VÁRIAS MENINAS: DA EXEMPLARIDADE AO DIÁLOGO
CAMILA FLESSATI
RESUMO:
O presente artigo é fruto do trabalho realizado no grupo de
estudos “Literatura Infantil/Juvenil e Sociedade” da Universidade
de São Paulo. Este estudo analisa a relação entre a literatura
infantil e os valores agregados a ela, aprofundando-se em uma
obra contemporânea chamada Retratos de Carolina, da escritora
Lygia Bojunga Nunes.
Introdução
O presente artigo é fruto do trabalho realizado no grupo de
estudos “Literatura Infantil/Juvenil e Sociedade” da Universidade
de São Paulo. Este estudo analisa a relação entre a literatura infantil e os valores agregados a ela, aprofundando-se em uma obra
contemporânea chamada Retratos de Carolina, da escritora Lygia
Bojunga Nunes.
Com base nos estudos de literatura infantil e nos estudos
comparados de literaturas de língua portuguesa, busca-se um fio
condutor que mostre, no bojo dos universos literários, os valores
subjacentes à construção da sociedade e, em última análise, da
própria infância.
Outros tempos, antigos leitores
Como a criança era vista como um “adulto em miniatura”,
nos primeiros textos a ela dirigidos, apenas a linguagem era alterada, as palavras tidas como difíceis e as passagens que exigissem
uma compreensão superior à que se supunha que a criança possuísse eram substituídas, ou mesmo, subtraídas.
Essa visão da literatura infantil foi mudando efetivamente
no início do século XX com o auxílio da psicologia experimental,
que procura dar valor às etapas do desenvolvimento da criança,
principalmente quanto às suas estruturas cognitivas, pois, até então, somente a idade era utilizada como referência.
Segundo Mark Soriano (COELHO, 2000), “se a infância é
um período de aprendizagem, [...] toda mensagem que se destina
a ela, ao longo desse período, tem necessariamente uma vocação
pedagógica. A literatura infantil é também ela necessariamente
pedagógica, no sentido amplo do termo, e assim permanece,
mesmo no caso em que ela se define como literatura de puro entretenimento, pois a mensagem que ela transmite então é a de que
não há mensagem, e que é mais importante o divertir-se do que
preencher falhas”.
Quanto às referências usadas na indicação de um livro,
Nelly N. Coelho (1995, p. 19) classifica os tipos de leitor através
dos níveis de leitura de cada indivíduo seguindo a mesma idéia de
períodos de desenvolvimento estabelecidos por Piaget, por exem2
plo, os chamados pré-operatórios e pré-leitores possuem características semelhantes, sugerindo um parâmetro a pais e professores.
O indivíduo que é classificado como pré-leitor tem em seus
livros a presença absoluta de imagens (gravuras, ilustrações, desenhos, colagens), sem texto escrito ou com textos brevíssimos.
A segunda fase é denominada leitor iniciante, na qual a
leitura é composta por linguagem visual e verbal, sendo a primeira predominante. O texto verbal apresenta uma narrativa simples e
linear, com personagens com comportamentos e caráter nítidos.
Na próxima etapa, tem-se o leitor-em-processo, período no
qual o indivíduo domina com facilidade o mecanismo da leitura.
Esta narrativa gira em torno de um conflito e possui uma linguagem simples e esquema linear.
Em seguida, há o leitor fluente que representa a fase de
consolidação do domínio da leitura, neste nível começa-se a desenvolver a capacidade de abstração aliada ao aumento da reflexão, e tem-se como tema o confronto de ideais.
Por último, encontra-se o leitor crítico que domina totalmente a linguagem escrita, portanto a leitura. Característica importante deste período é o pensamento reflexivo e crítico, o qual
relaciona sua leitura de mundo com os textos literários.
A experiência da leitura pode ser comparada como uma
grande aventura que enriquecerá a vida intelectual e emocional do
leitor. E as definições de leitores servem apenas como meras indi3
cações, sofrendo mudanças de acordo com o desenvolvimento de
cada indivíduo.
Faz-se necessário observar que antes de existir uma literatura especificamente para a criança, somente havia livros sobre a
vida dos santos e os martírios por esses vividos, sendo assim,
quando surgiram livros destinados ao público infantil, houve
grande aceitação. Além de que tais obras seriam “um importante
agente de transmissão dos valores, consagrados por uma Sociedade, às novas gerações que ‘deveriam’ continuá-la no tempo (...)”
(COELHO, 2000, p. 147). Nesta época, já se fazia presente a
questão da literatura infantil ser pedagogia ou não.
Pode-se comprovar uma série de mudanças na literatura do
início do século XVII e a atual, e tais características formam dois
grupos antagônicos. O primeiro grupo por preservar valores como
obediência absoluta à autoridade, sistema social fundado na valorização do ter e do parecer – acima do ser, moral dogmática,
entre outros, denomina-se paradigma tradicional. Já no segundo
grupo, conhecido por paradigmas emergentes, destacam-se o
questionamento da autoridade, o sistema social fundado na valorização do fazer como manifestação autêntica do ser, a moral da
responsabilidade ética etc.
