CAPÍTULO 1 – MODERNISMO. A GERAÇÃO DE PRESENÇA. • A geração de Orpheu – 1ª Fase Modernista O modernismo português é marcado inicialmente pela fundação da revista Orpheu (1915), constituindo a primeira manifestação de caráter vanguardista em Portugal no século XX. Alguns de seus integrantes (Mario de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, entre outros) mantinham contato com correntes vanguardistas como o futurismo e o cubismo e incorporaram atitudes que refletiam a intenção de minimizar as instituições e as formas de arte que estavam ligadas à uma cultura romântica e burguesa. Os diferentes tons, a subversão da estrutura tradicional dos textos e imagens e a subversão da linguagem foram elementos que, sem dúvida contribuíram para a impressão radical desta primeira geração do modernismo português. Durante esse período, outras revistas também tiveram a sua representatividade no movimento vanguardista, entre elas: Centauro (1916), Portugal Futurista (1917), Contemporânea (1922-1926) e Athena (1924-1925). Vale ainda ressaltar que, durante este período da vanguarda, o ideário da revista Orpheu não causou uma importante impressão literária. Somente com o começo da publicação da obra de Fernando Pessoa e com a influência do grupo Presença a corrente modernista passa a ter o seu mérito reconhecido.1 Neste primeiro momento do período modernista a manifestação artística propõe uma mescla entre tradição e modernismo e consegue retomar temas da tradição portuguesa e dar-lhes uma forma moderna. Banhados pela herança deixada pelo orphismo, a revista literária “Presença” proporciona uma continuidade dos ideais do período anterior, propalando uma literatura mais intimista. 1 Para maiores informações sobre a geração de Orpheu e o período presencista consultar FERREIRA, David-Mourão. OS FICCIONISTAS DA PRESENÇA, in Presença da presença, Porto, Brasília editora, 1977, p.45. 1 • Revista Presença – 2ª Fase Modernista A revista Presença é o marco da segunda fase modernista da literatura portuguesa. Esta revista foi fundada no ano de 1927, em Coimbra, por José Régio, João Gaspar Simões, Edmundo de Bettencourt e Branquinho da Fonseca. A revista Presença (54 números, 1927-40) instaura-se como o veículo de consagração do modernismo português e em suas premissas sustenta uma literatura viva contra uma literatura livresca, a favor de uma livre expressão do autor e contra o academismo, o espírito de imitação e a rotina. O Presencismo mostra interesse em promulgar quaisquer novas correntes e é contra o exclusivismo de modelos eternos ou de uma imposição exclusivamente direcional. Esforça-se por propagar uma visão livre e vasta e mostra-se contra uma arte comprometida política e socialmente, desvinculando, portanto, a arte de um suposto compromisso econômico, filosófico ou religioso. Uma das colaborações mais destacadas do grupo Presença foi a restituição dos colaboradores do grupo Orpheu, como também a difusão das inovadoras propensões contemporâneas, vindas da Europa e do continente americano. Entre elas vale destacar os seguintes autores: André Gide (1869-1951), Marcel Proust (1871-1922), Guillaume Apollinaire (1880-1918), Jean Cocteu (1889-1963), Max Jacob (1876-1944), Paul Valéry (1871-1945), André Salmon (1881-1969), Luigi Pirandello (1867-1936), Pierre Reverdy (1889-1960), entre outros. Na edição de número 27 da revista Presença, no ano de 1930, Branquinho da Fonseca abandona a direção da revista juntamente com Miguel Torga e Edmundo de Bettencourt e posteriormente os três integrantes redigem e enviam uma carta ao demais diretores da revista (datada de 16 de junho de 1930) na qual afirmam que a: “Presença que se propunha, como folha de arte e crítica, defender o direito que assiste a cada um de seguir o seu caminho, começou a contradizer-se”, e ainda que a: 2 “Presença concebe mestres e discípulos com aquela interpretação convencional em que os mestres fazem lições para os que se reputam alunos”. 2 • António José Branquinho da Fonseca O autor da inquietante obra “O Barão”, que será o objeto de nossa análise, nasceu no dia 04 de maio do ano de 1905, na cidade de Mortágua e faleceu em 16 de maio de 1974. Branquinho da Fonseca, que também utilizou o pseudônimo de Antônio Madeira, foi uma figura notória durante a segunda fase do modernismo português e destacou-se na novelística portuguesa. Foi organizador e o primeiro diretor do Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 1925, participou da fundação da revista literária Tríptico e em 1927, na fundação da revista Presença. Publicou poesia (Poemas, 1926; Mar coalhado, 1932), teatro (Posição de guerra, 1928; Teatro I, 1939), romance (Porta de minerva, 1947; Mar santo, 1952), e conto (Zonas, 1932; Caminhos magnéticos, 1938; O barão, 1942; Rio turvo, 1945; Bandeira preta, 1957). Ainda que tenha se dedicado ao teatro e à poesia, é na sua produção ficcional que Branquinho da Fonseca atinge o ápice dentro da literatura portuguesa. Se visualizarmos a obra de Branquinho da Fonseca de modo abrangente, veremos que o apogeu de sua produção equivale à criação dos contos. Com exceção de “Zonas” (1932), podemos perceber a sua inclinação pelo mítico e pelo simbólico, este ligado a um incessante apelo pela aventura literária que se concretiza na experimentação que o nosso autor realiza na efetivação de novas estruturas e situações, aquele visto como uma faceta ou uma espécie da dimensão do real sem que se transponha o limite do terreno e estando ao nível da natureza humana. Portanto, as obras de Branquinho da Fonseca envolvem o mítico e a realidade, a consciência e a 2 SARAIVA, J.A; LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. 13° edição. Porto: Porto Editora, 1996. p.1056-1057 3 subconsciência dos personagens, persistindo em uma constante fusão entre o irreal e o real, entre as situações cotidianas e as situações oníricas.3 Como sabemos, é ao lado de José Régio e Miguel Torga, que Branquinho da Fonseca torna-se um dos propulsores do movimento modernista português denominado Presencismo e que possui como alicerce o olhar voltado para a exploração do “eu” interior que mergulha nos aspectos psicológicos dos personagens. Certo será reconhecer que a maestria de Branquinho da Fonseca faz com que a obra “O Barão” seja apresentada como uma mescla entre a representação da realidade, a fantasia, o lirismo e o grotesco. Elementos que se encontram fortemente interligados por toda a estrutura narrativa e que por vezes nos incitam a sentir como reais as fantasias e como líricas as estruturas que isoladas inevitavelmente representariam o grotesco. Apesar de haver estudos relacionados e específicos que têm como centro a análise não somente da obra “O Barão”4, mas também que contemplam o período presencista e outras obras não somente do nosso autor em questão, mas daqueles que investiram nos pressupostos teóricos que envolvem o estilo narrativo (e não-narrativo) da época, propõe-se neste trabalho a análise minuciosa, dentro do escopo delimitado, dos aspectos que fazem com que esta obra seja considerada como uma obra-prima de Branquinho da Fonseca, como vemos a explícita referência elogiosa feita por Jacinto do Prado Coelho, em seu Dicionário de Literatura: "uma das mais notáveis espécimes da novelística portuguesa de todos os tempos”5. 3 Adolfo Casais Monteiro descrevia que a característica essencial de Branquinho da Fonseca consistia exatamente na “sutil fusão do concreto (um objetivismo que, com sóbria discriminação, sabe escolher o traço expressivo) e do sonho, que banha a sua prosa de um halo, sóbrio também, de poesia” (O ROMANCE TEORIA E PRÁTICA. Rio de Janeiro: José Olympo, 1964, p. 376) 4 FERREIRA, António Manuel. ARTE MAIOR: OS CONTOS DE BRANQUINHO DA FONSECA. 1° edição. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004 / FERREIRA, DavidMourão. PARA UMA LEITURA DE “O BARÃO”. In: Branquinho da Fonseca, O Barão: Lisboa: Portugália, 1969 / FERREIRA, António Manuel. CENTENÁRIO DE BRANQUINHO DA FONSECA: PRESENÇA E OUTROS PERCURSOS. 1° ed. Universidade de Aveiro, 2005. 5 Dicionário de Literatura. Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira e Literatura Galega, Estilística Literária, 2vols, 1971; 5vols, 1973; 7ª reimp., 1983. 4 A leitura deste conto nos leva, sem dúvida, a perceber a transcendência do “eu” que se realiza no âmago de cada personagem, proporcionando-nos uma visão múltipla da unidade do ser. A análise que decorre desta leitura propiciará não apenas a contemplação de estruturas narrativas, mas o entrelaçamento das mesmas, formando uma única obra de múltiplas facetas. Para tanto, torna-se necessário destacar alguns aspectos que são significantes como elementos construtores desta narrativa. Quais sejam: a estruturação da narrativa e a escolha léxica que nos direciona a um determinado percurso, caminho este marcado pelas contradições e contraposições perceptíveis não somente no plano físico / material como também no plano emocional em busca do “eu” interior. Esta composição estrutural engloba de maneira sucinta a figura do narrador que ocupa desde um início dois momentos em sua narrativa: o papel de narrador e o papel de protagonista, o estilo da narração em primeira pessoa, os jogos contraditórios que se apresentam desde os primeiros parágrafos, as digressões que se mostram em situações estratégicas, a inexatidão do local / personagem (de onde ocorre e de quem se fala), mas que nos transmite a sensação ao mesmo tempo de universalização e de individualização dos temas abordados. Ressalte-se ainda a necessidade de abordar a figura feminina como elemento chave em determinadas situações da narrativa, permitindo a quebra e a continuidade da representatividade narracional; a análise das figuras simbólicas e metafóricas. A oscilação entre o passado e o presente, o contraponto entre a representação da realidade e a fantasia, o vinho e o fogo como elementos transformadores, o embate emocional demonstrado na luta metafórica entre Deus e o Diabo, o zoomorfismo, o ressurgir das cinzas, a purificação e o encontro com o “eu” interior. 