E uma gota de sangue em cada trapo.
Descem rindo e cantando, em vozeria
E em confusão. Toda a floresta, cheia
Do murmúrio das fontes, da alegria
Deles, da voz dos pássaros, gorjeia.
Tudo é festa. Severos e calados,
Os velhos troncos, plácidos ermitas,
Os próprios troncos velhos, remoçados,
Riem no riso em flor das parasitas.
Varando acaso às árvores a sombra
Da folhagem que à brisa arfa e revoa,
Na verde ondulação da úmida alfombra
O ouro leve do sol bubuia à toa;
A água das cachoeiras, clara e pura,
Salta de pedra em pedra, aos solavancos;
734
E a flor de S. João se dependura
Festivamente à beira dos barrancos...
Vão alegres, ruidosos... Mas no meio
Dessa alegria palpitante e louca,
Que transborda do seio
E transbordada canta e ri na boca,
Uma mulher, absorta, acabrunhada,
Segue parando a cada passo, e a cada
Instante os olhos para trás volvendo:
De além, do fundo dessas selvas brutas
Chama-a, seu nome em lágrimas gemendo,
Uma vozinha ansiosa e suplicante...
Mãe, onde geme que tão bem o escutas
Teu filho agonizante?
IV
De repente, como um agouro e uma ameaça,
Um alarido de vozes estranhas passa
Na rajada do vento...
Estacam.
Como um bando
De ariscos caitetus farejando a matilha,
Imóveis, alongado o pescoço, arquejando,
Presa a respiração, o olhar em fogo, em rilha
Os dentes, dilatada a narina, cheirando
A aragem, escutando o silêncio, espreitando
A solidão; assim, num alarma instintivo,
Estaca e põe-se alerta o bando fugitivo.
Nova rajada vem, novo alarido passa...
Como, topando o rastro inda fresco da caça,
Uiva a matilha enquanto inquire o chão agreste,
E de repente, em fúria, alvoçada investe
E vai correndo e vai latindo de mistura;
Rosna ao dar-lhes na pista a escolta que os procura,
E morro abaixo vem ladrando-lhes no encalço.
Grita e avança em triunfo a soldadesca ufana.
E os frangalhos ao vento, em sangue o pé descalço,
Alcatéia usurpando a forma e a face humana,
735
Almas em desespero arfando em corpos gastos,
Mães aflitas levando os filhinhos de rastos,
Homens com o duro rosto em lágrimas, velhinhos
Esfarrapando as mãos a tatear nos espinhos;
Toda essa aluvião de caça perseguida
Por um clamor de fúria e um tropel de batida,
Foge... Rompendo o mato e rolando a montanha,
Foge... E, moitas, a dentro e barrocais a fora,
Arrasta-se, tropeça, esbarra, se emaranha,
Arqueja, hesita, afrouxa, e desanima, e chora...
Param.
Perto, bramindo, a escolta o passo estuga.
Os fugitivos, nesse aproximar da escolta
Sentem que vai chegando o epílogo da fuga:
A gargalheira, a algema, as angústias da volta...
Além, fulge na luz da manhã leve e clara,
O contorno ondulante e azul do Jabaquara.
Adeus, terra bendita! Adeus, sonho apagado
De ser livre! É preciso acordar, e acordado
Ver-te ainda, e dizer-te um adeus derradeiro,
E voltar, para longe e para o cativeiro.
Sobre eles, novamente, uma funéria noite
Cai, para sempre...
Como a trôpega boiada,
Que, abrasada de sede e tangida do açoite,
Se arrasta pela areia adusta de uma estrada:
Volverão a arrastar-se, humildes e tristonhos,
Tangidos do azorrague e abrasados de sonhos,
Pelo deserto areal desse caminho estreito:
A vida partilhada entre a senzala e o eito...
Agrupam-se, vencidos,
A tremer, escutando o tropel e os rugidos
Da escolta cada vez mais em fúria e mais perto.
Nesse magote vil de negros maltrapilhos
Mais de um olhar, fitando o vasto céu deserto,
Ingenuamente exprobra o Pai que enjeita os filhos...
736
Destaca-se do grupo um fugitivo. Lança
Em torno um longo olhar tranquilo, de esperança,
E diz aos companheiros:
"Fugi, correi, saltai pelos despenhadeiros;
A várzea está lá em baixo, o Jabaquara é perto...
Deixai-me aqui sozinho.
Eu vou morrer, decerto...
Vou morrer combatendo e trancando o caminho.
A morte assim me agrada:
Eu tinha de voltar p´ra conservar-me vivo...
E é melhor acabar na ponta de uma espada
Do que viver cativo".
E enquanto a caravana
Desanda pelo morro atropeladamente,
Ele, torvo, figura humilde e soberana,
Fica, e a pé firme espera o inimigo iminente.
Hércules negro! Corre, abrasa-lhe nas veias
Sangue de algum heróico africano selvagem,
Acostumado à guerra, a devastar aldeias,
A cantar e a sorrir no meio da carnagem
A desprezar a morte espalhando-a às mãos cheias...
Não pode a escravidão domar-lhe a índole forte,
E vergar-lhe a altivez, e ajoelhá-lo diante
Do carrasco e da algema:
Sorri para o suplício e a fito encara a morte
Sem que lhe o braço trema,
Sem que lhe ensombre o olhar o medo suplicante.
Erguendo o braço, ele ergue a foice: a foice volta,
E rola sobre a terra uma cabeça solta.
Sobre ele vem cruzar-se o gume das espadas...
"Ah, prendê-lo, jamais!" respondem as foiçadas
Turbilhonando no ar, e ferindo, e matando.
De lado a lado o sangue espirra a jorros... Ele,
Ágil, possante, ousado, heróico, formidando,
Faz frente: um contra dez, defende-se e repele.
E não se entrega, e não recua, e não fraqueja.
Tudo nele, alma e corpo ajustados, peleja:
737
O braço luta, o olhar ameaça e desafia,
A coragem resiste, a agilidade vence.
E, coriscando no ar, a foice rodopia.
Afinal um soldado, ébrio de covardia,
Recua; vai fugir... Recua mais; detém-se:
Fora da luta, sente o gosto da chacina;
E vagarosamente alçando a carabina,
Visa, desfecha.
