Ruth Chindler
MARINA ABRAMOVIC
THE ARTIST IS PRESENT – 2012
O filme começa com cenas de performances anteriores da artista, numa pré-abertura,
antes dos créditos propriamente ditos: cenas no metrô; ela central e os quatro nus –
“IMPONDERABILIA” - ela diz: “depois de 40 anos as pessoas achando que eu tinha
de ser internada... finalmente você consegue reconhecimento... tanto tempo para as
pessoas te levarem a sério...”. Então penso sua Arte como sublimação; foi um processo
que a impediu de uma internação. Como estaria ela sem esse trabalho? Provavelmente
num hospício.
Ela nua suspensa no ar (outra artista reinterpretando sua obra) por um dispositivo que
lhe prende, pela vagina? Não sei... Linda foto que faz sombra paralela aos braços
abertos...
Um sujeito nu deitado com esqueleto por cima, também os braços do esqueleto abertos
pousando nos dele... São reinterpretações de performances que aparecerão em
fotos/vídeos nas ante-salas do MoMA, uma prévia do que acontecerá na performance
propriamente dita: “The Artist is Present”.
A seguir, ela se prepara para o show minutos antes da abertura, e o povo se
aglomerando para vê-la. Esta é a apresentação do filme, porque a partir daí vem os
créditos. As pessoas seguem umas às outras na cadeira em frente a ela, muitas pessoas,
lágrimas. Já estamos na sala principal do MoMA. É a abertura! E é belíssima!
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Ruth Chindler
Seguem-se flash-backs; a mãe a vestida de satanás quando ela tinha quatro anos de
idade para sua própria festa, enquanto todos se vestiam de princesas e cowboys, ela, a
única infeliz... Diz Marina: “Uma criança se veste de preto, triste, com dois chifres na
testa... isso marcou minha vida”... E ela recria essa imagem 60 anos depois. Então, num
Só - Depois, Nachtreglichkeit, ela transforma tristeza em Arte-Subimação: “São
várias Marinas”, filha de dois heróis nacionais, Marina sem limites... Depois outra
Marina, criança, que nunca teve amor suficiente da mãe, muito vulnerável, e que ela
transforma também em Arte transgressora, que transgride todos os limite do corpo, se
chicoteando, com canivete se ferindo, e uma terceira, que tem “certa sabedoria
espiritual (wisdom) e que pode ficar acima de tudo isso, e essa é a minha favorita.”
Pensamos que nesta fase da sua vida, esta terceira Marina já está mais pacificada; será
pela idade? Pela arte? Pela análise que ela declara fazer ou por tudo isso?
Mas não podemos esquecer que as décadas de 60 e 70 se caracterizam pela Body Art,
onde artistas como Gina Page e outros fazem do corpo humano o centro de suas
pesquisas. O corpo é, principalmente, usado como meio de representação e,
simultaneamente, como instrumento de inspeção da interioridade do sujeito. Assim
como Abramovic, outros artistas queriam quebrar o senso comum e desafiar a política
pública e sua moralidade. Dessa forma, o corpo servia para experiências da arte aos seus
extremos. Pane, G. “The Vuknerability of Human Body” (25/06/2012).
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MARINA, O CHICOTE, A FACA, AS PAREDES, E/OU ULAY, E SUA ARTE
Ao vermos esta performance, não podemos deixar de pensar no texto freudiano “Uma
Criança é Espancada” (1919). Diz Freud: ”No clímax da situação imaginária, há
quase invariavelmente uma satisfação masturbatória realizada, entre outras palavras,
nos órgãos genitais. De início isso acontece voluntariamente, mas depois ocorre contra
a vontade do paciente e com características de uma obsessão”. Diz também: “O
primeiro aparecimento ocorre aos seis anos de idade”.(...) ”Essas fantasias são
anteriores a essa data e se modificam sempre. Além disso, as crianças passavam a se
interessar por obras de ficção e produzir suas próprias fantasias sobre espancamento”.