5 CAPÍTULO 2 - ESTRUTURAS NARRATIVAS O conto “O Barão”, publicado no ano de 1942, é um relato constituído por uma reminiscência do personagem-narrador de uma determinada noite em que é hóspede no velho solar medieval de um abastado proprietário de terras, numa região rural de Portugal. Nesta narrativa, temos quatro personagens em destaque. São eles: o inspetor de escolas (narrador-personagem); o Barão (personagem sobre o qual se estrutura toda a narrativa memorialista); Idalina (uma mescla entre criada do velho solar e baronesa) e a Bela-Adormecida (personagem feminina sobre a qual muito pouco nos é explicado, e que surge sempre a partir das reminiscências do Barão). O inspetor de escolas é enviado a fazer uma sindicância em uma escola de uma aldeia portuguesa da serra do Barroso cujo nome afirma não lembrar-se. Através dessa viagem por motivos profissionais o inspetor será recebido na pequena aldeia por uma professora. O narrador-personagem tentará apreender a figura desta professora primeiro lamentando o seu aspecto físico e achando-a inadaptável àquele ambiente afastado da civilização. Contudo, após as argutas observações, o inspetor conclui que a professora e o ambiente estão integrados e adaptados um ao outro, como se o ambiente refletisse o “eu” da professora e vice-versa. Ainda conversando com a professora é que o inspetor conhecerá o seu anfitrião e logo após o local onde passará a noite. Durante a sua estadia no solar do Barão, o inspetor e seu anfitrião mergulharão pela noite bebendo e também recordando o passado. O inspetor de escolas estabelecerá com o Barão um misto de cumplicidade e fascinação e, no decorrer dessa noite escura, entre o vinho, a música e as mulheres, se produzirá um ambiente que se concretiza no limiar entre a embriaguez e a sobriedade, entre o passado e o presente. Observemos de que forma ocorre a caracterização dos personagens aqui apresentados (aqueles que de alguma maneira se manifestam nesta narrativa e, portanto, excluindo, por enquanto, a referência a “Ela” – no momento devido voltaremos a analisar este aspecto / personagem). Pode-se dizer que são personagens 6 redondos6, ou seja, são personagens complexos, que apresentam um maior aprofundamento na sua caracterização. Relacionaremos as variedades de características que podem ser encontradas no texto. São elas: a) Físicas – distinção de corpo, voz, gestos, roupas. b) Sociais – manifestação das diferenças sociais como classe social, profissão e atividades sociais relacionadas. c) Psicológicas – inclui-se aqui as mudanças dos estados emocionais assim como também o aprofundamento dos processos mentais dos personagens que culminam na sua reestruturação. d) Ideológicas – põe-se em evidência o modo de pensar do personagem, sua filosofia de vida, sua religião. e) Morais – sentencia o caráter dos personagens, daquilo que é considerado bom ou mau, honesto ou desonesto, moral ou amoral, sempre sob um determinado ponto de vista. Caracterização física, social e psicológica da professora que recebe o narradorprotagonista: “Nova mas feia. Contudo simpática e com um olhar de inteligência que a tornava atraente. “ (FONSECA, 1973, p. 11) – Caracterização física. “Disseram-me que havia uma hospedaria ao fundo da rua. Era uma velha casa em ruínas. Entrei e fui ter à cozinha, uma divisão comprida e escura, ao fundo da qual estava uma fogueira acesa. (...) Não me senti à vontade.” (Ibid., p. 10-11) – A caracterização do ambiente nos mostra a condição social em que está imersa a professora e provoca no inspetor uma vontade súbita de tentar alterar a situação como podemos ver em: “Pensei em não inquirir mais nada e fazer um extenso relatório a justificar e defender a professora que, por manifesta superioridade de interesses intelectuais, era uma pessoa inadaptável àquele meio.” (Ibid., p. 12-13) 6 JUNIOR, Benjamin Abdala. INTRODUÇÃO À ANÁLISE DA NARRATIVA. São Paulo: Editora Scipione, 1995. 7 Contudo, na seqüência, movido pela comparação uma vez mais entre o ambiente e o personagem que nele está inserido, o inspetor de escolas caracteriza psicologicamente a professora, percebendo através do ato de beber um mau café a integração entre professora e o ambiente decadente: “Entretanto veio um mau café em grandes chávenas de chá, que não consegui beber. Mas ela bebeu-o. E de repente vi que não era tão verdade como eu supunha a inadaptação ao meio.” (Ibid., p. 13). Caracterizações físicas do personagem Barão: “... do vão escuro surgiu um homem de enorme estatura, que teve de curvar-se para poder passar. De ombros largos, com um grande chapéu na cabeça e todo embrulhado, até aos pés, num capote preto,...” (...) “... tinha um aspecto brutal, os gestos lentos, como se tudo parasse à sua volta...” (...) “... respondeu-me no mesmo tom de gracejo...” (...) “... Atirou-me com desprezo...” (Ibid., 13-14). Por meio desta caracterização visualizamos uma figura misteriosa, com ares de dominador, dono de si e de todos ao seu redor. Caracterizações sociais do personagem Barão: “Vi que estávamos num velho solar, de certa imponência. Uma fachada de muitas janelas perdia-se na escuridão da noite.” (Ibid., p. 21). O local onde é a residência do Barão é caracterizado como um velho solar que mantém a imponência de outrora. A própria forma como o narradorpersonagem se refere a essa figura, chamando-o “Barão”, remete à idéia da sobrevivência de uma certa estirpe de origem medieval, um dono de terras e acostumado a ter a todos dobrados aos seus pés. Caracterização psicológica do personagem Barão: “Devia ter a necessidade de convívio e vinha agarrar-me, apanhar-me como quem, enfim, encontra alguém num deserto.” (Ibid., p. 15) (...) “De repente compreendi que tinha caído nas mãos de um déspota, de uma pessoa habituada a vergar os outros aos seus caprichos.” (Ibid., p. 16) (...) “Como depois compreendi, o Barão também era um homem em que lutavam Deus e o Diabo” (Ibid., p. 24) Caracterização ideológica do personagem Barão: “... Conhece Coimbra? Pois claro! Quem é que não conhece Coimbra?! Até tive um cavalo que andou em Coimbra. Quando cheguei ao terceiro ano da Universidade compreendi que aquilo era para cavalos.” (Ibid., p. 18) 8 Prossegue, logo após a essa referência ao cavalo e à Universidade, descrevendo em tom sarcástico, o modo como seu cavalo foi igualmente intitulado doutor. Esta é, portanto, uma caracterização ideológica do personagem Barão que está permeada pela sua idéia de “atual” vulgarização do estudo e da banalidade com que este assunto estaria sendo tratado. Caracterização moral do personagem Barão: “As taras e os desequilíbrios inferiores tinham-no vencido, submergindo o homem inteiro.”(Ibid., p. 24) (...) “Coitadita. Era uma criança... e estava como tinha saído da barriga da mãe. Até custa a acreditar. No fim ajoelhei a pedir-lhe desculpa...” (Ibid., p. 37) (...) “Eu às vezes vendia as minhas amantes a meu pai... Ou trocava-as... Quando precisava de dinheiro... Outras coisas... Mas vou... vou regenerar-me...”. (Ibid., p. 33-34) Ainda que a caracterização moral do Barão esteja sempre correlacionada a aspectos brutais, a taras, desequilíbrios, disputas com o pai, o narrador-personagem consegue durante o processo de narração criar uma atmosfera de estranheza, mas nunca de aversão à figura do Barão e, na maioria das vezes, o sentimos como fruto de seu meio, sem alternativas para agir, e condescendemos com esta figura que ao mesmo tempo é arrogante, déspota, intimidador e perdido em um tempo no passado em busca de seu verdadeiro “eu”. Caracterização social do narrador-personagem: “Mas sou inspetor das escolas de instrução primária e tenho obrigação de correr constantemente todo o país.” (Ibid., p. 7). “Ganho dois mil escudos e tenho passe nos comboios, além de ajudas de custo.” (Ibid., p. 8). Esta caracterização, em confronto com a caracterização social do Barão, se dá não apenas pela diferenciação de poderes aquisitivos, mas principalmente numa alusão entre as diferenças entre passado (o tempo em que parece viver o Barão, no seu antigo solar de imponência medieval) e o presente (inspetor de escolas como representante da moderna civilização). A caracterização psicológica e moral do inspetor de escolas se processa sempre em relação àquilo que ele aponta como característica no outro, ou seja, ainda que explicitamente não tenhamos um aprofundamento psicológico e moral no narradorpersonagem podemos perceber que ao longo da narrativa estas características se compõem a partir do repúdio ou da aceitação das características de outrem. 9 Caracterização física da personagem Idalina: “Entrou a criada. Uma mulher alta, bem feita, de quarenta anos, com um vago ar desdenhoso e importante.” (Ibid., p. 30) (...) “... ela interrompeu-o num tom agressivo” (Id.) (...) Não era feia. Ou antes: devia ter sido bonita.” (Ibid., p. 31) Caracterização social da personagem Idalina: “E percebia-se facilmente que andava ali como dona da casa, oscilando entre baronesa e serva.” (Ibid., p.31) – ainda que este exemplo sirva para caracterizar o comportamento de Idalina, é uma mostra clara de oscilação social entre o ser serva do Barão ou ser em si a própria baronesa, com o tom e o ar de dominação assim como outrora fora caracterizado o Barão. Em outro momento o narrador observará novamente a atitude de Idalina e, portanto, a sua caracterização psicológica: “A criada mantinha-se firme, com um olhar sereno, quase altivo; o Barão, passado o primeiro ímpeto perigoso, serenava e parecia até hesitante. Ela já tinha tomado posse do terreno e perguntou com uma secura arrogante: (...)”. (Ibid., p. 41) A caracterização do ambiente se apresenta através da descrição física do ambiente / espaço em que estão inseridos os personagens. O narrador-personagem faz uso da descrição do ambiente para, como vimos anteriormente, identificar o ambiente ao personagem e vice-versa, para provocar um ambiente tensional. Recordemos que, neste conto, por meio da caracterização do ambiente é que temos a criação gradativa do clímax do ritual dionisíaco e da purificação. A descrição do ambiente pode ser apreciada em: “As pedras lavadas e soltas pelos caminhos, as barreiras desmoronadas, algumas árvores com os ramos torcidos e secos.” (Ibid., p. 10) (...) “Estes velhos palácios, quase abandonados, (...)” (Ibid., p. 21) “Depois fomos para a sala de jantar, um enorme salão onde não apetecia estar, (...)”