A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO E O DIREITO À CIDADE EM SÃO CAETANO DO SUL – SP: LIMITES E POSSIBILIDADES Eduardo Donizeti Girotto1 David Augusto Santos2 Eixo temático: O CAMPO E A CIDADE RESUMO: A cidade de São Caetano do Sul, localizada na região metropolitana de São Paulo, tem ganhado destaque nacionalmente em decorrência de sua posição no Índice de Desenvolvimento Humano dos municípios brasileiros. A cidade, através dos seus representantes legais, tem realizado um intenso processo de difusão de uma imagem pautada no discurso da cidade ideal, sustentável social e ambientalmente. A divulgação desta imagem da cidade em âmbito nacional tem atraído pessoas que desejam fazer parte deste “paraíso”, conforme aponta a propaganda. Com isso, um intenso processo de produção do espaço urbano, pautado na construção de moradias de alto padrão vem ocorrendo na cidade, alterando a dinâmica das relações sociais de seus moradores. Neste sentido, este trabalho analisa a produção do espaço urbano de São Caetano do Sul em diferentes momentos históricos com o intuito de compreender as diferentes estratégias e grupos ligados a este processo. Ao mesmo tempo, interessa-nos compreender de que forma os processos relacionados à produção do espaço urbano na atualidade afetam as relações sociais dos moradores, bem como possibilitam ou não a construção do direito à cidade, nos termos propostos por Henry Lefebvre. PALAVRAS-CHAVE: Urbano; Direito à Cidade; Marketing Urbano 1 INTRODUÇÃO A produção do espaço urbano em São Caetano do Sul se inicia no final do século XIX, mas respectivamente em 1877 com a fundação do núcleo colonial de São Caetano do Sul. 1 Doutorando em Geografia Humana, USP. Professor Assistente do Colegiado de Geografia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus Francisco Beltrão. Email: [email protected] 2 Mestrando e Geografia, PUC-SP. Professor da Rede Municipal de São Caetano do Sul. Email: [email protected] Naquele momento, o governo paulista, com o intuito de substituir a mão-de-obra escrava cada vez mais escassa devido às proibições ao tráfico negreiro, impostas pelo governo inglês e que resultou, no Brasil, na Lei Eusébio de Queiroz, criou um núcleo colonial na antiga fazendo São Caetano pertencente aos beneditinos. Este núcleo recebeu, em seu início, famílias de imigrantes italianos, como nos aponta Martins (1988). Este núcleo colonial, diferente de outras experiências relacionadas à imigração italiana, dava aos imigrantes o direito a posse da terra. Aqueles que colonizaram São Caetano do Sul foram ali estabelecidos para serem produtores de hortifruti, vinhos, pães, com objetivo de abastecer a cidade de São Paulo dos gêneros alimentícios dos quais seus habitantes necessitavam. A localização do núcleo, às margens do rio Tamanduateí, facilitava a distribuição dos produtos que iriam abastecer o Mercado Municipal de São Paulo. A ausência do poder público e as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes resultarão em uma forma específica de sociabilidade, que MARTINS conceituará a partir da ideia de subúrbio. No subúrbio, as relações que os moradores estabelecem entre si e com o lugar dizem respeito ainda a resquícios da lógica do rural. O que define, muitas vezes, a posição social no interior desta sociabilidade são as relações de parentesco e proximidade que um determinado sobrenome revela. A ajuda mútua, o estreitamento dos laços sociais foram as alternativas encontradas para que se pudesse suprir a ausência da cidade, representação do poder político. No vazio deixado pela ausência da cidade, os moradores recriaram suas identidades enquanto identidades, também, coletivas. Criou-se, neste sentido, a ideia de aldeia, de sociedade fechada, identificada pelo sobrenome, característica marcante do primeiro momento de produção do espaço urbano em São Caetano do Sul e que permanece, mesmo de forma residual, na sociabilidade existente ainda hoje na cidade. O segundo momento da produção do espaço urbano em São Caetano do Sul pode ser identificado com o processo de industrialização ocorrido na região do ABC paulista a partir do século XX com a chegada de empresas multinacionais, principalmente do setor automobilístico. O surgimento de terras ociosas decorrentes da saída e morte de colonos possibilitou o processo de expansão industrial da cidade de São Paulo em direção ao núcleo colonial de São Caetano do Sul. Os baixos preços da terra na região, bem como a presença de certa quantidade de mão-de-obra