MANIFESTAÇÕES BARROCAS NA MODERNIDADE INTERRELAÇÕES ARTES PLÁSTICAS/CINEMA NA OBRA DE ORSON WELLES “A arte é uma mentira que nos faz ver a realidade” Pablo Picasso “Um filme é um sonho, mas um sonho jamais é uma ilusão. Se não houver sonho não será cinema” Orson Welles Este estudo é uma tentativa de abordar, no campo da visualidade, algumas imagens da linguagem cinematográfica de Orson Welles, dentro de uma estética barroca revisitada 1. A escolha de investir neste momento na direção do olhar para a compreensão formal deste barroco não vem ao acaso, nem pretende recusar afinidades de Welles com outras linguagens estéticas. Ao contrário, reafirma a exuberância de sua linguagem fílmica ao trazer estes dados a enfoque, evidenciando mais a compreensão, riqueza e arte de um vocabulário de imagens que, montadas sequencialmente junto a outras - de características ora futuristas, cubistas, expressionistas, construtivistas, ou ainda surrealistas -, incidem em sequências efetivamente dramáticas de contrapontos que vão de encontro à estruturação orgânica, legitimando uma obra que rompeu com a estética e psicologia clássicas do cinema americano, na década de l940, não somente e apenas por seu aspecto formal.2 Querer explicitar todas as afinidades estéticas de Orson Welles resultaria, nesse momento, em análise muito pretensiosa, ainda que partida de dados substanciais. Remetemos ao futuro o aprofundamento deste projeto, acrescentando-lhe reproduções das obras holandesas (de Jan Steen, Peter de Hooch , Jan Vermeer, Renbrandt, Robert Campin, Cornelis Bishchop, Jan Van De Heyden, Jacob Van Ruisdael), italiana (Caravaggio) e espanhola (Velasquez), num 1 André Bazin em artigo Antologia da imagem fotográfica no livro Ensaios, observa ter a imagem mecânica, ao opor-se à pintura atingido mais que a semelhança ao Barroco- atingiu a identidade do modelo e obrigou-a a se converter no próprio objeto. 2 Ver Prefácio de Ismail Xavier no Livro Ensaios de André Bazin: “A vocação realista do cinema não propriamente como veiculação de uma visão correta e fechada do mundo, mas como forma de olhar que desconfia da retórica(montagem) e da argumentação excessiva, buscando a voz dos próprios fenômenos e situações. Realismo como produção de imagem que deve se inclinar diante da experiência, assimilar o imprevisto, suportar a ambigüidade, o aspecto multifocal dos dramas - tal produção de imagem requer um estilo, implica numa escolha. 2 confronto entre pintura e composição do écran, resumido neste estudo de temas extremamente abrangentes e ricos.3 Já é tarefa complexa confrontar a diversidade genial da obra de Welles com a abrangência do que se possa entender por esse “Barroco” extemporâneo nas interrelações Artes plásticas/Cinema.4 CONSIDERAÇÕES Gostaríamos de iniciar o trabalho estabelecendo um mínimo de organização. Assim, pretendemos percorrer um esquema e, ao mesmo tempo, desenvolver-lhe os ítens mais significativos, sem contudo abandonar as referências de estranhamento do espectador no primeiro contato , muito importantes pelo despertar intuitivo e ponto de partida para a escolha do tema. Permitimo-nos porém usar muitas vezes o termo barroco nos anseios e realizações dos sécs. XVI ao XVIII para então estabelecer comparações. POTENCIALIZAÇÃO DAS IMAGENS Diz respeito à profusão e síntese simultâneas na unidade da obra wellesiana. Em outros termos, é na utilização das informações estabelecidas pela história do cinema - do mudo ao falado - no que diz respeito à montagem e às filmagens de planos seqüenciais e decupagens, onde Orson Welles faz a grande ruptura com o cinema clássico. Tensão dramática não implica nenhuma qualidade artística, e perfeição da imitação não significa beleza; constitui somente uma matéria prima sobre a qual o fato