Se acompanharmos relatos da artista quando afirma que nunca obteve amor da mãe,
embora o tivesse da avó (um pai que não é mencionado), a mãe que nunca a beijou, que
a acordava à noite porque estava “mal ajambrada”, atravessada na cama, e que aos
quatro anos de idade a vestia de preto com dois chifres na cabeça, enquanto as outras de
princesas ou cowboys; também importante a afirmação da artista, que, apesar de tudo,
achava muito bom todo esse rigor. Certamente isso vai influenciar e aparecer em sua
Arte.
Volto a Freud: “O espancamento é catexizado com alto grau de prazer e satisfação
auto-erótica, e que a questão estava em como saber que relação poderia haver entre a
importância das fantasias de espancamento e o papel que este castigo corporal de
verdade poderia desempenhar nas crianças em casa” e, no caso da Marina, nela
mesma. Embora Freud não pare por aí em seu longo texto, selecionamos apenas
algumas passagens para questionar sobre os efeitos desses eventos que surgirão mais
tarde (nachtreglichkeit – num só depois) na obra da artista. Seu grande amor, Ulay,
compactua com esse sofrimento e se oferece a lamber as feridas dos chicoteamentos
para cicatrizá-las. Importante a afirmação de Freud: “uma fantasia dessa natureza na
infância primitiva e com o propósito de satisfação auto-erótica, só pode, à luz do nosso
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Ruth Chindler
conhecimento atual, ser considerada como um traço primário de perversão.” Mas
achamos que pouco ou nada importa a estrutura do sujeito em questão; não é disso que
se trata quando pensamos numa possível leitura de uma obra de arte desse quilate.
MARINA não para por aí.
RHYTHM 10
RUSSIAN GAME – Usou 20 facas e dois tapes para gravação; as facas eram lançadas
entre seus dedos e sua mão. Cada vez que se cortava, pegava uma nova faca das 20 e
recomeçava a gravação. Depois de se cortar 20 vezes, ela revia a gravação, ouvia os
sons e tentava repetir os mesmos movimentos e reproduzir os erros. Juntar passado e
presente: estrutura do sonho, condensação e atemporalidade. Era tentativa de explorar as
limitações físicas e mentais do seu corpo: dor e sons do corpo – os duplos sons da
história e da repetição. Foi com esse trabalho que Marina começou a considerar o
“estado de consciência” da performer (ela mesma). “Uma vez que você entra no estado
performático, você pode empurrar (push) seu corpo a coisas que você normalmente
jamais poderia fazer”.
RHYTHM 5, 1974
Abramovic procurava reevocar a energia da máxima dor do seu corpo – é a performance
onde ela acende um fósforo para queimar uma estrela de petróleo, estrela de cinco
pontas representando o comunismo e a purificação física e mental, cujo endereço eram
as tradições políticas do seu passado – o pai era comandante, aclamado como herói
nacional depois da guerra. No início da performance, Marina fica fora da estrela, o que
não a impede de queimar unhas das mãos, pés e cabelo. O ato final desta performance
era ela entrando dentro da estrela, no centro, desmaiando por falta de oxigênio. O
público nada percebe, só se dando conta quando as chamas chegaram muito perto do
seu corpo e ela permanecia inerte, quando um médico e várias pessoas que assistiam
conseguiram retirá-la de dentro da estrela.
Comentários da artista: “Fiquei muito zangada porque percebi que há um limite físico;
quando você perde a consciência, você não pode estar presente, não pode fazer
performance” (não pode performar, you can’t perform). Pensamos que, mais importante
do que seja sua estrutura, é o gozo, seu desejo de “morrer” assistindo a própria morte,
sem morrer.
Ou ainda, seu corpo com impacto de encontro à parede; ou chocando-se violentamente
contra o corpo de Ulay.
RHYTHM 2, 1974
Experimento testando se um estado de inconsciência poderia ser incorporado a uma
performance: então ela divide a performance em duas partes. Na primeira, ela ingere
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Ruth Chindler
uma pílula prescrita para catatonia, na qual os músculos das pessoas ficam imobilizados
e permanecem por horas numa mesma posição. Sendo completamente saudável, o corpo
da Marina reagiu violentamente à droga com sensações de prisão e de incontroláveis
movimentos na primeira metade do show. Embora não tivesse nenhum controle sobre os
movimentos do seu corpo, sua mente estava lúcida, e ela observava o que estava
ocorrendo.
