Com asfalto, sem asfalto: olhares sobre o bairro São Pedro Cássio DAL’PONTE 1 Mari A G BALDISSERA 2 Suellen SANTIN 3 Ilka Margot GOLDSCHMIDT 4 Mariângela Alves Storniolo TORRESCASANA 5 Universidade Comunitária da Região de Chapecó - UNOCHAPECÓ, Chapecó/SC RESUMO Este artigo relata a experiência da realização de uma oficina de fotografia com quatro adolescentes integrantes do Projeto "Documentário e Comunidade: uma história que vai virar filme" e seus desdobramentos. O projeto de extensão universitária do curso de Jornalismo da Unochapecó promove oficinas e workshops de imagem, áudio e vídeo oportunizando aos participantes criarem seus próprios documentários. Havia uma carência quanto às técnicas de fotografia aplicadas ao cinema e a ideia de fazer uma oficina de fotografia surgiu para suprimi-la. A atividade foi realizada no dia 17 de abril de 2010, quando os participantes saíram a campo com a missão de exercitar as técnicas e o olhar fotográfico criativo aprendidos, retratando as impressões sobre a sua realidade, o seu cotidiano, o seu lugar. A experiência se mostrou tão positiva e as fotografias de uma qualidade técnica e estética tão interessantes que as imagens resultantes da prática da oficina ganharam uma exposição fotográfica intitulada [com asfalto, sem asfalto: olhares sobre o bairro São Pedro]. Palavras-chave: Fotografia; cotidiano; identidade; documentário. 1 Acadêmico do 2º semestre do Curso de Jornalismo da Unochapecó, bolsista do projeto de extensão “Documentário e Comunidade: uma história que vai virar filme”. [email protected] 2 Acadêmica do 4º semestre do Curso de Jornalismo da Unochapecó, fotógrafa, bolsista do projeto de extensão “Documentário e Comunidade: uma história que vai virar filme”. [email protected] 3 Acadêmica do 4º semestre do Curso de Jornalismo da Unochapecó, bolsista do projeto de extensão “Documentário e Comunidade: uma história que vai virar filme”. [email protected] 4 Mestre em Comunicação Social pela UMESP, professora titular do Curso de Jornalismo da Unochapecó, coordenadora do projeto de extensão “Documentário de Comunidade: uma história que vai virar filme”. [email protected] 5 Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ, coordenadora do curso de Jornalismo da Unochapecó. [email protected] 6 O caminho inverso: do vídeo à fotografia Se pensarmos na evolução tecnológica que hoje nos permite ir a uma sala de cinema em um domingo e assistir a um filme, percebemos que, sem a fotografia, o cinema jamais existiria. Antes da fotografia, havia apenas duas maneiras de capturar uma imagem: guardando-a na memória ou pagando pelos caros serviços de um pintor ou retratista. Apesar do princípio da câmera escura ser descrito e utilizado por pintores ainda no século XV, foi somente em 1826 que o francês Joseph Nicéphore Niépce conseguiu, pela primeira vez, registrar uma imagem sem pintá-la. O mecanismo da câmera fotográfica que conhecemos hoje e o da câmera escura do século XV são praticamente os mesmos. A dificuldade residia não em projetar uma imagem em uma superfície qualquer, mas em encontrar uma superfície capaz de fixá-la. A experiência bem sucedida de Niépce, batizada de “heliografia”, consistia numa câmera escura onde a imagem era projetada do outro lado do orifício em uma placa de estanho coberta por um composto fotossensível de betume. Foi a primeira fotografia de que se tem registro. A fotografia popularizou-se como produto acessível a partir de 1888, com a introdução das câmeras Kodak e do filme em rolos substituíveis criados por George Eastman. Foi com a invenção da película ou filme que o sonho da imagem em movimento pôde alçar os seus primeiros vôos. Da fotografia nasceu o cinema, já que era preciso o filme para fazer... filmes! Poucos anos depois, em 1895, os irmãos Lumière fazem a primeira sessão de cinema em Paris. O relato que apresentamos, entretanto, trata de uma experiência que fez exatamente o caminho contrário: tínhamos toda a estrutura para produzir vídeodocumentários, mas as pessoas que o fariam possuíam conhecimento das técnicas básicas de fotografia bastante limitado. A ideia da oficina de fotografia surgiu precisamente nesse ponto, para capacitar os envolvidos na produção dos documentários, e acabou tomando proporções surpreendentes. 