artístico vem se inscrever. Suas imagens impõem-se não apenas com recursos retóricos. Não há predomínio de Maior amadurecimento do que constitui a “Linguagem Cinematográfica” permite estabelecer maior transparência às relações que tornaram o cinema a realização de uma aspiração impossível ao Barroco dos seculos XVI ao XVIII e de com as evoluções estéticas e tecnológicas o fizeram um grande meio e suporte para o que se denomina de “potencialização da imagem”- Ver Ensaios- A.Bazin págs. l9 a 26, 66a 8l, 172 a l77, respectivamente: Ontologia da Imagem Fotográfica, A evolução da linguagem cinematográfica e Pintura e cinema. 4 Gilles Deleuze, em seu livro A imagem-tempo, pág. 168: ...” A questão da profundidade de campo retomou, de uma maneira nova, uma transformação da pintura que ocorreu no séc. XVIII. É possível que Orson Welles tenha sabido recriar, para uso de nosso mundo moderno, uma transformação de pensamento que fora produzida uma primeira vez naquele antigo século. 3 3 uma linguagem sobre as outras: o barroco não respeita o limite entre as artes; nele, imagem, texto, som5, narrativa, dramaturgia são coerentes, íntegros e autônomos. 6 No conceito barroco, Cultismo e Conceptismo / Forma e Conteúdo são um corpo único: seus efeitos estão estreitamente dependentes dos temas e dos seus tratamentos. Da mesma forma, o cinema de Welles é rico em detalhes, cinético por excelência, desde a composição do plano do fotograma aos movimentos reais ou simulados na movimentação da câmera. Veja página 67, -----Ensaios: “as possibilidades de alternância nos tipos de montagem invisíveis: paralela, acelerada e de atrações, usadas em Cidadão Kane já no início do filme, para apresentá-lo ao espectador.” VERSATILIDADE A abrangência e diversidade de sua formação propiciaram a genialidade e capacidade de um homem que foi, ao mesmo tempo, cineasta, prestidigitador, artista plástico (e porque não, gráfico), escritor, roteirista, radialista, ator, diretor, cenógrafo, maquiador, figurinista, produtor. Demonstrada em cada nova obra - ainda que mutilada- a identidade e esforço do artista para conciliar as contradições que lhe revelam a confusão das aparências, definiam-se no esforço das suas atividades para conciliar, em si, as contradições nascidas do caos dos sentimentos. O selo desta paixão foi vaguear sem repouso em busca do grau de exigência dessa aspiração. Para Welles, não se tratou de vencer obstáculos, mas de os utilizar, paradoxalmente, a cada investida, por caminhos já trilhados pela arte, “redescobrindo” e aí adaptando novas possibilidades no “ fusionismo” de todo o arsenal teórico e prático de seu domínio, antes que qualquer outro tivesse tirado daí recursos tão complexos. 7 5 No livro Orson Welles de Peter Bogdanovich, pág. 316, Welles diz: Música é ritmo, é isso que é. A verdadeira forma de um filme é musical. Pode-se ensinar isto até certo ponto. Se algum dia eu viesse a ensinar cinema, daria quase todas minhas aulas em volta da moviola. 6 André Bazin, Ensaios, pág 24,25 - a distinção lógica entre o imaginário e o real tende a ser abolida - este o vislumbre do surrealismo. 7 Do livro Orson Welles de André Bazin, páginas 48/49. Aqui Bazin não arrisca a hipótese de Orson Welles ter premeditado esse efeito, mas de qualquer forma tirou partido dele... A claresa da cena na sua profundidade não pode bastar aos propósitos teatrais de Orson Welles... é também precisa uma profundidade de campo lateral ... Toland (parece) recorreu mais aos “ “grandes focos”, dando um ângulo estreito e um efeito de teleobjetiva...É a excepcional abertura desse ângulo de visão que se devem em primeiro lugar os tetos,indispensáveis para esconder a superestruturas do estúdio (o que complicou os problemas de iluminação, visto que havia necessidade pelos diafragmas muito fechados, de luz mais intensa, de onde resultam os fortes contrastes da imagem.) 