História da Química
Representação de Temas Científicos em
Pintura do Século XVIII: Um Estudo
Interdisciplinar entre Química, História e Arte
Ana Paula Gorri e Ourides Santin Filho
Este artigo analisa o trabalho dos chamados químicos pneumaticistas a partir da pintura Um experimento
com um pássaro na bomba de ar, executada em 1768 por Joseph Wright of Derby. A obra mostra um grupo de
pessoas assistindo a demonstrações com uma bomba de vácuo. Um pássaro está confinado num globo de
vidro do qual o ar foi evacuado e parece estar resfolegando. Outros dispositivos experimentais são retratados
no quadro. A partir da cena retratada, são discutidos aspectos históricos, filosóficos e científicos da época, com
ênfase nos trabalhos de químicos do século XVIII na busca e caracterização de novos “ares”. Sugerimos que o
texto seja utilizado como iniciador de um debate interdisciplinar envolvendo Química, História e Arte.
história da química; pinturas; química pneumática
Recebido em 19/02/08, aceito em 08/04/09
184
A
adoção de propostas interdisciplinares no ensino tem
sido um dos grandes desafios
enfrentados pelos educadores. Uma
nova concepção de atividade escolar
que aborde os saberes humanos
integrados em forma de rede tem
sido preconizada pelo MEC e pela
CAPES em documentos recentes
(Brasil, 2000).
A interdisciplinaridade surge então como atividade integradora dos
conhecimentos e também pode servir
como incentivadora no aprofundamento dos estudos, até pelo caráter
lúdico que possa vir a apresentar,
se for revestida de atividades que
desloquem o aluno da prática usual
de estudo e o coloque diante de
situações ou de materiais didáticos
com os quais ele não está habituado
a lidar.
Este trabalho examina um tema
de interesse químico a partir da pintura An experiment on a bird in the air
pump, executado em 1768 pelo pintor
romântico Joseph Wright of Derby.
A obra é avaliada em seu conteúdo
científico, escola artística e momento
sua primeira exposição na Sociedade
filosófico de sua elaboração, colocandos Artistas de Londres, exibindo,
do em comunicação disciplinas que
dentre outros trabalhos, a obra Three
são consideradas por estudantes e
persons viewing the gladiator by canprofessores do Ensino Médio comdlelight (Três pessoas observando o
pletamente desvinculadas em seus
gladiador sob luz de vela), de 1765.
conteúdos, tais como Química, Arte
Essa foi sua primeira obra da série
e História.
“à luz de velas” pelo
O quadro retrata
qual ficou reconheA adoção de propostas
o ar como entidade
cido.
interdisciplinares no ensino
mecânica e sua imDentro desse
tem sido um dos grandes
portância na respitema, os dois prindesafios enfrentados pelos
ração e manutenção
cipais trabalhos de
educadores.
da vida. Focalizamos
Wright são A philosoaqui, a partir da análipher giving a lecture
se do quadro, os trabalhos dos químion the orrery (Um filósofo dando uma
cos pneumaticistas ingleses sobre os
aula no planetário, 1766) e a obra An
diferentes “ares”, como eram conheexperiment on a bird in the air pump
cidos os gases na época, bem como
(Um experimento com um pássaro
os pressupostos que orientaram o
na bomba de ar, 1768). Esses dois
trabalho desses pesquisadores.
quadros apresentam uma complexa e
delicada combinação de Arte, Ciência
O pintor Joseph Wright of Derby
e Filosofia e são testemunhos claros
Joseph Wright nasceu em 3 de
do refinamento alcançado por Derby
setembro de 1734 em Derby, Inglaem sua arte.
terra central. Desde cedo, descobriu
A proposta de representação de
seu talento e interesse na arte de
temas científicos em suas obras dedesenhar retratos. Aos 31 anos, fez
correu da amizade de Wright of Derby
com pesquisadores, muitos dos
quais faziam parte do então Círculo
Esta seção contempla a história da Química como parte da história da ciência, buscando ressaltar como o conhecimento
Lunar, entidade que agregava intecientífico é construído.
QUÍMICA NOVA NA ESCOLA
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Vol. 31, N° 3, AGOSTO 2009
lectuais da época. Com sede em Birmingham, seus membros se reuniam
nas segundas-feiras de lua cheia para
discutir os recentes progressos da
ciência e da tecnologia, além de realizar experimentos e demonstrações.
