Para entender Thomas Piketty e as suas propostas sobre tributação Marcos de Aguiar Villas-Bôas Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP, Mestre em Direito Público pela UFBA Advogado Este texto será publicado em partes e, apesar de acabar formando uma nova série, encerra a série de artigos que trata do livro “Pour une révolutione fiscale”, publicado em 2011 pelos franceses Camille Landais, Thomas Piketty e Emmanuel Saez. Para compreender melhor esse livro analisado nos últimos textos, é preciso entender o contexto no qual foi escrito. Assim, será possível digerir de maneira mais profunda os assuntos tratados nele e partir, também, para o estudo de outros importantes temas, muitos deles imbricados com questões jurídicas e, dentre elas, as tributárias. O livro de Landais, Piketty e Saez é uma das frentes de trabalho nas quais um grande grupo de estudiosos se debruçou desde o final do século passado. Nas últimas décadas tem crescido muito a preocupação dos pensadores, em inúmeros países, com os nefastos efeitos da desigualdade socioeconômica, sobretudo quando essa toma graus muito elevados. Esse tipo de estudo provoca pânico nos neoliberais, que desejam, com todas as forças, um Estado pouco atuante, não creem que a desigualdade esteja aumentando e também não veem maior gravidade nela. Para atacar os estudos sobre a desigualdade, muitos neoliberais, por má fé ou ignorância, os acusam de socialistas ou comunistas, mas a maior parte dos economistas interessados nesse campo, como é o caso de Landais, Piketty e Saez, não defende um sistema sequer próximo do Socialismo ou do Comunismo, aceitando, inclusive, um considerável grau de desigualdade, que é visto como algo normal e com efeitos positivos, pois incentiva, por exemplo, o aumento da produtividade e a inovação1. Pode-se citar, dentre os estudiosos que também seguem essa linha e que se tornaram alguns dos maiores nomes da Economia no mundo, os seguintes vencedores do Prêmio Nobel: William Vickery (falecido), Peter Diamond, James Mirrlees, Amartya 1 Piketty afirma isso no seu livro e tem repetido em dezenas de palestras ao redor do mundo. Ver, por exemplo, a sua palestra na Harvard Law School em 2014 – Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=3ofjozfEr-U>. Acesso em: 7. jun. 2015. Para uma referência em Sen, Paul Krugman e Joseph Stiglitz. Outro experiente economista, bastante renomado e cotado recentemente para ganhar o Prêmio Nobel, é Anthony Atkinson, talvez o mais dedicado estudioso da desigualdade nos últimos quarenta anos e, como muitos desses economistas, bastante interessado na Optimal Taxation Theory. Tony Atkinson influenciou profundamente Piketty e uma geração de autores, como Landais e Saez. O gênio Piketty se doutorou com apenas 22 anos pela conceituada London School of Economics – LSE, onde Atkinson dá aulas há muitos anos, foi professor assistente do Massachusetts Institute of Technology – MIT quando tinha entre 22 e 24 anos e, ainda antes dos 30, publicou dois elogiados livros sobre redistribuição e desigualdade. Aos 30 anos, em 2001, Piketty publicou o livro “Les hauts revenu en France au XXe siècle”2, o início de uma dedicação mais profunda à análise de dados históricos, que lhe resultou um prêmio de pesquisa econômica do ano na França. Piketty estudou entre 1998 e 2000 o movimento da riqueza e da renda no seu país, e no livro já podemos encontrar uma parte das conclusões apresentadas no seu best-seller intitulado no Brasil “O Capital no século XXI”, que o fez um popstar da mídia. A partir daquela pesquisa3, Piketty estendeu o seu trabalho com a ajuda do próprio Tony Atkinson4 e de mais algumas dezenas de excelentes economistas espalhados por vários países, dentre eles Landais (professor da LSE)5 e Saez (professor da University of California – Berkeley)6. Este último, juntamente com Piketty e outros grandes economistas, como o já referido Peter Diamond, vem escrevendo durante os últimos 2 Disponível em: <http://piketty.pse.ens.fr/files/public/Grasset2001/2-246-61651-4.pdf>. Acesso em: 4. jun. 2015. 3 “This is book is based on fifteen years of research (1998-2013) devoted essentially to understanding the historical dynamics of wealth and income. Much of this research was done in collaboration with other scholars. My earlier work on high-income earners in France, Les hauts revenus en France au 20e siècle (2001), had an extremely good fortune to win the enthusiastic support of Anthony Atkinson and Emmanuel Saez” (PIKETTY, Thomas. Capital in the Twenty-First Century. Disponível em: <http://resistir.info/livros/piketty_capital_in_the_21_century_2014.pdf>. Acesso em: 9. jun. 2015, p. 6). 