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Guerreiro Ramos e o Conceito de Redução Tecnológica
Gilson Leandro Queluz Doutor em Comunicação e Semiótica
UTFPR [email protected]
Luiz Ernesto Merkle Doutor em Ciência da Computação
UTFPR [email protected]
Resumo:Em um momento de consolidação da Associação Brasileira de Estudos Sociais das
Ciências e das Tecnologias (ESOCITE.BR), quando muitos estudos e ações são balizados por
futuros imaginados, acreditamos que resgatar e refletir sobre “comunidades imaginadas” em outros
momentos, historicamente situados, na constituição do discurso acerca das relações entre ciência,
tecnologia e sociedade, seja de suma importância. Neste sentido abordaremos as reflexões sobre
esta temática, presentes no pensamento de Alberto Guerreiro Ramos, entre 1956 a 1966.
Procuraremos, em meio a proliferação conceitual vigente na complexidade de sua obra, analisar
mais detidamente o conceito de Redução Tecnológica, defendido pelos autor, como um exemplo
representativo da metodologia de assimilação crítica de tendências dominantes no pensamento
internacional Este também é um conceito exemplar de deslocamentos teóricos marcados pelo desejo
urgente de transformação social vigente na década de 1950, e que pode muito bem contribuir para o
desenvolvimento de trabalhos contemporâneos
Palavras-chave: Guerreiro Ramos, tecnologia e cultura, redução tecnológica
Abstract: During this moment of consolidation of the Brazilian Association for the Social Studies
of the Sciences and the Technologies, we intend to reflect on the role of other historically situated
“imagined communities” in the constitution of the discourse about the relations among science,
technology and society. Therefore, we will approach the reflection on these issues, present at
Guerreiro Ramos thought during a period from 1956 to 1966. We shall, within the current
conceptual unfolding of his complex work, to carefully analyze his concept of Technological
Reduction as a representative example of a methodology of critical assimilation at dominant
international thought trends. The concept of technological reduction is also an exemplar concept of
theoretical shifts, marked by the pressing desire of the social transformation during that moment.
Keywords:Guerreiro Ramos; Culture and Technology; Technological reduction
Introdução
Este trabalho pretende, em um momento de consolidação da Associação Brasileira de Estudos
Sociais das Ciências e das Tecnologias (ESOCITE.BR), refletir sobre o papel de outras
“comunidades imaginadas”, historicamente situadas, na constituição do discurso acerca das relações
entre ciência, tecnologia sociedade. Neste sentido abordaremos as reflexões sobre esta temática,
presentes no pensamento de Guerreiro Ramos, entre 1956 a 1966
Procuraremos compreender, em sua perspectiva de constituição da consciência nacional para
o desenvolvimento, as múltiplas contradições e interações que levaram a uma compreensão
discursiva da tecnologia como processo sócio-histórico e cultural, densamente permeada de
quotidiano, e os seus papéis na constituição de futuras e utópicas, “comunidades imaginadas”
nacionais (ANDERSON, 2008).
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Em um momento de transformação sócio econômica acelerada, marcado pela
implementação do plano de metas de JK, de fortalecimento da produção industrial e da ascensão das
massas para o primeiro plano da política nacional, e de acentuadas mudanças culturais, Guerreiro
Ramos problematizou as relações entre tecnologia, desenvolvimento e nacionalidade, procurando
influenciar “o conteúdo de ideias” que permeava a sociedade brasileira.
Procuraremos, em meio a proliferação conceitual vigente na complexidade de sua obra,
analisar mais detidamente o conceito de redução tecnológica de Guerreiro Ramos. É um exemplo
representativo da metodologia de assimilação crítica de tendências dominantes no pensamento
internacional, defendida pelo autor. Também é um conceito exemplar de deslocamentos teóricos
marcados pelo desejo urgente de transformação social, que conduz a ciência importada à categoria
de subsidiária e do questionamento ativo da “sociologia enlatada”, da “sociologia consular”,
A reflexão sobre Guerreiro Ramos, também possibilitará a compreensão do caráter
descontínuo e fragmentário, de esforços realizados em um passado recente, para refletir sobre
ciência tecnologia e sociedade no país. Mesmo pesquisas que procuram indagar e construir uma
lógica básica de constituição do campo CTS na América Latina (Dagnino, R., Thomas, H & Davyt
A, 1996), como aquelas sobre o Placts, não se referem à Guerreiro Ramos.
