Anais do 5º Encontro do Celsul, Curitiba-PR, 2003 (1136-1140) UM ESTUDO COMPARATIVO DE GÊNERO Nilcéia Albuquerque FRANÇA (UEPG) ABSTRACT: This work deals with female teenagers’ oral and written narratives of a public school of Ponta Grossa, Paraná. They are a comparison between personal experience texts, produced in 1992 and 2000, and seem to be special social discursive practices about sexism, treating with Fairclough’s, Lee’s and others’ ideas. KEYWORDS: oral; written; personal; narratives; gender. 0. Introdução Dando continuidade ao estudo apresentado por mim, em 1998, no V Congresso da ALAB, sobre o gênero social, em que analiso duas narrativas, coletadas em 1992, para minha dissertação de Mestrado (UFSC/1995), passo, no presente trabalho, a comparar aqueles textos com outros, produzidos no ano de 2000, por outra informante da mesma escola pública, com a mesma idade e na mesma situação de produção. O objetivo desta pesquisa é fazer um estudo exploratório sobre a evolução das formações discursivas atinentes a gênero de discurso, ao longo desse período. 1. Fundamentação teórica Labov e Waletzky definem as narrativas de experiência pessoal como “técnica verbal para recapitular experiência em particular, uma técnica de construir as unidades narrativas que combinam a seqüência temporal daquela experiência.”(1967:13). Van Dijk menciona-as como “formas globais muito importantes da comunicação textual” (1976:153). Com relação às formações discursivas, Fairclough (1995), Lee (1992) e Van Dijk (1996) afirmam que um dos elementos mais poderosos na reprodução de poder e de dominação é o freqüente acesso a essas formações discursivas e a eventos comunicativos. 2. Análise dos dados: Baseei-me nas categorias de Labov: sinopse, orientação, ação complicadora, resolução, avaliação, epílogo e moral, comparando os textos orais com os escritos, destacando os marcadores discursivos pertinentes. Chamarei de Ud - unidade discursiva - aos segmentos que contêm sentido mais ou menos completo. (França,1995). Observo também possíveis transformações discursivas de gênero, chamando as narrativas elaboradas em 1992 de corpus um, e as realizadas em 2000 de corpus dois, doravante, designados I.O 1, I. E. 2; II. O 3 e II. E. 4, respectivamente. 3. Resultados: O corpus dois mostrou-se como o primeiro, com maior completude da modalidade oral do que da escrita, embora neste último não tenham ocorrido todas as categorias, como no primeiro (vide anexos). Isto pode dever-se a práticas sociais diferenciadas daquelas vivenciadas pela primeira informante (seu discurso parece mais breve que o do corpus um, evidenciando uma característica do texto pós-moderno, período em que tudo parece dever ter maior brevidade, maior eficiência e maior qualidade simultâneas). Outro fator que pode ter influenciado na extensão dos textos do corpus dois pode ter sido a situação de produção, o horário em que se efetuou a coleta, na última aula. As narrativas orais de ambos os corpora configuram traços característicos da modalidade: truncamentos, hesitações, marcadores de preservação da face e outros. Como os textos do corpus um, os textos do corpus dois não apresentam referência histórica em nenhuma das modalidades, ao se iniciarem. A seguir, apresento as análises por categoria: Sinopse oral: Diferentemente do corpus um, a nova informante já parece ter uma atitude mais positiva diante do fato acontecido, assim como a si mesma (U.d. a), parecendo ter assimilado novas formações discursivas de seu grupo social. Faz um comentário crítico sobre o acontecido e já revela o resultado de sua atitude. Como no corpus um, apresenta interrupções, truncamentos, marcadores de preservação da face, sendo, no entanto, mais breve que a primeira informante. Um dado interessante é o emprego da expressão Nilcéia Albuquerque FRANÇA 1137 impessoal com os verbos na terceira pessoa do singular, com função de marcador de preservação da face, sendo ainda reforçada pela inversão das orações, no período: ”um piá.. pidi prá ficá com ele... é difícil daí... deu não Sinopse escrita: Na escrita não apresenta esta