semiqualificada, foram fatores fundamentais para esta expansão. A instalação das indústrias no Núcleo Colonial de São Caetano agrega um novo elemento nas relações de produção, o trabalho fabril, regulado pelo ritmo mecânico do relógio. A formação do núcleo colonial de São Caetano se deu, em grande medida, em torno do trabalho familiar. Com o avanço do trabalho industrial, tal elemento não é simplesmente esquecido, devorado pela nova lógica. É absorvido como estratégia de controle e de domínio sobre o trabalho do operário. Afirma-se, portanto, certa ética do trabalho enquanto positividade, enquanto reprodutor de valores subjetivos que, em certa medida, ocultam as reais condições de exploração dos trabalhadores empreendidas pelos grandes empresários. Para MARTINS, no subúrbio, o trabalho não aparece como castigo, mas sim como virtude, mérito e fonte de prazer, algo para deixar a esquerda pequeno-burguesa arrepiada. O prazer do trabalho não destrói os problemas gerados pelo trabalho mal pago. Porque pensar e apreciar o próprio trabalho é algo que o capital pode ter banido da fábrica, mas não conseguiu banir da vida do trabalhador. (MARTINS, 2001, p. 82) É interessante notar que os grandes movimentos de contestação a esta ética do trabalho presente no imaginário dos habitantes de São Caetano do Sul que ocorreram na região do ABC, surgidos da organização dos sindicatos na segunda metade do século XX, com a presença maciça de migrantes nordestinos em sua liderança, não obtiveram grande adesão dos trabalhadores de São Caetano do Sul. As grandes greves das décadas de 1970 e 1980, que tiveram destaque em São Bernardo do Campo e em Santo André, marcam uma ruptura brutal com esta ética do trabalho dominante até aquele momento na região do ABC, ao mesmo tempo em que foram utilizados por certos grupos para a construção de um discurso identitário que se apoiava em concepções antagônicas em relação ao trabalho. De um lado, a figura do imigrante, principalmente italiano, que vê o trabalho apenas como positividade, como forma de manter os valores e a sociabilidade herdada da terra distante, sendo talvez esta a única coisa que de fato lhe reste. Do outro, o migrante nordestino, inserido na lógica de produção em massa do capitalismo fordista, das grandes linhas de produção das indústrias automobilística, do trabalho cansativo e repetitivo, que vê no trabalho a negatividade de sua alienação. Levadas aos extremos, tais diferenças de concepção resultam em determinadas práticas sócio-espaciais marcadas pela segregação e pela não aceitação do outro como sujeito de certo lugar. Surge, neste sentido, as estratégias políticas de construção de um discurso histórico-geográfico que tem por objetivo exaltar determinados grupos em detrimento de outros. Cria-se, portanto, o discurso da comunidade, da delimitação de seus participantes e da exclusão de tantos outros que, segundo os ideais valorizados, não possuem as condições mínimas para tal. No caso de São Caetano do Sul, esta construção do discurso da comunidade ideal se pautará no desenvolvimento de uma auto-imagem, alicerçada principalmente no conceito de italianidade. O ideal de italianidade permitiu aos migrantes fundadores do núcleo criarem uma identidade coletiva capaz de fomentar a solidariedade entre o grupo com o intuito de marcar a diferença deste em relação aos outros que passavam a compor a estrutura demográfica da região do ABC. Segundo Feres, A história de São Caetano aparece, pois, como história de família. Esta assume o papel principal na história sancaetanense, ocultando outras explicações. Mas é uma história caracteristicamente épica, tributária de marcos memoráveis pela grandiosidade inaugural (FERES, 1998, p. 136) Baseada no ideal das famílias fundadoras, a história-mito de São Caetano do Sul oculta mais do que revela. Pouco deixa vir a tona a história das outras famílias, das que vieram e foram embora, no início do núcleo, das que chegaram com a expansão industrial e passaram a ocupar as periferias da cidade e que tiveram negado a própria identidade de pertencentes a mesma. A história de São Caetano do Sul, organizada, escrita e compilada pela e para a reprodução do poder, é a história contada pelos vencedores, por aqueles que vêm na pseudo-ideia de fundação constructo estratégico de poder, elemento legitimador de diferenciação. Desta forma, a figura do imigrante italiano, destemido, que das terras longínquas veio para desenvolver o país, torna-se peça fundamental do discurso histórico e geográfico que passa a ser constituído pelos grupos tradicionais de São Caetano do Sul. Pertencer a tais grupos significa corroborar com este ideal de italianidade que se constrói a partir do discurso e que se torna princípio de diferenciação social no qual se assenta os grupos tradicionais de São Caetano do Sul. É neste princípio que tais grupos buscam as bases de sustentação de certa autoridade política que argumentam possuir, sendo que tal discurso aparece modernizado nas estratégias de produção do espaço urbano que ocorrem atualmente na cidade. 