A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO E O DIREITO À CIDADE EM SÃO
CAETANO DO SUL – SP: LIMITES E POSSIBILIDADES
Eduardo Donizeti Girotto1
David Augusto Santos2
Eixo temático: O CAMPO E A CIDADE
RESUMO: A cidade de São Caetano do Sul, localizada na região metropolitana de São Paulo, tem
ganhado destaque nacionalmente em decorrência de sua posição no Índice de Desenvolvimento
Humano dos municípios brasileiros. A cidade, através dos seus representantes legais, tem realizado um
intenso processo de difusão de uma imagem pautada no discurso da cidade ideal, sustentável social e
ambientalmente. A divulgação desta imagem da cidade em âmbito nacional tem atraído pessoas que
desejam fazer parte deste “paraíso”, conforme aponta a propaganda. Com isso, um intenso processo de
produção do espaço urbano, pautado na construção de moradias de alto padrão vem ocorrendo na
cidade, alterando a dinâmica das relações sociais de seus moradores. Neste sentido, este trabalho
analisa a produção do espaço urbano de São Caetano do Sul em diferentes momentos históricos com o
intuito de compreender as diferentes estratégias e grupos ligados a este processo. Ao mesmo tempo,
interessa-nos compreender de que forma os processos relacionados à produção do espaço urbano na
atualidade afetam as relações sociais dos moradores, bem como possibilitam ou não a construção do
direito à cidade, nos termos propostos por Henry Lefebvre.
PALAVRAS-CHAVE: Urbano; Direito à Cidade; Marketing Urbano
1 INTRODUÇÃO
A produção do espaço urbano em São Caetano do Sul se inicia no final do século XIX,
mas respectivamente em 1877 com a fundação do núcleo colonial de São Caetano do Sul.
1
Doutorando em Geografia Humana, USP. Professor Assistente do Colegiado de Geografia da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná, campus Francisco Beltrão. Email: [email protected]
2
Mestrando e Geografia, PUC-SP. Professor da Rede Municipal de São Caetano do Sul. Email:
[email protected]
Naquele momento, o governo paulista, com o intuito de substituir a mão-de-obra escrava cada
vez mais escassa devido às proibições ao tráfico negreiro, impostas pelo governo inglês e que
resultou, no Brasil, na Lei Eusébio de Queiroz, criou um núcleo colonial na antiga fazendo
São Caetano pertencente aos beneditinos. Este núcleo recebeu, em seu início, famílias de
imigrantes italianos, como nos aponta Martins (1988).
Este núcleo colonial, diferente de outras experiências relacionadas à imigração
italiana, dava aos imigrantes o direito a posse da terra. Aqueles que colonizaram São Caetano
do Sul foram ali estabelecidos para serem produtores de hortifruti, vinhos, pães, com objetivo
de abastecer a cidade de São Paulo dos gêneros alimentícios dos quais seus habitantes
necessitavam. A localização do núcleo, às margens do rio Tamanduateí, facilitava a
distribuição dos produtos que iriam abastecer o Mercado Municipal de São Paulo.
A ausência do poder público e as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes resultarão
em uma forma específica de sociabilidade, que MARTINS conceituará a partir da ideia de
subúrbio. No subúrbio, as relações que os moradores estabelecem entre si e com o lugar
dizem respeito ainda a resquícios da lógica do rural. O que define, muitas vezes, a posição
social no interior desta sociabilidade são as relações de parentesco e proximidade que um
determinado sobrenome revela. A ajuda mútua, o estreitamento dos laços sociais foram as
alternativas encontradas para que se pudesse suprir a ausência da cidade, representação do
poder político. No vazio deixado pela ausência da cidade, os moradores recriaram suas
identidades enquanto identidades, também, coletivas. Criou-se, neste sentido, a ideia de
aldeia, de sociedade fechada, identificada pelo sobrenome, característica marcante do
primeiro momento de produção do espaço urbano em São Caetano do Sul e que permanece,
mesmo de forma residual, na sociabilidade existente ainda hoje na cidade.