A escolha das noites de lua cheia facilitava a volta dos participantes para
casa após as atividades científicas. O
Circulo cresceu e adotou, em 1775,
o nome de Sociedade Lunar, mais
uma das muitas sociedades lunares
que se popularizaram na época. Dentre os membros dessa sociedade,
encontram-se James Watt, criador da
máquina a vapor; o químico Joseph
Priestley, cujo trabalho será debatido
à frente; e Erasmus Darwin, médico
de Joseph Wright e tema de um de
seus quadros. Erasmus foi avô de
Charles Darwin, autor da obra A origem das espécies (1859) e propositor
da Teoria da Evolução baseada no
processo de seleção natural.
demonstradores de
com baixa iluminaA interdisciplinaridade
experimentos eram
ção – desenvolvendo
surge como atividade
viajantes que iam de
enorme destreza em
integradora dos
cidade em cidade,
criar volumes usando
conhecimentos e
mostrando seu traa técnica de claro-estambém pode servir
balho. Em especial,
curo – e utilizou-se da
como incentivadora no
esse quadro foi pinluz de uma vela para
aprofundamento dos
tado por Wright em
direcionar a atenção
estudos, até pelo caráter
uma das apresentapara pontos da cena
lúdico que possa vir a
ções de Ferguson na
(Figura 3, esquerda).
apresentar.
cidade de Derby.
Sabidamente,
No centro da pinFerguson não usava
tura, Ferguson manipula uma bomba
pássaros em suas demonstrações.
de vácuo, constituída por uma estruSupõe-se então que o estranho obtura de madeira com duas colunas
jeto que repousa na taça que contém
cercando dois pistões metálicos e
líquido sejam os pulmões ou bexiga
um braço articulado. O braço se code algum animal, cuja expansão
necta a uma alavanca com a qual se
e contração por efeito da pressão
executa o bombeamento de ar pelos
do ar eram largamente estudadas,
pistões. Ao lado dessa estrutura, há
mantendo-os no interior de balões
uma coluna de madeira que sustenta
de vidro. Todo o aparato parece ter
um enorme globo de vidro. É possível
sido feito para demonstrar a pressão
perceber a presença de um orifício
dos gases em câmaras no interior de
que é conectado por uma mangueira
líquidos ou gases.
com a bomba geradora do vácuo
Sobre a mesa, pode-se ver uma
Análise do quadro à luz da cultura de
(Figura 2).
pequena garrafa também contendo
sua época
Dentro do globo de vidro, há um
uma cânula e um líquido. Ao lado
O quadro (Figura 1) mostra uma
pássaro, exótico para a região, e idenda pequena garrafa, há um par de
reunião científica noturna e tem como
tificado como uma cacatua. O pássaro
hemisférios de Magdeburgo (Figura
assunto principal a demonstração
parece estar dando suas derradeiras
3, direita), usados para demonstrar
das propriedades do ar. O centro do
resfolegadas. A distribuição dos eleas intensas forças necessárias para
quadro contém um vaso e, detrás
mentos de claro-escuro no quadro
compensar os efeitos da pressão
deste, provém toda a iluminação que
mostra que seu autor colocou a fonte
atmosférica sobre recipientes evadomina a cena.
de iluminação da cena bem no centro
cuados.
A obra retrata um estudioso da
do quadro. Escondida atrás de um
Do lado esquerdo, um adulto e
natureza, de nome James Ferguson,
vaso contendo líquido, uma vela confeuma criança encontram-se totalmente
executando experimentos associados
re ar sinistro a toda cena. Derby tornouenvolvidos pelo experimento. O adulto
à pressão do ar. Normalmente os
se especialista nesse tipo de pintura
está sentado, tem em suas mãos um
relógio e parece verificar o tempo que
o pássaro suporta sem ar. Essa representação é carregada de significado.
Nos quadros medievais, as referências
ao tempo (traduzidas principalmente
pela presença de ampulhetas ou de
crânios) eram feitas muitas vezes
no sentido de lembrar ao homem a
finitude da vida e a inevitabilidade
da morte, sobre a qual não se tem
domínio. O relógio exibe aqui, além
do significado acima, um status epistemológico diferente, em que o tempo
aparece também como coordenada
física a ser utilizada no experimento,
algo que podia ser representado
matematicamente e que já fazia parte
da interpretação mecânica do mundo
no século XVIII. A presença do adulto
Figura 1: A obra An experiment on a bird in the air pump (Um experimento com um páscom o relógio se contrapõe ao homem
saro na bomba de ar) elaborada por Joseph Wright of Derby em 1768.