Durante as décadas de 1950 e 1960, a discussão sobre as relações entre desenvolvimento e
nacionalidade reveste-se de especial importância, pois, para Freitas (1998, p. 23) estas décadas
foram marcadas pelo desejo de interpretação da realidade nacional, caracterizado por “um
chamamento à economia (porque ciência) ao dever de explicitar os vínculos entre o complexo
cultural do país e a história do desenvolvimento nacional”. Neste sentido reflexões como aquelas
desenvolvidas pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), criada em 1948, pelo
Conselho Económico e Social das Nações Unidas, e no Instituto Superior de Estudos Brasileiros
(ISEB), criado em 1955 e vinculado ao Ministério de Educação e Cultura , e extinto em 1964,
apenas duas semanas após o golpe militar de 1964 , seriam elementos fundamentais para a história
das idéias do período. Conceitos e temáticas cepalinas, como “centro e periferia”, “desenvolvimento
e subdesenvolvimento”, “atualização histórica”, ”atraso e avanço” e especialmente o desejo de
constituição de uma ciência econômica capaz de intervir na realidade político-social (FREITAS,
1998, p. 57), fariam parte do estoque de idéias disponíveis e necessariamente confrontadas por
autores como Guerreiro Ramos.
Guerreiro Ramos, participou do ISEB, centro de elaboração e difusão do nacional
desenvolvimentismo, da sua fundaçao de 1956 até sua saída no final de 1958, sendo as duas obras
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aqui analisadas produzidas neste período.1 (TOLEDO, 2005). Cortês resgata e reforça que já na
inauguração do ISEB, Álvaro Vieira Pinto, um dos membros do ISEB, realçava a perspectiva
democrática daquele instituto “afirmando que a fonte da inteligibilidade da realidade nacional não
reside no conhecimento de uma elite intelectual, mas repousa nos saberes ordinários dos homens
comuns” (2005, p. 124).
Não é novidade que a recepção do trabalho dos participantes do ISEB foi bastante
controversa. Isto talvez nos dê mais pistas de sua pouca difusão nos estudos em ciência e
tecnologia, de outrora e contemporâneos.
Para Paulo Vizentini, a década de 50, foi marcada pelo processo de “desenvolvimento
industrial através da substituição das importações”, com o fortalecimento da indústria de base.
(VIZENTINI, 2008, p. 203). Este “processo de industrialização, urbanização e democratização”,
(MOREIRA, 2008, p. 166) foi acompanhado de uma forte ascensão da participação das “massas
populares e segmentos médios” (VIZENTINI, 2008, p.203) no processo de redemocratização
brasileiro, iniciado em 1946.
Para Norma Cortes, as décadas de 50 e 60, teriam sido caracterizadas “pelo florescer de uma
constelação intelectual excêntrica que se celebrizou por desnaturalizar os seus próprios esforços
idiomas ou artíficios de compreensão e representação do real.”(CORTES, 2008, p. 127)
Constelação da qual participavam os autores aqui analisados, assim como os mentores de
movimentos artísticos como a Bossa nova e o concretismo.
Foi também, neste período que ocorreu a consolidação do nacional-desenvolvimentismo
“como um projeto social e político para o Brasil, cujos traços essenciais eram o compromisso com a
democracia e com a intensificação do desenvolvimento industrial de tipo capitalista” (MOREIRA,
2008, p. 159). É neste contexto que surge o ISEB em 1955 com a missão de elaboração e
propaganda do nacional desenvolvimentismo. A constituição de uma ideologia do desenvolvimento
nacional era considerada primordial por Roland Corbisier (1914-2005), quase nos mesmos termos,
foi utilizada por Álvaro Vieira Pinto, ao afirmar que, “não haverá desenvolvimento sem a formulação prévia de uma ideologia do desenvolvimento nacional” (apud MOREIRA, 2008, p. 163).