O segundo momento da produção do espaço urbano em São Caetano do Sul pode ser
identificado com o processo de industrialização ocorrido na região do ABC paulista a partir
do século XX com a chegada de empresas multinacionais, principalmente do setor
automobilístico. O surgimento de terras ociosas decorrentes da saída e morte de colonos
possibilitou o processo de expansão industrial da cidade de São Paulo em direção ao núcleo
colonial de São Caetano do Sul. Os baixos preços da terra na região, bem como a presença de
certa quantidade de mão-de-obra semiqualificada, foram fatores fundamentais para esta
expansão.
A instalação das indústrias no Núcleo Colonial de São Caetano agrega um novo
elemento nas relações de produção, o trabalho fabril, regulado pelo ritmo mecânico do
relógio. A formação do núcleo colonial de São Caetano se deu, em grande medida, em torno
do trabalho familiar. Com o avanço do trabalho industrial, tal elemento não é simplesmente
esquecido, devorado pela nova lógica. É absorvido como estratégia de controle e de domínio
sobre o trabalho do operário. Afirma-se, portanto, certa ética do trabalho enquanto
positividade, enquanto reprodutor de valores subjetivos que, em certa medida, ocultam as
reais condições de exploração dos trabalhadores empreendidas pelos grandes empresários.
Para MARTINS, no subúrbio,
o trabalho não aparece como castigo, mas sim como virtude, mérito e fonte
de prazer, algo para deixar a esquerda pequeno-burguesa arrepiada. O prazer
do trabalho não destrói os problemas gerados pelo trabalho mal pago. Porque
pensar e apreciar o próprio trabalho é algo que o capital pode ter banido da
fábrica, mas não conseguiu banir da vida do trabalhador. (MARTINS, 2001,
p. 82)
É interessante notar que os grandes movimentos de contestação a esta ética do trabalho
presente no imaginário dos habitantes de São Caetano do Sul que ocorreram na região do
ABC, surgidos da organização dos sindicatos na segunda metade do século XX, com a
presença maciça de migrantes nordestinos em sua liderança, não obtiveram grande adesão dos
trabalhadores de São Caetano do Sul. As grandes greves das décadas de 1970 e 1980, que
tiveram destaque em São Bernardo do Campo e em Santo André, marcam uma ruptura brutal
com esta ética do trabalho dominante até aquele momento na região do ABC, ao mesmo
tempo em que foram utilizados por certos grupos para a construção de um discurso identitário
que se apoiava em concepções antagônicas em relação ao trabalho. De um lado, a figura do
imigrante, principalmente italiano, que vê o trabalho apenas como positividade, como forma
de manter os valores e a sociabilidade herdada da terra distante, sendo talvez esta a única
coisa que de fato lhe reste. Do outro, o migrante nordestino, inserido na lógica de produção
em massa do capitalismo fordista, das grandes linhas de produção das indústrias
automobilística, do trabalho cansativo e repetitivo, que vê no trabalho a negatividade de sua
alienação. Levadas aos extremos, tais diferenças de concepção resultam em determinadas
práticas sócio-espaciais marcadas pela segregação e pela não aceitação do outro como sujeito
de certo lugar. Surge, neste sentido, as estratégias políticas de construção de um discurso
histórico-geográfico que tem por objetivo exaltar determinados grupos em detrimento de
outros. Cria-se, portanto, o discurso da comunidade, da delimitação de seus participantes e da
exclusão de tantos outros que, segundo os ideais valorizados, não possuem as condições
mínimas para tal.