4 Segundo o próprio Welles, “para fazer um filme sobre o mundo de hoje, teríamos que nos empenhar em compreender ao máximo as realizações humanas dos últimos vinte mil anos.” 8 REFERÊNCIAS BIOGRÁFICAS É fato que Welles teve determinações, no início de sua carreira, de se tornar pintor, fato que, após a morte de seu pai, o levou a percorrer a Irlanda, aos 16 anos, sobre uma carroça equipada com telas e tintas, numa vocação pictórica já marcada pela teatral em busca dessa aspiração. 9 Curiosamente, é fato também que, até esta data, ele já havia percorrido com o pai todo o “cenário” europeu e boa parte do continente asiático (China e Jamaica ), constituindo esses períodos de sua vida alguns dos tantos outros onde podemos verificar as bases da formação precoce e erudita da gestação dos recursos que o revelarão “cidadão do tempo e do espaço”, a partir de alguns poucos anos, em suas primeiras e grandes obras, sejam estas teatrais, radialísticas ou fílmicas. 10 VÍNCULOS COM A LITERATURA BARROCA11 “O teatro condiciona profunda e essencialmente todas as manifestações de Welles, a começar pelo cinema. Evidentes filiações, desde a escolha de temas, o teatro contém interiormente muitos dos aspectos do estilo de Welles. É o teatro que o comanda: mas o termo, entendido no seu sentido mais lato de vontade de poder espetacular, incluindo por conseqüência esse gosto pela publicidade e pelo escândalo. O teatro no sentido tradicional da palavra está na base da sua cultura e do seu gosto - mais precisamente o teatro Isabelino . Sua teatralidade ultrapassa o palco e invade sua vida. 8 Do livro Orson Welles de André Bazin, pág. 48/49 Aqui, Bazin não arrisca a hipótese de Orson Welles ter premeditado esse efeito, mas de qualquer forma tirou partido dele.... A clareza da cena na sua profundidade não pode bastar aos propósitos teatrais de Orson Welles . ...é também precisa uma profundidade de campo lateral... Toland(parece) recorreu mais aos “grandes focos”, dando um ângulo estreito e um efeito de teleobjetiva.... É a excepcional abertura desse ângulo de visão que se devem em primeiro lugar os tetos, indispensáveis para esconder as superestruturas do estúdio ( o que complicou os problemas de iluminação, visto que havia necessidade pelos diafragmas muito fechados, de uma luz mais intensa, de onde resultam os fortes contrastes da imagem. 9 Este é Orson Welles - Welles e P.Bogdanovich, pág. 319 10 Na Holanda em formação do século XVII foi comum a muitos pintores ir a pé para Bruges, Gand, Antuérpia, Bruxelas onde os bufarinheiros e os traficantes da costa lhes tinham contado que os que faziam quadros para os doadores e confrarias ganhavam largamente o seu pão. - Élie Faure - A arte moderna vol .IV História da Arte - Edições Estúdios Cor, Lisboa l949. 11 Hauser, História Social da Literatura e da Arte 5 Improvisa nas ruas, monta cenários, com atores, em caminhões. Editou e comentou obras de Shakespeare com numerosas indicações de encenação e desenhos” 12. É desta fonte que constitui sua experiência desde a infância, em inexorável e efetiva fonte dos conteúdos dramáticos e assimilações da estética barroca. É aqui que, com certeza encontraremos mais informações sobre este tema, dado que a Shakespeare correspondeu contemporaneidade maneirista com Cervantes, ambos com afinidade entre o ponto de vista terreno e as intenções artísticas. É na admiração profunda aos dois dramaturgos que o cineasta espelha a altura da obra que concebe. Aos três, a presença obstinada de um elemento incorruptível - a vontade de tirar do drama em que as paixões se dilaceram, uma forma que é sua: a de homens semelhantes a todos os outros por tudo o que define o homem, salvo por esta forma. As investigações temáticas sobre religião, leis, e sobretudo educação - demônios secretos que obstinadamente amortalham o homem, e onde quase todos nós nos entregamos de olhos fechados -, são paixões que o criador desvenda , e onde estes artistas mergulharão em trabalho. O ofício, o gesto, a palavra, o próprio silêncio, o automatismo cotidiano, todas as formas monótonas da virtude misteriosa resistem ao desespero e nos conduzem à morte. 