Para Moreira, dois traços comuns na ideologia desenvolvimentista isebiana podem ser
ressaltados; o termo “nacional desenvolvimentismo” era praticamente sinônimo do projeto de
industrialização e de ocultamento das dimensões e contradições de classe, presentes neste projeto
(MOREIRA, 2008, p. 165). Ofereciam-se em troca, novos focos que pudessem unificar as classes
sociais em torno de objetivos comuns, como a luta pela superação do subdesenvolvimento.
1 Sobre a saída polêmica de Guerreiro Ramos do ISEB, ver Ramos, Crise do Poder no Brasil, Rio de Janeiro: Zahar,
1961.
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Entretanto, Guerreiro Ramos, também é exemplar do exercício da autonomia por vários intelectuais
ligados ao ISEB, e que gradualmente se insurgiram contra as práticas políticas do governo JK,
especialmente no que se refere a permissividade de entrada do capital multinacional, e aos fortes
limites apresentados às metas sociais, no que foi denominado por Vizentini (2008, p. 206) de
desenvolvimentismo associado, aproximando suas teses daquelas defendidas pelo nacionalismo
econômico. Neste sentido, o ISEB, acabou refletindo, e em certa medida fortalecendo, a própria
lógica do movimento popular nacionalista que evoluiu no período, para uma ênfase anti-imperialista
(VIZENTINI, 2008, p. 204).
Guerreiro Ramos e a Redução Tecnológica
O trabalho do sociológo Guerreiro Ramos têm sido nos últimos anos alvo de resgate
acadêmico. A obra do polêmico ex-funcionário do Departamento Administrativo do Serviço
Público (DASP), deputado federal (1962-1963), membro do ISEB (1956-1958), e por fim professor
na Southern California University, em seu auto-exílio americano (1966-1982), tem passado por um
gradual processo de reavaliação. Sua importância no campo da sociologia das organizações é
amplamente reconhecido, por trabalhos como os de Ramirez e Rabanal (2006), sendo, inclusive,
dado o seu nome para o prêmio de gestão pública do Conselho Federal de Administração (Confea).
Sua reflexão sobre as relações raciais no Brasil, têm sido estudada por autores como Maio (1996) e
Figueiredo e Grosfoquel (2004), além de ter influenciado na constituição de movimentos sociais
como o do movimento negro unificado. Seu papel no ISEB foi pensado por autores como Edison
Bariani (2005) e na sociologia a compreensão de seu original arcabouço conceitual, levou à
reflexões como aquela desenvolvida por Oliveira (1995). Porém, no campo de estudos sobre o
pensamento latino americano em ciência, tecnologia e sociedade, como já observado, a reflexão
sobre sua obra ainda está ausente. Desta forma pretendemos nos deter na análise de duas obras do
seu período de participação no ISEB, Introdução Crítica à Sociologia Brasileira (1957) e A
Redução Sociológica (1958), nos referindo, ainda que pontualmente, a obra Administração e
Estratégia do Desenvolvimento Brasileiro de 1966, quando já havia se afastado daquele instituto .
Pretendemos compreender especialmente o conceito de redução tecnológica, para o que seguiremos
sua trajetória de discussão conceitual de termos como industrialização, desenvolvimento nacional,
tecnologia e redução sociológica. É importante frisar que a proliferação de conceitos marcadamente
originais na obra de Guerreiro Ramos é simultaneamente um desejo manifesto e um programa de
ação que transparece em vários momentos de sua obra, como por exemplo no seu artigo “O
Problema do Negro no Brasil”, onde afirma; “A compreensão efetiva da situação do negro no Brasil
exigirá esforço de criação metodológica e conceitual, de que ninguém foi capaz ainda”(RAMOS,
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1995, 198). Esta afirmação encontra-se, significativamente, em um contexto de crítica à sociologia
brasileira sobre o “problema do negro”, a qual Guerreiro denomina de enlatada, consular, alienada.