categoria, possivelmente para ser mais sucinta e, assim, ser mais breve em sua tarefa. Orientação oral: Como no corpus um a narrativa oral do corpus dois apresenta apenas uma Ud. Desta vez, emprega uma repetição do conectivo, demonstrando insegurança e constrangimento em algumas hesitações e interrupções. Inicia a categoria com uma expressão de preenchimento verbal, “é que’, como preservação da face. Revela seu sentimento para com o rapaz, detalhando agora o período longo em que já gostava dele.já há algum tempo. Emprega uma intercalação de tempo, avaliativa, e ainda repete o verbo auxiliar, de estado (tava) mais o conectivo que, para só então , concluir seu discurso com Presente Contínuo, tempo também avaliativo, conferindo maior dramaticidade ao fato. Orientação escrita: Apresentando uma Ud completa e objetiva, a informante pretende citar o elemento iniciador do problema. Para isso, emprega o Pretérito Imperfeito, característico da categoria; o que acontece nesta apenas no corpus 2. No primeiro, emprega o Presente do Indicativo, dando maior dramaticidade ao fato. Como em muitas narrativas de experiência pessoal, emprega o pronome de subjetividade ”EU”, destacando bem o protagonista do fato. Um outro elemento avaliativo é o advérbio de intensidade MUITO, enfatizando o episódio a ser relatado.. Ação complicadora oral: Bem mais sintética do que no corpus um, o texto dois é bem mais sucinto que o primeiro (50% menor que no primeiro), apresentando apenas três Uds. Eivada de interrupções e de repetições, esta categoria, mesmo sendo a principal, apresenta-se breve, mas bem enfática. A informante usa marcadores de continuidade (daí), repetidos; e ainda o conectivo “que”, evidenciando seu constrangimento. Ao contrário do corpus um, evita o Marcador “né”, interativo, o que mostra certa segurança da informante ao relatar o fato. Ação complicadora escrita: Nesta modalidade, a informante parece querer detalhar melhor o fato acontecido. Começa a categoria com uma expressão típica de narrativas tradicionais contadas, “um dia ...”, parecendo querer localizá-la historicamente à pesquisadora.. Emprega ainda, uma expressão coloquial “chegar nele”, possivelmente, numa tentativa de parecer mais natural e menos insegura em seu discurso. E gradativamente, vai anunciando suas atitudes para com a pessoa de seu interesse, assim como vai também detalhando as atitudes de seu interlocutor. Emprega o discurso indireto, tentando distanciar-se mais do fato ocorrido. Finalizando a categoria, emprega o marcador de conclusão, “enfim”, sinalizando que ali conclui sua exposição sobre o problema principal. Ao empregar a expressão “inventou alguma coisa”, com função de marcador de preservação da face, a informante parece não acreditar piamente nas palavras de seu interlocutor, tomando-a como desculpas, para poder rejeitar seu pedido. Avaliação, resolução, e moral oral: Deste momento em diante, a informante, a um só tempo, apresenta seu estado de espírito após o problema, revela o resultado do fato complicador, e ainda conta a lição que obteve disso. Inicia-o com os marcadores daí, de continuidade e continua com o de preenchimento, “né”, parecendo estar muito desapontada. O resultado de seu discurso é uma expressão bem vaga, avaliativa, de tristeza, representada pelo verbo de estado, ficar, na terceira pessoa, mais o modalizador “assim”, cuja dramaticidade é realçada pelas pausas. Outro traço de avaliação é o uso do Presente do Indicativo. A seguir, Ud h, emprega um marcador discursivo de continuidade, mais uma expressão de localização histórica do término do fato, mas interrompe-as, inserindo expressões de preenchimento verbal (”peguei” e ”tipo”, muito empregadas pelos adolescentes de hoje. E fala de sua decisão e da lição que obteve do fato. As repetições mostram seu estado de espírito de certa decepção, mas de forte disposição para adotar a decisão escolhida a partir dali. Continua, nas Uds h, i e j, o tom avaliativo do bloco. Emprega novamente o marcador de continuidade, daí,, mais um a expressão de localização histórica do término do fato, mas interrompe-as, inserindo