2 A MUDANÇA PRODUTIVA DO ESPAÇO URBANO DE SÃO CAETANO DO SUL A partir da década de 1990, a região do ABC paulista começou a enfrentar importantes mudanças no que diz respeito à estruturação do seu espaço produtivo. Entre tais mudanças, destaca-se a reestruturação produtiva das empresas multinacionais que atuam na região. Em decorrência dos custos elevados de produção e como uma forma de retaliação as greves realizadas nas décadas de 1970/80, muitas destas empresas decidiram por mudar seus parques produtivos para outras áreas do país, atraídos também por uma série de incentivos fiscais e pelas facilidades resultantes nas inovações nos meios de transporte e comunicação. Com este processo, ocorreu uma transformação do perfil econômico da cidade, que, até aquele momento, dependida da acumulação de capital decorrente da produção industrial. Esta saída dos parques produtivos resultou também em um aumento da emigração de moradores da região para cidades do interior de São Paulo e de outros Estados brasileiros. Muitos destes moradores seguiram, em certa medida, o rastro das indústrias que haviam deixado São Caetano e região. Para se ter uma ideia, entre 1980 e 1991, a população de São Caetano do Sul diminuiu em cerca de 10 mil pessoas, o que significa uma parcela importante da população se considerarmos que o número de habitantes da cidade aproxima-se de 140 mil3. Neste sentido, os governantes e empresários locais se viram em uma situação de transformação abrupta do perfil econômico da cidade. Era preciso, urgentemente, traçar estratégias para recuperar o fôlego econômico e para tanto algumas apostas foram feitas. A principal delas dizia respeito à revalorização urbana de algumas áreas e a atração de populações de alta renda para ali residirem. Para tanto, era necessário mudar o código de zoneamento que impedia a construção de prédios com mais de seis andares. Esta mudança no zoneamento foi um dos elementos fundamentais para que se pudessem utilizar os terrenos abandonados resultantes da saída dos parques industriais. Nestes terrenos, foram erguidos empreendimentos de alto padrão, calcados no alto valor do metro quadrado da cidade (atualmente calculado em R$3257,00 em média, segundo o site www.agenteimovel.com.br) Figura 1. Imagens de alguns dos novos empreendimentos urbanos encontrados em São Caetano do Sul. Foto do autor, janeiro de 2009. De certa maneira, a construção deste tipo de empreendimento se constituiu também como uma estratégia de seleção dos habitantes que deveriam residir na cidade. Predominam 3 “Segundo o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – São Caetano do Sul perdeu 10 mil moradores entre 1990 e 1996. O decréscimo populacional chegou a 6,3%. O número de habitantes caiu de 149.519 para 140.007, conforme contagem realizada em 1995”. (MORO JR., 1998, p. 79). nos empreendimentos lançados apartamentos acima de 100 m2 de área privativa, como pudemos verificar nas imagens acima. Tais empreendimentos têm como público alvo as classes de renda A e B, selecionando-se assim os novos moradores da cidade a partir de critérios pautados na lógica do mercado e do consumo, da especulação financeira e da negação do direito à cidade, transformada agora em mercadoria. Como aponta Vainier (2002), os novos planejadores estratégicos são bem claros no que diz respeito a quem se destina as novas áreas da cidade, produzida a partir da lógica do planejamento para o mercado: “Não queremos visitantes usuários em geral, e muito menos imigrantes pobres, expulsos dos campos ou de outros países igualmente pobres, queremos visitantes e usuários solventes”. (p. 80) Além disso, criou-se um plano para a atração de investimentos no setor terciário de ponta (alta tecnologia, informática) que necessitam de áreas mais reduzidas em relação às industriais calcadas no modelo fordista e que, de certa maneira, poderiam compensar a perda de arrecadação com a saída dos parques industriais. Segundo o Plano Diretor Estratégico de São