QUÍMICA NOVA NA ESCOLA
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Figura 2: Detalhes de James Ferguson, do balão contendo o pássaro (esquerda) e da
bomba de vácuo (direita).
em atitude de oração. Em segundo
lugar, o experimentador olha para
o público e, com sua mão direita,
parece convidá-lo a tomar a decisão
quanto ao destino do pássaro.
Por trás de toda a cena, um menino está colocado vizinho a uma
janela. Ele segura uma corda com a
qual pode içar uma gaiola e também
olha para o observador do quadro.
Talvez o pintor tenha nos contado o
final do experimento, pois o menino
parece abaixar a gaiola, antecipando
seu resultado. É provável que o pássaro venha a sobreviver.
Por fim, as cortinas da janela estão
abertas. No céu, um pouco escondida pelas nuvens, pode-se divisar a
lua cheia. É a homenagem que Derby
presta aos membros da Sociedade
Lunar de sua época que, com suas
reuniões noturnas, já antecipavam os
encontros científicos tão comuns nos
dias de hoje.
O momento filosófico do século XVIII
186
Figura 3: Detalhes do vaso no centro do quadro, por trás do qual provém a luz que ilumina todo o quadro (esquerda) e detalhes de um frasco com líquido e dos hemisférios
de Magdeburgo (direita).
sentado à direita, que assume postura introspectiva em aparente atitude
de oração. Ao seu lado e vizinhas à
bomba de vácuo, duas meninas, consoladas por um adulto, exibem terror
e consternação diante da iminente
morte do pássaro.
Apenas um casal de jovens, visivelmente apaixonados, parece não se
envolver com a cena, pois mantêm os
sentidos e o pensamento longe desse momento de tensão. Trata-se de
amigos de Wright of Derby, que logo
viriam a se casar e que foram imortalizados pelo pintor em seu quadro
Mr. and Mrs. Thomas Coltman (O Sr.
e a Sra. Thomas Coltman), elaborado
entre 1770 e 1772.
Os diversos semblantes parecem
reproduzir a multiplicidade de sentimentos causados pelas conquistas
QUÍMICA NOVA NA ESCOLA
científicas da época: temor, indiferença, esperança, consternação e poder
diante dos novos tempos.
Chama a atenção o fato de que,
no modelo de Ciência que se estabelece, o homem procura se colocar
fora da natureza para observá-la.
Essa parece ser a atitude do homem
com o relógio que, ausente da gravidade da cena, assume uma postura
de observador pretensamente neutro
e isento com relação à natureza e ao
fato observado.
A obra de Wright dialoga intensamente com o espectador. Primeiramente, há um lugar não preenchido
na mesa, na exata posição ocupada
por quem olha o quadro. De modo
emblemático, o posto vazio situa-se
entre o filósofo de postura moderna,
que porta o relógio, e o filósofo antigo,
O quadro representa muito bem
o principal movimento intelectual
e filosófico no século XVIII, o Iluminismo. Esse período foi antecedido
pela Idade Média, momento de elevada produção intelectual e riqueza
artística e cultural da humanidade.
Não obstante, os Iluministas se viam
‘iluminando’ as mentes de seus
contemporâneos e lutando contra as
‘trevas’ da ignorância. Eles classificavam a Idade Média como uma “época
obscura, um retrocesso à barbárie [a
que] os resplendores da Renascença
haviam posto um fim definitivo” (Rossi, 2001, p. 14).
Como era de se esperar, o símbolo
maior do Iluminismo era a luz, e foi
com muita destreza e sutileza que
Wright of Derby cria a iluminação de
seus quadros da série “à luz de velas”
(à qual pertencem, além do An experiment on a bird..., os clássicos A philosopher giving a lecture on the orrery
e Three persons viewing the gladiator
by candlelight). Nas duas primeiras
obras, o autor representou a luz da
Ciência e da inteligência humanas clareando mentes e ambientes que, até
a Idade Média, viviam supostamente
mergulhados nas trevas impostas pelo
sistema filosófico dominante.