Não satisfeita, 10 minutos depois que os efeitos tinham cessado, ela ingeriu outro
comprimido – desta vez prescrita para pessoas agressivas e deprimidas. O que resultou
numa total imobilidade. No seu corpo, ela estava presente, embora mentalmente
estivesse inteiramente fora; na verdade, ela não tem memória do que se passou. Estes
projetos fazem parte de suas primeiras explorações sobre conexões entre corpo e mente
que a levaram ao Tibet e ao deserto australiano.
RHYTHM 0, 1974
A fim de testar os limites entre performer e público, Abramovic desenvolveu a mais
desafiante e mais conhecida de suas performances. Ela teria papel passivo enquanto era
o público que agiria sobre ela. Colocou sobre uma mesa 72 objetos que o público
poderia usar – havia uma placa informando – do modo que bem entendessem. Alguns
desses objetos eram prazerosos enquanto outros causariam dor. Dentre eles, uma rosa,
pluma, mel, vara, tesoura, revólver com uma única bala e bisturi. Por seis horas a artista
autorizou as pessoas a manipularem seu corpo e ações.
Inicialmente, as pessoas presentes reagiam com cautela e modéstia, mas com o passar
do tempo e como a artista ficasse passiva, começaram a agir mais agressivamente. Mais
tarde Marina descreve: “O que aprendi foi... se você deixar, o público pode te matar”.
“Eu me senti realmente violentada: rasgaram minhas roupas, enfiaram espinhos de
rosas no meu estômago, uma pessoa mirou o revólver na minha cabeça, e outra o
retirou. Foi criada uma atmosfera agressiva. Depois de exatamente seis horas, como
planejado, me levantei e comecei a andar em direção ao público. Todos correram, para
escapar a um possível confronto.”
Para Freud, “se a criança em que estão batendo não é a que cria a fantasia, que pode
ser menino e/ou menina, então essa fantasia, nesse momento, não pode ser nem sádica
nem masoquista. Trata-se de um adulto, o pai, pai da menina, que passa por outra
transformação: meu pai está batendo na criança que eu odeio. Numa 2ª fase, o pai bate,
mas quem apanha se transforma na que produz a fantasia que vem acompanhada de um
alto grau de prazer: “estou sendo espancada pelo meu pai”. Neste momento já se impõe
o masoquismo”. Para Freud essa 2ª fase é a mais importante de todas e que jamais teve
existência real, mas é uma construção em análise. Outras transformações vão ocorrendo,
mas a fantasia continua ligada à forte excitação sexual. Se Freud a seguir vai se
perguntar “por que caminhos a fantasia de meninos estranhos e desconhecidos sendo
espancados (uma fantasia, que a essa altura torna-se sádica) impôs-se à posse
permanente das tendências libidinais da menina,” perguntamos também, assistindo à
trajetória da artista, pelo menos numa fase anterior, quando ela mesma se impinge
chicotadas, facadas, ferimentos e fogo até perder os sentidos por falta de oxigênio, se
ela, Marina Abramovic pode ser as duas coisas ao mesmo tempo: Sadomasoquista.
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Importante notar que, nestas performances, Ulay não está presente; ela mesma dá conta
do recado.
Se remontarmos ao texto de Lacan “O Estádio do Espelho”, de 1936, veremos que o
bebê precisa de outro para se constituir; é a constituição / estruturação do imaginário
sem o qual o “infans”, como Lacan o denomina, não sobrevive. Sabemos também que,
num determinado momento, esse duplo, essa imago, se inscreve no inconsciente do
sujeitinho em formação e, não só isso, mas também que a inscrição desse outro é
anterior ao do sujeito, e que é justamente esse outro que vai provocar sensações
Unheimlich/Estranhamento, tão bem descritas por Freud, em 1919, no texto do mesmo
nome DAS UNHEIMLICH – HEIMLICH. Será esse duplo da Marina que lhe impõe
inúmeros castigos corporais, nos quais dores/doses prazerosas estão neles inscritos?