. (Ibid., p. 25) Ou ainda: “Lá para os confins da noite caíam do céu badaladas de um sino a dar horas e ouvia-se o resfolegar das corujas numa torre que eu não via, por mais que olhasse para o céu, tentando penetrar as trevas.” (Ibid., p. 66) Se pensarmos na questão temporal, identificaremos que o tempo narrativo é uma mescla entre tempo cronológico e tempo psicológico. O tempo cronológico se justifica pela linearidade do enredo das ações narradas. O tempo psicológico tem sua base alicerçada pelos processos mentais que se confrontam, questionam e se legitimam 10 nesta narrativa. E, portanto, o tempo psicológico não é um tempo linear, ao contrário possui oscilações e não há como precisar de qual ponto partimos e para qual ponto nos direcionamos. Ainda, a questão temporal se vê identificada por meio da caracterização da época na qual ocorre o que está sendo exposto pelo nosso narrador-personagem. Percebida, também, por essa insistente sensação de deslocamento, como se os personagens estivessem vivenciando em um período que já não fazia parte do momento narrativo, como se estivessem se nutrindo de um passado e se negassem a abandoná-lo. A análise da estrutura narrativa, narrador e foco narrativo tem como intuito demonstrar de que forma a tecedura do texto, as escolhas lexicais e o foco concentrado na figura do narrador-personagem fazem com que uma reminiscência se transforme, aos olhos do leitor, em uma ação em tempo presente. Ressalte-se ainda a relevância que os jogos textuais adquirem para a construção significativa do conto proporcionando caminhos interpretativos na análise desta obra. É, sem dúvida, este contraste inesperado entre as estruturas narrativas e especialmente o antagonismo no interior do “eu” narrativo que justifica o papel do narrador como personagem central. Este narrador é onisciente e nos narra (ou tenta narrar) os acontecimentos livres de julgamentos, voltando a um estado inicial de descoberta e estupor. Fundamentados, portanto, na delimitação definida anteriormente, prosseguiremos a análise proposta. A brevidade da primeira frase do conto “O Barão” nos revela uma das principais características da personalidade de nosso narrador-personagem: “Não gosto de viajar.” (Ibid., p. 7). Esta negativa, carregada de significação, prepara a condução da narrativa e nos apresenta desde o início as oposições / embates que estão começando a tecer-se. A contraposição começa a edificar-se se pensarmos no efeito que produz esta frase. O ponto final repentino produz um efeito de choque que em momento algum se esvaece, ao contrário, fortalece-se não somente pelos confrontos diretos, mas também pelas alusões que sugerem sentimentos opostos. O tom narrativo parece estar em constante oscilação. Analisemos detalhadamente este início de narrativa: “Não gosto de viajar. Mas sou inspetor das 11 escolas de instrução primária e tenho obrigação de correr constantemente todo o país.” (Ibid., p. 7) (...) “É uma instabilidade de eterna juventude, com perspectivas e horizontes sempre novos. Mas não gosto de viajar. Talvez só por ser uma obrigação e as obrigações não darem prazer.” (Id.) (...) “Entusiasmo-me com a beleza das paisagens, ... Seja pelo que for, não gosto de viajar.” (Ibid., p. 7-8) Nestes trechos destacados podemos verificar nitidamente a duplicidade do tom narrativo. O tom firme, determinado, a voz altiva que repete uma e outra vez que não gosta de viajar se reduz, como se sussurrasse para si mesmo uma justificativa admissível, como se intimamente tentasse legitimar algo que começa a mostrar-se como uma dualidade interior do narrador-personagem. A inquietude que o leva a desfrutar de novas paisagens, a vitalidade retratada pela sensação de eterna juventude, as saudades de sensações agradáveis confrontadas com as incertas causas do seu desprazer por viajar são os contrapontos iniciais que fundamentam esse caráter duplo. Logo em seguida, as imagens, que até então representativamente apontavam para uma instabilidade circundante e interior, sofrem nova ruptura significativa, agora não somente pelo vigor das palavras mas pela interrupção brusca do movimento em direção a uma quietude absoluta como podemos ver pela justificativa que o inspetor nos oferece ao fato de “não poder” viajar ao estrangeiro quando está de licença: “Durante esse mês quero estar quieto, parado, preciso de estar o mais parado possível. Acordar todas essas trinta manhãs no meu quarto! Ver durante trinta dias seguidos a mesma rua! Ir ao mesmo café, encontrar as mesmas pessoas!... “ (Ibid., p. 9) A seqüência acima enuncia a tranqüilidade refletida na quietude, na repetição impensada de atos cotidianos, na preservação do espaço e do tempo de reflexão do eu interior. Contudo a voz narrativa opta por uma enunciação que contraria a imagem proposta, com uma asserção enérgica e uma vitalidade que contradiz o literalmente expresso pelas palavras. É então que, após criar uma atmosfera que repudia o gosto pela viagem, o narrador-personagem novamente rompe com a expectativa do leitor e 12 nos diz: “Mas não vou filosofar; vou contar a minha viagem à Serra do Barroso.” (Ibid., p.10)7 O leitor começa a perceber as nuances dos embates do “eu interior” deste narrador. Embates estes expostos logo nas primeiras linhas e que percorrerão, como veremos, durante a análise dos símbolos e da relação dos personagens no capítulo a seguir, toda a narrativa. A voz narrativa, neste conto, é a voz narrativa em primeira pessoa. Percebemos que esta é a voz que conduz o leitor a revelar os caminhos da significação. Dependendo da atuação do narrador em primeira pessoa este pode ser classificado como narrador-personagem e obrigatoriamente participa ativamente daquilo que está sendo contado. O nosso narrador-personagem não se mostra onisciente em relação ao narrado, mas é por meio de sua voz, de suas escolhas e de seus recortes que se constrói a perspectiva narracional. É através do ponto de vista do nosso narrador-personagem e da habilidade em estruturar a narrativa que se edifica a totalidade das impressões que o leitor abrangerá durante a leitura e interpretação desta obra. Ainda pensando nos aspectos fundamentais utilizados para a realização desta narrativa, devemos salientar que: a) Este conto está composto por uma sucessão de acontecimentos. b) Estes acontecimentos referem-se a ocorrências de interesse humano, cujo foco é salientar aspectos humanos que adquirem significação e se organizam em uma sucessão temporal estruturada e ambientada em uma mesma unidade de ação. c) Apresenta-se como uma narrativa compacta, estruturada na tensão, condensação e concentração dos elementos que estão sendo narrados, proporcionando força e clareza à narrativa. 7 A serra do Barroso localiza-se ao Norte de Portugal e é composta por uma paisagem agreste e bucólica, deixando transparecer um modo de vida rural caracterizado pela força de antigos usos e costumes, conservados pela tradição. 13 Esta voz narrativa em primeira pessoa se expõe basicamente de dois diferentes modos e concomitantemente se produz em dois instantes nitidamente demarcados. São eles: 1. Quando a voz do narrador se identifica como tal e manifesta as disputas interiores do seu próprio “eu”, ou seja, se manifesta no momento presente do ato de narrar e pode remeter-se ao seu passado ou ao ato presente (a narração). 2. Quando a voz narrativa é utilizada pelo narrador-personagem para caracterizar e julgar os acontecimentos passados e que estão sendo contados, um tom narrativo capaz de descrever o entorno e de revelar os entraves emocionais postos em jogo, ou seja, a voz que será a responsável pela caracterização psicológica dos personagens, pelo aprofundamento dos processos mentais colocados em confronto. Vejamos como isto ocorre: ”São os meus ideais impossíveis. Um velho solar de paredes que tenham vivido muito mais do que eu, dessas paredes que têm fantasmas, e em volta um grande parque de velhas árvores, com recantos onde nunca vai ninguém.” (Ibid., p. 21) Este trecho apresenta uma interrupção daquilo que está sendo narrado e é a voz do narrador-personagem utilizando a imagem / situação do passado narrativo para exprimir uma sensação / sentimento que faz parte do processo de caracterização do seu “eu” interior. No trecho: “Pareceu-me que as suas idéias não tinham continuidade. / Talvez as minhas também não.” (Ibid., p. 86). Percebemos que utiliza a narração do acontecimento ocorrido para sub-repticiamente manifestar o seu parecer no presente narracional, ou seja, a enunciação de seu parecer se dá tendo como fundamento o contexto total do que está sendo narrado e não o contado propriamente dito. Emite julgamento daquilo que ocorreu de forma a que haja um entrelaçamento entre o presente e o passado, pois, como veremos, há a transformação do âmago daquele que narra. Nosso narrador-personagem maneja o seu saber de acordo com os efeitos que deseja causar. Neste caso a dualidade de seu “eu” é representada pela sua dúvida 14 interior, por essa incerteza que será encontrada somente e quando o narrador estiver discorrendo sobre estados psicológicos. No trecho que segue, podemos corroborar que também utiliza esta voz em primeira pessoa para descrever e julgar: “_Nunca deixes de ser meu amigo... Olha que eu sou um pobre homem! (Tremiam-lhe as mãos; o olhar tinha perdido o brilho e ficara vago e baço. Depois de uma pausa concluiu com um sorriso amargo8): Sou um poeta...” (Ibid., p. 50) No trecho acima, tem-se uma descrição do estado emocional do Barão: o tremor das mãos, a reiteração da perda da vivacidade e da expressividade do olhar, a importância da interrupção da ação e o modo como finda a sua enunciação sentenciando como penoso o esboço de um sorriso, a insinuação da tentativa de camuflar um desprazer emocional. Ou ainda: “_És um simples... As mulheres de quem a gente não tem medo, não prestam para nada. (E acrescentou com melancolia)9: Faz de conta que estamos de acordo...” (Ibid., p. 82) Note-se que neste trecho há dois tipos de julgamentos: o primeiro refere-se ao “e acrescentou”, ou seja, para o narrador o enunciado que vem logo após não é absolutamente necessário para a compreensão do dito anteriormente e, portanto, assinala que isto pode ser considerado como um devaneio do personagem. Contudo, este adendo é feito de uma forma peculiar ao Barão, é feito de maneira lânguida, com uma tristeza indefinida, retratando conseqüentemente o aprofundamento do “eu” interior do Barão, caracterizando assim o segundo julgamento. A voz narrativa em primeira pessoa é uma técnica extensamente utilizada pelo nosso narrador-personagem, no entanto, não podemos esquecer que intercala este recurso com a técnica do discurso direto e o discurso indireto. 