13. Vinculado a tais conceitos dramáticos é que Welles se ocupa das formas. Como Cervantes, que inaugurou nova época na história da literatura - antes, tinha havido somente personagens bons e maus, leais e traidores, santos e blasfemos -, surgem Kane e K, em difusas fronteiras entre o real e o não-real. Pela natureza dual do herói, eles tornam-se ridículos num momento para, logo em seguida, serem sublimados ( A dama de Shangai). O fenômeno da “autodecepção” consciente é feito pelo autor ao mundo fictício narrado. 12 A. Bazin, em Orson Welles. Faltam-me material histórico (visitas a museus, desenhos e preferências de estilos e obras) de pesquisa para estabelecer as afinidades mais evidentes com o s pintores barrocos holandeses, o que acabarei por fazer apenas pela utilização de composições e analogias a imagens. 13 6 Constantes transposições de fronteiras dividem a realidade imanente do trabalho e fora do trabalho: planos seqüências, uso de praticáveis e palavra operante em Soberba, uso das janelas que permitem contrapor protagonistas em personagens coexistentes num mundo que perdura sem os seus dramas. Há despreocupação com as personagens da novela que saem da sua própria esfera e caminham no mundo do leitor/espectador - toda a movimentação real de atores ao ocuparem o trajeto das personagens pelas linhas preferencialmente circulares, ou pelo movimento de câmera em arcos (travellings) ou elipses. Em Cidadão Kane: notícias do primeiro casamento, visita e transferência de Kane para o jornal com a entrada de Kane e Lelland que circula pela pilastra de ferro no centro da sala. Outro exemplo ainda é a seqüência da queda na neve e o primeiro beijo de Lucy e George em Soberba. A obsessão do herói governa os seus movimentos e o caráter semelhante ao de marionete : Kane e O Estranho, Grilhões do passado, O processo e em História imortal. (Banister só sabe picar, Arkadin só sabe matar, Quinlan,,na Marca da Maldade, falsificar provas. O estilo caprichoso e grotesco da apresentação revela o gosto pelos postiços e maquiagens abundantes, desde os dez anos, em Rei Lear. No Teatro e no Cinema, remodela caras e modifica idade - seu nariz, uma obsessão de infância, impede-o de representar tragédias, daí o prazer do nariz postiço (corrigido) e da necessidade da máscara. Do ponto de vista plástico, Welles acredita ser o ator a expressão máxima da Escultura, e a câmera capta até o pensamento do ator. 14 A natureza arbitrária, informe e extravagante da sua estrutura pode ser observada na inversão da linguagem, em Verdades e Mentiras, A dama de Shangai,, O Processo, onde diálogo e imagem se complementam em contraponto. É insaciável o deleite que o narrador sente, cada vez mais, em introduzir novos episódios, comentários, divagações: depoimento de Bernstein em Kane e todas as variáveis narrativas em suas manifestações radiofônicas, recortes, telefonemas e investigações em Cidadão Kane. Pág. 295 Este é O.Welles - P.Bogdanovich : “É preciso trabalhar com os empecilhos, “O filme morre”, os atores, a equipe, todo mundo não paro nunca de me mexer.” 