No caso de São Caetano do Sul, esta construção do discurso da comunidade ideal se
pautará no desenvolvimento de uma auto-imagem, alicerçada principalmente no conceito de
italianidade. O ideal de italianidade permitiu aos migrantes fundadores do núcleo criarem uma
identidade coletiva capaz de fomentar a solidariedade entre o grupo com o intuito de marcar a
diferença deste em relação aos outros que passavam a compor a estrutura demográfica da região do
ABC. Segundo Feres,
A história de São Caetano aparece, pois, como história de família. Esta
assume o papel principal na história sancaetanense, ocultando outras
explicações. Mas é uma história caracteristicamente épica, tributária de
marcos memoráveis pela grandiosidade inaugural (FERES, 1998, p. 136)
Baseada no ideal das famílias fundadoras, a história-mito de São Caetano do Sul
oculta mais do que revela. Pouco deixa vir a tona a história das outras famílias, das que
vieram e foram embora, no início do núcleo, das que chegaram com a expansão industrial e
passaram a ocupar as periferias da cidade e que tiveram negado a própria identidade de
pertencentes a mesma. A história de São Caetano do Sul, organizada, escrita e compilada pela
e para a reprodução do poder, é a história contada pelos vencedores, por aqueles que vêm na
pseudo-ideia de fundação constructo estratégico de poder, elemento legitimador de
diferenciação.
Desta forma, a figura do imigrante italiano, destemido, que das terras longínquas veio
para desenvolver o país, torna-se peça fundamental do discurso histórico e geográfico que
passa a ser constituído pelos grupos tradicionais de São Caetano do Sul. Pertencer a tais
grupos significa corroborar com este ideal de italianidade que se constrói a partir do discurso
e que se torna princípio de diferenciação social no qual se assenta os grupos tradicionais de
São Caetano do Sul. É neste princípio que tais grupos buscam as bases de sustentação de certa
autoridade política que argumentam possuir, sendo que tal discurso aparece modernizado nas
estratégias de produção do espaço urbano que ocorrem atualmente na cidade.
2 A MUDANÇA PRODUTIVA DO ESPAÇO URBANO DE SÃO CAETANO DO SUL
A partir da década de 1990, a região do ABC paulista começou a enfrentar importantes
mudanças no que diz respeito à estruturação do seu espaço produtivo. Entre tais mudanças,
destaca-se a reestruturação produtiva das empresas multinacionais que atuam na região. Em
decorrência dos custos elevados de produção e como uma forma de retaliação as greves
realizadas nas décadas de 1970/80, muitas destas empresas decidiram por mudar seus parques
produtivos para outras áreas do país, atraídos também por uma série de incentivos fiscais e
pelas facilidades resultantes nas inovações nos meios de transporte e comunicação.
Com este processo, ocorreu uma transformação do perfil econômico da cidade, que,
até aquele momento, dependida da acumulação de capital decorrente da produção industrial.
Esta saída dos parques produtivos resultou também em um aumento da emigração de
moradores da região para cidades do interior de São Paulo e de outros Estados brasileiros.
Muitos destes moradores seguiram, em certa medida, o rastro das indústrias que haviam
deixado São Caetano e região. Para se ter uma ideia, entre 1980 e 1991, a população de São
Caetano do Sul diminuiu em cerca de 10 mil pessoas, o que significa uma parcela importante
da população se considerarmos que o número de habitantes da cidade aproxima-se de 140
mil3.
Neste sentido, os governantes e empresários locais se viram em uma situação de
transformação abrupta do perfil econômico da cidade. Era preciso, urgentemente, traçar
estratégias para recuperar o fôlego econômico e para tanto algumas apostas foram feitas. A
principal delas dizia respeito à revalorização urbana de algumas áreas e a atração de
populações de alta renda para ali residirem. Para tanto, era necessário mudar o código de
zoneamento que impedia a construção de prédios com mais de seis andares. Esta mudança no
zoneamento foi um dos elementos fundamentais para que se pudessem utilizar os terrenos
abandonados resultantes da saída dos parques industriais. Nestes terrenos, foram erguidos
empreendimentos de alto padrão, calcados no alto valor do metro quadrado da cidade
(atualmente calculado em R$3257,00 em média, segundo o site www.agenteimovel.com.br)
Figura 1. Imagens de alguns dos novos empreendimentos urbanos encontrados em São Caetano do Sul. Foto do
autor, janeiro de 2009.