O negro abrira um passo à frente,
Erguera a foice, armava um golpe...
De repente
Estremece-lhe todo o corpo fulminado.
Cai-lhe das mãos a foice, inerte, para um lado,
Pende-lhe, inerte, o braço. Impotente, indefeso
Ilumina-lhe ainda a face decomposta
Um derradeiro olhar de afronta e de desprezo.
Como enxame em furor de vespas assanhadas,
Assanham-se-lhe em cima os golpes sem resposta,
E retalham-no à solta os gumes das espadas...
E retalhado, exausto, o lutador vencido
Todo flameja em sangue e expira num rugido.
TU, MOÇA; EU, QUASE VELHO
Tu moça, eu quase velho... Entre nós dois, que horror,
Vinte anos de distância. Entre nós dois, mais nada.
E hoje, pensando em ti, pus-me a sonhar de amor
Somente por que vi por acaso, na estrada,
Sobre um muro em ruína, uma roseira em flor...
A UM POETA MOÇO
Desanimado, entregas-te, sem norte,
Sem relutância, à vida; e aceitas dessa
Torrente que te arrasta — a só promessa
738
De ir lentamente desaguar na morte.
Que pode haver, em suma, que te impeça
De seguir o teu rumo contra a sorte?
Sonha! e a sonhar, e assim armado e forte,
Vida e mágoas, incólume, atravessa.
Ouve: da minha extinta mocidade
Eu, que já vou fitando céus desertos,
Trouxe a consolação, trouxe a saudade,
Trouxe a certeza, enfim, (se há sonhos certos)
De ter vivido em plena claridade
Dos sonhos que sonhei de olhos abertos.
EU CANTAREI O AMOR TÃO FORTEMENTE...
Eu cantarei de amor tão fortemente
Com tal celeuma e com tamanhos brados
Que afinal teus ouvidos, dominados,
Hão de à força escutar quanto eu sustente.
Quero que meu amor se te apresente
— Não andrajoso e mendigando agrados,
Mas tal como é: —risonho e sem cuidados,
Muito de altivo, um tanto de insolente.
Nem ele mais a desejar se atreve
Do que merece; eu te amo, e o meu desejo
Apenas cobra um bem que se me deve.
Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo;
E vou de olhos enxutos e alma leve
À galharda conquista do teu beijo.
FANTASIAS DO LUAR
I
Entre nuvens esgarçadas
No céu pedrento flutua
A triste, a pálida lua
Das baladas.
739
Frouxo luar sugestivo
Contagia a natureza
Como de um ar de tristeza
Sem motivo.
Tem vagos tons de miragem,
De um desenho sem sentido,
Da paisagem.
A apagada fantasia
Do colorido - parece
De um pintor que padecesse
De miopia.
Tudo, tudo quanto existe,
Extravaga, e se afigura
Tomado de uma loucura
Mansa e triste.
O longo perfil do Monte
- Como um rio de água verdeCorre ondulado, e se perde
No horizonte.
E sobre essa imaginária
Turva corrente, projeta
A alva igreja a sua seta
Solitária.
Assim, de um ermo barranco
A garça alonga no rio
O seu vulto, muito branco,
Muito esguio.
Sonha, imóvel... E acredito
Que de súbito desperte
Aquele fantasma inerte
De granito.
Dorme talvez... Qualquer cousa
No seu sono se disfarça
De asa encolhida de garça
Que repousa.
740
E eu cuido vê-la a cada hora,
Animar-se; e de repente
Subir sossegadamente
Céu afora...
II
Há um lirismo disperso
Nos ares... O próprio vento,
Esse bronco, esse praguento,
Fala em verso:
Voz forte, bruscas maneiras,
Pela boca pondo os bofes,
O vento improvisa estrofes
Condoreiras.
Beijam-se as frondes, arrulam,
Trocam afagos, promessas...
E as árvores secas, essas
Gesticulam.
Gesticulam, como espectros,
No vácuo, tentando abraços
Com seus descarnados braços
De dez metros.
Algum trovador de esquina
Canta a paixão que o devora;
E a sua voz geme, chora,
Desafina.
Ao longe um eco repete
O canto, frase por frase,
Em tom abrandado, quase
Sem falsete.
Tem o aspecto apalaçado
Da pedra cara e maciça
O muro, em simples caliça,
De um sobrado.
Nem castelã falta a esse
Castelo: na luz da lua,
741
Branca, airosa, seminua,
Resplandece.
Numa pose pitoresca
De romance ou de aquarela,
A burguesa que à janela
Goza a fresca.
III
O olhar, o ouvido, a alma inteira
Vê, ouve, acredita, sente
Quanto sonhe, quanto invente,
Quanto queira,
Quando, ó lua das baladas,
Forjas visões indistintas
Com esse aguado das tintas
Estragadas.
PALAVRAS AO MAR
Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pêlo!
Junto da espuma com que as praias bordas,
Pelo marulho acalentada, à sombra
Das palmeiras que arfando se debruçam
Na beirada das ondas - a minha alma
Abriu-se para a vida como se abre
A flor da murta para o sol do estio.
Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras:
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro;
E as leves garças, como olhas soltas
Num leve sopro de aura dispersadas,
Vinham do azul do céu turbilhonando
Pousar o vôo à tona das espumas...
É o tempo em que adormeces
742
Ao sol que abrasa: a cólera espumante,
Que estoura e brame sacudindo os ares,
Não os sacode mais, nem brame e estoura;
Apenas se ouve, tímido e plangente,
O teu murmúrio; e pelo alvor das praias,
Langue, numa carícia de amoroso,
As largas ondas marulhando estendes...
Ah! vem daí por certo
A voz que escuto em mim, trêmula e triste,
Este marulho que me canta na alma,
E que a alma jorra desmaiado em versos;
De ti, de ti unicamente, aquela
Canção de amor sentida e murmurante
Que eu vim cantando, sem saber se a ouviam,
Pela manhã de sol dos meus vinte anos.
Ó velho condenado,ao cárcere
das rochas que te cingem!
Em vão levantas para o céu distante
Os borrifos das ondas desgrenhadas.
Debalde! O céu, cheio de sol se é dia,
Palpitante de estrelas quando é noite,
Paira, longínquo e indiferente, acima
Da tua solidão, dos teus clamores...