8 Grifos meus 9 Grifos meus 15 No discurso direto10 reproduz-se o registro integral da fala do personagem, da forma particular como o personagem a emite, sem ter a intervenção do narrador que se restringe apenas a introduzir a enunciação do personagem. Ou ainda, podemos ter o discurso direto sem qualquer interposição do narrador. No discurso indireto11 a voz do personagem é apresentada através da voz do narrador, ou seja, o narrador é a ponte entre o dito pelo personagem e a narrativa em si. Vejamos: “Disse-me que eu ficava sendo seu hóspede, e pôs termo às minhas evasivas declarando, num tom de gracejo seco, que não admitia resposta:” (Ibid., p. 15) No trecho acima constatamos um exemplo de discurso indireto, pois percebemos que o enunciado é do personagem Barão permeado pela voz narrativa, com todas as adequações gramaticais realizadas para essa concreção. Já, na sentença: “_Quem manda aqui sou eu!”(Id.) é a realização do discurso direto, com a voz e o tom do personagem impressos. Cumpre-se desta forma o já previsto anteriormente, o estilo direto é utilizado para reproduzir a tensão tal qual foi percebida no momento exato do acontecimento e o estilo indireto banha-se da parcialidade da voz do narrador. Saliente-se que o fato de afirmarmos que o discurso indireto está atravessado da parcialidade da voz do narrador não exime que o mesmo ocorra com o discurso direto. Qualquer que seja o recorte / técnica utilizada para a efetivação da narrativa é sempre determinada pelo ponto de vista do “eu” narrador e que pode ser mais ou menos visível dentro do texto narrado. Logo, neste conto, o processo narrativo empregado é perpassado pela parcialidade da ótica daquele que narra: o inspetor de escolas. Ainda, vale ressaltar que o enredo que nos é apresentado é basicamente um enredo psicológico, seu motor é a questão do encontro com o “eu” interior dos personagens, um encontro com os seus próprios fantasmas. 10 MALDONADO, Concepción. DISCURSO DIRECTO E INDIRECTO. Madrid: Taurus, 1991. 16 CAPÍTULO 3 - SIMBOLOGIA E SIGNIFICAÇÃO A condução da trama narrativa, o ambiente narracional, a utilização de signos metafóricos, o valor evocativo e mítico dos elementos que estão sendo representados gradativamente têm relevância notória no conto “O Barão”. É através dos jogos efetuados pelo narrador ao nos apresentar estes elementos que se produz o clima tensional que percorre a narração. Portanto, é por meio desse foco que prosseguiremos nossa análise contemplando o estudo da representatividade dos elementos simbólicos e metafóricos que seguem: • o ritual dionisíaco que nos propõe o vinho e o fogo como elementos transformadores e capazes de orientar os personagens em direção aos percursos do inconsciente; • a questão edípica; o estilhaçar das taças como figuração da mistura entre a lucidez e a obsessão; • a representação da Tuna e a simbólica purificação. A apreciação dos elementos relacionados anteriormente se realizará sempre englobando a análise da representatividade do ambiente no qual os personagens se encontram, da simbologia da figura feminina e da importância que esta imagem alegórica possui para a construção do sentido geral do texto. 11 Id. 17 O Ritual Dionisíaco A figura de Dionísio12, recorrente na arte ocidental, representa o deus da natureza e da ebriedade. Sua representação tradicional vincula-o a todo um culto religioso e, durante os séculos XIX e XX alcançou também a possibilidade de representar a rebeldia artística contra a imposição racionalista. O culto ao deus Dionísio está intimamente ligado à origem da tragédia. Os rituais eram celebrados através de danças acompanhadas por música (especialmente a flauta), orgias, máscaras (símbolo da representação teatral) e banquetes13. Segundo a tradição, Dionísio morria a cada inverno e renascia na primavera. Portanto, a representação deste renascimento cíclico que vem em conjunção com a promessa de um novo florescer (a primavera) nos apresenta este deus que é ao mesmo tempo o símbolo da ambigüidade e da renovação. É necessário assinalar que a mitologia dionisíaca seria posteriormente incorporada ao Cristianismo, e claramente podemos destacar alguns pontos de contato entre as histórias difundidas sobre Dionísio e Cristo: ambos foram engendrados por uma mulher mortal fecundada por um Deus, renasceram dentre os mortos e transformaram a água em vinho. Apesar de ser amplamente assinalado como o responsável pela invenção do vinho, Dionísio leva consigo um significado mais complexo. Prova disso são os diversos nomes pelos quais é conhecido. Além, é claro, dos dois mais populares, Baco e Dionísio, também é chamado de Brômio (aquele que brama como as bestas selvagens), Lysios e Eleuthereus devido à sua ação libertadora, Liknites que o relaciona com o deus da fertilidade, Biformes por ter a capacidade de mostrar-se belo ou horroroso conforme a necessidade, Omadio por amar a carne crua, Faleno 12 CARDONA, Francesc. Las mutaciones de Dionisio. In: MITOLOGIA GRIEGA. Barcelona: Edicomunicación, 1996. p.16-46 13 Exatamente como descreve Eurípedes na sua obra “As Bacantes” 18 relacionado também a fertilidade, Floios como aquele que tem o espírito cortes, Sabacio (nome alternativo de Baco no panteão).14 Tem a capacidade de causar a loucura, a mania e esse estado delirante que se manifesta em seus adoradores por meio da dança frenética e da ingestão do vinho. Ressalte-se, ainda, que o elemento feminino está continuamente presente no ritual dionisíaco, a que vêm se agregar a música e o vinho, que se manifestam como elementos de relaxamento e purificação da alma. O ritual dionisíaco em “O Barão” tem início efetivamente no momento em que: “... e bebeu um pequeno golo, começando de súbito a falar com entusiasmo, como se o álcool lhe acordasse não sei que ocultas forças adormecidas.”. (Ibid., p. 25-26). Contudo a caracterização do ambiente e da identificação do personagem Barão com o deus Dionísio se dá desde o início da narrativa e é exatamente por meio do tom e do ponto de vista de nosso narrador, o inspetor de escolas, que fragmentariamente constituiremos não somente a figura do Barão / Dionísio, mas também reconstruiremos a tensão proposta pela descrição dos ambientes, culminando na busca incessante pelo “eu” interior e pelo clímax da purificação. Segue, por conseguinte, a composição da narrativa tendo como fio condutor a construção do ambiente / personagens em torno do mito do deus Dionísio. Após o parágrafo introdutório no qual o nosso narrador-personagem nos apresenta alguns aspectos da sua constituição psicológica, tem-se início (ainda que esta apresentação diga muito e que seus conceitos sejam fundamentais para toda a narrativa) a preparação do ambiente: “Foi no inverno...”. (Ibid., p. 10) É exatamente nos três meses de inverno que os cultos dionisíacos são levados a cabo. Logo, estamos na estação apropriada para que as forças maiores se apoderem das ações dos personagens e permitam que eles desfrutem das inebriantes sensações que ficam entre a lucidez e a ebriedade, porta de acesso para o inconsciente15. 14 Cardona, op.cit. 15 FREUD, Sigmund. A HISTÓRIA DO MOVIMENTO PSICOANALÍTICO. Volume XIV. Tradução de Themira de Oliveria Brito, Paulo Henriques Britto e Christiano Monteiro Oiticica.Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA. 19 Constrói-se, na continuidade, a percepção das dificuldades que enfrentará o narrador-personagem na busca e na transformação do seu “eu” interior ao lado do Barão que personifica a imagem mítica de Dionísio: “As pedras lavadas e soltas pelos caminhos, as barreiras desmoronadas, algumas árvores com os ramos torcidos e secos.” (Id.) Recordemos que a pedra16 é um símbolo do centro e da totalidade da psique humana, representando, portanto, a realização do “eu” como consciência de completude. Aqui, podemos interpretar a presença destas pedras como os obstáculos que os personagens enfrentarão no percurso em busca do “eu”. A primeira impressão que o inspetor de escolas tem da imagem do Barão é: “... do vão escuro surgiu um homem de enorme estatura, que teve de curvar-se para poder passar. De ombros largos, com um grande chapéu na cabeça e todo embrulhado, até os pés, num capote preto...” (Ibid., p.13-14) (...) “... Era uma figura que intimidava. Ainda novo, com pouco mais de quarenta anos, tinha um aspecto brutal, os gestos lentos, como se tudo parasse à sua volta durante o tempo que fosse preciso. O ar de dono de tudo. Avançando para mim, com passos vagarosos, fitava-me friamente. De repente mudou de expressão, como quem deixa cair uma máscara, e a rir perguntou-me donde eu vinha e quem era. Mas qual seria a máscara?”17 (Ibid., p-14) A descrição do Barão é assustadora tanto física como psicologicamente. A sua constituição exterior pode ser notada como algo meio intimidador, dono de um poder capaz de aniquilar e de provocar receio aos que estão à sua volta. Seus movimentos apesar de serem descritos como lentos causam apreensão. Ele “avança” em direção ao narrador-protagonista de uma forma agressiva, atemorizante. Seu aspecto psicológico começa a ser desenhado e a dualidade, característica marcante nesta narrativa, surge com a explícita menção à “máscara”. Como vimos 16 Os símbolos mencionados têm como fonte de consulta: BIEDERMANN, Hans. DICCIONARIO DE SÍMBOLOS. Barcelona: Paidós, 1996. 