Representação de Temas Científicos em Pintura do Século XVIII
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Na obra de Wright aqui retratada,
para a compreensão da natureza da
Lentamente, um grupo de estudiodois elementos se destacam por sua
respiração e da importância do ar
sos dos “ares” estava se formando e
imponência: a bomba de vácuo e o
como fluido vital. A bomba de vácuo
viriam a ser conhecidos como químipersonagem que a opera. A tela reilustrada por Wright surge assim
cos pneumaticistas, alguns dos quais
mete assim a uma conquista científica
como elemento fortemente represenmerecem destaque.
e a seu conquistador. No entanto,
tativo dos trabalhos desses estudioOs químicos pneumaticistas
qual é essa conquista e quem é esse
sos ingleses sobre a mecânica e a
conquistador no contexto social e
importância fisiológica do ar.
Um importante representante dos
científico do século
Além desses esquímicos pneumaticistas foi Joseph
XVIII?
tudos, procurava-se
Black (1728-1799). Estudante de meFocalizamos aqui, a partir
Em seu aspecto
também caracteridicina da Universidade de Glasgow,
da análise do quadro
filosófico mais prozar os “ares” produBlack concluiu seu curso defendendo
Um experimento com um
fundo, o estudioso
zidos por reações
um trabalho acerca das propriedades
pássaro na bomba de ar,
da natureza tem em
químicas diversas,
da magnésia alba (modernamente
os trabalhos dos químicos
suas mãos o poder
incluindo os compodemos considerar como carbopneumaticistas ingleses
sobre a vida e a
plexos processos de
nato de magnésio), então utilizada
sobre os diferentes “ares”,
morte. O controle da
combustão e putrepara combater a acidez estomacal.
bem como os pressupostos
quantidade de ar disfação de plantas e
Ele percebeu que a magnésia alba,
que orientaram o trabalho
ponível ao pássaro e,
animais. Tais estudos
assim como outros alcalis brandos
desses pesquisadores.
portanto, a decisão
ganharam forte alen(como os carbonatos de sódio e posobre sua vida é dito com os trabalhos
tássio), liberava, quando aquecida ou
tada por ele e por seu instrumento.
do reverendo anglicano Stephen
atacada por ácidos, um “ar” que nela
Difícil então superestimar a imporHales (1677-1761).
estaria “fixado”, reconhecido hoje
tância e a dramaticidade conferida
Botânico e fisiologista, Hales estucomo sendo o gás carbônico.
ao ar na obra de Wright. A compredou os trabalhos de Boyle e publicou
Black denominou o novo gás
ensão desse valor pode ser feito sob
dois livros: Vegetable Staticks (1727) e
como “ar fixo”, uma vez que o mesmo
diversos pontos de vista: o ar como
Haemostaticks (1737). Hales entendia
parecia estar “fixado” nesses mate‘elemento’ constitutivo da natureza no
que o ar era um elemento e se pôs
riais. Comparando as propriedades
pensamento aristotélico; como acoa determinar sua quantidade nos
do ar atmosférico com as do ar fixo,
lhedor dos ‘espíritos’ emanados das
corpos. Para recolhê-los, inventou a
ele percebeu que este era impróprio
operações alquímicas medievais; e
cuba pneumática, constituída por um
para a respiração e não sustentava
como entidade mecânica, decorrente
tubo de vidro longo e curvo, fechado
a chama de uma vela. Colocando o
dos estudos de Robert Boyle (1627em uma de suas extremidades, na
novo ar em contato com o resíduo
1691) e Robert Hooke (1635-1703) no
qual se coloca o material a estudar.
sólido remanescente do aquecimenséculo XVII. Contudo, foi no século
Tal extremidade é coto, Black notou que
XVIII que o ar e os “ares” adquiriram
locada para aquecer
este voltava a “se
O quadro mostra uma
um significado mais profundo do
num forno e a outra
fixar” no material, rereunião científica noturna e
ponto de vista químico.
extremidade do tubo
generando os álcalis
tem como assunto principal
recurvado é imersa
brandos, inclusive
O ar e os “ares”
a demonstração das
dentro de uma tina
a magnésia alba. O
propriedades do ar.