14 7 Há saltos cinematográficos nas histórias - o uso dos flash-backs e a potencialização do tempo em Soberba (seqüência do espelho e guarda-roupa), mutações no casamento de Kane, simultaneidade de HQs (e por que não Trípticos ) na composição do écran.15 A mistura dos elementos realistas e imaginativos no estilo do naturalismo dos pormenores e da não-realidade da concepção total - uso das sombras em Grilhões do Passado, dão o tom da teatralidade barroca. À combinação do diálogo baseado na conversa cotidiana, que foi iniciado por Cervantes, com ritmos artificiais e figuras de retórica afetadas de conceptismo - Welles adere, recusando a retórica de recursos. Vejamos o diálogo que estabelecem Lelland e Bernstein durante a festa e os reflexos da dança de Kane no vidro da janela. Sociabilidade longe de sentimentos complicados, também comuns na pintura Holandesa, manifestam o desejo de pintar, não de imaginar, de demonstrar, pura “Contemplação do Viver.” 16 O mundo se apresenta como se estivesse em processo de formação e crescimento - tomadas internas e externas mostram o contraste do conflito e sua geografia. São as janelas e o mundo exterior em História Imortal. O autor altera as personagens no decorrer da narrativa. Vale lembrar, em O processo: sem mudança de estado, o processo é um sonho. É justamente a ausência de forma que constitui o horror da história. Cervantes levou Sancho Pança do indispensável ao extemporâneo. D.Quixote torna-se gradualmente mais profundo e sublimado. O próprio Cervantes termina sem o compreender. 17 Welles elimina os contatos parasitas que impedem a cena de atingir carga dramática ou faísca que se encaminha: Câmera fixa do início ao fim, com dois diálogos entre George e Fanny, para eclodir posteriormente no plano da grande crise muito bem interpretada por Agnes Morehead. 15 O.Welles e P. Bogdanovich, pág 57. Pág. 60 Ensaios, A. Bazin, Montagens proibidas: campo/ contracampo - quando o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de dois ou mais fatores de ação... o que deve ser respeitado é a unidade espacial do acontecimento no momento em que sua ruptura transformaria a realidade em sua mera representação imaginária... basta para que o relato reencontre a realidade. É muito interessante os casos em que Welles opta pela montagem de três fatos simultâneos: infância de Kane visto pela janela da sala em que Bernstein conversa com seus pais, e também na investigação quando a segunda mulher de Kane embriagada sobre a mesa do bar participa com o garçom e o repórter ao telefone numa única imagem. 17 E. Faure, página 44, já citado. 16 8 ROMPIMENTO COM A LINGUAGEM HOLLYWOODIANA Orson Welles nega do cinema clássico exatamente os mesmos pontos onde o Barroco ludibria a Arte Renascentista: decompõe o tempo e multiplica os pontos de vista - eixos narrativos. As críticas pejorativas de exuberante, exagerado, pomposo, caprichoso, que recaíram sobre o Barroco, correspondem à “eloqüente, essa coisa toda, mas uma falta total de equilíbrio e comedimento”, atribuídas a Welles. 18 Ainda citando Bazin, nas artes plásticas a perspectiva foi o pecado original da pintura ocidental... e completando com Welles: ... sabemos o que o puritanismo e a igreja católica significam para a civilização ocidental. 19 Welles busca o impacto das imagens, a descontinuidade narrativa ou narração invertida, como fazia o barroco. Os flash-backs e a profundidade de campo são traços, mas a diferenciação vai ocorrer verdadeiramente no uso que faz da montagem dos planos curtos e dos longos planos sequenciais. Diferente do cinema clássico, Welles não busca o fato atacando-o pela câmera, retalhando, analisando e reconstituindo-os. A utopia da modernidade de harmonizar arte e ciência, espírito e matéria, técnica e estética, é realizada por Welles com tal compreensão estética que o conflito gira em torno dessas contradições e antíteses. Ele busca a chave para alguma coisa. O embargo do espírito sobre os fatos, pelo qual um sentido se mostra - é o que Bazin chama de realismo: “O realismo não consiste, com efeito, em introduzir mais realidade na obra”, porque “esse suplemento de realidade não é mais que um meio - mais ou menos eficaz - de servir um propósito perfeitamente abstrato: dramático, moral ou ideológico”, mas em tentar, pelo contrário, expulsar todo o traço de uma ideologia de uma noção que “só conhece a imanência”. O realismo não deve ser procurado unicamente pelo lado da estrutura intrínseca do filme, mas igual e provavelmente pelo lado desse elemento ativo que o filme deixa de fora e sem o qual essa estrutura fica morta: o espectador (veja texto e ilustração Velázques.) 18 Sobre O processo, ver pág. 345 do livro de P. Bogdanovich. Idem, página 332. 19 sobre as meninas de 9 O cinema moderno impôs uma nova relação do filme com o espectador, dando curso a um processo irreversível que torna a história do cinema inseparável da de seu modo de consumo. O cinema é produtor de sentidos - polissêmico - uma verdade que o espectador é obrigado a construir. A própria palavra perde o seu sentido “clássico”. Os fatos não têm a priori a função de servir à nossa imaginação. O sentido já não é assunto do autor, e sim do espectador. O autor limita-se a colocar à disposição do espectador um conjunto de meios específicos de produção a que se chamam formas. O filme moderno é um dispositivo: uma armadilha para apanhar os sentidos - a teia de aranhas tecida por Welles entre os protagonistas de Soberba, ou os artifícios para trabalhar a constituição emocional de Fanny já citado acima. Segundo Deleuze, ”Welles é o primeiro a libertar uma imagem-tempo direta condicionando-a ao poder do falso. É o poder de afetar e ser afetado, a relação de uma força com outras. Tal poder é sempre preenchido, a relação necessariamente efetuada, embora de maneira variável conforme as forças em presença. Já se pressente que a montagem de planos curtos, partida ou quebrada, e o plano seqüência longo servem à mesma causa”. Usa a inclinação da câmera ou da composição em Mr. Arkadin. “Campo e contra-campo apresentam sucessivamente corpos exercendo sua força, ou sofrendo a de outro: “ cada plano mostra um golpe, um contragolpe, um golpe recebido, um golpe desferido.” - Fallstaff ou A dama de Shangai. Os planos se encadeiam, “se precipitam uns contra os outros, as séries de campo/contracampo em primeiro plano, acentuado em particular sobre O’hara e Grisby, fazem oscilar o peso da imagem da esquerda para a direita; os movimentos são brutalmente interrompidos. Tudo tende a libertar uma energia que condiciona uma percepção quase unicamente plástica do filme”. (Entrevista, Cahiers du cinéma, 42) ASPECTOS PREDOMINANTEMENTE BARROCOS As composições em diagonal acentuam a movimentação e os conflitos. Desfazem a simetria característica da Renascença e do cinema clássico, criam um impacto sensorial, mais pela 10 estética do que pela temática. É a visão caravagesca no écran, tão importante no Processo: diálogos entre Jeanne Moreau e Anthony Perkins, na cama da Srta. Burstner. O uso da luz e sombras, nas paredes e corpos listrados (mais neo-impressionistas), impõem um regime ótico descritivo e embargam o espírito crítico sobre os fatos, com economia de tempo e espaço. A intuição do plano-sequência, para um homem de teatro que constrói sua realização a partir do ator, cria unidade nova na semântica e sintaxe do écran. Daí também nasceu a visão de um realizador habituado a ligar o ator ao cenário, sentindo a planificação tradicional, não como uma facilidade de linguagem, mas como uma perda de eficácia, uma mutilação das virtualidade espetaculares da imagem. Welles não renuncia aos efeitos particulares que se podem tirar da unidade da imagem no tempo e no espaço. Vários centros de interesse atravessam