17 Grifos meus. 20 anteriormente, os cultos dionisíacos eram marcados pela representação da teatralidade através do uso das máscaras e o deus, de um modo geral, vestia-se com longos capotes de pele que recobriam o seu corpo: “... Surpreendi-lhe então um olhar duro, logo mudado numa expressão infantil e alegre...” (Ibid., p. 15) (...) “... compreendi que tinha caído nas mãos de um déspota, de uma pessoa habituada a vergar os outros aos seus caprichos.” (Ibid., p. 16) (...) “... e então ele teve um sorriso tímido e quase ingênuo, como uma criança.” (Id.) Nos aspectos ressaltados nos trechos acima, verificamos como a dualidade é representada constantemente e tem a função de encenar um embate emocional dentro do “eu” interior do personagem do qual se fala e dentro também do interior do narrador-personagem que se põe a falar sobre estes aspectos. A relação entre inspetor e Barão se apresenta, portanto, como uma relação de alteridade, onde a presença / atitude do outro os fazem pensar em si próprios. Nos excertos que seguem, constatamos que a descrição do ambiente colabora uma vez mais para a construção das tensões que se manifestarão uma e outra vez através das características psicológicas dos personagens. O ambiente pode ser visto como um pseudopersonagem, sendo, por diversas vezes, priorizado em detrimento de personagens secundários. Como se o ambiente de repente ganhasse um aspecto antropomórfico capaz de interagir com o narrador-personagem e influenciar o Barão, enquanto personagens figurantes não são percebidos com a mesma intensidade: “... Olhei em volta, mas a noite estava tão escura que não vi nada e senti um cão a cheirarme as pernas.” (Ibid., p. 20) “... vi que estávamos num velho solar, de certa imponência. Uma fachada de muitas janelas perdia-se na escuridão da noite.” (Ibid., p. 21) Ou ainda, o ambiente ligado à busca do “eu” interior: “Estes velhos palácios, quase abandonados,...” (Id.) (...) “São os meus ideais impossíveis. Um velho solar de paredes que tenham vivido muito mais do que eu...” (Id.) (...) “Ah! Isso, sim, é que me dava outras possibilidades de ser, de compreender e de ir pelo meu caminho.” (Ibid., p. 22) Ou quando se fala diretamente da constituição psicológica: “... o Barão também era um homem em que lutavam Deus e o Diabo.” (Ibid., p. 24). Há neste momento 21 uma relação de proximidade momentânea entre o inspetor de escolas e o “senhor medieval” que é posta em questão na seqüência: “Mas não nos podíamos entender. As taras e os desequilíbrios inferiores tinham-no vencido, submergindo o homem inteiro.” (Id.) (...) “Parecia outra pessoa que estava afundada dentro dele próprio...” (Id.) (...) “Era um senhor medieval, sobrevivendo á sua época, completamente inadaptado, como um animal de outro clima.” (Id.) (...) “... havia nele qualquer coisa de animal feroz, no olhar, nos gestos, até na fala. Porém numa fusão estranha, com não sei quê de cândido e de afável.” (Ibid., p; 24-25) Nestes trechos podemos identificar alguns aspectos importantes que marcam definitivamente o conto. No momento em que o narrador-personagem se vê através do Barão imediatamente aclara que ainda que em ambos os embates emocionais se fizessem presentes e constantes, havia naquele senhor medieval algo que o fazia experimentar mudanças ocasionadas pelo seu próprio “eu” , como uma certa incapacidade de se adaptar ao mundo em que vivia, tentando de maneira ineficaz manter-se distanciado desse novo mundo. É neste trecho ainda que se reitera de forma mais marcada a característica zoomórfica do Barão. Não sendo, contudo, a primeira vez na narrativa que o elemento “animal”, seja na caracterização do personagem, seja de forma literal, surja posto em evidência. Anteriormente, já temos a atenção voltada para o cavalo Melro, e depois os cães na noite escura. Pensando de uma forma generalizada, podemos afirmar que os “animais”18 simbolizam os poderes do inconsciente e estão ligados à impulsividade instintiva, já seja uma impulsividade agressiva ou libidinosa. O cavalo está associado ao tema do instinto sexual, e na mitologia está relacionado às deusas-mãe e ao fluxo da vida e da morte. O cachorro era considerado, na antiguidade, o guardião da vida eterna. Também estava relacionado com a morte e com a fidelidade no relacionamento. Portanto, aspectos estes que se vêem refletidos tanto no Barão como no narradorpersonagem. 18 BIDERMANN, op.cit 22 O vinho, que outrora já havia sido convocado a ser parte integrante da narrativa e, sobretudo a ser observado como elemento transformador, terá sucessivas aparições durante o descortinar dos encontros conflitivos em busca do “eu” mais íntimo dos personagens. O inspetor que em um princípio desejou o silêncio e afirmou que somente dessa quietude rotineira poderia advir “... uma calma interior...” (Ibid., p. 9) se sentirá deslocado e nos mostrará essa dualidade interior: “... pesava cada vez mais um silêncio que eu nunca tinha sentido: inquietante...” (Ibid., p. 26) e “... a verdadeira fome começava a torturar-me” (Ibid., p. 27). Esta “verdadeira fome” pode e é sentida ambiguamente, refere-se num primeiro momento à fome relacionada a uma necessidade de alimento, mas neste caso também entendida como a voracidade, a avidez em encontrar o seu próprio caminho. É por causa desta avassaladora fome que a personagem Idalina entra na narrativa. Não é a primeira figura feminina que está representada na narrativa, mas sem dúvida é a primeira figura feminina que nos proporciona uma quebra no tom narracional e nos proporciona a possibilidade de, por meio de sua ação / passividade, visualizar as mudanças que se processam no interior do “eu” dos personagens Barão e inspetor. Note-se, de imediato, que Idalina é a única personagem que é caracterizada pelo nome. Sua entrada nesta parte da narrativa tem dupla função. Primeiramente esta criada foi chamada para que preparasse aquilo que saciará a fome (alimentícia) do inspetor, e mais tarde, se verá que esse saciar terá projeções libidinosas, ainda que sejam apenas projeções. Em um segundo plano, não menos importante, a figura de Idalina nos é mostrada como: “Uma mulher alta, bem feita, de quarenta anos, com um vago ar desdenhoso e importante.” (Ibid., p. 30) Ou seja, idade similar ao Barão e de características psicológicas de mesma tendência. De acordo com o nosso narrador-personagem temos que: “Percebia-se facilmente que andava ali como dona da casa, oscilando entre baronesa e serva. Saiu num passo elástico, deixando ficar atrás dela um momento de silêncio.” (Ibid., p. 31). Nota-se, portanto, que em Idalina também havia embates interiores e, que, é a sua representação capaz de provocar mudanças nos estados de espíritos dos que com ela interagem. 23 É na seqüência que evidenciamos a tensão provocada pela sua presença, muito mais do que pela sua ausência: “O Barão, contra o seu costume, bebeu vários golos, com pequenos intervalos, sem dizer nada. Não compreendi porque é que aquela mulher, uma simples criada, tinha deixado ali aquele silêncio difícil.” (Id.) (...) “... naquele momento esmagava-o um desalento repentino, não tinha força de vontade, ficara abatido e mole como um leão ferido de morte.” (Ibid., p. 33) E, ainda: “– Esta mulher faz-me lembrar certas coisas” (Id.) (...) “Até que serenou e começou a falar de outra mulher, uma mulher por quem tinha tido uma paixão, e a quem se referia chamando-lhe apenas ‘Ela’ ”. (Ibid., p. 35) Constatamos que a presença de Idalina, ainda que rápida, foi o suficiente para afundar o Barão na divagação em busca dos seus próprios fantasmas. É através dela que se evidencia a questão edipiana e ocorre a representação alegórica do estilhaçar de Dionísio. E, principalmente, é motivado pelas recordações que Idalina lhe causa, que Ela, a Bela-Adormecida, será mencionada pela primeira vez e se transformará em um dos fios condutores deste conto. A busca interior o fará relembrar dos momentos em que as “suas mulheres” eram vendidas ou trocadas com o seu pai. Como se essa lembrança o fizesse sentir um mal-estar, o Barão assume uma possível mudança comportamental: “Mas vou... vou regenerar-me...”. ( Ibid., p. 34) Na seqüência desta clara manifestação das disputas que se processam no interior do Barão, o nosso narrador-personagem está atento para os nuances do protagonista, e registra, permeando as atitudes do personagem através do seu ponto de vista, as mudanças que ocorrem no “eu” interior do Barão e são manifestadas por meio de nuances ou tons distintos. Essas nuances também são representadas através do tom narrativo e não é sem razão que produz-se aqui uma quebra narracional, vejamos: “Fez uma pausa e, como se acordasse de repente, olhou para mim, endireitou-se na cadeira, bebeu um golo de vinho e bateu com o copo com tal força sobre a mesa que o fez em estilhas. Então continuou noutro tom de voz completamente diferente, firme, lúcido.” (Id.) Através deste parágrafo podemos verificar a intencionalidade do narrador, quando sutilmente faz esta quebra no tom narracional, reduzindo o ímpeto das 24 emoções que são postas em cena e ao mesmo tempo permitindo que o estilhaçar da taça represente não somente a impulsividade dionisíaca como também a mudança comportamental do personagem. É, na continuidade dessa introspecção, que o Barão fará com que “Ela” se faça presente pela primeira vez. Vale recordar que a mudança de tom narracional, como se houvesse simplesmente diminuído a intensidade da narrativa, ao mesmo tempo mantém a força daquilo que é dito. O transbordar das emoções do Barão referidas à sua relação com o pai e à sua relação com a “Única” faz-se sentir por meio do impacto causado pela presença de Idalina. O Barão segue a buscar em suas recordações os feitos dos quais se envergonha e se vangloria ao mesmo tempo e mais uma vez vem a tona a disputa entre pai e filho pela posse de uma “mulher”. Uma espécie de louvor é entoado ao vinho e vê-se a si mesmo como um animal “Sou um animal, uma pura besta.” (Ibid., p. 38). Explicitamente refere-se à característica dionisíaca, o bramar das bestas, a animalização. Após celebrar o vinho e identificar-se com o lado selvagem dos animais, o Barão informa ao seu hóspede que vai ouvir a Tuna. Para que isto ocorra, chama-se novamente a criada e outra vez mais a tensão é evidenciada: E sentou-se na minha frente, de costas para a criada, como se ali se refugiasse do seu olhar duro. Pegando no copo, ergueu-o num gesto brusco. Receei que agredisse aquela arrogante mulher, que a esmagasse com uma cadeira na cabeça. Mas não. Dominava-se mais do que parecia por vezes. Contudo, era preciso coragem, ou outra qualquer força qualquer, para afrontar assim as violentas iras do fidalgo. Havia um mistério entre ambos, era evidente. (Ibid., p. 41-42) Idalina, ainda que seja a criada, é a figura feminina que marca o embate psicológico do Barão (e posteriormente marcará também o do inspetor de escolas). Conseqüentemente, é por meio de sua presença, de seus atos, de sua caracterização psicológica e inclusive pela sua ausência que visualizamos notoriamente o processo transformador pelo qual passa o nosso protagonista. O Barão não a confronta diretamente e dela se refugia, como que uma força emanasse de Idalina fazendo-o recuar, como a um animal ferido. Ao mesmo tempo, a presença de Idalina vem 25 marcada sempre com um tom de agressividade. A agressividade é representante do lado obscuro da personalidade, do instinto e da impulsividade. Continua a narração afirmando: “Dominava-se...” e “Havia um mistério entre ambos...”