Caetano do Sul para o período de 2006-2015, todas estas intervenções visam dotar a cidade das condições necessárias para que a mesma possa se inserir e concorrer na atração de investimentos no interior da economia globalizada. Percebemos, portanto, que aquilo que se almeja alcançar em São Caetano do Sul e que se revela em seu Plano Diretor Estratégico faz parte de um modelo de planejamento que tem se disseminado pelo mundo e que parte do pressuposto da necessidade das cidades de se adequarem para melhor competirem no mercado globalizado. A cidade torna-se, portanto, uma empresa e deve ser administrada como tal para que assim possa alcançar vantagens no processo perverso da economia globalizada. Porém, esta estratégia de revalorização urbana só poderia se dar com a construção e divulgação de uma imagem da cidade. Quem pagaria tão caro para viver em São Caetano do Sul? O que a cidade teria para oferecer de diferencial para os seus novos habitantes? Cria-se, neste sentido, a imagem da cidade como lugar da qualidade de vida, do urbano para todos, de certa democracia plena que ali se realizaria. Para isso, investimentos são feitos principalmente na área de paisagismo e publicidade com o intuito de produzir esta imagem da cidade, que passa a ser diretamente incorporada ao valor dos terrenos4. É, porém, uma qualidade de vida 4 Para se ter uma ideia, no ano de 2010 foram investidos mais de R$8.600.000,00 na área de Comunicação Social, enquanto a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade recebeu pouco mais de R$2.000.000,00 e a Secretaria de Direitos das Pessoas com Deficiência ou Mobilidade Reduzida menos de R$500.000,00. Os dados de 2011 apontam para a manutenção desta desigualdade entre tais secretarias: até junho, a Secretaria de Comunicação Social já havia recebido mais de R$4.600.000,00, enquanto a de Meio Ambiente e de Direitos das Pessoas com Deficiência receberam R$530.000,00 e R$191.000,00 respectivamente. Fonte: Portal da Cidadania restrita, a qual nem todos têm acesso. Os investimentos em outras áreas (saúde, educação) são destinados a algumas localidades em detrimento de outras. A venda da imagem da cidade, portanto, se dá a partir do ocultamento da cidade real. Permanecem os problemas de enchentes e das precárias condições de vida dos moradores que habitam os inúmeros cortiços da cidade, permanecem a segregação sócio-espacial e todos os problemas dela decorrentes. Enquanto as partes mais valorizadas da cidade, como o Jardim São Caetano, receberam altos investimentos neste processo de revalorização urbana, bairros como a Prosperidade continuaram a sofrer com inúmeros problemas e. Figura 2. Casas e ruas fechadas no Bairro Jardim São Caetano: condomínio de rua e vetor de expansão imobiliária. Foto do Autor, janeiro de 2009. Figura 3. É grande a quantidade de casas no bairro da Prosperidade que estão para alugar. Segundo alguns moradores, isso se dá pelas dificuldades de acesso que os moradores do bairro têm aos serviços oferecidos na cidade. Foto do autor, novembro de 2007. VAINER (2002) analisa as implicações deste novo modelo de planejamento urbano, decorrente da ideia da cidade-mercadoria, a ser vendida em um mercado global e competitivo como outra mercadoria qualquer. Esta nova “necessidade” dos planejadores urbanos resulta da Prefeitura de São Caetano do Sul (http://portaldacidadania.saocaetanodosul.sp.gov.br). Acesso em 20/06/2011, as 14 horas. no desenvolvimento de novas estratégias e perspectivas sobre a cidade que podem ser agrupadas naquilo que se denomina de marketing urbano. Segundo o autor, Talvez esta seja, hoje, uma das idéias mais populares entre os neoplanejadores urbanos: a cidade é uma mercadoria a ser vendida, num mercado extremamente competitivo, em que as outras cidades também estão à venda. Isto explicaria que o chamado marketing urbano se imponha cada vez mais como uma esfera específica e determinante do processo de planejamento e gestão de cidades. Ao mesmo tempo, aí encontramos as bases para entender o comportamento de muitos prefeitos, que mais parecem vendedores ambulantes que dirigentes políticos (VAINER, 2002, p. 78). Este marketing urbano, para o qual VAINER chama a atenção aparece no discurso oficial dos representantes do planejamento urbano da cidade de São Caetano do Sul. Em sua dissertação de Mestrado, Enio Moro Junior, arquiteto da Prefeitura Municipal de São Caetano do Sul, apresenta algumas estratégias fundamentais para que a cidade possa enfrentar as novas dinâmicas relacionadas a