Na obra de Wright, a bomba de
d´água contendo um
mesmo ar seria tamvácuo surge, ao lado de seu opegrande balão invertibém identificado por
rador, como elemento soberano a
do, também cheio de água. Desse
Black a partir da exalação respiratória
dominar a cena. Sua importância não
modo, os gases emanados do matee da combustão de matéria orgânica.
pode, com efeito, ser menosprezada.
rial aquecido podiam ser recolhidos
Desse modo, duas novidades
Ela ocupa um lugar de destaque no
no balão. Em seus estudos, Hales
surgiram na Química. Em primeiro
estudo dos ares.
submeteu à destilação materiais de
lugar, “um novo ar” havia sido isolado,
Robert Boyle e Robert Hooke
origem orgânica e mineral, cuja longa
com propriedades bastante diferenaperfeiçoaram o dispositivo criado
lista incluía sangue, sebo, chifres, gortes daquelas do ar atmosférico. Em
por Otto von Guericke em 1650 e
duras, conchas, sementes, madeira,
segundo lugar, esse novo ar passou
realizaram importantes estudos somel, carvão, calcário, salitre, pirita,
a ser visto como um participante num
bre o comportamento mecânico e a
além de produtos de fermentação e
processo químico, pois podia ser “reimportância fisiológica do ar. Boyle
putrefação.
movido” e “refixado” nas substâncias.
descobriu a relação inversa entre a
A invenção da cuba pneumática
Contemporâneo de Joseph Blapressão e o volume do ar, e Hooke
por Hales permitiu que os gases fosck, Henry Cavendish (1731-1810)
demonstrou que a função dos movisem obtidos e recolhidos com pouca
era dotado de extrema versatilidade
mentos respiratórios é prover os pulcontaminação, abrindo caminho para
e fez experiências importantes em
mões de ar fresco, abrindo caminho
seu estudo químico sistemático.
eletricidade, calor, gravitação, meteoQUÍMICA NOVA NA ESCOLA
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rologia e deixou um vasto trabalho em
Segundo Cavendish, o ar inflamárelatando que ela se tornava “mais saquímica. Tinha um estilo de vida que
vel (ou flogístico, na sua visão) deveborosa e refrescante”. Priestley pode
muita gente imagina ser, ainda hoje,
ria provir do metal, já que este seria
então ser considerado o inventor da
a vida de todo cientista. Excêntrico,
rico naquele e o ácido o deslocaria
água com gás, a qual se acreditava
não tinha laços de amizade, pouco
para fora do metal, formando o sal.
ter propriedades medicinais.
conversou e nunca se casou.
No âmbito dessa teoria, tal hipótese
Numa vasta obra em seis voEm seu livro Experiments on facé bastante razoável, uma vez que este
lumes intitulada Experiments and
titious airs (Experimentos sobre os
“ar”, numa reação inversa, é capaz de
observations on different kinds of air
ares factícios, 1766), Henry Cavenreduzir os óxidos (que são as “cais”,
(Experimentos e observações sobre
dish descreveu a obtenção de um
desprovidas de flogístico) nos seus
diferentes tipos de ar) e publicada
“ar” contido de forma inelástica em
metais, ricos nesse material.
de modo irregular entre 1774 e 1786,
outros corpos e que deles podem
Dois novos “ares” faziam agora
Priestley relata como produziu e
ser liberados por procedimentos quíparte do elenco de substâncias disestudou as propriedades de nada
micos. Cavendish também estudou
poníveis aos químicos. Entretanto,
menos do que doze diferentes “ares”
as propriedades do ar fixo de Black.
em termos de número de “ares” esa saber: ar desflogisticado (1774); ar
No final do século
tudados, Priestley
flogisticado (1772); ar nitroso (1772);
XVII, surgiu uma teoria
superou todos os
vapor nitroso (1772); vapor nitroso
A obra retrata um
que procurava expliseus antecessores.
desflogisticado (1774); ar fixo ou ar
estudioso da natureza,
car diversas reações
Joseph Priesmefítico (1771); dois ares inflamáveis
de nome James Ferguson,
químicas. Herdeira do
tley (1733-1804)
(1772) (o que se atribui a Cavendish,
executando experimentos
pensamento dos alera filho de alfaiae ainda o gás que hoje conhecemos
associados à pressão do ar.
quimistas árabes e da
te. A família tinha
como monóxido de carbono, que
teoria dos três princíformação religiosa
também se inflama); ar do ácido
pios de Paracelso, a Teoria do Flogísliberal e dissidente. O jovem Joseph
vitriólico (1774), ar do ácido marinho
tico supunha que um corpo, ao sofrer
estudou línguas antigas e modernas
(1772), ar alcalino (1774) e ar do ácido
combustão, perdia um fluido bastante
e se interessava por Filosofia Natural.
de flúor (1775). Modernamente esses
tênue, que foi chamado de flogístico.