7 Colocando o carro atrás dos bois O projeto “Documentário e Comunidade: uma história que vai virar filme” é um projeto de extensão universitária do curso de Jornalismo da Unochapecó. Existe desde 2007 e propõe a construção de espaços alternativos para a exibição e discussão de documentários produzidos no curso de jornalismo, bem como a produção de documentários que tratem de temáticas relativas à realidade dos participantes. A atividade é realizada no Bairro São Pedro, em Chapecó. Em um primeiro momento, foram realizadas mostras de documentários envolvendo a comunidade em todo o processo de organização. O objetivo foi possibilitar o acesso a esse tipo de produção e a troca de informações entre moradores, jornalistas, professores e alunos sobre o conteúdo dos vídeos e sobre o processo de produção. Numa segunda etapa do projeto os moradores, auxiliados pelos alunos de jornalismo, produziram seu próprio documentário. A intenção foi tornar os atores sujeitos de suas histórias, possibilitando que a comunidade do Bairro São Pedro assumisse a autoria da narrativa documental em áudio e vídeo. Para isso foram realizadas oficinas de câmera, roteiro, produção e edição para os moradores envolvidos. Em 2007 os moradores produziram o documentário “São Pedro diário”, que narra a história do bairro. Em 2008 o grupo optou por trabalhar outros tipos de mídia e o meio escolhido foi o rádio. O desafio foi produzir uma programação de rádio para apresentar ao vivo no bairro através da “Rádio Frequência Universitária, a rádio que você ouve, a rádio que você vê”. Esta atividade foi realizada em agosto de 2008 e intitulada pelos moradores “São Pedro em ação com orgulho e emoção”. Após um período de recesso no primeiro semestre, o projeto retomou as atividades em setembro de 2009 com a difícil missão de gravar dois documentários antes que o ano terminasse. Foram feitos dezenas de encontros em um curto espaço de tempo e em dezembro os curtas “Veias abertas do bairro São Pedro” e “Com as próprias mãos” foram exibidos para a comunidade. As atividades foram retomadas em março de 2010, após período de férias escolares. Na primeira reunião do ano com os participantes, foram feitas avaliações das 8 ações desenvolvidas ao longo de 2009, como forma de nortear os próximos passos do projeto. Dentre as dificuldades relatadas pelos moradores e também constatadas após a análise do material finalizado, foi observada uma carência quanto à fotografia dos vídeos. A ideia da oficina de fotografia, portanto, surgiu para atender às necessidades do projeto “Documentário e Comunidade: uma história que vai virar filme”. Percebeu-se uma carência dos participantes em relação à qualidade dos enquadramentos e criatividade das composições. Como solucionar essa carência de maneira efetiva? A resposta veio das imagens estáticas: fornecendo aos envolvidos noções de técnicas e elementos da fotografia. De uma forma simples, podemos dizer que um filme ou vídeo é composto por dezenas de fotografias (que no cinema são chamadas de quadros ou frames, em inglês) arranjadas em sequência rápida. Essa quantidade de "fotografias por segundo" varia de acordo com o tipo de câmera e a unidade utilizada para medir a cadência da câmera ou qualquer outro dispositivo audiovisual é chamada frames por segundo (fps). Significa o número de quadros que tal dispositivo registra, processa ou exibe por unidade de tempo. Compreendendo a ideia de que um vídeo são dezenas de imagens estáticas agrupadas, tornou-se mais fácil para os integrantes do projeto assimilarem o conceito de fotografia no cinema, que nada mais é do que o princípio da fotografia convencional aplicado à sétima arte. Tudo que deve ser observado por um fotógrafo, portanto, deve ser observado pelo diretor de fotografia de um filme: escolha da iluminação, do posicionamento e ângulo da câmera, dos tipos de lentes a serem utilizadas, do que se deseja inserir na imagem no momento em que se enquadra o visor da câmera. O diretor de fotografia trabalha em parceria com o diretor geral do filme. No projeto, como essas posições não foram estabelecidas, os envolvidos ocupavam todas as funções, vezes como cinegrafista, vezes como entrevistador, vezes como diretor. Pensando a fotografia: a oficina Durante as reuniões semanais, a ideia da oficina de fotografia amadureceu e tão logo a sequência de mostras de documentários agendadas nas escolas EBM Victor 9 Meirelles, EPC Leonel de Moura Brizola e EEB Professora Irene Stonoga terminou, a oficina ganhou uma data e um local: 17 de abril de 2010, um sábado, no salão comunitário do bairro. Pela manhã haveria conteúdo teórico e na parte da tarde uma prática em forma de passeio fotográfico. Todos os participantes do projeto foram convidados, mas os que prontamente