. Esta dominação refere-se uma vez mais à dualidade psicológica que se dá no interior do personagem, ou seja, na dualidade psicológica. Contudo o fato de que o narrador afirme que entre o Barão e Idalina há algo maior que os une, como uma força superior, esse mistério que não é possível desvendá-lo, que não é a relação de serva nem de baronesa, que faz com que o Barão tente redimir-se de seus atos e que lhe tema e que lhe afronte, é esse mistério que intensifica ainda mais o clima dionisíaco. A ingestão do vinho começa então a provocar a sensação de bem-estar em nosso narrador: “Eu devia estar já convencido de que aquelas coisas de tão divino perfume não faziam mal; que, pelo contrário, era absorver néctares do Paraíso.” (Ibid., p. 43-44) Nesta afirmação peculiar podemos verificar como o efeito do vinho já começava a transformar o caminho pela busca do “eu” do narrador-personagem. As palavras que utiliza para se referir ao vinho são simplesmente poéticas, é mais do que uma simples referência, é uma reverência: divino – aquilo que vem ou pertence a Deus, sobrenatural, sublime, encantador; néctares – a bebida dos deuses; Paraíso – o lugar dos deuses. É desta forma que o inspetor se sente: desfrutando da bebida sagrada tendo como companhia a personificação de Dionísio em meio de um ambiente que outrora já havia sido descrito como: “... um sonho de conforto, de intimidade e de bem-estar: de estabilidade na vida.”. (Ibid., p. 21) Mais do que estabilidade na vida, significa a estabilidade emocional, a busca pelo caminho da descoberta do “eu” interior, pela sua purificação. Entre constantes golos de vinho novamente temos a referência às mulheres e neste momento o Barão aponta mais uma das características que nos fazem identificálo com Dionísio: “Sabe bem com a carne... Eu sou carnívoro...” (Ibid., p. 44) (vale lembrar aqui do epíteto Omadio, também dado a Dionísio). Lembremos que anteriormente o narrador-personagem nos havia dito que o fato de o Barão beber constantemente não significava que estava embriagado, mas sim que estava sob pressão, como que alimentando-se continuamente dessas forças que outrora já foram denominadas de forças superiores ou ocultas. No entanto, é entre o momento 26 em que o Barão ordena a vinda da Tuna a Idalina que o inspetor de escolas, através da sua narrativa, retarda as informações e inclui a tensão provocada pela presença/ausência de Idalina, pelas recordações do anfitrião, e inclusive afirmará pela primeira vez que: “Já estávamos ambos embriagados.” (Ibid., p. 45). Será dessa forma, embriagados, que farão um brinde à Ela, a Única. Neste brinde ocorrerá parte do ritual dionisíaco19 que pode ser identificado pelos aspectos que seguem: ruptura do gargalo da garrafa que faz com que jorre por ela a espuma branca - a espuma que simboliza a purificação; o gesto de erguer a taça que transborda – o transbordar simboliza os embates do “eu” interior; a quebra das taças – que representa o estilhaçar de Dionísio e simboliza também a mudança / dualidade no interior dos personagens, vejamos: “Pareceu-me outro homem. Era, na verdade, outro homem, aquele que estava ali agora diante de mim. Não o tinha compreendido, não o tinha visto ainda.”. (Ibid., p. 47) Provocados por esse clima dionisíaco, serão envolvidos por uma nebulosidade, por um ambiente tenso e impreciso, pela possível confusão entre fantasia e realidade. Segue: “Não sei bem por onde andamos e não sei mesmo o que fizemos naquela divagação melancólica.” (Id.) (...) “… que me lembram como um sonho fantástico.” (Ibid., p. 48). Ou ainda: “Quanto tempo isto durou, não sei.” (Id.) Raro seria não perceber esta confusão narracional que reflete sem dúvida alguma a confusão emocional que os personagens estão percorrendo. A narrativa nada mais é do que o espelho do interior dos personagens e se neste momento o narrador escolhe deixar claro esta imprecisão é porque também dentro dele e do Barão estavam sendo processadas as mudanças no “eu” de cada personagem. E dessa mesma forma que se sentiam, confusos e imprecisos, percorrendo caminhos obscuros, física e emocionalmente, à procura de compreender e de ir pelo seu próprio caminho. A ruptura no tom da narrativa novamente é provocada pela “fome” desta vez do Barão e pela presença / ausência de Idalina. A figura de Idalina é tão forte e tão motivadora nesta narrativa que não é necessário que haja uma manifestação verbal por parte da criada. Apenas sua presença seguida pelo seu afastamento da cena faz com 19 Digo parte do ritual porque posteriormente se dará o ritual dionisíaco por completo. 27 que tudo seja percebido diferente. Ela é o eixo de mudança ao mais puro estilo dionisíaco.20 Por exemplo: “Encheu um copo de vinho tinto e bebeu dos golos. Agarrou na campainha e tocou. Veio a criada com o seu ar altivo. (...) Gritou, mas quando ela saiu começou a rir, a rir, (...)”. (Id.) Logo após esta cena o narrador-personagem nos indica uma mudança comportamental e registra-a da seguinte forma: “Antes de se sentar veio ao pé de mim e poisou a mão no meu ombro, com melancolia, tratando-me por tu. “ (Ibid., p. 50) A forma de tratamento é ressaltada para que se possa perceber novamente a mudança que ocorre dentro do personagem do Barão. È uma relação agora de amizade e de confiança, uma relação de desabafo e de procura. Recordemos então que desde que o Barão ordenou que Idalina fosse chamar a Tuna até este momento não houve menção ao fato. Isto ocorre porque a técnica narrativa utilizada faz com que o leitor se envolva de uma forma tal que chegue a confundir-se entre o passado (que é exatamente o que está sendo narrado) com o presente do narrador-personagem, motivo pelo qual o narrador utiliza a desaceleração da narrativa provocando a tensão e repassando a sensação vivenciada pelo inspetor, como se não soubesse o que ocorre no instante seguinte, transferindo, portanto, a expectativa para a narração. É com a aparição e a apresentação da Tuna que se tem o ritual dionisíaco completo. Vejamos quais são as características que despontam e qual o significado de cada uma delas: “... neste momento ouvimos ao fundo do corredor, ainda longe, um barulho como o rolar de um trovão que se aproxima.”. (Ibid., p. 51) Nitidamente é uma caracterização do ambiente que os rodeia como algo que é inesperado (ainda que tenha sido chamada anteriormente, o nosso narrador-personagem não sabe neste momento 20 Note-se que não se exclui o plano narrativo em busca do apaziguamento do “eu” interior em relação à Bela Adormecida, apenas estou neste momento ressaltando a importância de Idalina para o aparecimento dos embates emocionas, das quebras narracionais e inclusive para o surgimento do embate vinculado à “Ela”; 28 que este barulho é proveniente da Tuna, inclusive não sabe o que é a Tuna21), como algo estrondoso e assustador. “Eu fiquei atônito e imóvel. (Id.) (...) “Não tive medo…” (Id.) (…) ”…(assustado não estava)….” (Id.). Percebe-se pela forma com que o inspetor descreve a situação que ocorria algo que lhe era desconhecido e intrigante. Reitera a força daquilo que presenciava: “Parecia-me um pesadelo aquele desfile de figuras tão estranhas, que formavam um friso diante de mim e continuavam a passar interminavelmente, fazendo uma vênia até o chão.” (Ibid., p.53) Há também a zoomorfismo dos integrantes da Tuna: “Os tamancos soltos nos pés faziam-nos caminhar como ursos. (...) Eram ursos.” (Ibid., p. 54). O urso representa a divindade mais antiga do mundo e representa o símbolo do inconsciente e de nossos instintos. A vestimenta dos integrantes da Tuna são representações simbólicas também de Dionísio: “A alguns mal se lhes via a cara, porque tinham a cabeça metida dentro de enormes capuzes, como frades.” (Id.) Em seguida temos a descrição de parte do ritual dionisíaco que pode ser também interpretado como uma face do ritual cristão: “A criada tinha posto sobre a mesa três grandes copos, de litro cada um, e umas três ou quatro broas. Pôs também duas facas. Depois encheu os três copos com vinho tinto, de um garrafão que estava debaixo da mesa e saiu. Tudo isto fora feito num silêncio absoluto como um ritual respeitado.” (Ibid., p. 55) Destaquemos que a Igreja utilizou no decorrer do tempo o pão e o vinho para a celebração do banquete do Senhor, sendo que o vinho dever ser natural e puro, sem misturas de substâncias estranhas. Para a religião cristã o pão é o símbolo básico da 21 Surgiu no ano de 1212, na Espanha, o primeiro "Studium Generale" que seria o antecessor das atuais Universidades. Em 1285, D. Diniz manda construir os Estudos Gerais de Lisboa que posteriormente foi transferido à Coimbra, surgindo assim primeira Universidade Portuguesa. Jovens de todo o país acediam aos Estudos Gerais e surgiu desta forma os Sopistas (dessa forma denominados na Espanha) que seriam os predecessores dos atuais Tunos. Os Sopistas eram estudantes pobres que utilizavam a música para percorrer as casas nobres, conventos, ruas e praças com o intuito de receber em troca um prato de sopa ou uma ajuda financeira para custear os estudos. Utilizavam longas capas negras para poderem se esconder dos policiais. No século XVI formaram-se as Tunas. Julga-se que receberam este nome, pois as atitudes dos integrantes eram semelhantes a um califa, boêmio e mulherengo, de Tunes. As Tunas em Portugal surgiram apenas em meados do século XX. 29 humanidade, é aquele que satisfaz a fome, fortalece e é o símbolo da vida. Inclusive por ter essa representação durante o primeiro século a Eucaristia foi denominada “fração de pão”. Já o vinho é a bebida por excelência. Humanamente o vinho fala de amizade e de comunhão com os demais, proporciona alegria e nos dá inspiração. No antigo testamento podemos verificar que quando se refere aos tempos messiânicos há a referência a festas de vinhos e manjares. O vinho é considerado um símbolo do sangue de Cristo e partilha com o rito dionisíaco a propriedade de reconciliação e comunhão. Por meio da voz do Barão é apresentada a Tuna. Note-se aqui a demonstração da arrogância do Barão refletida na ordem dada para a vinda da Tuna já madrugada adentro. A primeira toada que é pedida por ele é o Verde-Gaio22 que reflete o espírito do ritual marcado pela cantoria, pela alegria, pela isenção de responsabilidade, demonstrando o deleite e o prazer daquele momento. Logo após a partilha de pão e vinho, pede que se toque o Tum-Tum (ambas são toadas populares portuguesas). Enquanto é executada a toada, a dança desperta os instintos de nossos personagens. Vejamos quais são as impressões do inspetor e o que representam: “Eu estava maravilhado. Ainda hoje conservo nítida essa sensação de estranheza que me deu a sessão da Tuna.” (Ibid., p. 60) No trecho acima, observamos que o narrador-personagem afirma o seu assombro por