De certa maneira, a construção deste tipo de empreendimento se constituiu também
como uma estratégia de seleção dos habitantes que deveriam residir na cidade. Predominam
3
“Segundo o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – São Caetano do Sul perdeu 10 mil
moradores entre 1990 e 1996. O decréscimo populacional chegou a 6,3%. O número de habitantes caiu de
149.519 para 140.007, conforme contagem realizada em 1995”. (MORO JR., 1998, p. 79).
nos empreendimentos lançados apartamentos acima de 100 m2 de área privativa, como
pudemos verificar nas imagens acima. Tais empreendimentos têm como público alvo as
classes de renda A e B, selecionando-se assim os novos moradores da cidade a partir de
critérios pautados na lógica do mercado e do consumo, da especulação financeira e da
negação do direito à cidade, transformada agora em mercadoria. Como aponta Vainier (2002),
os novos planejadores estratégicos são bem claros no que diz respeito a quem se destina as
novas áreas da cidade, produzida a partir da lógica do planejamento para o mercado: “Não
queremos visitantes usuários em geral, e muito menos imigrantes pobres, expulsos dos
campos ou de outros países igualmente pobres, queremos visitantes e usuários solventes”. (p.
80)
Além disso, criou-se um plano para a atração de investimentos no setor terciário de
ponta (alta tecnologia, informática) que necessitam de áreas mais reduzidas em relação às
industriais calcadas no modelo fordista e que, de certa maneira, poderiam compensar a perda
de arrecadação com a saída dos parques industriais. Segundo o Plano Diretor Estratégico de
São Caetano do Sul para o período de 2006-2015, todas estas intervenções visam dotar a
cidade das condições necessárias para que a mesma possa se inserir e concorrer na atração de
investimentos no interior da economia globalizada. Percebemos, portanto, que aquilo que se
almeja alcançar em São Caetano do Sul e que se revela em seu Plano Diretor Estratégico faz
parte de um modelo de planejamento que tem se disseminado pelo mundo e que parte do
pressuposto da necessidade das cidades de se adequarem para melhor competirem no mercado
globalizado. A cidade torna-se, portanto, uma empresa e deve ser administrada como tal para
que assim possa alcançar vantagens no processo perverso da economia globalizada.
Porém, esta estratégia de revalorização urbana só poderia se dar com a construção e
divulgação de uma imagem da cidade. Quem pagaria tão caro para viver em São Caetano do
Sul? O que a cidade teria para oferecer de diferencial para os seus novos habitantes? Cria-se,
neste sentido, a imagem da cidade como lugar da qualidade de vida, do urbano para todos, de
certa democracia plena que ali se realizaria. Para isso, investimentos são feitos principalmente
na área de paisagismo e publicidade com o intuito de produzir esta imagem da cidade, que
passa a ser diretamente incorporada ao valor dos terrenos4. É, porém, uma qualidade de vida
4
Para se ter uma ideia, no ano de 2010 foram investidos mais de R$8.600.000,00 na área de Comunicação
Social, enquanto a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade recebeu pouco mais de R$2.000.000,00 e a
Secretaria de Direitos das Pessoas com Deficiência ou Mobilidade Reduzida menos de R$500.000,00. Os dados
de 2011 apontam para a manutenção desta desigualdade entre tais secretarias: até junho, a Secretaria de
Comunicação Social já havia recebido mais de R$4.600.000,00, enquanto a de Meio Ambiente e de Direitos das
Pessoas com Deficiência receberam R$530.000,00 e R$191.000,00 respectivamente. Fonte: Portal da Cidadania
restrita, a qual nem todos têm acesso. Os investimentos em outras áreas (saúde, educação) são
destinados a algumas localidades em detrimento de outras. A venda da imagem da cidade,
portanto, se dá a partir do ocultamento da cidade real. Permanecem os problemas de
enchentes e das precárias condições de vida dos moradores que habitam os inúmeros cortiços
da cidade, permanecem a segregação sócio-espacial e todos os problemas dela decorrentes.
Enquanto as partes mais valorizadas da cidade, como o Jardim São Caetano, receberam altos
investimentos neste processo de revalorização urbana, bairros como a Prosperidade
continuaram a sofrer com inúmeros problemas e.
