Presença Real de Cristo na Eucaristia O centro da Eucaristia é Cristo mesmo. Em sua pessoa e em sua presença se explica a atualidade de seu acontecimento pascal, da transformação das espécies e do envolvimento da comunidade. Isto transcende o significado do pão e do vinho e a comunidade reunida para a comensalidade. Para entender a presença de Cristo na Eucaristia é necessário distinguir o fato, a finalidade e o modo. O fato da presença trata do que cremos e do que celebramos, isto é, que Cristo está e se nos dá em comunhão neste sacramento. A finalidade explica para que ele se torna presente, e para quem. E o modo de explicar esta presença refere-se ao que acontece ao pão e ao vinho para que possamos crer que são corpo e sangue de Cristo dados a nós. Os fundamentos bíblico e patrístico tratam do fato e da finalidade: “Na Eucaristia, Cristo mesmo se faz nosso alimento, para comunicarmos sua própria vida, sua nova aliança, e para edificar sua comunidade com o seu próprio corpo”1. Sobre o modo de explicar o mistério da presença de Cristo na Eucaristia, não há registros entre os cristãos dos primeiros séculos. Foi a escolástica, a partir do século XII, e especialmente o Concílio de Trento, do século XVI, que tratou do tema da Transubstanciação. No Novo Testamento, os textos de Paulo e João afirmam que Cristo se torna realmente presente na Eucaristia para dar aos seus seguidores, no pão e no vinho, seu próprio corpo como alimento, e seu sangue como bebida. Essa entrega da própria pessoa, Cristo, é entendida como Koinonia, isto é, como comunhão e participação. É uma presença e doação que Paulo e João enfatizam em dois sentidos para a vida do cristão: no nível pessoal vincula-se estreitamente o comungante com o próprio Cristo (quem come da minha carne permanece em mim e eu nele); no nível comunitário, explicita-se uma unidade entre os membros que comem o mesmo pão (somos um pão e um corpo, pois participamos do mesmo pão). Na Idade Média enfatizou-se mais o culto do Cristo Eucarístico, mais do que a recepção da comunhão. No Concílio de Trento, a Igreja assume o termo Transubstanciação para descrever a admirável conversão que acontece ao pão e ao vinho eucarísticos. A função da Teologia é aprofundar a fé. Conhecer melhor o mistério permite melhor celebra-lo. Outrossim, uma melhor celebração possibilita uma melhor compreensão do mistério. Quem se torna presente? O Cristo Pascal, o ressurrecto, que transcende o ser humano, porque ressuscitou para uma nova vida. Ele é o primogênito da nova criação, que experimentou, pelo poder do Espírito Santo, a glória escatológica, e está pleno de divindade. Quem está presente e se dá como comida na Eucaristia é o Kyrios, que nos oferece a comunhão com sua vida divina. Não é uma coisa que se torna presente a nós, mas é alguém, uma pessoa viva, que se faz alimento e se doa para dar vida plena a outras pessoas. É uma pessoa glorificada, e por isso seu corpo pode se doar totalmente para uma comunhão plena. Isto significa que não conseguiremos entender a Eucaristia 1 ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Petrópolis: Vozes, 2002 p. 313. partindo de nós, dos elementos do pão e do vinho, ou da comunidade reunida, mas somente através de Cristo mesmo, que se dá a nós como ressuscitado. “Ele é o Kyrios, exaltado junto a Deus. Já está no Eschaton. Para ele não existe a limitação do tempo e do espaço, porque em sua passagem pascal à nova vida, inaugurou a vida última e definitiva, na qual vive para sempre o ‘hoje’, e está livre de todo condicionamento temporal e espacial. A ascenção não foi para ele afastamento ou ausência, nem um movimento contrário à encarnação: agora possui uma nova maneira, mais aberta e profunda de presença. A partir desta vida no espírito, o ressuscitado se aproxima, ‘aparece’ à comunidade que celebra a Eucaristia, dando-se a si mesmo como alimento de vida eterna”2. A presença eucarística de Cristo não pode ser entendida como presença corporal e local, pois é uma presença sacramental e universal, que tem sua raiz na sua vida gloriosa atual, e no seu hoje kairológico. Ele não está condicionado pelos limites do corpo mortal e temporal. Mas, contudo, a Eucaristia é corpo verdadeiro, não uma figura, uma imagem ou um sinal que faz memória de Cristo. É uma presença real e objetiva, que não depende de nossa subjetividade, não é fruto de nossa imaginação, ou apenas nossa fé. É importante o acolhermos na fé, mas não é ela que torna Cristo presente. A fé permite receber o Cristo que se dá. É uma presença substancial, onde o pão e o vinho não são apenas alimento e bebida, mas