Condenado e insubmisso
Como tu mesmo, eu sou como tu mesmo
Uma alma sobre a qual o céu resplende
- Longínquo céu - de um esplendor distante.
Debalde, ó mar que em ondas te arrepelas,
Meu tumultuoso coração revolto
Levanta para o céu como borrifos,
Toda a poeira de ouro dos meus sonhos.
Sei que a ventura existe,
Sonho-a; sonhando a vejo, luminosa.
Como dentro da noite amortalhado
Vês longe o claro bando das estrelas;
Em vão tento alcançá-la, e as curtas asas
Da alma entreabrindo, subo por instantes...
Ó mar! A minha vida é como as praias,
E o sonho morre como as ondas voltam!
743
Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias!Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pêlo!
Ouço-te às vezes revoltado e brusco,
Escondido, fantástico, atirando
Pela sombra das noites sem estrelas
A blasfêmia colérica das ondas...
Também eu ergo às vezes
Imprecações, clamores e blasfêmias
Contra essa mão desconhecida e vaga
Que traçou meu destino... Crime absurdo
O crime de nascer! Foi o meu crime.
E eu expio-o vivendo, devorado
Por esta angústia do meu sonho inútil.
Maldita a vida que promete e falta,
Que mostra o céu prendendo-nos à terra,
E, dando as asas, não permite o vôo!
Ah! cavassem-te embora
O túmulo em que vives - entre as mesmas
Rochas nuas que os flancos te espedaçam,
Entre as nuas areias que te cingem...
Mas fosses morto, morto para o sonho,
Morto para o desejo de ar e espaço,
E não pairasse, como um bem ausente,
Todo o infinito em cima de teu túmulo!
Fosses tu como um lago,
Como um lago perdido entre as montanhas:
Por só paisagem - áridas escarpas,
Uma nesga de céu como horizonte...
E nada mais! Nem visses nem sentisses
Aberto sobre ti de lado a lado
Todo o universo deslumbrante - perto
Do teu desejo e além do teu alcance!
Nem visses nem sentisses
A tua solidão, sentindo e vendo
A larga terra engalanada em pompas
Que te provocam para repelir-te;
Nem, buscando a ventura que arfa em roda,
A onda elevasses para a ver tombando,
744
- Beijo que se desfaz sem ter vivido,
Triste flor que já brota desfolhada...
Mar, belo mar selvagem!
O olhar que te olha só te vê rolando
A esmeralda das ondas, debruada
Da leve fímbria de irisada espuma...
Eu adivinho mais: eu sinto... ou sonho
Um coração chagado de desejos
Latejando, batendo, restrugindo
Pelos fundos abismos do teu peito.
Ah, se o olhar descobrisse
Quanto esse lençol de águas e de espumas
Cobre, oculta, amortalha!... A alma dos homens
Apiedada entendera os teus rugidos,
Os teus gritos de cólera insubmissa,
Os bramidos de angústia e de revolta
De tanto brilho condenado à sombra,
De tanta vida condenada à morte!
Ninguém entenda, embora,
Esse vago clamor, marulho ou versos,
Que sai da tua solidão nas praias,
Que sai da minha solidão na vida...
Que importa? Vibre no ar, acode os ecos
E embale-nos a nós que o murmuramos...
Versos, marulho! Amargos confidentes
Do mesmo sonho que sonhamos ambos!
A VOZ DOS SINOS
I
Tarde triste e silenciosa
De vila de beira-mar:
Uma tarde cor-de-rosa
Que vai morrendo em luar...
Ao longe, a várzea cintila
De uns restos de sol poente:
Mas, por sobre toda a vila
— Do morro a que fica rente
Desce uma sombra tranquila —
745
E anoitece lentamente.
Não aparece viv’alma.
Nem rumor da natureza,
Nem eco de voz humana
Perturba a infinita calma,
A solitária tristeza
Da pobre vila praiana.
Nem se ouve o mar, longe, e manso.
A tudo, em redor, invade
Um ar de mole descanso...
Silêncio... Imobilidade...
Como que, interrompida,
A correnteza da vida
Fez neste ponto um remanso.
De súbito, rumoreja
Violentamente o ar:
Na torrezinha da igreja
Rompe o sino a badalar.
Ponho-me atento, a escutá-lo:
Que diz, alto e repentino,
Esse bater de um badalo
Num sino?
Badalo que assim badalas
No sino que assim ressoa,
Aves, já nenhuma voa:
Dormem: e vais acordá-las
À toa...
Vais espantar quanta moça
Aí pelos arredores
Depois de um dia de roça,
De enxada e de soalheira,
Dedica a tarde ligeira
A tarefas bem melhores;
746
Pelas discretas beiradas
De alguma fonte; fiadas
Na proteção pitoresca
De ramagens, folhas, flores;
Que fazem elas? Coitadas,
Bebem, nas mãos, água fresca...
Lavam as caras tostadas...
Ou cuidam dos seus amores...
Badalo que assim badalas
No sino que assim ressoa,
Olha que vais espantá-las
À toa...
Badalas... E eu que te falo
Não sei e nem imagino
Que pretendes tu, badalo,
A bater, bater no sino.
Talvez convoques à ceia
Pescadores que, lidando,
Nem viram que entardeceu;
Algum se estendeu na areia
A descansar; senão quando,
De cansado adormeceu...
Badala-me assim, badala:
Esperta este dorminhoco;
Que ou ele, acordando, abala,
Ou fica dormindo — e em troco
Da sua madraçaria,
Chegando à casa atrasado
Acha no fogo apagado
A caldeirada já fria.
Badalo que assim badalas
No sino que assim atroa,
Porque é que tão alto falas
À toa?
A andar com menos demora
Talvez tua voz compila
Certo rei dos mandriões
Encarregado em má hora
747
De, nas três ruas da vila,
Acender os lampiões...
Chamas, talvez, ao seu posto...
Quem? algum camaroeiro
Retardado e mal disposto
A seguir para o pesqueiro?
Badala-lhe que é sol posto,
Que a luz cheia está fora,
Que, com pequena demora,
Vai a maré a vazar:
Para chegar à costeira
Tem ele uma légua inteira
De caminho a caminhar,
Vencendo-a de combro em combro,
De atoleiro em atoleiro,
Com o remo e o puçá no ombro
E, na mão, o candeeiro...