todo esse espetáculo com um certo tom de admiração pelo vivenciado naquela noite. Percebemos também que há neste discurso a opinião “atual” do narrador (aquela que estará presente ainda no momento em que recorda aquela noite decisiva e narra tais acontecimentos). É uma lembrança que marcou definitivamente o inspetor. Seguem entoados pela música incessante, a dançar o Barão, a criada e o inspetor. Aqui se descreve uma cena erótica: “A criada caiu também no meio da casa e 22 Hei-de cantar hei-de rir [bis] / hei-de ser muito alegre [bis] / hei-de mandar a tristeza [bis] / para o demo que a leve [bis] / Verde gaio verde gaio verde guito [bis] / agora é que vai a meio / o rapaz do casaquito / agora é que vai a meio / o rapaz do casaquito / O meu amor quer que eu tenha [bis] / juizo capacidade [bis] / tenha ele que é mais velho [bis] / eu sou de menor idade [bis] / verde gaio ... / Sei um saco de cantigas [bis] / e mais uma saquetinha [bis] / quando as quero cantar [bis] / desato-lhe a baracinha [bis] O meu amor quer que eu tenha [bis] / juizo capacidade [bis] / tenha ele que é mais velho [bis] eu sou de menor idade [bis] / verde gaio... / Sei um saco de cantigas [bis] / e mais uma saquetinha [bis] / quando as quero cantar [bis] / /desato-lhe a baracinha [bis] 30 ficou com as saias para cima, mostrando as pernas até às coxas.” (Ibid., p. 60-61). O erotismo desta cena está marcado pela mistura de elementos que despertam os impulsos inconscientes. A cena é descrita com sobriedade, mas vem carregada de vinho, música, estranheza e lentidão narracional provocando o erotismo pedido pelo ritual proposto. Consideremos também que a dança é um símbolo ligado à sexualidade que leva ao êxtase erótico. É, sem dúvida, que na seqüência desta narrativa ocorrerá o clímax do conto. Analisaremos como isso ocorre: “... começou lentamente a despejar sobre a cabeça uma cascata de vinho branco que me fazia inveja” (Ibid., p. 61) (...) ”Mas vi-o crescer como um gigante e reparei que ele tinha na cara e no fato uns estranhos reflexos metálicos. Já não era o Barão, era o seu fantasma, um autômato de ferro e lata que me fazia calafrios de terror ”. (Ibid., p. 62) Nos excertos acima vemos claramente o processo de transformação do “eu” interior do Barão que por assimilação pode ser estendido ao inspetor. Há aqui a transformação física do Barão: gigante, reflexos metálicos; e também a transformação psicológica: era o seu fantasma. Logo adiante o Barão vai confirmar essa transformação e novamente teremos outro ponto de contato com o ritual cristão, notese: “-Estou purificado!...” (Ibide., p. 63) ou ainda “O baptismo purifica!...” (Id.) O batismo é o elo de purificação com o ritual cristão. O batismo na Igreja representa a purificação do ser humano e a sua transformação espiritual. A transformação psicológica se dá pela liberação dos pecados compreendidos inconscientemente. A imersão na água está relacionada simbolicamente à regressão ao útero e representa a regeneração daquele que é submetido ao ritual. Neste trecho o Barão reproduz, de acordo com o ritual dionisíaco, o batismo que o purifica e o transforma. Prova dessa transformação será o ímpeto de ir em busca da BelaAdormecida: “_Vem!... Vou ao castelo da Bela-Adormecida...” (Id.) A transformação também pode ser percebida no inspetor: “Do meu subconsciente começava a comandar-me uma voz de libertação e em passo de marcha cantei a Marselhesa”. (Ibid., p. 65) A Marselhesa foi entoada pela primeira vez em 30 de julho de 1792. Os revolucionários franceses marcham desde Marselha a Paris entoando o então canto de guerra. Três anos após o fato, a Marselhesa tornou-se o Hino Nacional 31 da França, uma canção revolucionária que expressa o orgulho nacional e a liberdade. Sua menção aqui reitera o próprio sentimento de libertação do “eu” interior vivido pelo inspetor. Ou ainda, podemos constatar essa transformação no trecho que segue: “... lembro-me que tentei, inutilmente, escalar um alto portão de ferro, ...” (Ibid., p. 65-66) (...) “Como não conseguia e caí duas vezes, resolvi ir procurar outra saída, pois estava naquela fase em que não se desiste de nada e em que os obstáculos são um desafio que nos redobra as forças.” (Ibid., p. 66) Na cena acima, o narrador reflete a busca incessante pelo “caminho” que deve seguir, por essa transformação que, como todas, encontra obstáculos, considerados elementos importantes para que a transformação se legitime. È entre os obstáculos e a sensação de estar perdido em meio à escuridão que Idalina entra em cena como elemento importante tanto na mudança de tom da narrativa como também no reconhecimento de mudanças interiores. Na seqüência vemos o embate produzido pela tensão sexual e que remonta a uma possível disputa entre Pai, Barão e mulheres, só que agora personalizada por Barão, inspetor e Idalina. Nesta comparação podemos associar a figura do pai com a figura atual do Barão; a figura do Barão (passado) com a figura do Inspetor e as mulheres com Idalina: “Falei-lhe como se estivesse apaixonado por ela, com as suas mãos outra vez agarradas nas minhas, ajoelhado na terra, implorando seu amor. Ela apenas se defendia por palavras. (...)” (Ibid., p. 68) “_Está doido... O Barão matava-o. Cale-se com isso! Venha. Vá... Está doido... O Barão matava-o... Vá...” (Id.) Na continuação a esta cena temos a transformação pelo fogo. O fogo é um símbolo da libido. O calor que o fogo irradia desperta a mesma sensação que acompanha o estado de excitação sexual e não é sem motivo que logo após a conversa entre o inspetor e Idalina o quarto em que repousava o inspetor pega fogo. A constatação dessa transformação e dessa renovação faz parte também do ritual e define-se em: “Na verdade tinha escapado de morrer queimado, graças ao barulho que ele fizera a bater na porta. Devia-lhe talvez a vida. / _Deves-me a vida!” (Ibid., p. 74) Constitui-se, conseqüentemente o renascimento de um novo homem. Após as duas transformações terem sido processadas o Barão irá em busca de flores para a 32 “Única”. No diálogo tecido entre o inspetor e o Barão, o primeiro questiona: “_São para a “Madona do Campo Santo”?” (Ibid., p. 79) em uma explícita intertextualidade com o conto Madona do Campo Santo, de Fialho D’Almeida. Conforme podemos verificar na análise realizada por José Maria Rodrigues Filho23, o conto Madona do Campo Santo, foi escrito e publicado no ano de 1882, onde encontramos o personagem de nome Artur. Artur se apaixona por uma mulher idealizada (Judite) que o observa desde a janela e que se alimenta de rosas brancas. Retomemos, ligeiramente, as características que são postas em paralelo através da análise citada. São elas: o amor cortês banhado pela idealização da mulher, que remonta aos tempos medievais de um amor distante, inalcançável; a explicita menção do título do conto de Fialho D’Almeida: “São para a <<Madona do Campo Santo>>?”, lembrando que não somente o cita, mas o destaca entre aspas; os recursos retóricos utilizados em ambos contos para se referirem à amada: frescura, ligeireza, graça, criancice, casta e virgindade (Madona do Campo Santo) e Ela, Única, Outra e Bela Adormecida (O Barão), circundando-as de lugares inatingíveis, soberanos e inexpugnáveis. Ainda, podemos ressaltar que em ambos textos têm a referência ao hino francês (A Marselhesa), posto em momentos estratégicos da narrativa e carregados de significação distinta. Na época do autor Fialho D’Almeida o hino era um símbolo para os republicanos e para a época de Branquinho da Fonseca o mesmo hino refletia os ideais da resistência à ditadura salazarista.24 Além da intertextualidade percebemos também que o campo é um local caracterizado por representar o oposto ao Inferno, podendo ser visto como um símbolo do Paraíso. O Barão colheu uma rosa para ir deixá-la na janela da sua Bela-Adormecida. A flor é a representação simbólica da virgindade e também da alma. A rosa especificamente representa a mulher amada e o amor puro. Enquanto o caminho era percorrido podemos evidenciar alguns caminhos trilhados pelo inconsciente: “Íamos 23 Para maiores explicações em relação a esta intertextualidade ver: FERREIRA, António Manuel. CENTENÁRIO DE BRANQUINHO DA FONSECA: PRESENÇA E OUTROS PERCURSOS. 1° edição. Universidade de Aveiro, 2005. p. 19-41. 24 Id. 33 calados, marchando ao lado um do outro, agora apressando o passo, sem eu estranhar, como se soubesse o que íamos fazer.” (Ibid., p. 82) A cena acima caracteriza a cumplicidade entre os dois personagens, como se a presença de um permitisse a aceitação do outro, numa comunhão de atitudes e sentimentos. O fato de que essa caminhada seja qualificada como uma “marcha” remete à Marselhesa invocando uma vez mais a libertação do fluxo de consciência em direção ao mais profundo “eu” interior. Mais tarde, após a separação de percursos dos dois personagens, o inspetor de escolas depois de muitas divagações sobre o ocorrido naquela noite escura, consegue voltar ao amanhecer para a casa do Barão. Quando chega à casa contam-lhe o ocorrido com o Barão. Contudo, o inspetor somente sabe que o Barão havia sofrido um desastre e que para compreender melhor o que sucedera deveria ter com Idalina. Vê-se novamente que Idalina é sim o meio pelo qual ocorrem as transformações no interior do Barão e por isso um elemento fundamental na narrativa. Sem ela não seria possível o surgimento de toda a trama e da realização dos percursos do inconsciente nos personagens. O Barão está ferido por um tiro e sua cabeça foi atingida ocasionando-lhe fratura de crânio. Vejamos o que representa essa cena simbolicamente. Temos aqui o Barão ferido por um tiro. O revólver ou o efeito proveniente de seu poder representa o aspecto sexual ou o conflito erótico pelo qual o personagem passa. Já o problema relatado com a sua cabeça é o símbolo que corresponde à separação entre a compreensão e o sofrimento que a alma padece. O inspetor de escolas, contrariamente à caracterização do seu “eu” interior no início da narrativa, encerra a narração de sua viagem à Serra do Barroso com um tom saudosista e confirmador das transformações manifestadas em busca do caminho do seu próprio “eu”: “Sim, Barão!... Hei de voltar, um dia. E havemos de tornar a perder-nos pelos caminhos sombrios do nosso sonho e da nossa loucura; e mais uma vez havemos de cantar às estrelas, e dar a vida para ires depor outro botão de rosa lá na alta janela da tua Bela-Adormecida!...” (Ibid., p. 103-104) 34 CAPÍTULO 4 - CONCLUSÃO