remetem à realidade total do corpo do Kyrios ressuscitado. O Cristo que se dá na Eucaristia não pode ser entendido como aquele que está no Eschaton, mas o que é o Eschaton. Ele se dá na totalidade do seu ser, que engloba encarnação, redenção e glorificação. Não é só o menino Jesus ou o crucificado que vem a nós, mas o Kyrios da glória, que se encarnou, padeceu, morreu e ressuscitou. É o Espírito Santo quem nos capacita, através da fé, para que possamos acolher a presença de Cristo na Eucaristia, numa dimensão mais real e profunda do que a local ou espacial. É esse espírito doador de vida que torna real a presença de Cristo e converte o pão e o vinho em corpo e sangue do Senhor, para que todos que participam desta mesa acolham a nova vida escatológica. É o mesmo espírito que capacita a acolhida da presença de Deus na Palavra proclamada. Outras Presenças do Cristo No pão e no vinho está a presença mais densa e privilegiada de Cristo na Eucaristia; contudo, outras presenças também devem ser recordadas. Cristo está presente na Palavra proclamada. Ele é a encarnação da Palavra (dabar) do Pai para a humanidade. “O próprio Cristo, por sua palavra, se acha presente no meio dos fiéis” 3. A Eucaristia, portanto, possui a dupla mesa: do Pão e da Palavra, em ambas se manifesta a única presença do ressuscitado. Cristo também está presente na comunidade reunida e em seu presidente, que faz as vezes de Cristo e visibiliza o Kyrios como cabeça da comunidade. A comunidade reunida é o primeiro sacramento, o lugar privilegiado da presença operante do Senhor. 2 3 ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Petrópolis: Vozes, 2002 p. 316. Introdução Geral ao Missal Romano, nº 33. Os diversos modos de manifestar a presença real e pessoal de Cristo estão totalmente relacionados entre si. A comunidade, a palavra, o pão e o vinho expressam visivelmente o Cristo presente, que reúne, fala e alimenta seu povo. O Papa Paulo VI, em 1965, publicou a Encíclica Mysterium Fidei, na qual elenca as diversas presenças do ressurrecto na história humana: a comunidade orante, a comunidade que exerce as obras de misericórdia, a igreja peregrina e, sobretudo, a comunidade que celebra a Eucaristia e os outros sacramentos. A presença estritamente eucarística se chama real, não por exclusão, como se as outras não fossem presenças reais, mas por antonomásia. A visão global da multiforme presença pessoal do Cristo em nossa vida e nos sacramentos não reduz o valor e a densidade de sua presença no pão e vinho consagrados. Esses dois elementos plenificam a doação de Cristo como alimento escatológico à sua comunidade. A presença de Cristo sempre é real e pessoal, ativa e salvadora. Dentro do conjunto de suas manifestações brilha com luz própria a presença eucarística. A presença de Cristo não pode ser concebida de uma maneira coisificada. Quando ele está presente no pão e no vinho, essa não é a finalidade última do sacramento. A finalidade é a comunidade, a salvação dos fiéis. É uma “presença para”, cuja finalidade é incorporar as pessoas na vida escatológica. Conforme a escolástica, a res da Eucaristia, isto é, seu efeito fundamental, é a comunhão de todos com Cristo e entre si. “Às vezes, demos mais importância à ‘presença’ do que à doação ou à refeição: é na comunhão que se realiza, de forma privilegiada, o encontro do Kyrios com seus fiéis. Paulo não fala tanto de presença, mas já diretamente de união, de comunhão, de Koinonia, que supõe a presença e a supera em sua intenção dinâmica inter-pessoal (1Cor 10, 16). João descreve os efeitos da Eucaristia na mesma direção: ‘quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele’, ‘quem me come viverá por mim como eu vivo pelo Pai’ (Jo 6, 56-57)”4. Cristo se identifica de uma forma misteriosa com o pão e o vinho que se convertem em seu corpo e seu sangue pela ação do Espírito Santo. Trata-se, portanto, de uma presença que pode ser denominada objetiva e ontológica. Esta presença, entretanto, não termina nos elementos materiais, ainda que sublinhem seu papel de representantes simbólicos de toda a criação. A presença tem uma intenção inter-pessoal. O pão e o vinho se convertem numa presença que expressa o meio que Jesus pensou para tornar possível nossa incorporação sacramental à sua vida de ressuscitado e a participação em sua nova aliança. Os primeiros séculos da fé cristã usam as expressões “conversão”, “mudança”, “transformação”, “santificação”, para explicar a presença do Cristo no pão e no vinho após a consagração. 4 ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Petrópolis: Vozes, 2002 p. 322.