4 “Tony, who was a model for me during my graduate school days, was the first reader of my historical work on inequality in France and immediately took up the British case as well as a number of other countries. Together, we edited two thick volumes that came out in 2007 and 2010, covering twenty countries in all and constituting the most extensive databse available in regard to the historical evolution of income inequality” (Idem). 5 “Withou the enthusiasm and insistence of Camille Landais, our collaborative project on the ‘fiscal revolution’ would never have been written” (Idem). 6 “Emmanuel and I dealt with the US case. We discovered the vertiginous growth of income of the top 1 percent since the 1970s and 1980s, and our work enjoyed a certain influence in the political debate. We also worked together on a number of theoretical papers dealing with the optimal taxation of capital and income. This book owes a great deal to these collaborative efforts” (Idem). 15 anos alguns dos mais importantes textos da Optimal Taxation Theory, demonstrando, por exemplo, o enorme nível de desigualdade dos Estados Unidos e como utilizar uma forte tributação progressiva para enfrentá-lo. A partir da enorme e séria coleta de dados feita por esses economistas e do seu constante desejo de dar maior transparência à informação levantada, de modo a democratizar o debate, foi criado o website “The World Top Incomes Database”7, que consolida a base de dados do best-seller de Piketty e é atualizado semanalmente pelo grupo de economistas. Cai por terra, então, o mito – criado para tentar desvalorizar a obra-prima de Piketty – de que os dados e critérios utilizados estariam errados por imperícia ou porque teriam sido inventados, e isso macularia todas as conclusões do autor. Desde o começo do seu livro, o autor francês deixa claro que houve um trabalho árduo e em equipe para levantar e analisar os dados, mas que ele é imperfeito e incompleto8. O humilde Piketty, além de ser um gênio por si só, tinha por trás o background de importantíssimos especialistas de diferentes países, então é curioso como alguns dos seus críticos, que, muitas vezes, sequer analisaram os dados com cuidado, falam, em eitos ideológicos, negativamente sobre o autor e o seu livro. Um dos questionamentos – este fundamentado, mas que não se justifica – veio do Financial Times, veículo britânico voltado para o mercado financeiro, conhecido por suas posições, exatamente, pró-mercado financeiro. O editor de Economia do FT, Chris Giles, gravou um vídeo e escreveu um texto nos quais questiona alguns dados e critérios de Piketty e conclui que, em verdade, a concentração de riqueza estaria caindo (pasmem!), em vez de aumentando9. Além de erros de fórmulas nas planilhas feitas no Excel por Piketty e seus colegas, Giles refez alguns dos gráficos e chegou a resultados diferentes. 7 Disponível em: <http://topincomes.parisschoolofeconomics.eu>. Acesso em: 9. jun. 2015. “Let me say at once that the answers contained herein are imperfect and incomplete. But they are based on much more extensive historical and comparative data than were available to previous researchers, data covering three countries and more than twenty countries, as well as on a new theoretical framework that affords a deeper understanding of the underlying mechanisms” (PIKETTY, Thomas. Capital in the Twenty-First Century. Disponível em: <http://resistir.info/livros/piketty_capital_in_the_21_century_2014.pdf>. Acesso em: 9. jun. 2015, p. 8). 9 GILES, Chris; GIUGLIANO, Ferdinando. Thomas Piketty’s exhaustive inequality data turn out to be flawed. Disponível em: <http://www.ft.com/intl/cms/s/0/c9ce1a54-e281-11e3-89fd00144feabdc0.html#axzz3c7hNvC7Q>. Acesso em: 1. jun. 2015. 8 Apesar de a base de dados do autor francês englobar dezenas de países durante três séculos, Giles atacou, sobretudo, dados recentes relativos ao Reino Unido, ou seja, questionou menos de 5% dos dados do trabalho, contudo, mesmo assim, concluiu que todas as suas conclusões seriam falhas. A provável má fé de Giles foi posta em evidência por inúmeros economistas, como os já referidos vencedores do Prêmio Nobel, Amartya Sen10 e Paul Krugman11, e por veículos da mídia, como o britânico “The Guardian”12. Para essa publicação do The Guardian, o pesquisador econômico Howard Reed manteve contato com ambos, Piketty e Giles, e analisou os dados disponibilizados por eles na internet. O resultado é uma explicação extremamente didática que demonstra a