Ruidoso sino da vila!
E é por coisas tão vulgares
Que atroas assim os ares
De uma tarde tão tranquila?
II
Badalo que assim badalas...
Que voz de repente soa
Acompanhando-te as falas
À toa?
É voz de gente que canta...
De gente... E parece tanta.
Da humilde igreja irradia
E para o céu se alevanta
A reza da Ave, Maria.
As vozes e as badaladas
Confundem-se... Misturadas
No fervor da mesma prece,
Sobem juntas para o ar
Onde a lua resplandece
E a noite, imensa, parece
748
Feita do alvor do luar...
Sobre a soleira da porta
Da casa pegada à minha,
Vejo sentada a vizinha:
Moça, e bonita... Que importa?
Tem nos braços o filhinho;
Fala-lhe, toda carinho;
Ele ouve; sorri, depois,
Responde-lhe, balbucia...
E, de mãos postas, os dois
Murmuram a Ave, Maria.
Ante meus olhos perpassa
Uma visão: imagino
Maria, cheia de graça,
Jesus, loiro e pequenino.
Uma tarde cor-de-rosa...
Uma vila assim modesta,
Assim tristonha como esta...
De pescadores, também...
Sobre a planície arenosa
Por onde o Jordão deriva
Pousa a sombra evocativa
Das montanhas de Siquém...
À porta de humilde choça,
Uma mulher... Quem é ela?
É pobre... é jovem... é bela...
E é Mãe: comovida, a espaços
O seu sorriso se adoça,
O seu olhar se ilumina
Para a figura divina
Do filho que tem nos braços.
Mostra-lhe, à noite que estrela
O céu e que a terra ensombra,
Como a terra é toda sombra
Como o céu é todo luz...
E o filho, enlevado nela,
Em êxtase balbucia...
A primeira Ave, Maria
749
Quem a rezou foi Jesus.
Sigo o meu sonho... imagino
Que, por todas essas roças
Aonde chega a voz do sino,
A sombra triste das choças
Frouxamente se alumia
Da vela de cera acesa
Ante uma Virgem Maria
Tendo nos braços Jesus.
É a hora augusta da reza...
Mães, pobres mães andrajosas
De filhinhos seminus,
No chão de terra ajoelhadas,
Dizem coisas misteriosas,
Palavras entrecortadas
De mágoa que se lastima,
De súplica, e de esperança
A essa outra Mãe que, lá em cima,
Na glória do céu, descansa
Do que passou neste mundo.
Ela que, com o mesmo eterno
Requinte do amor materno,
Sorriu a Jesus criança,
Chorou Jesus moribundo,
Lá, do alto céu infinito,
Olha com olhos de Santa
E de Mãe que já sofreu
Tanto coração aflito
Que se volta para o seu.
Na roça a miséria é tanta...
Quanta pobre gente, quanta,
Expia o ser mal nascida
Cumprindo a pena da vida
Como pregada a uma cruz;
E, na angústia que a quebranta,
750
Somente espera e antegoza
A proteção milagrosa
Da virgem Mãe de Jesus!...
Na roça a miséria é tanta...
E cada choça sombria
Para o claro céu levanta
A reza da Ave, Maria.
Não, tu não falas à toa;
Errei, confesso-o... Perdoa,
Ó sino humilde da vila,
Que assim badalas, badalas,
Na paz da tarde tranquila;
Ó sino, que também rezas,
Ó sino, que tanto falas
À terra, toda asperezas,
Como ao céu, todo luar,
Chamando, com o mesmo zelo,
Cada infeliz — a rezar,
Nossa Senhora — a atendê-lo.
Consolador de tristezas!
Semeador de esperanças!
Aqui nestas redondezas
Não há vida tão bonanças
Nem casebre tão remoto
Onde quanto o sino diz
Não abençoe um devoto,
Não console um infeliz...
Por essas várzeas tão ermas
Onde, perdidas e sós,
Há tantas almas enfermas
De desesperos sem voz,
Onde tanto desdenhado
De Deus, que decerto o olvida,
Vive, até morrer, vergado
Ao peso da própria vida,
Vais chamar, em altos gritos
751
— Como se fosse a um dever —
Desamparados e aflitos
— Para o consolo de crer.
E de casebre em casebre
Onde gente, a vida inteira,
Vive de trabalho e febre,
Morre de fome e canseira,
Afirmas à angústia surda
Do mísero tabaréu
Que o brejo em que ele chafurda
— É um caminho para o céu.
A cada pobre praiano
Que, na sua dura lida
De afrontar o largo oceano,
Vive de arriscar a vida.
Tu, consoladoramente,
Falas para lhe lembrar
Que há quem reze por a gente
— E há céu por cima do mar...
Da mesma igreja alvadia
Evolam-se as badaladas
E a reza da Ave, Maria.
Evolam-se...Misturadas,
Sobem juntas para o ar
Onde, pálida e sozinha
Tão alva, que resplandece,
Tão só, que vai a sonhar,
Caminha a lua, caminha,
E o céu, imenso, parece
Feito de sonho e luar...
Humilde sino da vila,
Que assim badalas, badalas,
Na paz da tarde tranquila;
Não, tu não falas à toa:
Percebo o que e a quem falas...
752
VIRGÍLIO VÁRZEA
(1863—1941)
LITERATURA BRASILEIRA
TRAÇOS AZUIS
A A...
Escuto-te essa voz esplêndida, sonora;
E sonho o meu viver tranquilo, radiante,
Quando sinto-te, filha, a cabecinha loira
Tombada no meu peito, alegre e palpitante.
Beijo-te mansamente os lábios cor de aurora,
Inundado de um júbilo heroico e triunfante;
E penso que nós vamos pela existência afora,
Como quem leva a alma aberta e cintilante.
Vejo no teu olhar aquela mansidão,
Suave e luminosa, de um grande coração,
Há transbordar de afagos, de festas e candura,
E creio que tu és a flor resplandecente,
Que sobre mim entorna um fluido rescendente,
Uns beijos, a tua alma, ó doce criatura!