PREPARAÇÃO SEIS MESES ANTES DO SHOW
Diz ela: “Pela primeira vez eu queria mostrar tudo, o que é fazer Arte, ser uma artista,
uma enorme estrutura e trabalho físico que não é criatividade, é administração”, enfim
toda uma pesada estrutura para sustentar seu trabalho. “THE ARTIST IS PRESENT”:
“não incluí meus objetos transitórios, é só performance, pura performance”. Alguém
diz: “Ela se despe de tudo em volta, é só ela, só seu olhar, e é radical”. Marina: “Por
isso essa performance no MoMA é histórica e importante para mim porque
performance nunca foi uma forma comum de arte, é alternativa desde que eu nasci, e
quero que seja uma forma de arte e respeito antes de eu morrer.... é apenas “one new
piece”, um novo trabalho; nada do que fiz antes do “THE ARTIST IS PRESENT”. “E as
outras são pessoas reinterpretando minhas cinco peças históricas”.
Crítico: “Performance é uma forma de arte onde o objeto é o corpo, e Marina usa o
corpo para expressar opiniões que podem ser violentas (e o são), às vezes
provocativas... ela desafia o público direta e audaciosamente... a essência do seu
trabalho é compartilhar a experiência entre o público e a artista”.
Crítico: “Muitos trabalhos dela são intervenções onde (em Nápoles) ela usava objetos e
o público podia usá-los contra ela (revólver), mas o que é a Arte senão um experimento
científico que revela a natureza humana”.
Outro crítico: “o que é absolutamente terrível é como rapidamente um grupo de pessoas
se torna animalesco se você lhes der permissão para sê-lo”, pensamos: olha o Freud aí
gente!
O impossível de Educar - do Discurso Universitário;
O impossível de governar - do Discurso do Mestre;
O impossível de analisar - do Discurso do Analista.
Outra performance
Ela dirigindo uma vã em movimentos circulares, por 16h, gritando números num
megafone, depois ela substitui sua “Persona” por uma prostituta.
Toma drogas para desafiar o comportamento social sobre mulheres com doenças
mentais (lembramos da fala do Isidoro, justamente uma semana antes dessa
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apresentação, ao se referir às doenças mentais quando todos estão confinados em celas,
prisões, e que doença mental não é crime).
Mostra-se cansada de perguntas, sempre as mesmas. Ela: “Só tem uma pergunta que
não ouço há 10 anos: Porque isso é Arte? Sempre me perguntavam isso quando
comecei e eu não tolerava; agora sinto falta dessa pergunta... acho que eles
entenderam ou fingem que entenderam”... “Estou com 63 anos e não quero mais ser
alternativa... a Arte Tem de ser Linda!”
A performance nasce nos anos 60 como desafio à pintura... não era algo que se pusesse
nas paredes, e muitos pensam na Marina como a avó da arte performática. É
considerada a mais importante artista/performer da 2ª metade do século XX. Escolhe
trinta jovens artistas para reinterpretar cinco de suas peças históricas no MoMA e os
convida a fazerem um Workshop em sua casa no Hudson Valley, a fim de se
prepararem para o show no MoMA. Nomeia esse workshop “Limpando a Casa”:
- Ela e Ulay, juntos e de costas um para o outro com os cabelos que se unem, se colam e
que vão aos poucos se separando, se soltando, se distanciando um do outro. Será uma
prévia da separação que virá tempos depois? Um saber não sabido do inconsciente?
Esta cena nos lembra trabalhos do Tunga, “Xifópagas Capilares”, coladas, grudadas
pelos cabelos, sempre longos, longuíssimos, ora soltos, ora presos por tranças. São
obras que remetem à mãe do artista que tinha uma irmã gêmea.
- Ela nua suspensa pela vagina;
- Ela com caveira;
- Para entrar na sala onde está a performance, pessoas passam por uma estreitíssima
porta com o casal nu de frente um para o outro; no original, era Ela e Ulay e os
passantes têm de se espremer para atravessar esses dois corpos. A ideia era que cada
passante teria de escolher para quem olhar, se para o homem ou para a mulher.
IMPONDERABILIA, 1977, reencenada em 2010.