Tais características revelam que é possível fazer uma ponte
entre a literatura e a sociedade, visto que uma é o reflexo da outra
e entre esse jogo de imagens tem-se a ideologia e os valores de
cada escola literária.
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Em relação aos paradigmas tradicionais, destacam-se as obras da Condessa de Ségur, de Charles Dickens e de Edmundo de
Amicis, ambas trazem tipos corajosos, invencíveis, estudiosos,
carinhosos, caridosos, e que adotam os preceitos da igreja, ou
seja, verdadeiros modelos a serem seguidos.
Não por acaso, pode-se verificar tal aspecto no próprio título de uma das obras da Condessa de Ségur que é Meninas Exemplares, a idéia deste e de outros livros era doutrinar as crianças
segundo os princípios que mais interessavam a sociedade, para
isso mostrava-se uma realidade polarizada entre bons e maus,
cabendo à criança optar pelo lado certo, do qual sairiam as “recompensas”.
Leitores de hoje e seus diálogos
Quanto aos paradigmas emergentes, tem-se uma gama de
autores em evidência, entre esses se sobressai a autora Lygia Bojunga Nunes; uma característica comum em todos os seus livros é
a perda da exemplaridade, que antes era implícita ou explícita na
mensagem, e o ganho do caráter reflexivo e crítico.
Uma das heranças da literatura infantil recebidas por Lygia
Bojunga Nunes vem de Monteiro Lobato, que é o tom coloquial
da língua, o seu “abrasileiramento”. Isso concretiza a aproximação com o leitor, em especial, com o leitor em formação.
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Em Bojunga, o coloquial é usado nos discursos direto, indireto, indireto-livre, bem como nos discursos do narrador. Esse
caráter coloquial mostra a capacidade de recriar o universo verbal,
no qual a criança está inserida, de maneira que a põe em contato
com a riqueza da própria língua. Como exemplo, pode-se citar os
denominados desvios de normas, o uso do ter pelo haver, do pra
pelo para, as sucessivas orações coordenadas aditivas e a idéia de
futuro é sempre transmitida por formas compostas, o uso do vai
fazer ao invés do fará.
Nota-se, no emprego de pronomes, a substituição sistemática da primeira pessoa do plural pela expressão a gente, como se
percebe em:
– E u não tô legal, pai.
– Isso eu sei, mas...
– É melhor a gente não falar da gente. É melhor a gente nem
falar. (BOJUNGA, 2002, p. 109)
Com base no fragmento acima, observa-se o verbo estar,
que quando conjugado na primeira pessoa do singular permanece
estou, porém, devido a um fenômeno morfológico comum na
língua falada, este sofre aférese e ficando somente “tô”.
Entretanto, é possível notar quanto à estilística, o uso de
metáforas, aliterações, antíteses, compondo uma obra lúdica e
literária.
Quanto à presença da língua falada na literatura infantil
brasileira, Nilce Sant’Anna Martins (SANDRONI, 1987, p. 89)
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afirma que: “ficando em posição mais ou menos intermediária
entre a língua falada, que a criança domina relativamente, e a
língua escrita culta, que a escola começa a ministrar-lhe, a língua
da literatura infantil possui características de uma e de outra. Assim sendo, ela concilia a afetividade, a espontaneidade e simplicidade da língua falada e a organização, as marcas, a maioria das
normas gramaticais características do padrão culto”.
Em Retratos de Carolina, objeto de estudo deste trabalho, é
possível verificar a relação da personagem com a palavra escrita,
atribuindo um valor a esta; e o modo como isso é introduzido no
livro também sugere uma aproximação do universo infantil, pois
se passa em uma escola.
No entanto, tanto o cenário (escola) como o argumento da
escrita aparecem como adereços dessa história, o principal, para o
pequeno leitor, se situa na relação da personagem Carolina e sua
nova amiga Priscilla.
– Você já sabe ler?
– E escrever.
– Eu também.
– Corrido?
– Depende.
– De quê?
– De não ter palavra que a gente tropeça.
E, por falar em tropeço, quando o recreio acabou a Professora
perguntou:
– A cadeira ficou boa, Priscilla?
– Boazinha.
– A professora olhou pra classe:
– Antes de começar o ditado, eu quero saber uma coisa: como
é que se escreve o sci
de Priscilla? (Id., ibid., p. 11)
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Quando Carolina viu Priscilla escrito, achou ainda mais bonito que Priscilla falado: primeiro porque era uma Priscilla com
dois eles pra gente ficar mais tempo com a ponta da língua no
céu da boca (quem sabe ela também virava uma Carolina de
dois eles?); segundo porque os dois deviam ser tão unha e
carne, o esse e o cê, que mesmo Priscilla não precisando de
esse, o esse não quis se separar de cê. (Id., ibid., p. 11)
A conversa com o leitor é um aspecto constante na obra de
Bojunga e com esta não é diferente. Muitas vezes esses diálogos
ou comentários ao leitor se dão entre parênteses, como no trecho
acima, ou em notas de rodapés, e em outras, ao longo do texto de
uma maneira mais sutil.