AS FARINHADAS
À minha prima e poetisa Belarmina E. da Silva
Num esteio pendurado
O candeeiro ferrenho,
753
Derrama por todo engenho.
Toda a família abaixada
A mandioca raspando,
No coxo a vai atirando
Para ser depois ralada.
O boi puxando forçoso
A almanjarra pesada
Tem o andar vagaroso
E o escrevo cantando
Vai a farinha torrada
Ligeiramente tirando.
INDÚSTRIA
A Rodrigues Braga
O dia vem surgindo, o dia esplendoroso!
A aurora traz-me um beijo enorme, luminoso,
E faz que a flor estenda as pétalas azuis
Aos vagalhões de ouro de uma explosão de luz!
O coração palpita e sente um mago eflúvio
Que inunda todo peito assim como num dilúvio.
A grande mãe de tudo, a vasta natureza
Sente a latejação das formas da beleza.
O colibri dourado a namorar a flor
Murmura-lhe ao ouvido uns cânticos de amor.
O dia é uma alegria heroica, colossal!
Dele é que emana o bem, da noite emana o mal.
Eu vi, perto do templo atlético do Progresso,
A trabalhar sozinho, febril como um possesso,
Um homem majestoso, enérgico, viril,
Um rosto divinal como um riso de Abril,
Que resistia ao sono, à força do cansaço
Como resiste à bala uma muralha de aço.
Era um lidar sem fim, era um lidar bem nobre,
E não se lhe importava que acabasse pobre
Com tanto que chegasse, um dia, a concluir
Esse gigante férreo que faz a gente ir,
Em menos de uma hora, de Cádiz a Leão
Com a rapidez do raio rolando na amplidão.
754
E vinte cinco anos lutando sem cessar.
Esse homem que tem os músculos do mar,
Os nervos de Vanin, a força do querer,
Bradou: — Embora lute, do nada eu hei de erguer
Este colosso ingente e forte como um muro.
Pra isso sacrifício até o meu futuro.
...........................................
Fiquei a olhai-o calmo e mudo como a fraga...
E perguntei-lhe o nome:
— Eu sou Rodrigues Braga.
Aquele que lutou por este dogma novo.
— Abrir um horizonte de luz a este povo.
A marcha do Progresso é a senda das auroras.
Quando se ouvir o som, as vozes rugidoras,
Da máquina que encurta a grande imensidade
Que tem a rapidez da eletricidade
E que dá seiva aos órgãos das nações
Na força gigantesca dos membros de leões...
Quando chegar-se a ver as formas monstruosas
Enormemente grandes, ciclópicas, caprichosas
Do Adamastor altivo e forte e vigoroso,
Que nunca tem descanso e nunca tem repouso
Que anda em uns labores ativos, colossais
Que fazem-nos lembrar os crânios geniais,
Que encaminha a marcha para as regiões de além
Sem demorar-se nunca, sem escutar ninguém
Quando sentir-se a orquestra, as mágicas surgem.
Que saem bem do peito das vastas oficinas
Envoltas simplesmente nessas cintilações
Que partem dos brasidos, dos rúbidos carvões,
Que fazem do Escuro um grande mar de luz
Divino como o rosto esplêndido de Jesus...
Então, havemos nós, num êxtase triunfante,
Por entre sensações, alegremente a rir,
Ao fogo que rebrilha gritar: — Avante! Avante!
Que se escancaram as portas vermelhas do Porvir.
755
TONS AURORAIS
À encantadora menina Julieta de Lima Ferreira
Quando te vejo, criança,
Vermelha como o arrebol,
De olhos cor de esperança,
Cabelos da cor do sol!
Brincando alegre, risonha
Com bonequinhas mimosas,
Como quem, dormindo, sonha
Com coisas fantasiosas!...
Eu penso profundamente
Nessa quadra de magia
Em que tu, lírio ridente!
Colhes mil beijos suaves
Como a celeste harmonia
Do canto imenso das aves.
ATRAVÉS DO PASSADO
A Arão Ramos
Amigo! Quando lanço a vista penetrante
Por entre as nuvens róseas de uma era esvaecida,
E sinto uma saudade heroica, indefinida
Bater-me o coração — o órgão galopante...
Amigo! Quando à mente as rúbidas lembranças
Me vêm, patenteando aqueles belos dias
Que a gente tem o seio arfando de esperanças
Transpondo os penetrais das mansas alegrias...
Amigo! Quando lembro-me das infantis quimeras
Que no passar roçavam o lago azul das cismas
Em busca de ideais e frescas primaveras...
Sinto dentro do peito um brando misticismo,
Uns saltos vigorosos, soturnos, de aneurismas,
Uma tristeza doce, um são melancolismo!
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756
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO........................... 1
ACÚRCIO CORREIA DA SILVA......
Os miseráveis
Os rebelados
Cavadores
Os mendigos
Os poetas
O tuberculoso
Orfãozinhos
Noivos
O boêmio
2
ADELINO FONTOURA..................
Borghi Mamo
Atração e repulsão
Antes de partir
Vácuo
Súplica
Gazetinha
Despedida
Ohs! E ais!
13
ADEODATO BARRETO.................
As azinheiras
A peneira
Redenção
17
ALBERTO DE OLIVEIRA................
Aspiração
Taça de coral
Horas mortas
Vaso grego
A vingança da porta
Vaso chinesa
Solidão estrelada
O pior dos males
Cheiro de espádua
Sonetos
Vestígios divinos
Dentro do Sonho
24
FRANCISCO JOAQUIM BINGRE...
Elogio de Aveiro
Quem não ama, desmente a
natureza
Basta, não posso mais, mundo
enganoso!
Às cambalhotas sempre anda a
través
Deus, infinito ser
Os teus beijos, meu bem, tuas
carícias
Primavera
Retrato das mulheres em todas
as idades
Juízo
Amar sem possuir é um
tormento
396
FRANCISCO OTAVIANO............... 402
Ilusões de vida
Recordações
Morrer dormir
FRANCISCO RODRIGUES LOBO... 404
Adeus de Lereno ao Lis
Soneto
Meteu-me amor em seu trato
Coração, olha o que queres
Que amor sigo? Que busco? Que
desejo?
FREI ANTÔNIO DAS CHAGAS......