Autores como Maio e Joel Rufino Santos , apontam que a releitura radical da sociologia brasileira,
proposta por Guerreiro Ramos teria, como um de seus principais alicerces a posição privilegiada de
militância no movimento negro, especialmente sua participação no Teatro Experimental do Negro ,
liderado por Abdias do Nascimento. Para Guerreiro Ramos, o TEN, seria a “manifestação mais
consciente e espetacular da nova fase, caracterizada pelo fato de que , no presente, o negro se recusa
a servir de mero tema de dissertações “antropológicas, e passa a agir no sentido de desmascarar os
preconceitos de cor” (RAMOS, 1995, p. 205). Soares (1995) chama a atenção de que o conceito de
redução sociológica teria como uma das suas bases, o momento de desvelamento por Guerreiro
Ramos das fontes da patologia social do branco, aquela que estabelece como máximo valor
axiologico, a brancura, que se constitui em uma das principais fonte dos padrões da estética social
nacional.(1995, p. 239). A ideologia da brancura, assim, expressaria através das elites brancas do
país “a força do colonialismo e do etnocentrismo europeu”, revelando-se como um elemento
antinação, constituindo-se, portanto, em severo obstáculo ao desenvolvimento nacional (MAIO,
1996,p. 191). Guerreiro nos desafia, “pratiquemos um ato de suspensão da brancura e com este
procedimento fenomenológico nos habilitaremos a alcançar sua precariedade” (1995, p. 243). Este
ato de suspensão só poderia ser concretizado através de uma sociologia descolonizada. Uma
sociologia enraizada, induzida da “experiência comunitária latino-americana (RAMOS, 1995, 143).
Uma sociologia da intervenção, capaz de “resgatar o homem ao homem”, um verdadeiro “saber da
salvação” (RAMOS, 1965, p. 15).
Guerreiro Ramos conscientemente invoca os laços de seu pensamento com a reação
internacional ao colonialismo, expressa em obras de pensadores como Aimé Cesarie, Cheik Anta
Diop e Abdoulaye Ly (RAMOS,1965, p, 62-63). Ele aspirava liquidar a mentalidade colonial no
contexto brasileiro. Diagnostica que o processo de desenvolvimento industrial brasileiro e as
consequentes alterações nos padrões de urbanização e de consumo popular criaram, quase que
automaticamente, as condições históricas para o país superar a heterodeterminação, através de uma
crescente consciência política em busca da autodeterminação nacional. O processo de
industrialização, para Guerreiro Ramos assume tamanha importância que ele recomendou em
congresso de Sociologia, que “o trabalho sociológico deve ter sempre em vista que a melhoria das
condições de vida das populações está condicionada ao desenvolvimento industrial das estruturas
nacionais e regionais”(1995). Ou seja, ele defendia a posição de que a industrialização, para além da
transformação tecnológica das atividades produtivas, deveria ser compreendida como uma categoria
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sociológica, especialmente na América Latina onde ela seria um “processo civilizatório”, um
mecanismo de transformações “qualitativas e quantitativas nas estruturas nacionais e
regionais”(RAMOS, 1995, p. 145). Neste sentido, na visão de Guerreiro Ramos, com o avanço do
processo de industrialização, estavam dadas as condições objetivas, no palco brasileiro para o
tensionamento entre uma “estrutura anacrônica” e uma “estrutura em geração”, necessária para que
se desse um “empreendimento coletivo, mediante o qual uma comunidade humana projeta a
conquista de um modo significativo de existência na história”, ou seja a nacionalidade (RAMOS,
1965, p.80).
