Resenha crítica do livro DEVELOPMENT AND DREAMS – THE URBAN LEGACY OF THE 2010 FOOTBALL WORLD CUP Udesh Pillay, Richard Tomlinson and Orli Bass (eds.) HSRC – Human Sciences Research Council, 2009, 316 pp. Por Selene Herculano, Vera Rezende e Thereza Carvalho Rio de Janeiro, 14 de março de 2010 Tivemos a nossa curiosidade aguçada por este livro por considerarmos oportuníssima sua leitura entre nós em razão de dois fatores imediatos e locais: o Brasil recentemente se percebeu beneficiado por também ter sido escolhido como sede de dois megaeventos desportivos próximos – a Copa do Mundo de 2014 e as Olímpiadas de 2016. Muitos dos argumentos do povo e de autoridades brasileiras pró e contra sediar tais eventos são similares aos que lemos no presente livro em relação à África do Sul, descritos a seguir. Também vale ressaltar o mesmo sentimento de se ver distinguido pela comunidade internacional, que finalmente começaria a ver com outros olhos dois continentes até aqui semi-desconhecidos ou vistos com boa dose de preconceitos, a América do Sul e a África. Apesar de a África do Sul não ser debutante na tarefa de sediar eventos desportivos globais, pois já sediou a Copa do Mundo de Rugby em 1995, uma Copa do Mundo de Futebol tem um apelo mundial especial. O livro chama nossa atenção para o fenômeno relativamente recente do surgimento de uma mega aliança entre os esportes, os negócios e a mídia, possibilitada pelas novas tecnologias de comunicação de massa e de informação e centrada nos direitos de televisionamento e em mega-patrocinadores. (A Copa Mundial de Futebol em 2006 na Alemanha teve uma audiência acumulada da ordem de 26,29 bilhões de espectadores e fez a FIFA arrecadar US$ 2,77 bilhões em direitos de televisão e em marketing). Tal aliança de interesses produziu um calendário cuidadoso, de tal forma a ter um megaevento desportivo a cada 2 anos. E, consequentemente, escolher um ponto do planeta – localidades em um mundo dividido em nações – como sede. O livro trata das implicações e expectativas desta escolha. Este livro se baseia em pesquisa iniciada em 2005 pelo HSCR – Conselho de Pesquisas em Ciências Humanas – em colaboração com o Centro de Estudos sobre Ambiente Construído, o Instituto Wits de Pesquisas Sociais e Econômicas da Universidade de Witwatersrand, o Banco de Desenvolvimento Sul Africano, a Rede de Cidades Sul-africanas e o Instituto Goethe em Johnnesburg. O objetivo era avaliar os impactos da Copa de 2010 no desenvolvimento urbano sul-africano. Está dividido em 3 partes: 1 - a construção do evento; 2 - a avaliação dos impactos (na redução da pobreza, no turismo, no interior rural, bem como as implicações das intervenções no meio urbano); 3 – o debate sobre o legado (sonhos e expectativas). Pouco há sobre a construção do evento: um histórico sobre a chegada do futebol inglês à África do Sul como forma de socialização dos colonizadores com os locais e que passou a ser um campo da resistência negra; a menção a competição interna entre cidades para sediar jogos e hospedar delegações; um pouco sobre a FIFA e seus procedimentos. Esperávamos encontrar no livro dados mais detalhados e objetivos sobre aspectos preparatórios cruciais, como, por exemplo, sobre orçamento geral da FIFA e contrapartida nacional e suas cifras, sobre procedimentos organizacionais via democracia participativa, sobre o planejamento de manutenção e de usos pós-evento dos equipamentos urbanos construídos etc..., e na verdade pouco há desse tipo de dados. Há a menção introdutória (Tomlinson, Bass e Pillay) referente a 30 bilhões de Rands (moeda nacional sul-africana) previstos em março de 2008, com os quais o governo sul-africano daria conta de sua parcela de gastos na realização da Copa de Futebol de 2010. Davis, no capítulo 3, apresenta organogramas da estrutura administrativa da Cidade do Cabo relativa à preparação para o evento e uma tabela com os gastos aprovados em 2006 para os estádios (8 bilhões e 400 milhões de Rands). Todavia, a menção a investimentos e gastos em diferentes moedas - dólar estadounidense, rands etc. sem definir sua equivalência cria dificuldades para a compreensão do leitor. Udesh Pillay, em seu “Afterword”, já nos adianta o resumo e balanço final do livro: a receptividade positiva dos cidadãos sul-africanos ao evento da Copa do Mundo de Futebol de 2010 como um momento propício para reiterar o processo de construção nacional, o sentimento de patriotismo, a formação de uma identidade, o