No decorrer desta análise constatamos que é através do narrador-personagem e por causa deste narrador que se produz a narração da viagem à Serra do Barroso e os seus desdobramentos. Há visivelmente dois planos inter-relacionados que são: 1 - a busca pelo verdadeiro caminho do “eu” interior e a mudança do “eu” que ocorre nos personagens Barão e inspetor de escolas; 2 – os embates com a presença da figura feminina, que aparece como uma das motivações dessa vontade de mudança e da própria mudança em si. Não devemos esquecer que esses dois planos estão marcadamente perpassados pelo ritual dionisíaco e por todos os elementos simbólicos utilizados na realização do ritual, inclusive a identificação do Barão com Dionísio como foi estudado anteriormente. O ritual dionisíaco, ainda que não o tenhamos classificado como um dos planos narrativos, o que pode vir a soar estranho uma vez que vimos como esses elementos são importantes para a compreensão do que está sendo narrado, inclui aqui a identificação do leitor com este conto aceitando como verossímil uma história incrementada por elementos míticos e que beiram o fantástico. Em relação ao primeiro plano narrativo mencionado, podemos afirmar que, tanto o Barão como o narrador-personagem, sofrerão gradualmente a mudança no “eu” interior e ativamente procurarão os verdadeiros caminhos que devem percorrer. Vejamos como o inspetor expõe de forma direta ao leitor a sua angústia e a sua necessidade de encontrar o “verdadeiro” caminho: “Quantas pessoas, porém, tenho encontrado que são como eu, quase como eu: negadas a si próprias, paradas no encontro das forças contrárias, afinal sem a decisão de quem simplesmente caminha para algum sitio onde pensou chegar.” (Ibid., p. 23) 35 Ou ainda, podemos perceber a vontade de busca do personagem Barão nas palavras do inspetor: Era-lhe talvez indiferente que eu o ouvisse: contava para si, ouvia as suas próprias palavras e relembrava aqueles dias como um sonho realizado. Eu era só o pretexto, só para não falar sozinho, como um doido. Senti quanto aquilo era para ele um prazer vivo mas doloroso. A princípio falava com um ar desprendido e irônico, mas, pouco a pouco, foi tomado de uma emoção profunda, que já não podia disfarçar. Era uma espécie de saudade de si próprio. (Ibid., p. 27) É por meio das intervenções das mulheres, do vinho, da dança, da simbólica purificação e dos demais símbolos já expostos que se realiza a mudança no “eu” interior dos personagens. A seguir temos dois exemplos da mudança dos percursos da consciência: “No meu estado de meia-inconsciência pareceu-me ter compreendido o que ele dissera, ou antes, pareceu-me compreender o que ia fazer, como se, na verdade, me tivesse dito naquelas poucas palavras mais alguma coisa do que apenas aquilo que elas disseram. Mas de repente, como se abrisse os olhos, vi que não me tinha dito o que ia fazer, e isso pareceu-me injustificável. Agora reconheço que o não era.” (Ibid., p. 64) Neste trecho é importante ressaltar dois aspectos fundamentais que se concretizam na explícita afirmação da mudança de percepção / eu interior: “Agora reconheço que o não era.”. E é exatamente por marcar essa mudança temporalmente que temos novamente a referência ao passado e ao presente concomitantemente sem que haja quebra narracional. Ou ainda, a transformação simbólica do inspetor, o regresso do Inferno através do ressurgimento por entre o fogo que lhe havia ameaçado a vida: “Fomos dar outra vez à sala de jantar e o Barão quis festejar o meu regresso do Inferno com mais champanhe.” (Ibid., p. 74) Em relação à real mudança do Barão podemos confirmá-la com o fato de que após todos os percursos que foram desenhados neste conto, durante essa noite escura e 36 nebulosa, regada pelos efeitos do vinho, permeada pela fantasia e por elementos míticos, o personagem consegue ir depor a rosa no beiral da janela de sua BelaAdormecida. Ou seja, consegue finalizar aquilo que durante o processo de mudança lhe é despertado novamente, como a concretização dos ideais do passado. Para que isto ocorra, não somente é necessário que se faça todo o ritual, mas que também esteja totalmente purificado para poder receber a benção de tal ação. Contudo é uma ação que o faz sofrer emocionalmente, o que se explicita na condição física em que se encontra ao terminar a narrativa com “... um tiro num ombro e fratura de crânio.” (Ibid., p.103) , mas ainda lúcido o suficiente para que confirmasse o término do processo iniciado, pelo menos do processo interior que neste momento estava sendo narrado. Ainda pensado no processo de transformação é importante ressaltar o que segue: E o champanhe continuava a transbordar das taças e a erguer-se em brindes a tudo o que nos lembrou, a todos os nossos desejos, sonhos, ambições, a todas as nossas saudades, desilusões, a todos os nossos amigos, a tudo quanto nos ocorreu naquele momento de sinceridade. Esses brindes foram verdadeiras confissões, como o abrir das nossas almas. E, na verdade, a quem podemos falar com mais franqueza do que a um desconhecido que nunca mais veremos? (Ibid., p. 74-75) É importante perceber que no excerto acima se realiza a purificação simbólica, com o champanhe que transborda e é erguido em brinde, a enumeração ao que se brinda, que são processos que se desenvolvem no interior e no inconsciente do “eu” dos dois personagens. A possibilidade de contar as histórias do passado, como já afirmara: “O passado!... mas o que somos, senão o passado?” (Ibid., p. 28) e ver nessas histórias a purificação de suas almas. Portanto, podemos afirmar que o narrador-personagem está neste momento (no momento em que escreve o conto e este entra em contato com o leitor) fazendo a mesma coisa que nessa noite escura num velho solar medieval fizera anteriormente, 37 falando com franqueza a alguém desconhecido, que não poderá julgá-lo, livre de repressões, purificando-se e sentindo saudades de si mesmo. Em relação à figura feminina podemos concluir que são figuras extremamente importantes, em especial Idalina e a Bela-Adormecida, que permitem que o ritual dionisíaco e a transformação no interior do “eu” do Barão e do narrador-personagem se realizem. Ainda que as duas personagens femininas que mais relevância têm para o progresso da narrativa sejam as já citadas, sentimos que todas sem exceção causam repercussão dentro do conto. Vemos qual é a impressão do inspetor de escolas em relação à professora que veio recepcioná-lo quando da sua chegada a uma aldeia, cujo nome não soube revelar: Falou-se da sindicância e da vida na aldeia. Ela entristeceu. Mas reagiu no mesmo instante. Vi que estava ali uma mulher forte, otimista e infeliz. Compreendi o drama daquela pobre rapariga. Ela tinha razão, sob o seu ponto de vista pessoal tinha razão. Pensei em não inquirir mais nada e fazer um extenso relatório a justificar e defender a professora que, por manifesta superioridade de interesses intelectuais era uma pessoa inadaptável àquele meio. Entretanto veio um mau café em grandes chávenas de chá, que não consegui beber. Mas ela bebeu-o. E de repente vi que não era tão verdade como eu supunha a inadaptação ao meio. (Ibid., p. 12-13) Esta observação a respeito da professora diz muito do próprio “eu” do narradorpersonagem, e revela a sua própria inadaptação ao seu meio, à sua minuciosa observação do comportamento dos que o rodeiam e a percepção da dualidade tanto no interior da professora como a sua dualidade. A próxima menção às mulheres será feita por parte da voz do Barão em que diz: “Eu às vezes vendia as minhas amantes a meu pai... Ou trocava-as...” (Ibid., p. 33-34) É precisamente essa frase que faz com que o Barão expresse pela primeira vez o seu desejo de regeneração, de purificação, portanto, há a constatação da dualidade enfrentada. Idalina, como apontamos anteriormente, é a personagem feminina dionisíaca por excelência. Ela é a representante da sensualidade e da sexualidade durante a dança 38 da Tuna. É por meio de sua presença / ausência que se evidenciam as quebras das tensões narrativas. E é ela quem provoca o instinto sexual no narrador-personagem. É com a intenção de possuí-la que o inspetor irá realmente purificar-se e renascer após o episódio do fogo. É por ela, Idalina, que todas as outras mulheres (com exceção da professora) serão lembradas. È por meio de suas idas e vindas no salão que fará despertar os fantasmas do Barão e de seu hóspede, trazendo à tona uma gama de dualidades e de caminhos desconhecidos. Inclusive a atmosfera criada em torno à Bela-Adormecida, com todos os significados apontados no decorrer deste estudo, torna-se efetiva pelas lembranças provocadas por Idalina que se constitui numa espécie oscilante entre baronesa e criada, com a sua própria dualidade de comportamento. A Bela-Adormecida é sem dúvida a representação dos ideários medievais, da donzela que se percebe distante, em um lugar soberano e fora do alcance do poder do Barão. É a sua “presença” que, ao mesmo tempo, provoca o contraste com a figura de Idalina e proporciona o equilíbrio do triângulo apresentado Idalina – Barão – BelaAdormecida. Destacamos aqui a palavra presença, pois efetivamente não se pode sentir a figura da Bela-Adormecida como um personagem totalmente real e cabe, portanto, a dúvida de que seja um fruto da imaginação do Barão, como uma referência a um passado não resolvido que se eterniza no objeto de desejo, o amor ideal e idealizado. Recordemos ainda que o término da narrativa se dá com a confirmação do desejo do narrador-personagem em voltar ao solar medieval e mais uma vez perder-se em meio dos sonhos e das loucuras em busca de seus verdadeiros caminhos. É um final que nos permite pensar em um processo cíclico, não somente em relação aos sucessos ocorridos, mas principalmente se pensarmos em um processo de transformação do “eu” como algo continuo e oscilante. 39 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Lisboa : Editora Ulisséia, 1957 BIEDERMANN, Hans. Diccionario de símbolos. Barcelona: Paidós, 1996. BRAIT, Beth. A personagem. 2° ed. São Paulo : Ática, 1985. CARDONA, Francesc. Las mutaciones de Dionisio. In: MITOLOGIA GRIEGA. Barcelona: Edicomunicación, 1996. DICIONÁRIO DE Literatura. Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira e Literatura Galega, Estilística Literária, 2vols, 1971; 5vols, 1973; 7ª reimp., 1983. DIMAS, Antonio. Espaço e romance. 1° ed.São Paulo: Ática, 1985. 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