Discurso do Analista
Durante a preparação para o show, ainda no Hudson Valley, Marina determina: “por
três dias consecutivos, ninguém fala, a ordem é jejuar, fazer exercícios, depositar seus
celulares num cesto para ficarem “livres”; diz ainda: “Não falar, não comer é ficar
livre?”. A idéia é controlar o corpo e a mente, to slow down, e os artistas selecionados
obedecem porque a transferência já lá está! Diz ela “O objetivo disso era, como a
performance duraria três meses, eles tinham de criar seu próprio espaço carismático”.
(estamos então, no Discurso do Analista onde cada um teria como produto seu próprio
S1 - a psicanálise É UM A UM). Continua a artista: “Propósito é nos esvaziarmos...
botar nossas mentes aqui e agora... aí, algo de emocional aparece, e é isso que
queremos neste trabalho... é um diálogo entre o público e o performer, e se você estiver
nisso 100%, o momento emocional chegará... o artista tem de ser guerreiro, não
importa o que você faz e sim seu estado de espírito, e uma performance é um estado de
espírito”.
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Ruth Chindler
Esta performance vai de 09 de março a 31 de maio de 2012; de 9.30h às 1700h.; seis
vezes por semana ela estará presente. O cenário não pode ser mais simples: duas
cadeiras e uma mesa, só a artista sentada: “quero ser como uma pedra ali”... “as
pessoas não entendem que o mais difícil é fazer algo um quase nada... não há estória
para contar, não há nada para esconder, é sua pura presença”; não será esse o lugar
do analista? Como uma “pedra, sem história somente a presença do seu corpo”... haverá
de 11 a 15 mil pessoas no MoMA; será só o olhar fixo”. Na realidade foram 750.000.
Quando ela permanece imóvel na cadeira, cada um que ali se senta, é como se estivesse
em uma sessão de análise... “Cada pessoa tem uma razão diferente do por que cada um
se senta em frente a mim, Eu Sou o Espelho Delas Mesmas” é a analista falando!
Se qualquer identificação é identificação de palavra, a questão seria exatamente o que
escapa à palavra.
Lendo um texto de Jorge Forbes que cita Freud, em 1920, no ALÉM DO PRINCÍPIO
DO PRAZER, “existe alguma coisa que escapa à palavra... E que também, é ali que se
detecta que a pulsão de morte foi mal recebida pelos discípulos de Freud; cita Ernest
Jones e seu comentário: a pulsão de morte não é uma coisa que se deva pôr de lado,
pois quem falou foi Freud, mas enfim...”.
Essa coisa que escapa à palavra, que está fora da ordem do inconsciente, alguma coisa
que é silêncio, leva Lacan a dizer “A psicanálise é um discurso sem palavras”, no texto
do “AVESSO DA PSICANÁLISE”. Longe de nós querermos implicar Marina
Abramovic nestas complicações, até porque ela não está nem aí para isso e, como todo
artista, seu saber é o “não sabido”, o saber do inconsciente, que, para Freud, é o único
que interessa. Mas o que leva essa grande artista a se pronunciar com uma performance
sem pronunciar palavra? O que a faz dizer com muita propriedade “quero ser que nem
uma pedra... e que cada artista no exercício do silêncio do workshop, descubra seu
próprio carisma”... Esse seu próprio carisma não é outra coisa senão um S1 de cada
sujeito, sua própria singularidade? E ela consegue isso sendo apenas “semblant”, onde
o público/analisando projeta suas identificações, emoções, desejos... à exceção do
reencontro com Ulay.
Discurso do analista
Na realidade, são 750.000 pessoas (quase um milhão, diz ela), uma multidão que
procura aquela figura carismática para se sentar frente à frente nem que seja por apenas
três minutos (mais rápida que Lacan) quando pessoas ficam em torno de 30’ diante da
MONALISA. O que a faz dizer... “Cada pessoa tem uma razão diferente do por que
cada um se senta em frente a mim. Eu sou o espelho delas mesmas”... Está falando
do imaginário? Claro que sim, pois fala em espelho... Mas é só isso quando não emite
som nem palavra? Não, os três registros já estão lá: Real, Simbólico e Imaginário.