razão das diferenças encontradas por Giles, concluindo que elas decorrem das descontinuidades nos dados. Não há uma fonte única, completa e totalmente segura de dados para medir a concentração de riqueza e renda, e, portanto, para chegar a conclusões finais sobre a desigualdade. Em alguns casos, como no do Reino Unido, Piketty foi obrigado a utilizar seis fontes principais, buscando integrá-las para cobrir três séculos. São utilizados desde pesquisas econômicas até dados governamentais, como aqueles decorrentes de declarações de impostos. Giles utilizou, algumas vezes, dados de outra dentre as seis fontes, que não aquela utilizada por Piketty, e daí surgiram as diferenças. Quando havia dados em duas fontes, Giles utilizava aquela que diminuiria a desigualdade, sem fazer qualquer correção por conta disso. É certo, no entanto, que houve alguns erros nas planilhas do autor francês, o que é razoável devido à quantidade de dados e cálculos estatísticos por trás do trabalho. Quando houve erros, eles foram reconhecidos por Piketty com a promessa de que seriam corrigidos em uma futura edição do livro e em trabalhos posteriores. A conclusão da terceira opinião de Howard Reeds é, enfim, de que os erros de Piketty 10 Dentre as várias falas e textos de Amartya Sen, considerado o mais importante pensador do mundo pelo site britânico Prospect, vide, por exemplo, a seguinte entrevista: Disponível em: http://blogs.lse.ac.uk/politicsandpolicy/five-minutes-with-amartya-sen-i-think-that-pikettysconclusions-mostly-stand/. Acesso em: 4. jun. 2015. 11 KRUGMAN, Paul. Is Piketty all wrong?. Disponível em: <http://krugman.blogs.nytimes.com/2014/05/24/is-piketty-all-wrong/?_r=0>. Acesso em: 4. jun. 2015. 12 REED, Howard. Piketty, Chris Giles and wealth inequality: it’s all about the discontinuities. Disponível em: <http://www.theguardian.com/news/datablog/2014/may/29/piketty-chris-giles-andwealth-inequality-its-all-about-the-discontinuities>. Acesso em: 3 jun. 2015. não maculam o seu trabalho, nem as suas conclusões, e que o próprio Giles também cometeu alguns erros ao elaborar os seus gráficos. Devido a esse debate provocado pelo FT, a obra de Piketty ganhou ainda mais projeção e repercussão, sobretudo nas discussões mais rasas entre direitistas e esquerdistas13, especialmente no Brasil, onde elas ainda estão bastante atrasadas. Os ortodoxos, conservadores, que parecem ter se desesperado por conta das conclusões do livro de Piketty, têm tentado desmoralizá-lo de todas as formas possíveis. Rodrigo Constantino, por exemplo, vem escrevendo inúmeros textos para denegrir Piketty e o seu livro14. Em um deles15, utiliza, exatamente, a referência ao FT feita acima, que, como visto, tem mais furos do que o próprio livro criticado. Isso demonstra a irresponsabilidade desses críticos, que sequer analisam os dados com cuidado, mas publicam grosseiros e superficiais textos com o objetivo de vender sua ideologia, ainda que, normalmente, acusem os demais disso, criando uma infeliz disputa de dois lados que ganhariam mais se pudessem colaborar. Se esses críticos tivessem se aprofundado nos estudos, especialmente nos filosóficos, perceberiam que ideologia sempre há em qualquer comunicação, mas a diferença é a informação que lhe suporta e a forma como a mensagem é transmitida. Com a grande contribuição dessas pessoas na promoção involuntária do livro, ele foi uma explosão sem precedentes, analisado e elogiado por centenas dos maiores economistas do mundo, inclusive diversos dos últimos vencedores de Prêmio Nobel16. Os tais críticos vivem, no entanto, difundindo falas e textos daquela minoria que criticou o livro para 13 O vencedor do Prêmio Nobel, Paul Krugman, escreveu interessante texto tratando do pânico gerado por Piketty naqueles que não gostam do aprofundamento das discussões sobre desigualdade: The Piketty Panic. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2014/04/25/opinion/krugman-the-pikettypanic.html>. Acesso em: 4. jun 2015. 14 Ver, por exemplo, CONSTANTINO, Rodrigo. “O livro de Piketty é estúpido”, um “projeto político em favor do socialismo”, diz professor de Harvard. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/economia/o-livro-de-piketty-e-estupido-um-projetopolitico-em-favor-do-socialismo-diz-professor-de-harvard/>. Acesso em: 4. jun. 2015. 15 CONSTANTINO, Rodrigo. Livro de Piketty estaria repleto de erros estatísticos, diz Financial Times. Disponível: <http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/economia/livro-de-pikettyestaria-repleto-de-erros-estatisticos-diz-financial-times/>. Acesso em: 3. jun. 2015. 