expressões de preenchimento verbal (peguei e tipo, muito empregadas pelos adolescentes de hoje). Emprega, agora, o discurso direto, trazendo maior dramaticidade ao fato, seguida de interrupções e de repetições, próprias do discurso oral. Outros elementos avaliativos do bloco são os adjetivos, as pausas os risos, o truncamento e a entonação de ênfase dada pela informante Avaliação, resolução, e moral escrita:Como na modalidade oral, a informante emprega um bloco compacto de três categorias agrupadas. Emprega inicialmente uma expressão de localização histórica do término do fato; e ainda emprega o pronome de subjetividade “eu”, destacando mais uma vez a sua pessoa, envolvida no acontecimento. Repete o verbo chegar, da modalidade oral, parecendo a reproduzir o discurso oral no escrito, já que a informante não substitui o termo coloquial por outro, culto. Fazendo uso correto da virgula para separar a subordinada causal da principal, destaca seu objetivo de vida a partir do problema. 1138 UM ESTUDO COMPARATIVO DE GÊNERO Elementos avaliativos proliferam nesta categoria, como: demonstrativos, o pronome oblíquo de primeira pessoa, o pronome indefinido, “ninguém’, o intensificador “mais”, assim como o verbo mental “pensar. O que se destaca nesta categoria é o trecho final da Ud e, em que a informante emprega um marcador discursivo de causa (pois), o pronome “eu”, mais uma locução modalizadora com o verbo “dever”, seguido do verbo “valorizar-se” (avaliativo), revelando uma nova tendência na atitude feminina, a da valorização de sua pessoa. Nesse caso, a informante parece ter se desvinculado daquele ‘habitus” detectado no corpus um (in Kress:17); tendo, possivelmente, rompido com essas formações sociais de sexismo, abandonando-as e substituindo-as por outras, mais liberais e mais justas. É mais uma constatação de que as mulheres estão galgando mais espaço na sociedade, sendo respeitadas como seres em igualdade de condições em relação aos homens. Na Ud f, avaliativa, iniciada por um advérbio de intensidade, “tanto”, objetiva reforçar a idéia avaliativa de uma reestruturação de seu comportamento, a partir do episódio relatado. Seu objetivo é dizer claramente a transformação que teve em sua vida. Para isso emprega o conectivo consecutivo, que, fazendo uma volta ao momento da interlocução através do uso do advérbio temporal, hoje e do verbo no Presente do Indicativo. Emprega ainda, adjetivos (legal, boa), assim como o demonstrativo, “essa’, denotando mais uma avaliação. A Ud j, iniciada pelo marcador discursivo “daí”, conclusivo, já denota o objetivo da informante em concluir seu relato. Em certo momento de seu discurso, a informante interrompe sua fala e sorri,. tentando amenizar seu embaraço diante das conseqüências do fato complicador em sua pessoa. Em dado momento, interrompe uma avaliação, ao tentar dizer como recebeu o resultado do fato, e emprega um adjetivo com truncamento. As pausas e as repetições também reforçam o caráter avaliativo da Ud. Epílogo oral: Formado por uma Ud (l), essa categoria objetiva encerrar o turno da informante. É uma Ud simples, denotando o tom de término de sua fala à pesquisadora. Emprega ainda, certa ênfase ao dar entonação especial a expressão final de seu discurso. Epílogo escrito: Essa categoria não aparece nesta modalidade; o que parece demonstrar certo conhecimento da informante a respeito de suas características. 4. Considerações finais Algumas mudanças parecem configurar-se nas ordens discursivas desta década, visto que novas formações discursivas parecem surgir entre adolescentes femininas de 1992 a 2000. Esta nova sociedade, possivelmente, tem trazido maiores influências aos e às jovens, do que suas famílias, já que estas parecem vir delegando gradativamente a outras instituições (escola, meios de comunicação e outros), a tarefa de educar seus filhos. Sendo assim, as adolescentes parecem estar manifestando ordens discursivas originadas, menos na instituição familiar, do que na mídia e em outras instituições. Um aspecto relevante é o da informalidade, quando a adolescente reproduz a fala na escrita, já que os