Aliás, desde o workshop em sua casa em Hudson Valley, quando Marina impede a
comunicação entre os pares, já há um encaminhamento para que se tornem ímpares,
para que não sejam reflexas de outras mentes, meras coletâneas de opiniões de terceiros,
meras projeções individuais do pensamento da maioria, incapazes de um único
pensamento original próprio – vide opinião do programa televisivo “Uma Iugoslava
provocadora que bota dois nus e diz que isso é arte! E no MoMA! Templo das
performances mundiais...”.
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Ruth Chindler
Por que um discurso sem palavras? Voltamos ao texto de Forbes: “É importante a gente
lembrar que a palavra discurso quer dizer descontinuidade... estamos acostumados a
pensar que discurso é falatório. Mas discurso, originalmente em latim, é aquilo que
está fora de ordem, está fora de curso, é um desregramento. É um dis-curso e diz
respeito a uma des-continuidade do real. Ou seja, eu estou juntando a palavra discurso
com a definição do sujeito de Lacan – o sujeito é uma descontinuidade, é uma
descontinuidade do real”, mas, repetimos, ela não está nem aí pra isso... Simplesmente
porque ela já sabe... De outra maneira, mas sabe.
Segundo o artista plástico TUNGA, “Qual a única disciplina no mundo que lhe permite
incluir toda e qualquer coisa no seu discurso? Que eu saiba é a ARTE, porque ela vai
procurar dentro do discurso, (sem palavras) outras ligações, outros sentidos, outras
possibilidades de conectar, criar novos sentidos e compreender aquilo que anda por
aí.”... ”quando você está à frente de uma obra de arte e sabe que tem alguma coisa
certa ali, mas não sabe direito o que é”.
No Discurso do Analista, o objeto pequeno “a” como agente é o que impulsiona o
discurso; é ele, pequeno “a”, que se dirige ao sujeito barrado, cujo produto será o S1; o
S2 será ou serão as verdades como produto desta equação.
“THE ARTIST IS PRESENT” foi dado por Klaus Biesembach. “Foi como um destino
para mim, não tem como fugir”... “Parece a cruz que carrego.”
Marina faz coisas que a maioria não consegue. Os pais, heróis nacionais da época de
Tito durante a 2ª guerra na ex Iugoslávia, foi criada com muita disciplina, horário, muito
controle que na época ela odiava: “fui treinada para ser soldado, não havia amor, era
só loucura, não lembro minha mãe (major do exército e nos anos 60 foi diretora do
MUSEU DA REVOLUÇÃO E ARTE em Belgrado) me beijando ou me abraçando e
perguntei-lhe mais tarde porque ela nunca me beijou, ela, surpresa, respondeu “claro,
para não mimá-la”. Todas as performances da artista na Iugoslávia tinham de ser feitas
antes das 22 horas – “hora estipulada para eu chegar em casa até os 29 anos de idade.
A avó presente ficava muito tempo comigo, era religiosa, todo tempo na igreja. Os pais,
políticos não tinham tempo para mim... “Mas, olhando para trás, essa mistura de
autoridade e religiosidade, isso fez o que sou hoje”.
Florença, Itália – Convidada para palestra, prefere diálogo com o público: leu um
manifesto (dela) “do coração e verdadeiro”:
- Artista não deve roubar ideias de outro artista;
-Artista não deve se comprometer consigo mesmo ou com o mercado de arte;
-Artista não deve matar outro ser humano;
-Artista não deve se fazer de ídolo;
-Artista deve estar relacionado à sua vida amorosa (mas o tradutor diz “com sua vida
real, o que Marina reage na hora e diz: “não, é LOVE, LOVE, AMORE.”
-Artista deve evitar se apaixonar por outro artista. E repete esta frase três vezes.
“Thomas Lips”, onde ela fazia um pentagrama no ventre com uma lâmina e se
chicoteava até se ensangüentar. Depois Ulay cuida das feridas; lambe, limpa e este foi o
ponto crucial; houve imediata fascinação. “Foi como se tivéssemos achado um irmão ou
irmã perdidos. Nascemos no mesmo dia 30/11, ambos sagitários, é claro... o destino
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Ruth Chindler
nos juntou... Marina: “eu o amei mais do que a mim mesma... e para mim seria forever e
jamais acabaria .... Dois gêmeos conectados por corpo e alma”.