Sua carreira científica começou com
gases são identificados como oxigêSegundo essa teoria, o flogístico não
o título de Doutor em Letras pela
nio, nitrogênio, óxido nítrico, dióxido
poderia ser isolado dos compostos,
Universidade de Edimburgo, obtido
de nitrogênio, óxido nitroso, dióxido
mas apenas transferido de um corpo
em 1765, mas seu trabalho e mesmo
de carbono, hidrogênio, monóxido de
a outro. Ele estaria presente em maior
sua presença nas rodas de intelectucarbono, dióxido de enxofre, cloreto
quantidade nos materiais muito comais era malvista em função de suas
de hidrogênio, amônia e tetrafluoreto
bustíveis (como carvão, papel, madeiposições religiosas consideradas
de silício, respectivamente.
ra, enxofre, fósforo, óleos, gorduras
excessivamente liberais.
Tamanha conquista foi possível
etc.), mas também estaria presente
Seus primeiros estudos em Filosograças à sua ideia de aperfeiçoar a
nos metais. Nessa teoria, a queima
fia Natural são refecuba pneumática de
de um metal conduziria à formação
rentes à eletricidade
Hales, substituindo
Os diversos semblantes,
de uma cal (óxido) com liberação do
e foram publicados
a água da cuba e do
retratados na pintura,
flogístico para a atmosfera: metal →
na obra The history
balão por mercúrio
parecem reproduzir
cal (óxido do metal) + flogístico.
and present state
em algumas situaa multiplicidade de
Reagindo metais com soluções
of electricity (1767).
ções, permitindo que
sentimentos causados pelas
de ácidos diluídos, Henry Cavendish
Nesse mesmo ano,
fossem recolhidos
conquistas científicas da
observou a evolução de um gás de
Priestley se transferiu
“ares” ainda não
época: temor, indiferença,
densidade extremamente baixa e
para Leeds, imporcaracterizados por
esperança, consternação
muito inflamável. Chamou-o de “ar
tante centro fabril da
serem solúveis em
e poder diante dos novos
inflamável” e propôs que o gás fosépoca, concentranágua.
tempos.
se o próprio flogístico, originário do
do, graças às fontes
Priestley estudou
metal e não do ácido, interpretando
de carvão da região,
diversas propriedaa reação como
as indústrias têxtil, metalúrgica e
des desses ares, dentre eles a respisiderúrgica. Em Leeds, veio a se inrabilidade, a solubilidade em água e
teressar por Química e, em especial,
a capacidade de sustentar a chama
pelos gases.
de uma vela ou de carvão.
É importante salientar que esse
Morador vizinho a uma cervejaria,
Um “ar” em especial, obtido pelo
e outros esquemas, apresentados
interessou-se pelo gás emanado das
aquecimento de mercurius precipitaneste trabalho, não eram adotados
fermentações. Caracterizou-o como
tus per se (óxido de mercúrio), chana época dos flogistonistas, apareo “ar fixo” de Black e supostamente
mou a atenção de Priestley. Ele não
cendo aqui apenas a título de esclafoi o primeiro a dissolvê-lo em água a
se solubilizava na água e apresentava
recimento.
fim de modificar suas propriedades,
altíssima respirabilidade, além de inQUÍMICA NOVA NA ESCOLA
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tensificar em muito a chama de uma
que resolver tal querela, é o resultado
mudança de concepção de constituivela e a combustão do ferro e do carque a experiência sugere. Se, de fato,
ção de mundo, além de introduzirem
vão. Adepto da teoria do flogístico, ele
a água é produto
uma abordagem quíinterpretou que o novo “ar” possuía
da combinação dos
mica no estudo dos
A bomba de vácuo
tais propriedades por conter pouco
dois “ares”, então ela
gases, outorgando
ilustrada por Wright
flogístico. Chamou-o então de ‘ar
não é um elemento.
a esses compostos
surge como elemento
desflogisticado’. Dispondo de pouco
Aos poucos, o
o devido lugar de
fortemente representativo
flogístico, o novo ar poderia então
mistério dos fluidos
destaque que eles
dos trabalhos dos
recebê-lo em maior quantidade, o que
aeriformes ia se remerecem na natuestudiosos ingleses sobre
explicaria a melhora observada nas
velando, desde o trareza e na Química.
a mecânica e a importância
combustões sob atmosfera deste.
balho da mecânica
Ao lado da bomba
fisiológica do ar.