Conta e tempo
Ao cavalo do conde de Sabugal
que fazia grandes curvetas
410
GONÇALVES DE MAGALHÃES..... 412
Invocação à saudade
A beleza
A confederação dos tamoios
Napoleão em Waterloo
A casa da Rua Abílio
A alma dos vinte anos
O anagrama
ALEXANDRE HERCULANO..........
Semana santa
A voz
O soldado
A cruz mutilada
32
ALPHONSUS DE GUIMARAENS...
Ismália
Ossa mea
Pulchra ut luna
Árias e canções
Terceira dor
Cisnes brancos
A catedral
Como se moço e não bem velho
eu fosse
Hão de chorar por ela os
cinamomos...
Soneto
Cantem outros a clara cor
Virente
Sete damas
À meia-noite
Ocaso
53
GONÇALVES DIAS
Te Deum
Canção do exílio
Canção do tamoio
Por um ai
Se se morre de amor
Seus olhos
Pedido
ALVARENGA PEIXOTO................
Estela e Nise
A lástima
A Maria Ifigênia
À d. Bárbara Heliodora
De açucenas e rosas misturadas
Soneto
À estátua equestre
A saudade
Aos anos de uma ilustre senhora
À morte do rei D. José I
63
GREGÓRIO DE MATOS................
O poeta descreve o que era
naquele tempo a cidade da
Bahia
Buscando a cristo
A uma dama
Por consoantes que me deram
forçados
Efeitos contrários do amor
A Jesus Cristo, nosso senhor
Define a sua cidade
À despedida do mau governo
que fez o governador da Bahia
A outra feira, que satirizando a
delgada fisionomia do poeta lhe
chamou pica-flor
À cidade da Bahia
Aos caramurus da Bahia
ÁLVARES DE AZEVEDO................
Amor
Lembranças de morrer
Se eu morresse amanhã
68
425
435
GUILHERME DE AZEVEDO........... 441
Graça póstuma
Os sonhos mortos
Fala a ordem
O velho cão
GUIMARÃES JÚNIOR................... 445
Fora da Barra
Visita à casa paterna
A voz das árvores
Paulo e Virgínia
GUIMARÃES PASSOS................... 448
Ébrio
Pálida inocência
Vagabundo
Saudades
Se eu morresse amanhã
Minha desgraça
Luar de verão
Meu desejo
ÁLVARO FEIJÓ.............................
Nossa Senhora da Apresentação
Os dois sonetos de amor da hora
triste
A nau perdida
Varina
76
AMADEU AMARAL..................... 83
Voz íntima
A vida
Palavras, nem sempre as leva o
vento
Crepúsculo sertanejo
Rios
A um manancial de água pura
Nuvens
Jamais
Tapera
Sobre os desenganos
Em que se considera a vida como
semelhante à lavra da terra
Nec mergitur
Voz íntima
ANTERO DE QUENTAL.................
As fadas
Mãe
Nirvana
Sonho oriental
Contemplação
Hino à razão
A um poeta
Tese e antítese
Mais luz!
A um crucifixo
Hino à razão
90
Longe
Aos felizes
Morte
Paradoxo
Mea culpa
A José do Patrocínio
Vilancete
No exílio
Tu, só tu...
Pubescência
JERÔNIMO BAÍA.......................... 454
A uma rosa
Lampadário de cristal
Sonhando que via a Márcia
A uma trança de cabelos negros
Mandando el-rei d. Pedro
enterrar o coração do Marquês
de marialva ao pé do túmulo de
el-rei D. João IV
À morte do conde de castelo
melhor
Falando com Deus
Ao menino-deus nascido
Madrigal a uma crueldade
formosa
Ao menino deus em metáfora de
doce
Retrato
A uma crueldade formosa
JERÔNIMO CORTE-REAL.............
A tempestade
Manuel de Sousa enterra D.
Leonor na praia
Como os inimigos batiam a
fortaleza
463
JOÃO DE DEUS............................
Amores, amores
A cigarra e a formiga
Gramática rudimentar
Militarão
Beijo
467
Lamento
Mea culpa
Consulta
A um crucifixo
Enquanto outros combatem
No circo
ANTÔNIO BOTTO.......................
Beijemo-nos, apenas
Ouve, meu anjo
Se duvidas que teu corpo
Andava a lua nos céus
Á memória de Fernando Pessoa
Anda vem
ANTÔNIO FEIJÓ..........................
Flor de pessegueiro
Pálida e loira
A uma mulher formosa
Salgueiro
Fábula antiga
Ideal
JOÃO DE LEMOS.......................... 471
Não te entendo, coração
As rosas de Santa Isabel
A lua de Londres
JOÃO PENHA...............................
103 Consolação
Sermão na Montanha
As Grandes Manobras
A Carne
Cena de Taberna
476
JOAQUIM SERRA......................... 479
A missa do galo
108 A minha Madona
JOÃO XAVIER DE MATOS............ 482
Pôs-se o sol
Eu vi uma pastora
JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO..
A cidade bela
ANTONIO FELICIANO CASTILHO.. 113 Epodos de Horácio
Convite para a felicidade
Defensa de um inconstante
JOSÉ BONIFÁCIO.........................
Os treze anos
Saudade
Calabar
ANTÔNIO GOMES LEAL............... 121 Enlevo
Carta às estrelas
"Epitáfios"
JOSÉ DE ANCHIETA.....................
Romantismo
Poema da virgem
Autópsia do amor
Carta da companhia
A cidade
Noites de chuva
JOSÉ DURO..................................
Alvíssima
ANTÔNIO NOBRE........................ 126 Em busca
Prece
Soneto
Vou sobre o oceano
Elegia
JOSÉ MARIA DO AMARAL...........
Passaste como a estrela
O meu condado
matutina
Sé de pedra
Tristeza amarga
Menino e moço
Pobre tísica
Se voz cristã em tom
484
486
493
500
503
Ladainha
ANTÔNIO PATRÍCIO...................
De que me rio eu?
Uma manhã, no golfo de
corinto…
Vilancete
A redenção
Saudade do teu corpo
Unge-me de perfumes
ANTÔNIO SARDINHA..................
Versos do trinco da porta
No deserto
Velho motivo
Letreiro
A olivença, a perdida
Deus na planície
Memória
harmonioso
Tristezas de minha alma tão
133 sentidas
JUNQUEIRA FREIRE.....................