A união dos dois era tão forte que decidiram se chamar “O OUTRO”. Eles falavam
deles mesmos como “um corpo e duas cabeças’. Vestiam-se iguais e se comportavam
como gêmeos. Criaram uma performance “BREATHING IN/BREATHING OUT”, na
qual conectavam as bocas e tomavam o ar um do outro até ficarem sem oxigênio.
Depois de 17m de performance, caíram no chão inconscientes, os pulmões cheios de
dióxido de carbono. A idéia era a de explorar a habilidade de absorver a vida de outra
pessoa, trocando e destruindo.
Curadora – “one of the most Love stories, she met her equal”
RELATION WORK - trabalho onde se batem, se enfrentam com extrema violência,
para mostrar conflito entre homem/mulher: “ficamos repletos de manchas negras e
roxas... mas não doía”. Diz Ulay: “Foram doze anos de vida intensa quanto a vida toda
de outras pessoas”.
“THE ARTIST IS PRESENT” é um final de uma trajetória: nascem como duas longas
mesas, cada artista sentado nas respectivas cabeceiras em silêncio e jejum um ao lado
do outro; depois se apresentam já com uma mesa e duas cadeiras, um em frente ao
outro; até 16 dias, imobilidade absoluta, silêncio e jejum. Era NIGHTSEA
CROSSING, Ulay desiste no 13º ou 14º dia porque não agüentou mais, teve de ser
hospitalizado e impedido de jejuar. Perdeu 10k. “Fui além dos meus limites, estava
sentado em cima dos meus ossos.” Marina diz: “ele disse para eu me levantar porque
não poderia fazer a performance sem ele; e eu não vi porque não, daí que eu decidi
continuar essa performance agora sozinha com uma cadeira vazia” – o lugar da falta – o
pequeno“a” do discurso do analista. Elaboração da separação como sublimação.
Outra performance: um em frente ao outro, ele apontando flecha para ela. Diz Ulay:
“nunca tive relação com mulher ou homem com tal simbiose”:
- quando se estapeiam um na cara do outro - para expressar a dinâmica entre homem e
mulher (fala de uma pessoa, talvez crítico).
THE LOVERS 1988 – MURALHA DA CHINA – foi épico – três meses andando um
em direção ao outro – isso foi o final da relação, já bastante deteriorada. Diz ela:
“éramos art couple”. E todos os achavam perfeitos; era uma imagem; na realidade Ulay
não estava feliz nesta posição – cada melhor performance fazíamos, cada vez pior nossa
relação na privacidade; os interesses dele eram diferentes dos meus. “Ele estava
bebendo e se drogando muito, ficou infiel o que foi muito difícil para mim”. Ulay:
“Éramos monogâmicos até certo ponto, aí ficou se desintegrando”. “Fomos infiéis ao
mesmo tempo, só que ela com amigo nosso. Eu não fiz isso... nem devia dizer isso”.
Marina: “sua amante ficou grávida e eu fui embora... e eles se casaram”. Ulay: “acabou
como começou”. Marina: “eu estava com 40 anos, gorda, feia unwanted... Perdi o
homem que amava e também meu trabalho... Foi um vazio, podia me destruir com
depressão, não havia mais nada... aí eu comecei a ir a Paris, gastar $ e comprar em lojas
de marca (Givenchy) me senti ótima; fui à manicure, pedicure, porque não me sentir
bem e desejável de novo? (ela é muito forte, pensamos)... era um desejo secreto = eu
adoro fashion” (não é mais secreto).
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Ruth Chindler
Depois disso faz uma belíssima e emocionante performance: “BYE BYE
EXTREMES!”. Sua fala é lenta, seu adeus é lento, chiquérrima, de roupa negra
provocante provavelmente um Givenchy, seu braço levantado e a mão gesticulando o
adeus. Tudo é feito lentamente e é liiindo! E vem o BYE BYE ULAY com os mesmos
gestos e ópera ao fundo. Elaboração de um presente já passado através da ARTE –
SUBLIMAÇÃO.