fortalecimento dos processos de democratização, de aperfeiçoamento dos direitos humanos, da liberalização política e da sociedade civil mediante a construção do “capital social”. E, objetivamente, a curto e médio prazos, a expectativa positiva da criação de empregos, da revitalização de áreas urbanas degradadas, de investimentos em transporte público e em tecnologia de comunicação que perdurarão após a Copa. Segundo ele, a preparação para a Copa do Mundo de 2010 propiciou uma plataforma deliberativa e um espaço seguro de discussão e neles uma avaliação crítica sobre a eficácia do plano de guerra à pobreza, já em curso, o que fez despontar a menção ao déficit habitacional nacional de 2,5 milhões de unidades. Essa questão da participação popular nas decisões aparece ao longo de diferentes artigos do livro, apontando tanto o quanto ela seria positiva para o evento bem como porque ela não existe a contento. O duplo propósito, de alcançar visibilidade internacional e reduzir desigualdades sociais, parece gerar uma tensão interna e Swart e Bob, ao fazer um estudo de caso sobre a Cidade do Cabo (capítulo sete) indicam uma solução para a tensão, que seria o caminho da consulta popular como meio de, ao mesmo tempo, ampliar a participação no processo decisório, divulgar o esporte como caminho de desenvolvimento social e cooptar a população para a sua prática. Um dos artigos mais questionadores do livro coloca em foco as implicações sociais e espaciais que resultam da implantação de um grande projeto esportivo dentro na cidade de Joanesburgo, que inclui o Estádio de Joanesburgo, a Arena “Standard Bank” e intervenções de renovação urbana nas áreas vizinhas. (Bénit-Gbaffou, Capítulo 11). Os bairros próximos ao projeto abrigam uma população de baixa renda, migrantes em construções superlotadas e em mau estado de conservação que, segundo a autora serão expulsos. O fato da renovação no caso do “Greater Ellis Project” se apoiar na iniciativa dos parceiros privados transforma o setor público em facilitador do processo e fornece poucos elementos para garantir tanto a participação, quanto soluções como moradias adequadas para os atingidos pelo projeto. Outra forma de intervenção urbana diz respeito as PVAs, Public Viewing Areas, , também chamados de parques dos fans, áreas destinadas à localização das telas de tamanhos variados onde os torcedores podem assistir aos jogos fora dos estádios, com outro nível de envolvimento com as partidas, ao mesmo tempo em que estabelecem relações com outros grupos de turistas e com a cidade a sua volta. A Copa de 2006 na Alemanha foi a primeira oferecer enormes PVAs distribuídas em diferentes cidades promovendo o fluxo de turistas por outras regiões ao mesmo tempo em que servia à estratégia de reforçar a unificação do país. Em Berlim a mesma iniciativa serviu para a recuperação urbana de espaços públicos selecionados. (Haferburg, Golka e Selter, capítulo 10). As PVAs criam na população local sulafricana a expectativa de realizar ganhos através de pequenos pontos de venda, o que, por sua vez, resulta em preocupação das autoridades com o comércio ambulante informal e suas implicações negativas. As periferias das cidades se dizem prejudicadas, uma vez que nelas não está prevista a instalação desses espaços. A parte do livro denominada “Dreams” trata das expectativas de retorno material e simbólico em relação à realização da Copa de 2010. Nesse conjunto de artigos são discutidas importantes questões subjacentes à realização do evento, como a oportunidade da população para obter renda ou trabalho ou a construção de uma nova imagem de eficiência e hospitalidade para a África do Sul. Ou, ainda, o legado intangível para o continente africano de afastar-se de uma imagem de colonialismo, racismo e subdesenvolvimento e aproximar-se de um país moderno, cordial e pronto para o turismo. São sonhos individuais e coletivos, que estão sendo construídos e inflados nos anos que precedem a realização do evento e que dificilmente poderão se realizar em totalidade. A importância dos artigos dessa seção vai além de contribuir com reflexões essenciais para o evento de 2010 e para o país sede e reside no fato de que as questões levantadas podem ser em grande parte trazidas para o debate em relação a outros megaeventos. Nesse caso, situamos a Copa do Mundo de 2014 no Brasil, onde problemas de inclusão social e a busca por reconfigurar uma imagem de país se encontram também entre pontos fundamentais a serem