Figura 2. Casas e ruas fechadas no Bairro Jardim São Caetano: condomínio de rua e vetor de expansão
imobiliária. Foto do Autor, janeiro de 2009.
Figura 3. É grande a quantidade de casas no bairro da Prosperidade que estão para alugar. Segundo alguns
moradores, isso se dá pelas dificuldades de acesso que os moradores do bairro têm aos serviços oferecidos na
cidade. Foto do autor, novembro de 2007.
VAINER (2002) analisa as implicações deste novo modelo de planejamento urbano,
decorrente da ideia da cidade-mercadoria, a ser vendida em um mercado global e competitivo
como outra mercadoria qualquer. Esta nova “necessidade” dos planejadores urbanos resulta
da Prefeitura de São Caetano do Sul (http://portaldacidadania.saocaetanodosul.sp.gov.br). Acesso em
20/06/2011, as 14 horas.
no desenvolvimento de novas estratégias e perspectivas sobre a cidade que podem ser
agrupadas naquilo que se denomina de marketing urbano. Segundo o autor,
Talvez esta seja, hoje, uma das idéias mais populares entre os
neoplanejadores urbanos: a cidade é uma mercadoria a ser vendida, num
mercado extremamente competitivo, em que as outras cidades também estão
à venda. Isto explicaria que o chamado marketing urbano se imponha cada
vez mais como uma esfera específica e determinante do processo de
planejamento e gestão de cidades. Ao mesmo tempo, aí encontramos as bases
para entender o comportamento de muitos prefeitos, que mais parecem
vendedores ambulantes que dirigentes políticos (VAINER, 2002, p. 78).
Este marketing urbano, para o qual VAINER chama a atenção aparece no discurso
oficial dos representantes do planejamento urbano da cidade de São Caetano do Sul. Em sua
dissertação de Mestrado, Enio Moro Junior, arquiteto da Prefeitura Municipal de São Caetano
do Sul, apresenta algumas estratégias fundamentais para que a cidade possa enfrentar as novas
dinâmicas relacionadas a urbanização, principalmente no que diz respeito a transição de
cidade industrial para a cidade de serviços especializados. Entre as iniciativas defendidas pelo
autor, destacamos duas:
- Renovação urbana: possibilidade de reciclagem de instalações ou áreas
tornadas disponíveis pela evasão industrial para a renovação urbana e a
implantação/instalação de atividades de alcance sub-regional e
metropolitano.
- Imagem da Cidade: identificação de elementos urbanos característicos que
garantam uma identidade visual auxiliando a percepção das singularidades
de desenho e imagem da cidade (MORO JR., 1998, p. 134).
Nestes dois trechos descritos acima, fica explícito a estratégia de intervenção urbana
em São Caetano do Sul que, em certa medida, e pela própria influência do autor, tem sido
posta em prática. De um lado, a abertura de novas frentes de especulação imobiliária
aproveitando-se de áreas deixadas pelas indústrias no processo que o autor denomina de
evasão industrial. São essas áreas que tem sido utilizada na construção de novos
empreendimentos imobiliários de alto padrão, bem como na atração de atividades do setor
terciário. Do outro lado, a construção de uma imagem da cidade, que busca ressaltar a
singularidade do desenho, a forma sobre o conteúdo. O realce da singularidade significa
ocultar as disparidades, as desigualdades sócio-espaciais que marcam a urbanização de São
Caetano do Sul e todo o processo de urbanização sob a lógica do capital.
Na construção da imagem da cidade, o discurso histórico-geográfico de São Caetano
do Sul é retomado como elemento de diferenciação positiva. O passado torna-se, portanto,
justificativa e legitimação do presente, bem como garantia de futuro para os que ali escolherão
morar. Nesse caso, como nos aponta Bauman, na invenção de uma tradição,
O que importa são o presente e o futuro comuns; a única importância de um
passado comum é modelar o presente e o futuro e manter o curso com um
pouco mais de facilidade. (BAUMAN, 2000, p. 137).