Neste processo, seria fundamental a elaboração de um método sistemático de “assimilação
crítica” dos produtos científicos importados, o qual seria denominado, por ele, redução sociológica.
Guerreiro Ramos reconhece as origens do conceito de redução na tradição fenomenológica expressa
por Husserl e Heidegger. À ele interessa a percepção heideggeriana de que o homem é um “ser-nomundo” permanentemente “preocupado com as suas tarefas, absorvido pelos seus interesses”,
constituído na relação com os objetos que o circundam”. Também lhe é cara a noção de redução de
Husserl que no esforço de reestabelecer ao sujeito a experiência transcendental da relação do eu
puro com o objeto puro, propõe três reduções a histórica, a eidética e a transcendental. Guerreiro
interpreta o pensamento dos dois filosófos de maneira original, negando o idealismo e os anseios
teóricos-metafísicos de reestabelecimento da transcendência, optando por enfatizar o propósito
comum de “análise radical dos objetos”, ampliando este foco no âmbito sociológico, ao rearticulá-la
como “uma totalidade histórica em que se integra e portanto é intransferível na plenitude de todos
os seus ingredientes circunstanciais”(RAMOS, 1965, p. 100). Indica, porém, que não só é possível
como recomendável que este “produto cultural”, tenha suspensa as suas “notas históricas adjetivas”,
de forma a captar os seus determinantes, processo que possibilitaria em outro contexto a sua
assimilação crítica e não mais uma estéril tranplantação literal. Em paises como o Brasil, portanto,
em pleno processo de transformação econômica marcado por uma política de substituição de
importações, no plano politico- cultural se faria preemente, “não mais importar os objetos culturais
acabados, e consumí-los tais quais, mas é preciso agora, pela compreensão e pelo domínio do
processo de que resultaram, produzir outros objetos nas formas e com as funções adequadas às
novas exigências históricas”(RAMOS, 1965, p. 100). Assim o método da redução sociológica
poderia ser utilizada para outras áreas como a filosofia, o direito, a política, a economia, entre
outras.(RAMOS, 1965, 80).
Acredito que para os pesquisadores do campo CTS no Brasil, reveste-se de especial interesse
uma das derivações da redução sociológica, a redução tecnológica. Segundo Guerreiro Ramos esta
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consistiria na “compreensão e o domínio de um objeto, que permitem uma utilização ativa e
criadora da experiência técnica estrangeira”(RAMOS, 1965, p. 95). Ele exemplifica o conceito com
a análise da Fábrica Nacional de Motores e o processo de nacionalização da produção de
caminhões, naquele momento em cerca de 70%. Ramos retomaria o conceito em sua introdução à
segunda edição de A Redução Sociológica, comentando que o conceito teve “calorosa acolhida em
círculos dedicados à pesquisa tecnológica”(RAMOS, 1965, p. 50). Para ele a redução tecnológica
teria precedido à sociológica, pois ela se fez necessária nos processos produtivos, como no caso da
agricultura, nos quais se colocavam problemas que indicavam a inadequação das “regras, normas,
modelos e processo importados a nossa realidade”(RAMOS, 1965, p. 51). Porém, o processo de
tomada de consciência do caráter transformador desta redução teria sido obliterado pela lógica da
estrutura social e seu caráter eminentemente reflexo. Guerreiro Ramos entusiasmado com as
possibilidades do conceito, transcreve em um apêndice da segunda edição, uma contribuição a ele
enviada por um engenheiro, cujo nome não é revelado, pois era um deputado federal cassado,
acerca do tema da redução tecnológica. A interpretação do engenheiro é bastante esclaredora de
processos possíveis de resignificação do conceito proposto por Guerreiro Ramos, como no seguinte
trecho:
a transplantação e a alienação são característicos do dilema, da falta de ligação com
a prática, e das consequências desprezíveis do desconhecimento da realidade.