discutidos. Quais as oportunidades esperadas pelos sul-africanos com a realização do megaevento? Czeglédy responde no capítulo 12, sublinhando que as principais motivações do próprio evento pouco tem a ver com esportes: refere-se aos ganhos bilionários das empresas associadas à FIFA, que exercem como uma corporação direitos sobre a realização, divulgação e transmissão dos jogos; menciona o seu efeito catalisador de mudanças com resultados para a imagem do país, para o turismo e como impulso para investimentos em infraestrutura urbana, em obras já previstas e adiadas. Czeglédy mostra também como a expectativa de aumento dos preços dos imóveis em áreas sujeitas a intervenções urbanas são antecipadamente apropriadas pelo mercado imobiliário. E, contrasta essa situação com a precariedade dos trabalhadores informais diante do turismo gerado pelo evento. A preocupação com a oportunidade de usar o megaevento como ferramenta para melhorar a imagem local também se repete dentro do país, entre as suas cidades. Durban almeja melhorar sua identidade urbana e passar a ser reconhecida como uma cidade africana inclusiva e bem equacionada, tanto para moradores quanto para turistas, é o que mostra Orli Bass , no capítulo 13. A autora explora as tensões e diferentes nuances entre a intenção de construção de uma identidade urbana pela administração local e outras imagens em construção no nível da administração provincial, mais ancoradas na vida africana, no meio rural com a valorização da identidade Zulu. Essas diferenças, segundo ela, se materializam na paisagem com o grandioso Estádio Moses Mabhida, símbolo de uma África urbana. Em outra perspectiva, Margot Rubin (capítulo 14) traz para o debate a questão do gênero e da crescente presença feminina, como espectadora e como participante, num esporte tradicionalmente masculino. A autora focaliza a maneira como os eventos da FIFA são concebidos como espaços masculinos e recupera eventos anteriores no sentido de mostrar o nível de aceitação ou o quanto de transgressão era percebido por essa presença. Questiona, ainda, como se dará a Copa de 2010 em relação aos direitos das mulheres e acena com a possibilidade de que o evento possa se constituir em um desafio aos hegemônicos papéis masculinos, em face da história de resistência e luta da África do Sul. Contudo, no balanço final, o conjunto dos estudos presentes nesta coletânea parece concluir que as contribuições da Copa do Mundo para o desenvolvimento econômico da África do Sul, para a criação de empregos e para a mitigação da pobreza foram superestimados. Tomlinson (capítulo 6) receia que o evento possa até ser prejudicial à economia nacional e que promova desigualdades, deslocando investimentos para a construção de estádios e promovendo desigualdades regionais. Cornelissen (capítulo 8) também vê com cautela o futuro do turismo, uma vez que os mega-eventos acabam arredando outras formas de turismo mais permanentes, em especial o turismo de negócios. Trata-se de um livro que provoca perguntas e reflexões, o que é sempre positivo. Mas que tem lacunas, especialmente para o leitor de outros continentes. Um ponto fraco é não dar uma visão do contexto do continente africano em geral e da África do Sul. Também faltaram dados sobre a economia atual, uma vez que se trata de discutir expectativa de desenvolvimento. Por exemplo: 8 bilhões e 400 milhões de Rands, aprovados para a construção e modernização de 10 estádios, representam quanto em relação a outros gastos com políticas públicas e quanto do PIB nacional? O próprio conceito de desenvolvimento também não é explicitado nem tampouco seu quadro de referência, isto é os indicadores a serem utilizados para avaliar se os esforços com a realização do evento foram eficazes e se irão colaborar para o desenvolvimento do povo sul-africano. Se a Copa do Mundo propiciará um conhecimento melhor do continente africano, o desconhecimento geográfico parece estar presente também entre os autores desta coletânea, em que o México aparece computado como sendo América do Sul (Merwe, ps 21 e 22) e o país “Estados Unidos” é simplesmente denominado de “América” (p. 19), como se todos os demais 26 países que compõem as 3 Américas – do norte, central e do sul – não fossem América! Cremos que um livro que retrata a expectativa de um continente ser visto pelo mundo na sua riqueza cultural e na sua diversidade não pode repetir a retórica estadounidense que rouba de 26 países a identidade americana.