Dessa maneira, construir uma imagem da cidade significa, ao mesmo tempo, ressaltar
traços a serem lembrados, ocultar o que precisa ser esquecido. A imagem da cidade, a ser
vendida, local, regional, nacional e globalmente, é uma marca do planejamento urbano na
atualidade e pode ser verificada nas estratégias espaciais que têm sido colocadas em práticas
na cidade de São Caetano do Sul. Vale, portanto, retomar a questão feita por VAINER em seu
texto: “o que é que, afinal de contas, se vende quando se põe a venda uma cidade?”
(VAINER, 2002, p. 78)
No caso de São Caetano vende-se a cidade ideal, sem problemas urbanos, marcada
pela qualidade de vida sócio-ambiental, pelos elevados índices de IDH. Vende-se a cidade
sem favelas, sem periferia, no qual o direito à cidade, pelo menos em discurso, está a todos
garantido. Vende-se a imagem de alguns bairros, de algumas famílias; ocultam-se, porém,
tantas outras que, por vários motivos, não devem fazer parte deste marketing urbano que se
quer construir.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS: LIMITES E POSSIBILIDADES
A análise da produção do espaço urbano em São Caetano do Sul nestes quatro
momentos específicos nos permite compreender os diferentes processos, estratégias e agentes
responsáveis pelas configurações sócio-espaciais presente atualmente na cidade. Porém, nosso
intuito, neste texto, vai além da mera identificação e compreensão destes elementos. Interessanos, também, analisar de que forma a produção do espaço urbano em São Caetano do Sul
contribui no desenvolvimento da possibilidade de realização do direito à cidade.
O conceito de direito à cidade está presente na obra de Henry Lefebvre e pode ser
pensado como o direito de vivê-la enquanto um valor de uso, para além da lógica da
mercadoria, enquanto obra e construção social. Deve ser entendido enquanto o direito de cada
cidadão de pensar e repensar as formas e processos pelos quais a cidade tem sido organizada,
direito individual que se exerce de forma coletiva enquanto forma de apropriação e construção
de um espaço efetivamente público, lugar do encontro dos diferentes e das possibilidades.
O que ocorre, porém, no caso de São Caetano do Sul, é o predomínio do valor de troca
da cidade, pensada enquanto mercadoria a ser vendida no mercado global. A construção da
imagem da cidade, como estratégia urbana contemporânea, busca dar maior visibilidade a esta
forma-conteúdo da cidade. Ao mesmo tempo, a valorização do espaço urbano em São
Caetano do Sul, a partir da atração de famílias de alto poder aquisitivo, resulta em profundas
transformações nas relações sociais ali ocorridas. A sociabilidade entre os homens passa a ser
a sociabilidade entre as coisas, mediadas pela imagem da cidade. O viver a cidade vai, cada
vez mais, sendo substituído pelo consumo da cidade. E com isso, o cidadão é substituído pelo
consumidor mais que perfeito, como aponta Milton Santos (1992).
Neste processo de esvaziamento da cidadania, substituída agora pela ética do
consumo, as elites locais, principais beneficiárias do processo de valorização do espaço
urbano de São Caetano do Sul podem realizar suas estratégias de manutenção do poder sem
que grandes questionamentos sejam realizados. O que interessa aos novos consumidores da
cidade é que a forma urbana, a imagem da cidade moderna seja difundida, não sendo levados
em consideração os impactos sociais e ambientais diretamente relacionados a este processo. O
sentimento de pertencer à cidade, muito explícito no discurso, inexiste enquanto prática, uma
vez que as decisões sobre a produção do espaço urbano que afetam a todos são tomadas por
aqueles que há anos se reproduzem no poder local. Nestas decisões, apenas os interesses de
tais grupos são levados em consideração. O bem comum é deixado de lado, em favor da
valorização e da rentabilidade do espaço urbano.