urbanização, principalmente no que diz respeito a transição de cidade industrial para a cidade de serviços especializados. Entre as iniciativas defendidas pelo autor, destacamos duas: - Renovação urbana: possibilidade de reciclagem de instalações ou áreas tornadas disponíveis pela evasão industrial para a renovação urbana e a implantação/instalação de atividades de alcance sub-regional e metropolitano. - Imagem da Cidade: identificação de elementos urbanos característicos que garantam uma identidade visual auxiliando a percepção das singularidades de desenho e imagem da cidade (MORO JR., 1998, p. 134). Nestes dois trechos descritos acima, fica explícito a estratégia de intervenção urbana em São Caetano do Sul que, em certa medida, e pela própria influência do autor, tem sido posta em prática. De um lado, a abertura de novas frentes de especulação imobiliária aproveitando-se de áreas deixadas pelas indústrias no processo que o autor denomina de evasão industrial. São essas áreas que tem sido utilizada na construção de novos empreendimentos imobiliários de alto padrão, bem como na atração de atividades do setor terciário. Do outro lado, a construção de uma imagem da cidade, que busca ressaltar a singularidade do desenho, a forma sobre o conteúdo. O realce da singularidade significa ocultar as disparidades, as desigualdades sócio-espaciais que marcam a urbanização de São Caetano do Sul e todo o processo de urbanização sob a lógica do capital. Na construção da imagem da cidade, o discurso histórico-geográfico de São Caetano do Sul é retomado como elemento de diferenciação positiva. O passado torna-se, portanto, justificativa e legitimação do presente, bem como garantia de futuro para os que ali escolherão morar. Nesse caso, como nos aponta Bauman, na invenção de uma tradição, O que importa são o presente e o futuro comuns; a única importância de um passado comum é modelar o presente e o futuro e manter o curso com um pouco mais de facilidade. (BAUMAN, 2000, p. 137). Dessa maneira, construir uma imagem da cidade significa, ao mesmo tempo, ressaltar traços a serem lembrados, ocultar o que precisa ser esquecido. A imagem da cidade, a ser vendida, local, regional, nacional e globalmente, é uma marca do planejamento urbano na atualidade e pode ser verificada nas estratégias espaciais que têm sido colocadas em práticas na cidade de São Caetano do Sul. Vale, portanto, retomar a questão feita por VAINER em seu texto: “o que é que, afinal de contas, se vende quando se põe a venda uma cidade?” (VAINER, 2002, p. 78) No caso de São Caetano vende-se a cidade ideal, sem problemas urbanos, marcada pela qualidade de vida sócio-ambiental, pelos elevados índices de IDH. Vende-se a cidade sem favelas, sem periferia, no qual o direito à cidade, pelo menos em discurso, está a todos garantido. Vende-se a imagem de alguns bairros, de algumas famílias; ocultam-se, porém, tantas outras que, por vários motivos, não devem fazer parte deste marketing urbano que se quer construir. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS: LIMITES E POSSIBILIDADES A análise da produção do espaço urbano em São Caetano do Sul nestes quatro momentos específicos nos permite compreender os diferentes processos, estratégias e agentes responsáveis pelas configurações sócio-espaciais presente atualmente na cidade. Porém, nosso intuito, neste texto, vai além da mera identificação e compreensão destes elementos. Interessanos, também, analisar de que forma a produção do espaço urbano em São Caetano do Sul contribui no desenvolvimento da possibilidade de realização do direito à cidade. O conceito de direito à cidade está presente na obra de Henry Lefebvre e pode ser pensado como o direito de vivê-la enquanto um valor de uso, para além da lógica da mercadoria, enquanto obra e construção social. Deve ser entendido enquanto o direito de cada cidadão de pensar e repensar as formas e processos pelos quais a cidade tem sido organizada, direito individual que se exerce de forma coletiva enquanto forma de apropriação e construção de um espaço efetivamente público, lugar do encontro dos diferentes e das possibilidades. O que ocorre, porém, no caso de São Caetano do Sul, é o predomínio do valor de troca da cidade, pensada enquanto mercadoria a ser vendida no mercado global. A construção da imagem da cidade, como estratégia urbana contemporânea, busca dar maior visibilidade a esta forma-conteúdo da cidade. Ao mesmo tempo, a valorização do espaço urbano em São Caetano do Sul, a partir da atração de