permanentemente o écran, obrigando-nos a saltar de um para outro, lamentando abandonar o precedente. Coloca o espectador numa relação com a imagem mais próxima do que a que ele mantém com a realidade. Implica atitude mental ativa, como no plano seqüência do baile em Soberba. (Ver mais detalhes nas ilustrações sobre pinturas holandesas.) O uso da câmera baixa - visão infernal pois que o olhar parece vir da terra, de baixo para cima - é reforçado pelos tetos rebaixados, que impedem qualquer escapadela no cenário e completam a fatalidade dessa maldição. É o paradoxo intrínseco. A vontade de poder de Kane esmagando-nos, mas sendo ela própria esmagada pelo cenário. A quarta parede, ausente do palco do teatro, e a escolha do melhor ponto de vista sobre a ação nas cenas externas nos dão o vinculo de teatralidade e cenografia de Welles aos conceitos barrocos do século XVII. A profundidade de campo residia, para Welles, numa certa forma de colocar o cenário e as personagens num enquadramento não descritivo, sendo mais participativo, indo além da 11 montagem interna em alta sedução sensacionalista. Basta lembrar o cenário da praça e a movimentação de personagens até a explosão da bomba, em A marca da maldade. Welles abandona toda retórica e elementos simbolistas das imagens - não há acomodação mental. A nova forma de relato recusa artifícios de montagem: é a seqüência da tentativa de suicídio da segunda mulher de Kane, com uma tomada em primeiríssimo plano do vidro aberto de comprimidos deixando entrever a porta por onde, após as batidas, Kane entra aproximando-se da cama, tudo com uso de câmera fixa. A sobrecarga barroca torna a análise mais complexa onde o espectador não pode escapar à significação na localização do objeto. Como obra aberta, implica em metalinguagem: olhar, objeto, público. Cria verossimilhança e releitura, tão bem resolvidas em Verdades e mentiras, um tromp l’oeil redimensionado à modernidade. O cubismo é uma farsa tridimensional na bidimensionalidade, e Welles parodia Picasso ao mesmo tempo Não foi à-toa que Picasso também “namorou” as meninas de Velázques em sua fase cubista. CONCLUSÃO É inegável a preferência de Welles pela estética barroca, principalmente por um “modo de vida” num estilo que foi além das artes, incluindo vestuário, cerimoniais, mobiliário, e que não foram analisados aqui enquanto figurinos e adereços cênicos. Podemos afirmar que a leitura da pintura holandesa e caravagesca são, do ponto de vista dramático e composicional, os sinais mais marcantes desta análise, por remeterem ao que há de paradoxal entre o barroco e o moderno em Orson Welles: aspiração ao avanço da imagem (Caravaggio), aliada à sensação de recuo do volume pela busca da profundidade, via luminosidade (pintura holandesa). Traduzindo: o drama avança até o espectador, e o cenário recua até a geografia dos ambientes. Reafirmamos que é a superioridade de compreensão das linguagens artísticas que levou Welles a ocupar as fronteiras das mesmas - imagens, sons, espaços e tempo - numa fusão que coincidentemente também foi buscada pelo Barroco. Se por um lado a fotografia recuperou, para o século XX, a perspectiva pelo olhar ciclópico da câmera (cinema clássico), Welles fez com que ela resgatasse as aspirações de movimento e apelos sensoriais - táteis/sonoros da dramatização barroca (cinema moderno). 12 BIBLIOGRAFIA BAZIN, André. O cinema - Ensaios. São Paulo, Editora Brasiliense, 1ª edição, 1991. Orson Welles. São Paulo, Jaime Bazin e Livros Horizonte, s.ed., 1991. BOGDANOVICH, Peter. Este é Orson Welles. São Paulo, Ed. Globo, 1ª edição, 1992. DELEUZE, Gilles. A Imagem-Tempo. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1ª edição, 1990. HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. São Paulo. 13