Saudade
Soneto
Louco (hora de delírio)
Martírio
Morte (hora de delírio)
Temor
137 A órfã na costura
O arranco da morte
Teus olhos
Sonho
O remorso da inocente
O jesuíta
506
LAURINDO RABELO.................... 520
No álbum duma senhora
ARAÚJO PORTO-ALEGRE............ 141 A minha resolução
Fala de Boadbil
A linguagem dos tristes
Fernando e Isabel
Amor e lágrimas
Fuga de Boadbil
A saudade branca
Alhambra
À morte de Junqueira Freire
Amor-perfeito
ARRONCHES JUNQUEIRO............ 147 Dous impossíveis
Não posso mais!
Noite de inverno
As duas redenções
Lenda de Santa Maria da
Suspiros e saudades
Arrábida
O desalento
ARTUR AZEVEDO......................... 152
LÚCIO DE MENDONÇA................ 542
À minha noiva
Alice
Por decoro
Uma observação
Cântico dos Cânticos
Impressões de teatro
Flor de ipê
Consequência
A tapera
Lindas cenas
Ideal
Infantilidade
Ave Maria
As estátuas
Tertuliano, o paspalhão
LUÍS DA GAMA............................ 547
Retrato
Mutação
Minha mãe
Soneto dramático
O relógio
A cativa
33 graus à sombra
A Luís Delfino
O muro
Laura
A borboleta
No cemitério de S. Benedito
A um nariz
AUGUSTO DOS ANJOS................. 163 Os glutões
Psicologia de um vencido
O janota
Solitário
A um vate Enciclopédico
Versos íntimos
Soneto
LUÍS DELFINO.............................. 567
Agonia de um filósofo
Altar sem Deus
Idealismo
Cadáver de virgem
Poema negro
Tela apagada
As cismas do destino
Alma viúva
O morcego
Uma princesa antiga
O meu nirvana
O mal da vida
Amor e crença
Capricho de Sardanapalo
Soneto
Os seios
Ecos d'alma
In her book
A esperança
Primeira missa no Brasil
O coveiro
A poesia
Infeliz
Extra muros
A águia
AUTA DE SOUZA......................... 186
Ao cair da noite
LUÍS VAZ DE CAMÕES................. 574
Ao meu bom anjo
Amor é fogo que arde sem se
Ao pé do túmulo
ver
Alguém na estrada
Sete anos de pastor Jacó servia
Ano bom
Babel e Sião
Abençoa senhor
Verdes são os campos
A morte de Helena
Transforma-se o amador na
BASÍLIO DA GAMA...................... 192 cousa amada
À nau serpente
Busque amor novas artes, novo
A uma senhora
engenho
A resignação
O fogo que na branda cera ardia,
Ao Marquês de Pombal
Alma minha gentil, que te
partiste
BERNARDINO LOPES................... 195 Ao desconcerto do mundo
O Canário
MACHADO DE ASSIS................... 588
BERNARDO GUIMARÃES............. 199 Círculo vicioso
Hino à aurora
No alto
Prelúdio
O grito do Ipiranga
Eu vi dois pólos
A Carolina
Nariz perante os poetas
Erro
Ilusão desfeita
BERNARDO DE PASSOS...............
Quadras soltas
Glosas
Saudades
Desencanto
Soneto
Uma criatura
O desfecho
205 Minha musa
MACIEL MONTEIRO....................
Um sonho
Inspiração súbita
Formosa
595
209 MANUEL BOTELHO DE OLIVEIRA 598
Ao sono
Ver, e amar
Desdém, e fermosura
Que há de ser o amor um só
À rosa
Criou deus na celeste
arquitetura
Essa de ilustre máquina beleza
Sono pouco permanente
Esperanças sem logro
Rosa, e Anarda
BRASÍLIO MACHADO................... 215 Naufrágio amoroso
Flor no gelo
Ave dourada
MARIO DE ANDRADE.................. 606
Na valsa
Moça linda bem tratada
Reminiscências
Aceitarás o amor como eu o
encaro
BRUNO SEABRA........................... 221 Retrato de novembro
Às raparigas
Poemas da amiga
O calote
Cantam pássaros exóticos no teu
Mal de um beijo
púbis
Descobrimento
CAMILO CASTELO BRANCO......... 226 Aceitarás o amor como eu o
A maior dor humana
encaro?
Alma atribulada
A serra do rola-moça
Anel
Ode ao burguês
O segredo de salvar-me pelo
Lundu do escritor difícil
amor
Comédia humana
MÁRIO BEIRÃO........................... 615
A outra metade
Cintra
BOCAGE.......................................
Soneto de todas as putas
Soneto de todos os cornos
Soneto da copula canina
Soneto do caralho decadente
Soneto da dama a cagar
Soneto do velho escandaloso
Soneto da donzela ansiosa
Soneto da escultura escandalosa
Soneto da copula esculpida
Soneto do prazer maior
CAMILO PESSANHA.....................
Na cadeia
Eu vi a luz em um país perdido
233 AMADEU AMARAL...................... 621
Voz Íntima
A vida
Ao longe os barcos de flores
Crepuscular
Estátua
Vida
Quem poluiu
Inscrição
Interrogação
Em um retrato
Viola chinesa
Passou o outono
Paisagens de inverno
Floriram por engano as rosas
bravas
Violoncelo
Queda
Quando?
Fonógrafo
CASIMIRO DE ABREU..................
Na rede
Primaveras
Amor e medo
Desejo
Poesia e amor
Quando tu choras
Saudades
Sonhando
Uma história
Clara
Eu nasci além dos mares
O que é - simpatia
Meus oito anos
CASTRO ALVES............................
As duas flores
Amar e ser amado
O laço de fita
O "adeus" de teresa
A canção do africano
Mater dolorosa
O navio negreiro
A atriz Eugênia Câmara
Noite de amor
O povo ao poder
América
Palavras, nem sempre as leva o
vento
Crepúsculo sertanejo
Rios
A um manancial de água pura
Nuvens
Jamais
Tapera
Sobre os desenganos
Em que se considera a vida
como semelhante à lavra da
terra.