Neste sentido, o discurso e a imagem da cidade se contrastam como uma realidade na
qual o direito à cidade está cada vez mais distante. De um lado a segregação sócio-espacial
avança com a construção dos condomínios fechados, com a sobreposição da lógica do privado
sobre o público, com o império do automóvel que tem feito o trânsito da cidade se tornar
insuportável. De outro, aqueles que não têm condições de consumir a cidade, principalmente
em decorrência do aumento do custo de vida resultante da mudança do perfil sócio-econômico
dos moradores, são obrigados a deixá-la. Enquanto gueto, a cidade se reproduz em
fragmentos.
Em nossa perspectiva, faz-se necessário construir a crítica a este modelo de produção
do espaço urbano para que assim possa se iniciar o processo de construção do direito à cidade.
Porém, o mesmo só poderá se realizar, de fato, enquanto práxis transformadora. Para tanto,
espaços de resistência devem ser construídos, com o intuito de possibilitar que outros sujeitos
da cidade possam participar do processo de produção deste espaço urbano. Associações de
bairros, sindicatos, escola públicas podem se constituir enquanto fóruns importantes na
construção do direito à cidade, contrapondo-se a mercantilização do urbano e da vida. Nestes
espaços de resistência, há que se constituir um processo de fortalecimento da sociedade civil,
que seja capaz de fiscalizar e apresentar demandas ao poder público, levando em consideração
o bem comum e o interesse da maioria. Sem uma sociedade civil organizada e consciente de
sua função no processo democrático, capaz de tornar o governo efetivamente transparente,
como aponta Norberto Bobbio (1996), as elites locais continuarão a se reproduzir no poder em
São Caetano do Sul e com isso permanecerão a produzir o espaço urbano conforme os seus
interesses, em detrimento da maioria da população.
Neste sentido, a resistência a produção do espaço urbano como mercadoria traz à tona a
necessidade de se resgatar o caráter utópico da cidade enquanto Espaço da Esperança
(HARVEY, 2009). Como aponta Lefebvre,
Hoje, mais do que nunca, não existe pensamento sem utopia. Ou então, se
nos contentarmos em constatar, em ratificar o que temos sob os olhos, não
iremos longe, permaneceremos com os olhos fixados na real. Como se diz:
seremos realista... mas não pensaremos! Não existe pensamento que não
explore uma possibilidade, que não tente encontrar uma orientação (2008,
p.15).
Tal utopia deve ser construída a partir de outro projeto de sociedade e de urbano.
Neste novo projeto, os valores construídos de forma coletiva só podem ganhar sentido a partir
de diferentes práticas dos homens e mulheres, sujeitos espalhados em múltiplos territórios. O
que os une são os valores do bem comum, da solidariedade, da cooperação. E são tais valores,
em nossa perspectiva, que devem nortear a produção do espaço urbano enquanto lugar da
plena realização da vida.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, N. O futuro da democracia. 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 1986.
FERES, CRISTINA L. P. Herdeiros da Fundação. Lavoro e famiglia em São Caetano. São
Paulo: Hucitec, 2001.
HARVEY, D. Espaços de esperança. São Paulo: Loyola, 2005.
JUNIOR, ENIO MORO. A percepção visual de um urbano em Transição: o caso de São
Caetano do Sul. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FAU-USP, 1998.
LEFEBVRE, H. Espaço e política. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
____________. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: UFMG, 2004.
____________. O direito à cidade. São Paulo: Documentos, 1969.
MARTINS, José de Souza. O Imaginário na Imigração Italiana. São Caetano do Sul:
Fundação Pró-memória, 2003.
______________________. Diário de Fim de século. Notas sobre o núcleo colonial de São
Caetano no século XIX. São Caetano do Sul: Fundação Pró-memória, 1998.
______________________. Subúrbio. Vida Cotidiana e história no subúrbio da cidade de
São Paulo: São Caetano, do fim do Império ao fim da República Velha. São Paulo: Hucitec,
1992.
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 2º edição. São Paulo: Nobel, 1992
VAINER, C. B. “Pátria, empresa e mercadoria” IN: ARANTES, O.; VAINER, C.;
MARICATO, E.; A cidade do pensamento único. 3ª edição. Petrópolis: Vozes, 2002.
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