demonstraram interesse foram os adolescentes. Ficou estabelecido que, se sobrassem vagas, os integrantes do projeto poderiam convidar amigos e pessoas da comunidade e o controle das inscrições ficou sob a responsabilidade de dois adolescentes do projeto. No dia da oficina, entretanto, estavam presentes apenas cinco adolescentes integrantes do projeto: Cristiano da Silva, Jackson Sales dos Santos, Valéria Sales dos Santos, Vanessa Sales dos Santos e Willian de Almeida Ricardo. O que a princípio poderia ser encarado de forma negativa (a baixa procura), tornou-se um diferencial que alavancou os resultados positivos constatados posteriormente: com um número pequeno de participantes, o conteúdo programado pôde ser mais detalhado e houve mais tempo para escalrecer individualmente as dúvidas. A oficina foi ministrada pela fotógrafa, acadêmica de Jornalismo e bolsista do projeto Mari Baldissera e auxiliaram os também acadêmicos e bolsistas Cassio Dal’Ponte e Suellen Santin. O conteúdo abordado foi dividido em quatro tópicos, assim distribuídos: 1. Um passeio pela história da fotografia 2. Anatomia da câmera 2.1 Princípios da câmera escura 2.2 Tipos de câmera 2.3 Noção de controle da exposição 2.4 Noção de tipos de objetivas 2.5 Ajustes automáticos da câmera 3. A arte da boa fotografia 3.1 Composição 3.2 Olhar fotográfico criativo 3.3 Cor ou P&B? 4. Fotografia contemporânea: quando a fotografia encontra a arte 10 Foram levadas câmeras antigas e modernas de vários formatos, livros e apresentadas dezenas de fotografias para exemplificar os conteúdos teóricos. O assunto 3 do programa foi o mais aprofundado, pois tratava justamente dos elementos pelos quais a oficina havia surgido. Figura 1: Apresentação do conteúdo teórico. Foto: Suellen Santin, 2010. Após a exposição teórica, os irmãos Jackson, Valéria e Vanessa convidaram os bolsistas para almoçar em sua casa. Este contato aproxima os acadêmicos da realidade dos envolvidos no projeto. Abrir a vida pessoal, permitindo laços além do estritamente “profissional”, demonstra também confiança e integração de ambas as partes e, existindo confiança, toda relação se torna mais transparente e o trabalho em equipe mais produtivo. Também foi importante pois propiciou aos pais dos adolescentes conheceram as pessoas que os “roubavam” por algumas horas, todas as semanas, nas reuniões do projeto. À tarde, o adolescente Jackson não pôde concluir a oficina, pois tinha catequese. Os demais saíram em uma caminhada pelos arredores com a missão de fotografar o cotidiano do bairro aplicando as técnicas vistas pela manhã. O passeio fotográfico durou quase quatro horas e os adolescentes procuraram retratar o dia a dia do bairro, levando em consideração as coisas boas e ruins (as “cenas bonitas e feias”) que o bairro lhes apresentava. Retornamos para a casa dos irmãos Jackson, Valéria e Vanessa, baixamos 11 e separamos as fotos por pastas, relativas a cada fotógrafo. A avaliação e análise do material produzido ficaram agendadas para uma data futura. Pós-produção: material rico, identidade e exposição No dia da oficina, a primeira atividade sugerida aos participantes, antes de iniciarmos o conteúdo teórico, foi solicitar que fossem até a rua e fotografassem três cenas bastante comuns: uma flor, um cachorro e uma paisagem. No encontro seguinte, estas primeiras fotos foram confrontadas com as produzidas após a apresentação do conteúdo teórico e as diferenças surpreenderam até mesmo os participantes. De fato, foi muito interessante observar os adolescentes no “antes” e “depois”. As primeiras fotografias eram todas na orientação horizontal, a maioria feita a partir do ângulo de visão do olho humano, com a câmera em frente ao rosto, em planos demasiadamente abertos ou totalmente fechados. As segundas já tinham ângulos e cortes mais ousados, temas e cenas criativas e a evolução nos enquadramentos e composições foi bastante perceptível. Os bolsistas e participantes analisaram e discutiram o trabalho de cada fotógrafo e os adolescentes se mostraram contentes com a melhoria técnica e estética das imagens. Retomamos as questões abordadas durante a oficina e discutimos também a experiência de se tornar um fotodocumentarista por um dia. Observando a satisfação dos adolescentes, sugerimos à coordenadora do projeto que o material produzido fosse transformado em exposição. A ideia foi bem recebida pela coordenadora e ainda mais pelos participantes. As reuniões seguintes foram destinadas à seleção das imagens, escolha do nome, formato e