Conhecedor dos resultados de
dos gases, por parte
de vácuo de Robert
Priestley, Cavendish passou a estude Boyle e Hooke,
Boyle, os pneumadar o mesmo ar, inclusive testando a
até a obtenção e caracterização quíticistas ingleses estão, pois, muito
combustão de seu ‘ar inflamável’ na
mica de entidades diferentes do ar
bem representados na imponente
presença do ‘ar desflogisticado’ de
atmosférico.
imagem do personagem que aparePriestley. Ele constatou que o produto
Diversos outros estudos com
ce no quadro, tendo eles aberto as
formado era a água, ou seja, ar inflanovos tipos de “ar” foram conduportas para Lavoisier elaborar uma
mável (rico em flogístico) + ar deszidos por esses e outros químicos
teoria mais ampla e completa acerca
flogisticado (pobre em flogístico) 
pneumaticistas. Eles legaram a nós
da combustão e da respiração aniágua. Dito de outro modo, água – “ar
novas técnicas e novas substâncias
mal, a Teoria do Oxigênio.
inflamável”  ar desflogisticado, isto
gasosas, definidas e individualizadas,
Agradecimentos
é, o ar desflogisticado seria nada merompendo assim com a velha nonos do que a água
ção de que o ar seria
Ana Paula Gorri agradece ao
da qual havia sido
um elemento obtido,
Programa PIBIC/UEM pela concesNa pintura, o ar pode ser
subtraído o flogístico.
muitas vezes, contasão de bolsa de Iniciação Científica,
visto como ‘elemento’
De qualquer forma, a
minado de diversas
e Ourides Santin Filho agradeconstitutivo da natureza no
água seria constituímaneiras. Foi a partir
ce ao CNPq pelo financiamento
pensamento aristotélico;
da pela reação entre
do estudo dos “ares”
de parte deste trabalho (Proc.
como acolhedor dos
dois “ares”. Há uma
que a água também
400874/2006-7).
‘espíritos’ emanados das
controvérsia acerca
perdeu seu status de
operações alquímicas
de a quem se atribui
elemento primordial
Ana Paula Gorri é aluna do curso de Licenciatura
medievais; e como
primeiro tal constade composição da
em Química da Universidade Estadual de Marin­
entidade
mecânica,
tação, Cavendish ou
natureza e passou a
gá (UEM) e bolsista do Programa PIBIC/UEM.
decorrente dos estudos
Ourides Santin Filho ([email protected]), bacharel
Lavoisier, e por trás
ser vista como uma
de Boyle e Hooke no
em Química, mestre e doutor em Química (Físicodela está a primazia
combinação de duas
química) pela USP, pós-doutor pela Université Louis
século
XVII
pela descoberta da
substâncias mais
Pasteur (Strasbourg, França), é professor associado
composição da água
simples.
do Departamento de Química da UEM e orientador
do Programa de Pós-graduação em Educação para
(Alfonso-Goldfarb e Ferraz, 1993).
Assim, os químicos pneumatia Ciência e o Ensino de Matemática (PCM/UEM).
No entanto, mais importante do
cistas tiveram papel fundamental na
Referências
Para saber mais
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Abstract: Scientific subjects represented on a XVIII century painting: an interdisciplinary study on chemistry, history and art. From the painting “An Experiment on a Bird in the Air Pump” (1768), this
article explores the work of the “pneumatic chemists” of the XVIII century. The picture shows a demonstration of properties of the air. A bird is confined on a large glass vessel and is at its last gasps.
From the air pump and other scientific instruments represented on the scene, we introduce the work of the British “pneumatic chemists” on their research on new “airs”. Some aspects on the historical and philosophical context of the painting are discussed, and the text can be used as an interdisciplinary material in high school chemistry courses.
Keywords: History of chemistry, paintings, pneumatic chemistry
QUÍMICA NOVA NA ESCOLA
Representação de Temas Científicos em Pintura do Século XVIII
Vol. 31, N° 3, AGOSTO 2009
189
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Representação de Temas Científicos em Pintura do Século XVIII