Quando tudo isso se transforma, surge a redução. O “lavrador da corte” sugere
métodos agrícolas que causaram sucesso no estrangeiro. Mas o lavrador do campo,
que reconhece a realidade, e que suporta diretamente as consequências de
transplantações desastrosas, ignora-lhe as recomendações e cria uma técnica
nacional. O fato de ser nacional não implica, contudo, que seja necessariamente
uma boa técnica, rendosa e produtiva. Mas reflete as condições sociais, culturais,
econômicas, etc., do país.” (RAMOS, 1965, p. 233)
O nosso escritor anônimo, também proporia um adendo a teoria da redução tecnológica de
Guerreiro Ramos, afirmando que a redução tecnológica teria baixo “teor ideológico”, se comparada
com a redução sociológica, por ser marcada pelo envolvimento com a resolução de problemas
práticos, o que, supostamente, oporia menor resistência à sua concretização.
Apesar de limites da concepção teórica de Guerreiro Ramos, acreditamos que a
problematização por ele proposta dos processos plurais de apropriação e resignificação da
tecnologia, presentes no conceito de redução tecnológica, somado posteriormente à incorporação da
ideia de teor ideológico no conceito, apresenta-se como um importante marco de um processo de
reflexão e lutas sociais ainda em continuidade, em torno da construção de uma ciência e de uma
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tecnologia mais igualitárias e descolonizadas, traduzido conceitualmente em diferentes momentos
históricos e teóricos em termos como tecnologias apropriadas, ou adequação sócio-técnica
(DAGNINO, 2008)
A reflexão sobre tecnologia também se fez presente na ação política de Guerreiro
Ramos, e que, ao ser nomeado delegado do Brasil à Assembléia Geral das Nações Unidas, proferiu
um discurso sobre “O Papel das Patentes na Transferência da Tecnologia para Países
Subdesenvolvidos”, que acabou se transformando na resolução 1713 daquela Assembleia
(Guerreiro RAMOS, 1965, p. 247-253). Nele, Guerreiro Ramos defendeu a tese da necessidade de
apuração dos abusos cometidos por grandes corporações e cartéis que apelavam para a patent
blitzkrieg para eliminar seus competidores independentes ou de menor expressão, o que causaria
grandes danos em economias subdesenvolvidas, danos ainda mais significativos em um momento
em que a tecnologia, fruto da pesquisa socialmente organizada, assumiria caráter universal.
Diagnosticava, consequentemente, uma patologia congênita do sistema de patentes, e apelava para a
necessidade urgente de serem adotados critérios de interesse público no que concerne ao uso e
difusão da tecnologia.
A reflexão sobre a temática da redução tecnológica parece ter sido decisiva para a
elaboração de sua Administração e Estratégia do Desenvolvimento Brasileiro, publicada em 1966.
Nela propõe uma lei histórico-sociológica da evolução do trabalho, que sofisticaria a sua abordagem
faseológica, já adotada em obras anteriores: “Na evolução do trabalho humano se verifica tendência
crescente no sentido de reduzir a parte do homem e aumentar a parte da tecnologia no esforço da
produção” (RAMOS, 1966, p. 6). Assim, ao descrever o condicionamento histórico-social do
fenômeno administrativo, Ramos assinala a existência de três modelos heurísticos de evolução do
complexo tecnológico na produção industrial: o arcaico, o de transição e o atualizado. O modelo de
transição, do qual o Brasil se aproximaria, apesar de conter elementos dos dois outros modelos, ou
seja de apresentar o fenômeno da contemporaneidade do não coetâneo, seria marcado pela
dominância de “efetivas tendências para o desenvolvimento autopropulsionado e assimilação
crescente, sobretudo em setores estratégicos da indústria das mais modernas técnicas de produção e
de relações humanas, postas em prática nos países avançados.”(RAMOS, 1966, p. 102).