famílias de alto poder aquisitivo, resulta em profundas transformações nas relações sociais ali ocorridas. A sociabilidade entre os homens passa a ser a sociabilidade entre as coisas, mediadas pela imagem da cidade. O viver a cidade vai, cada vez mais, sendo substituído pelo consumo da cidade. E com isso, o cidadão é substituído pelo consumidor mais que perfeito, como aponta Milton Santos (1992). Neste processo de esvaziamento da cidadania, substituída agora pela ética do consumo, as elites locais, principais beneficiárias do processo de valorização do espaço urbano de São Caetano do Sul podem realizar suas estratégias de manutenção do poder sem que grandes questionamentos sejam realizados. O que interessa aos novos consumidores da cidade é que a forma urbana, a imagem da cidade moderna seja difundida, não sendo levados em consideração os impactos sociais e ambientais diretamente relacionados a este processo. O sentimento de pertencer à cidade, muito explícito no discurso, inexiste enquanto prática, uma vez que as decisões sobre a produção do espaço urbano que afetam a todos são tomadas por aqueles que há anos se reproduzem no poder local. Nestas decisões, apenas os interesses de tais grupos são levados em consideração. O bem comum é deixado de lado, em favor da valorização e da rentabilidade do espaço urbano. Neste sentido, o discurso e a imagem da cidade se contrastam como uma realidade na qual o direito à cidade está cada vez mais distante. De um lado a segregação sócio-espacial avança com a construção dos condomínios fechados, com a sobreposição da lógica do privado sobre o público, com o império do automóvel que tem feito o trânsito da cidade se tornar insuportável. De outro, aqueles que não têm condições de consumir a cidade, principalmente em decorrência do aumento do custo de vida resultante da mudança do perfil sócio-econômico dos moradores, são obrigados a deixá-la. Enquanto gueto, a cidade se reproduz em fragmentos. Em nossa perspectiva, faz-se necessário construir a crítica a este modelo de produção do espaço urbano para que assim possa se iniciar o processo de construção do direito à cidade. Porém, o mesmo só poderá se realizar, de fato, enquanto práxis transformadora. Para tanto, espaços de resistência devem ser construídos, com o intuito de possibilitar que outros sujeitos da cidade possam participar do processo de produção deste espaço urbano. Associações de bairros, sindicatos, escola públicas podem se constituir enquanto fóruns importantes na construção do direito à cidade, contrapondo-se a mercantilização do urbano e da vida. Nestes espaços de resistência, há que se constituir um processo de fortalecimento da sociedade civil, que seja capaz de fiscalizar e apresentar demandas ao poder público, levando em consideração o bem comum e o interesse da maioria. Sem uma sociedade civil organizada e consciente de sua função no processo democrático, capaz de tornar o governo efetivamente transparente, como aponta Norberto Bobbio (1996), as elites locais continuarão a se reproduzir no poder em São Caetano do Sul e com isso permanecerão a produzir o espaço urbano conforme os seus interesses, em detrimento da maioria da população. Neste sentido, a resistência a produção do espaço urbano como mercadoria traz à tona a necessidade de se resgatar o caráter utópico da cidade enquanto Espaço da Esperança (HARVEY, 2009). Como aponta Lefebvre, Hoje, mais do que nunca, não existe pensamento sem utopia. Ou então, se nos contentarmos em constatar, em ratificar o que temos sob os olhos, não iremos longe, permaneceremos com os olhos fixados na real. Como se diz: seremos realista... mas não pensaremos! Não existe pensamento que não explore uma possibilidade, que não tente encontrar uma orientação (2008, p.15). Tal utopia deve ser construída a partir de outro projeto de sociedade e de urbano. Neste novo projeto, os valores construídos de forma coletiva só podem ganhar sentido a partir de diferentes práticas dos homens e mulheres, sujeitos espalhados em múltiplos territórios. O que os une são os valores do bem comum, da solidariedade, da cooperação. E são tais valores, em nossa perspectiva, que devem nortear a produção do espaço urbano enquanto lugar da plena realização da vida. REFERÊNCIAS BOBBIO, N. O futuro da democracia. 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 1986. FERES, CRISTINA L. P. Herdeiros da Fundação. Lavoro e famiglia em São Caetano. São Paulo: Hucitec, 2001. HARVEY, D. 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