O sonho e a imaginação estão presentes em todo o livro,
apenas se põe em evidência, para aclarar este ponto, o episódio
em que Carolina viaja à Londres e deseja imensamente um vestido e atribui um valor a este, proporcionando ao leitor alguns sonhos.
Ainda em relação a esse ponto, se faz necessário recordar a
passagem em que Carolina imagina a personagem que está sendo
elaborada pela autora Lygia Bojunga, e cria um universo particular com esta personagem chamada Discípulo, neste trecho comprova-se a dimensão da imaginação de Carolina.
Sobrepondo os paradigmas descritos acima no livro “Retratos de Carolina” pode-se comprovar que os itens dos paradigmas tradicionais podem ser empregados na mãe de Carolina e os
paradigmas novos nas personagens do pai da Carolina e na própria Carolina.
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Selecionar-se-á o item da obediência absoluta à autoridade,
pois através dele constata-se a mentalidade da mãe e da filha ao
longo do livro; ao passo que os outros itens favorecem discussões
mais isoladas.
No primeiro retrato de Carolina, esta se vê em uma situação
complicada, pois a mãe a pega brincando de médico com um amiguinho, bate nela e diz que contará tudo ao pai; a menina assustada teme a reação do pai por adorá-lo e respeitá-lo demais. Para a
surpresa de Carolina e do leitor, o pai lida com esse fato de maneira calma e compreende o que a menina está sentindo.
Para SANDRONI (1987, p. 108), “a narrativa de Lygia Bojunga lida com o problema da autoridade , deslocando-o para a
perspectiva da própria criança. Ela assume como seus, de forma
extremamente sensível, as angústias e os problemas existenciais
da infância frente ao adulto que se crê dono de todas as verdades”.
Posteriormente, quando Carolina já está casada, a mãe não
aceita o fato da filha não acatar aos desejos e as ordens do marido.
Esta não percebe as mudanças que houve no mundo, a posição
que a mulher conquistou, e não “aceita” a mulher consciente que
a filha é, exigindo que a autoridade do marido seja obedecida.
– Calma, mãe, calma, não comece agora a ficar agitada.
Procure compreender que você está presa a um passado, a
um tempo em que uma mulher tinha que ter marido. Pra ser
sustentada. Pra ser respeitada. Pra ser confortada. Pra ...
– Isso não mudou! Toda mulher quer um marido.
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– Toda mulher quer alguém que ela ame, que ela respeite,
com quem ela se entenda, pra poder partilhar o bom e o ruim
da vida, não precisa ser um marido. (BOJUNGA, 2002,
p.150)
Essa narrativa traz temas e comportamentos reais inerentes
a um universo de fantasia e propõe a reflexão e o entretenimento
em perfeito equilíbrio.
Buscando um fio de coesão
Gostaríamos de ressaltar que cada época compreendeu e
produziu a literatura infantil a sua maneira, e que através desta
pode-se fazer inúmeros estudos das sociedades existentes e os
valores que se pretendiam legitimar.
Como Palo e Oliveira (1986, p. 10) denunciam, há na literatura infantil denominada de ‘realista’ a intenção de se fazer,
ainda nos dias de hoje, do leitor um aprendiz passivo, sem possibilidades de respostas alternativas. Tais livros trazem um conjunto de temas, numa linguagem carregada de ideologia, mostrando
ao leitor o que se deve fazer ou pensar.
Contudo, há escritores como Lygia Bojunga que possibilitam uma “leitura que não se fecha em si mesma, a obra destes
escritores designa o ato mais significativo que o acesso ao mundo
da escrita deflagra: a intervenção no real e o trânsito ao imaginá-
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rio por intermédio de uma ação eficiente” (ZILBERMAN, 1984,
p. 113).
Referências bibliográficas:
BOJUNGA, Lygia. Retratos de Carolina. Rio de Janeiro: Casa
Lygia Bojunga, 2002.
COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil. São Paulo: Ática, 1991.
COELHO, Nelly Novaes. Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira: Séculos XIX e XX. São Paulo: Edusp,
1995.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise,
didática. São Paulo: Moderna, 2000.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura: arte, conhecimento e vida.
São Paulo: Petrópolis, 2000.
OLIVEIRA, Maria Rosa e PALO, Maria José. Literatura Infantil:
voz de criança. São Paulo: Ática, 1986.
SANDRONI, Laura. De Lobato a Bojunga. Rio de Janeiro: Agir,
1987.
ZILBERMAN, Regina. A produção cultural para a criança. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984.
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O presente artigo é fruto do trabalho realizado no grupo de estudos