16 Além dos já referidos Amartya Sen e Paul Krugman, vide falas e textos de Joseph Stiglitz (duas vezes vencedor do Prêmio Nobel), como, por exemplo: Democracy in the Twenty-First Century. Disponível em: <https://www.project-syndicate.org/commentary/joseph-e--stiglitz-blames-risinginequality-on-an-ersatz-form-of-capitalism-that-benefits-only-the-rich>. Acesso em: 4. jun. 2015., e vide também falas e textos de Robert Solow, como, por exemplo: Thomas Piketty is Right. Disponível em: <http://www.newrepublic.com/article/117429/capital-twenty-first-century-thomas-pikettyreviewed>. Acesso em: 4. jun. 2015. tentar usar a exceção como regra, recurso retórico imoral frequentemente empregado na política. No âmbito do Direito Tributário, o professor gaúcho Cristiano Carvalho, um admirador de Constantino, logo adotou nas redes sociais o apelido pejorativo “Pikaretty” para se referir a Thomas Piketty, que fora criado exatamente por Constantino com o objetivo de acusá-lo de picareta. Cristiano Carvalho é autor de vários posts preocupantes nas redes sociais, como ao afirmar recorrentemente que Karl Marx, alguém que teve papel importantíssimo na Filosofia, na Sociologia e na Economia, não serve para nada. Na mesma linha, recentemente, afirmou que, da obra de Roberto Mangabeira Unger, considerado internacionalmente um dos maiores pensadores do mundo, se extrai pouca coisa que valha a pena. É preciso tomar muito cuidado com esses críticos que disseminam ideologia sem sequer realizar uma análise mais aprofundada e com o intuito de derrubar o autor ou a obra que não agrada aos seus interesses. Por óbvio, Piketty não é um vingador que veio resolver todos os problemas socioeconômicos do mundo, e falhas serão encontradas na sua obra. Aqueles que a defenderem cegamente estarão cometendo o mesmo erro desses que a criticam cegamente. A questão é debater os erros e acertos da obra com responsabilidade, informação e respeito. A conclusão central de Piketty, com base nos três séculos de dados de mais de vinte países, é de que a desigualdade aumenta quando r > g, ou seja, quando a variável “r”, atribuída para representar o retorno sobre o capital (riqueza), que abarca os alugueis, os juros de investimentos financeiros, as valorizações de ativos etc., for maior que “g”, a variável escolhida para representar o retorno da produção e a renda gerada por ela, haverá aumento da riqueza em nível maior do que o crescimento da produção econômica e, portanto, aumento da desigualdade17. A produção e a renda gerada por ela é muito mais ampla, abarca um número muito maior de pessoas, inclusive os trabalhadores mais pobres e os beneficiados por 17 “When the rate of return on capital exceeds the rate of return of growth of output and income, as it did in the nineteenth century and seems quite likely to do again in the twenty-first, capitalism automatically generates arbitrary and unsustainable inequalities that radically undermine the meritocratic values on which democratic societies are based” (PIKETTY, Thomas. Capital in the Twenty-First Century. Disponível em: <http://resistir.info/livros/piketty_capital_in_the_21_century_2014.pdf>. Acesso em: 9. jun. 2015, p. 8). programas sociais, ainda que a renda desses últimos seja transferida pelo Estado e extremamente menor do que a dos ricos. A riqueza, por outro lado, está concentrada na mão de pouquíssimas pessoas mais ricas. Inúmeros estudos demonstram essa concentração no Brasil e até mesmo em países desenvolvidos, como já expliquei em outros textos 18 . Além disso, como veremos, o retorno da riqueza dos mais ricos costuma ser maior do que o retorno da riqueza dos mais pobres. Vale repetir que não defendo, assim como o autor francês não o faz, ser o sistema econômico capitalista, em caráter geral, fadado ao fracasso e nem que o Socialismo, no momento atual, seria melhor. Como Piketty, entendo que essa dicotomia nem tenha mais cabimento, pois há vários modelos intermediários possíveis. O Capitalismo tem várias vantagens e desvantagens. Ele serve ao Brasil neste início de século XXI, mas desde que formulado de modo a maximizar as vantagens e minimizar as duras desvantagens. É preciso ter muito cuidado, inclusive, para não passarmos do Capitalismo para o que alguns têm chamado de Rentismo, como veremos nos próximos textos. 18 VILLAS-BÔAS, Marcos de Aguiar. Thomas Piketty e a reforma tributária: “Pour une révolutione fiscale” – Parte 2. Disponível em: <http://optimaltaxationtheory.com/assets/Pour_une_r__volutione_fiscale_-_Parte_2.pdf>. Acesso em: 6. jun. 2015.