valores culturais contemporâneos atribuem alto valor a esse novo padrão textual. As narrativas orais continuam mais longas do que as escritas, mas não apresentam referência histórica. O corpus dois, modalidade escrita, apresenta-se desnaturalizado, com menor uso de modalizadores. Apresenta, porém, em alguns momentos, maior competência e adequação à modalidade, apontando para influências mais efetivas da instituição escolar. O que se destaca ainda é uma procura pela construção do “eu”, pelas adolescentes femininas, configurando uma procura por maior liberdade e autonomia; notando-se, assim, uma abertura de democratização das relações de gênero e uma tendência à mudança cultural e social nas ordens de discurso; presentes na sociedade pós-moderna, tendendo gradativamente para maiores problematizações, desnaturalizações e simetria de gênero no discurso. RESUMO: Baseando-me em Fairclough, Lee e outros, comparo narrativas de experiência pessoal, orais e escritas, produzidas por meninas de oitava série de uma escola pública de Ponta Grossa, Paraná. Os textos, datados de 1992 e de 2000, parecem mostrar práticas sociais discursivas específicas de sexismo. PALAVRAS-CHAVE: narrativa, pessoal, oralidade, escrita, gênero. 5. ANEXOS: 5.1. Corpus um: Modalidade oral Nilcéia Albuquerque FRANÇA a b SIN c ORI d e ACO f g h i AVA j RES l m MOR EPI [ n o p Modalidade escrita: SIN a [ ORI b [ c d ACO e f g h AVA RES MOR [ [ [ i j l ah... é meio tonguice... qu/eu ca (...) ca minha prima... né (...) a gente (...) eu tenho namorado... né... só qu/eu tava a fim de otro piá lá perto da minha casa... né... éh... daí eu co/a minha prima saimo escondido prá nós falá co piá... né... daí levamo a vizinha pequinininha prá (...) mãe não desconfiá né... daí a minha mãe (...) nós fomo né... daí a minha mãe desconfiô lá em casa... foi atrás... e... bateu ne mim perto do piá (...) de vara... ah... esses tempo aí... ach/que há uns dois meses atrás... daí... depois disso nunca mais... a minha mãe disse que ia contá pro meu namorado qu/eu tava traindo ele... e agora eu nunca mais eu lembro... bom que eu me lembre é essa (...) mais recente... né... última qu/eu levei... Uma lição que eu levei de minha mãe acho que faz uns dois meses atrás, foi que eu e a minha prima fugimos da mÃe com a menininha vizinha, falando que iamos passear e fomos se encontrar com o namorado dela e um paquera meu mas eu já tinha namorado e não podia ter outro paquera, e minha mãe foi atrás de mim com uma vara e me deu umas varadas, perto dos rapazes e eu fiquei morrendo de vergonha, minha mãe disse que ia contar para o meu namorado e eu jurei a ela que nunca mais ia atrás dele. 5.2. Corpus dois Modalidade oral: SIN: a acho que chegá assim... um piá... pidi prá ficá com ele... b é difícil daí.. deu não ORI c ... daí... É que eu tava fazia tempo que eu tava gostando dele ACO d daí... eu cheguei nele perguntá ... se ele queria ficá comigo... e daí ele falô que ... que não... que ... não podia f ... que tinha namorada... AVA g daí né ... fica assim ... RES e h daí a partir desse momento eu pequei... tipo.. parei prá pensá MOR i e falei não... eu não vou... não vô mais ficá correndo atrás j daí... foi .. (risos) foi diff/ ... foi meio RUim assim/ EPI l só isso Nesse moMENto... Modalidade escrita: ORI a Eu gostava muito de um garoto ACO b e um dia eu resolvi chegar nele pra perguntar se ele queria ficar comigo, c ele disse que não por que tinha namorada, 1139 1140 UM ESTUDO COMPARATIVO DE GÊNERO d enfim inventou alguma coisa pra não aceitar o meu pedido. AVA e A partir desse momento eu resolvi não chegar em mais ninguém, pois eu devia me valorizar, RES f tanto que essa experiência foi boa pra mim que hoje eu estou com um cara e muito legal MOR g e que eu amo demais REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADAM, Jean-Michel. Le Récit. 16.ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1989. COULTHARD & COULTHARD. Texts and Practices. Readings in Discourse Analysis. Linguistics/MediaStudies/Cultural Studies.1996. FAIRCLOUGH, Norman. 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