Marina já está em outro lugar: agora sozinha redesenha sua vida de modo mais
pacificado. Abandona as facas, chicotes, revólveres, fogo; está tudo condensado no
BYE BYE EXTREMES E BYE BYE ULAY.
Embora sua performance, “The Artist is Present”, exija grande preparo físico, exercícios
para suportar excessiva carga de ficar silente 8.30h diárias, seis dias por semana durante
período de três meses, os sacrifícios, dores lombares, que demandam massagens
constantes, nada disso se compara às performances anteriores. Seu corpo não mais se
expõe aos limites do insuportável. Parece se humanizar, pois antes, se o medo não era
aparente, agora adoece seis dias antes do espetáculo: fica de cama, se medica, toma
codeína que ela adora e dorme que nem bebê! Deitada, substitui o sangue pela cor
vermelha. Tudo em volta é vermelho, inclusive os testes para escolher a cor que mais
aprecia nas diferentes fotos de divulgação: “o vermelho”, diz ela sem hesitar!
Aliás, por falar em vermelho, lembramos Tunga: “Ao enunciar a palavra vermelho ou
mostrar uma tela vermelha, perceber que por trás desse gesto existe uma complexidade
de evocações que aquele fenômeno vermelho aporta. Quanto mais o artista sabe o que
pode vir junto com aquele vermelho, mais ele terá nessa capacidade, nessa habilidade,
esse domínio de criar um discurso (sem palavras, acrescentamos nós) e surpreender
ainda mais. Surpreender é ir além do senso comum, produzir uma experiência única,
radical, diferente. É disso que se trata a arte” (Cadernos Escola de Artes. Visuais 2009 pág.166/167).
Antes do show, dá a última entrevista, a última chance de se ouvir sua voz, senão só
depois de junho. Sua prática é extrema e as pessoas convidadas terão experiência única
e extrema também. O MoMA é o lugar mais importante do mundo para se fazer
performance e este show nunca aconteceu antes.
A van onde o casal viveu por cinco anos está num salão do MoMA quando Ulay chega.
Revê as peças dos dois serem reinterpretadas... Senta-se em frente à artista, e quando ela
abre os olhos, parece que toda a estória do casal se passa no silêncio de um aqui e agora.
Ela chora e lhe estende as mãos. Aos poucos, as mãos vão se largando, se afastando. É a
separação re-inventada, re-vivida, mas já elaborada. Este é o único momento em que
Marina sai do lugar do analista, porque nos parece que ela o ocupa o tempo todo nesta
última performance; “cada pessoa tem uma razão diferente do porque cada um se
senta em frente à mim.... eu sou o espelho delas mesmas.” O que é isso senão o
“semblant”? Onde cada um projeta suas próprias demandas, aspirações e desejos.
Final de abril, Marina está no limite; perde a noção do tempo e quando o curador lhe
propõe uma interrupção, ela o nega veementemente e diz “nunca considerei isso,
nunca!”. É neste momento que ela retira a mesa, única separação entre ela e o público;
ao retirá-la, percebe que a mesa funcionava como uma estrutura, e que agora “tudo foi
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tão mais direto”. Apesar de o medo da equipe em relação à segurança... Mas ela não
está nem aí pra isso!
Maio: as pessoas dormem nas ruas para não perderem o lugar e o público exibe números
como senhas. Mas nada é particular para ela; precisa do público como de oxigênio, no
entanto, a recíproca não é verdadeira. Cada um tem um depoimento diferente sobre a
experiência, única.
Reação dos telejornais não podia ser mais careta. “Ela é uma Iugoslávia provocadora”,
mencionam o casal nu... “e ainda dizem que isso é Arte... isso no MoMA”, a ironia
estampada no rosto delas: “Vai haver um que atira no rosto de alguém e dirá que isso é
performance.”
Ruth Chindler - 09 de maio de 2013
Programação Visual – Clarisse Rinaldi Santiago
Espaço Psicanálise & Arte
Escola Brasileira de Psicanálise Movimento Freudiano
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1 MARINA ABRAMOVIC THE ARTIST IS PRESENT