Nec mergitur
Voz íntima
MARIA FIRMINA DOS REIS.......... 623
O meu desejo
Ah! Não posso
243 Confissão
Seu nome
A uma amiga
Ela!
Meditação
MARTINS FONTES.......................
Minha mãe
Inocência
Ser paulista
Balada madrigalesca
Otelo
Crepúsculo
Nosce te ipsum
631
258
NICOLAU
TOLENTINO
DE
ALMEIDA..................................... 636
Quintilhas
OLAVO BILAC............................... 641
Ouvir estrelas
Um beijo
Via láctea
Maldição
Velhas árvores
O sonho
O voluntário do sertão
Remorsos
Criação
Respostas na sombra
O pássaro cativo
CESÁRIO VERDE........................... 278 Dualismo
Nas nossas ruas, ao anoitecer
PAULO SETÚBAL.........................
Eu que sou feio, sólido, leal
A fazenda
E, enorme, nesta massa irregular
A gente
De tarde
Vida campônia
Deslumbramentos
Chiquita
Eu e ela
Eu, que sou feio
PEDRO LUÍS.................................
Manias!
Terribilis dea
Vaidosa
O leque de marfim
Contrariedades
Sardenta
PEDRO RABELO...........................
Cinismos
Quadras
Cabelos
País distante
Esplêndida
Distante
Lúbrica
Tenebras
Arrojos
Pela noite
CLÁUDIO MANUEL DA COSTA..... 292 Página 102
Fábula do ribeirão do carmo
Polifemo
RAIMUNDO CORREIA.................
Lise
Os ciganos
Antandra
Plenilúnio
Altéia
Tristeza de momo
Anarda
A cavalgada
O monge
Jó
CRUZ E SOUZA............................. 306 Ser moça e bela ser
Inefável
Saudade
Antífona
As pombas...
Siderações
Mal secreto
O botão de rosa
O vinho de Hebe
Vulnus
Ao decênio de Castro Alves
Rima
Braços
Amor e vida
Encarnação
Desdéns
Velhas tristezas
O misantropo
Dança do ventre
Último porto
Flor do mar
Nuvem branca
Dilacerações
Plena nudez
Sinfonias do ocaso
Anoitecer
Acrobata da dor
647
657
661
665
Música da morte
Tristeza do infinito
RAUL DE LEONI............................ 679
Crepuscular
CURVO SEMEDO.......................... 322 Platônico
Artista
O galo e a pérola
Cristianismo
A lebre e a tartaruga
Morreu Bocage, sepultou-se em
Ironia!
Goa
Decadência
A hora cinzenta
DELFIM GUIMARÃES................... 325 Ingratidão
A beleza
RONALD DE CARVALHO.............. 684
O azar
Epigrama
A musa enferma
Uma noite em los andes
O ideal
Anthropomorphismo
Castigo do orgulho
Sabedoria
O inimigo
Vida
O albatroz
DIOGO BERNARDES..................... 330 SOUSA CALDAS...........................
Já não posso ser contente
Ao homem selvagem
Soneto
A criação
Epigrama
Soneto
Outro soneto às chagas
A imortalidade da alma
Elegia no tempo do mal
Na presença de uma grande
A dona Maria de Vilhena quando
trovoada
se meteu freira
Aos anos de uma menina
Epitáfio à sua sepultura
SOUSÂNDRADE...........................
EMILIANO PERNETA.................... 337 Saudades no porvir
Vencidos
Dá meia-noite
Glória
Vinte e oito de julho
Metamorfoses
Eu vi a flor do céu
Corre mais que uma vela...
Maria
Súcubo
Setembro
TEIXEIRA DE MELO......................
Solidão
Estâncias
Fantasia
De um fauno
Fascinação
Lá
Ao cair da tarde
TEÓFILO DIAS.............................
EMÍLIO DE MENEZES................... 343 Cismas à beira-mar
Supremo apelo
A poesia moderna
Jeová e Jesus
O oceano, a serpente, leviatã,
Noite de insônia
vinateina, o peixe macár
687
696
700
705
A chegada
Tarde na praia
Envelhecendo
A romã
Um paulista narcisista
Sai... Azar!
Vinte anos depois...
O poeta deus
A serpente
TOBIAS BARRETO........................ 713
Victor Hugo
Dois de julho
A escravidão
Que mimo!
O beija-flor
Amar
FAGUNDES VARELA..................... 349 Ignorabimus
Soneto
Que mimo
Ilusão
O gênio da humanidade
Deixa-me!
Glosa
O vizir
Não te esqueças de mim!
TRINDADE COELHO..................... 721
Elegia
Paródia aos Lusíadas
Tristeza
O exilado
VICENTE DE CARVALHO.............. 723
Aurora
Adormecida
As selvas
A minha irmã
À Lucília
Menina e moça
Childe-Harold
A invenção do diabo
O sabiá
Fugindo ao cativeiro
Névoas
Tu, moça; eu, quase velho
Vida de flor
A um poeta moço
O foragido
Eu cantarei o amor tão
A mulher
fortemente...
Tristeza
Fantasias do luar
Palavras ao mar
FAUSTINO XAVIER DE NOVAIS.... 372 A voz dos sinos
Embirração
VIRGÍLIO VÁRZEA...................... 753
FAUSTO GUEDES TEIXEIRA.......... 375 Traços azuis
Amar ou odiar
As farinhadas
Versos à Grécia
Indústria
Soneto
Tons aurorais
Através do passado
FERNANDO PESSOA..................... 378
Tabacaria
Poema em linha reta
O guardador de rebanhos
Ode marítima
Autopsicografia
Aniversário
Presságio
Não sei quantas almas tenho
Todas as cartas de amor…
O cego e a guitarra
FLORBELA ESPANCA.................... 386
Ser poeta é ser mais alto
Os versos que te fiz
O nosso mundo
Não ser
Languidez
Fumo
Fanatismo
Em ti o meu olhar fez-se
alvorada
Beija-mas bem!
Aqueles que me têm muito amor
Amar
Eu sou a que no mundo anda
perdida
Noite de saudade
Da minha janela
Saudades
À vida
À morte
Desejos vãos
Teu olhar
Loucura
Eu
Se tu viesses ver-me
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antônio feijó - Projeto Livro Livre