local da exposição. Este processo levou aproximadamente três semanas. Foram escolhidas 18 imagens com o propósito de retratar um dia comum no bairro: o movimento cotidiano, o vai e vem das pessoas, as crianças brincando, os carros passando, as virtudes e as carências do local. Ao escolher as imagens, cada adolescente, mesmo sem perceber, deixou impresso o seu olhar sobre o bairro São Pedro, formando um vínculo com o seu lugar de origem e constituindo uma identidade. Segundo Martins, 12 [...] a fotografia é um dos componentes do funcionamento desta sociedade intensamente visual e intensamente dependente da imagem. [...] É nessa perspectiva que se pode encontrar o elo entre a cotidianidade e a fotografia, a fotografia como representação social e memória do fragmentário, que é o modo próprio de ser da sociedade contemporânea. Mesmo que tenha tido uma origem difusa e funções inespecíficas, a fotografia vai se definindo, no contemporâneo, como suporte da necessidade de vínculos entre os momentos desencontrados do todo impossível, como documento de tensão entre ocultação e revelação, tão característica da cotidianidade. (MARTINS, 1998, p. 36) Ferreira (2008) destaca a fotografia como um ponto de convergência com a identidade. Caetano (apud Ferreira, 2008) expõe que “As identidades são produzidas e reguladas na cultura, criando significados através dos sistemas simbólicos de representação, que permitem uma aproximação a self dos indivíduos” (p. 36). A fotografia, a princípio, pode parecer uma mera reprodução mecânica de uma determinada realidade. No entanto, ela projeta um valor subjetivo do produtor, através da seleção “do que fotografar”, que vem carregado de valores estéticos e éticos. Nesse contexto, a atividade despretensiosa de ensinar técnicas de fotografia contribuiu positivamente para a formação da identidade cultural do grupo com o seu lugar. Colaborou também com a noção de auto-estima, já que os participantes sentiramse orgulhosos pelos resultados alcançados e pela perspectiva de ter suas fotos exibidas para a sociedade. Pensando na montagem da exposição, o grupo optou por ampliar as fotos no tamanho 15 x 21 cm e colocá-las em suporte de isopor, ao invés de fixá-las diretamente na parede, para dar sensação de profundidade. Após discussões, a mostra foi intitulada [com asfalto, sem asfalto: olhares sobre o bairro São Pedro]. Como o asfaltamento das ruas é uma das grandes carências do bairro sob o ponto de vista dos participantes, eles quiseram fazer a referência à ideia de que, apesar da falta [sem asfalto] do asfalto (cuja existência seria algo positivo) ou outro problema qualquer, há no bairro também muitos aspectos positivos [com asfalto], como a vizinhança amigável, as pessoas que trabalham duro pelo sustento da família, a receptividade da comunidade, os programas sociais que são referência no município. A edição das fotografias, o texto de apresentação e a curadoria ficaram sob responsabilidade das bolsistas Mari e Suellen. A princípio, a exposição seria itinerante, montada primeiramente na galeria externa da biblioteca da Unochapecó. Porém, como o 13 orçamento do material necessário foi baixo, optamos por montar a exposição simultaneamente na Unochapecó e nas escolas EBM Victor Meirelles e EEB Professora Irene Stonoga, que ficam no bairro São Pedro. A exposição ficou em cartaz de 23 de junho a 23 de julho de 2010. Figura 2: Cartaz da exposição [com asfalto, sem asfalto: olhares sobre o bairro São Pedro] 14 Figura 3: Exposição montada na Unochapecó. Foto: Mari Baldissera, 2010. Figura 4: Acadêmica apreciando a exposição. Foto: Mari Baldissera, 2010. Ao refletir sobre essa experiência é possível perceber que em projetos de Mídia Cidadã as ferramentas da comunicação se complementam na perspectiva de transformar os cidadãos em sujeitos de sua própria história. Relatar, escrever, filmar, fotografar o cotidiano se constituem em ações que permitem socializar os olhares, as percepções sobre a vida. A partir dessas vivências, as pessoas podem encontrar em si próprias a força, a energia e a confiança para levantar a cabeça e fazer valer sua opinião, sua voz e os seus direitos de cidadão. 15 REFERÊNCIAS FERREIRA, Pedro Campeão. Imagem da resistência: a construção social da identidade através da imagem do MST. Disponível em: <http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1212954799_ARQUIV O_Imagemdaresistencia.pdf>. Acesso em: 12 jul. 2010. MARTINS, José de Souza. Sociologia da fotografia e da imagem. São Paulo: Contexto, 2008. 16