O conceito de tecnologia, também seria problematizado, com Guerreiro Ramos, que aponta
três sentidos, básicos, o primeiro um sentido mais convencional,onde vê a
tecnologia como conjunto de instrumentos, utensílios, meios e objetos materiais, mediante
os quais o homem se assenhoreia das forças naturais e as utiliza, bem como modifica as
circunstâncias e cria um ambiente mais propício à satisfação de suas necessidades e
objetivos. (RAMOS, 1966, p. 99)
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Em um segundo sentido, para o autor, a tecnologia poderia ser percebida como o saber
sistematicamente ligado à ação (RAMOS, 1966, p. 100). E por fim em sua terceira definição,
dialoga com Manheim, ao indicar que na etapa do pensamento planificado, “o social tanto quanto o
o natural e o material se tornam para o homem, objeto de manipulação tecnológica. É desse tipo de
homem que se pode dizer que descobriu que a essência da tecnologia não é tecnológica” (RAMOS,
1966, p. 101). Assim, o autor destaca que a partir de Manheim seria possível o “alargamento
sociológico
do
conceito
de
tecnologia
como
atributo
do
pensamento
funcional
e
multidimensional”(RAMOS, 1966, AED, 101), aplicando-se a todos os domínios da vida.
Guerreiro Ramos desta forma completa seu processo de deslocamento conceitual sobre a
tecnologia, demonstrando a importância do papel das técnicas administrativas desenvolvidas nas
diversas dimensões de planificação da vida no capitalismo, que caminhariam entrelaçadas com as
políticas de desenvolvimento nacional baseadas na transformação tecnológica e social encarnada na
produção industrial. Comunhão das técnicas imateriais e materiais nos processos sociais, que
posteriormente seriam tematizadas em diferentes enfoques por autores do próprio campo CTS .
Conclusões
Guerreiro Ramos divergiria da visão nacionalista de outros membros do ISEB, do qual se
afastaria em 1958. Por exemplo, Guerreiro Ramos criticaria uma suposta visão reducionista de
Álvaro Vieira Pinto acerca do seu conceito de redução sociológica. Para Guerreiro, Vieira Pinto,
teria igualado consciência crítica das massas a um pensamento dialético, à redução filosófica, o que
seria um equívoco, pois seria no máximo um “modo subalterno e elementar do pensar rigoroso”.
Também criticaria a obra Consciência e Realidade Nacional, do mesmo autor, por ter elevado o
nacionalismo à uma categoria dialética. Porém, as críticas de Guerreiro Ramos ao ISEB e a Álvaro
Vieira Pinto, fogem dos limites deste trabalho.
Para concluí-lo, gostaríamos de ressaltar algumas possibilidades de reflexão que se abrem
com a análise do pensamento de Guerreiro Ramos, no período proposto. Por exemplo, a
necessidade de estudos mais sistemáticos sobre hierarquias raciais no campo CTS, temática, diria,
fundamental para percepção das assimetrias na apropriação e produção de ciência e tecnologia no
país, e especialmente para a percepção de novas possibilidades epistemológicas da área. Outra
possibilidade indicada seria a importância dos estudos pós-colonialistas no campo CTS. Talvez,
também devessemos dar maior atenção aos processos de circulação e resignificação das ideias, nas
práticas sócio-culturais em determinados contextos, não esquecendo que para além da já comentada
apropriação do conceito de redução tecnológica, pelo engenheiro anônimo, o conceito foi
apropriado e reinventado por Haroldo de Campos, um dos líderes do movimento concretista, como
redução estética (RAMOS, 1965, p. 22). Por fim, compreender as estratégias democráticas de
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construção da nacionalidade como indicadas por Guerreiro Ramos, talvez nos permita perceber a
permanência e os perigos do nacionalismo e a beleza mobilizadora do imaginar comunidades
utópicas. Revolver as camadas discursivas, recolher fragmentos, ler compreensiva e amorosamente
nossos iguais/desiguais no passado, refratando conceitos e metodologias , parece ser uma caminho
possível, inclusivo de novas áreas e novas abordagens interdisciplinares, em nossa comunidade
imaginada e concreta, em constituição, no campo CTS brasileiro.
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Guerreiro Ramos e o Conceito de Redução Tecnológica