newsletter APOGESD The American way «Não, não é mais uma revista com mulheres bonitas na capa. É muito mais do que isso! É uma edição muito especial da revista desportiva norte-americana Sports Illustrated». Assim define esta revista o seu director, Paulo Sousa Costa. A Sports Illustrated é uma publicação semanal bastante conceituada nos Estados Unidos da América, propriedade do grupo editorial Time, que nos é trazida agora até Portugal pela mão da Motorpress, empresa que publica entre nós vários títulos nas áreas da imprensa automóvel, de consumo, da vida e do desporto e lazer (SportLife, Motociclismo, Navegar e Bike Magazine — que totalizam uma tiragem de 75.000 exemplares, aos quais se juntam agora os 50.000 exemplares da Sports Illustrated). A revista define-se como «um clássico da imprensa norte-americana [...] na iminência de vir a sê-lo também em Portugal». O número em análise é o primeiro da edição portuguesa deste título norte-americano e trata-se do número especial dedicado aos bikinis, saído para as bancas em Julho deste ano. São 132 páginas a cores, num formato convencional, optimamente impressas em papel sedoso. A revista é peremptória ao afirmar que toda a mitologia em torno da Sports Illustrated «se deve, sem dúvida, ao seu sempre esperado Especial Biquinis», que se publica nos Estados Unidos da América há já 42 anos. O Especial Biquinis nasceu na mente de André Laguerre, que teve a ideia de ir «para um local maravilhoso» e colocar «uma mulher bonita na capa». Para tal, recusou as modelos estereotipadas da alta costura e «apostou em mulheres jovens e mais acessíveis, sobretudo vindas da Califórnia, mulheres de aspecto saudável e semblante familiar». A intenção da revista era nessa altura, tal como parece ser agora, a de mostrar corpos invejáveis sem os exibir gratuitamente, demonstrando assim que «ainda que a mente do homem seja, às vezes, volúvel e débil, o gosto dominante é o que submete a exibição à sugestão». Poderá até ser a intenção, mas não é de todo o que sucede. Este número especial é elegantemente composto em termos gráficos. Das suas 132 páginas, praticamente 93 são fotografias de modelos de página inteira (ou dupla página), seis páginas são compostas de fotografias mais pequenas, 13 são dedicadas a texto e 20 a publicidade. Fica claro que a opção editorial recai, antes de mais, sobre a fotografia. O que é pena é que as fotografias em si não tragam nada de novo. É um caso de muita parra e pouca uva. Walter Iooss Jr., decano da fotografia na revista, já ilustrou 233 capas da Sports Illustrated e há 34 anos que fotografa o Especial Biquinis (Iooss é definido pela revista como o «homem mais cool do mundo do desporto») e diz à boca cheia: «É tudo tão repetitivo. A minha reacção é do género, ok, outra mulher fabulosa semi-nua a passear numa praia. Qual é a novidade?» O gosto preponderante nesta revista é o norte-americano. A escolha dos biquinis, fatos-de-banho e adereços é consonante com o estilo novo-rico dos costureiros e marcas representadas. Há casos esporádicos de estilistas, cujas peças são não necessariamente as melhores mas sim as que mais se adequam ao estilo da publicação. Quanto às modelos, predomina um pouco o género pin -up 1, que os eua tão bem implantaram no imaginário colectivo. As imagens não são do tipo “calendário de camionista” — o indesmentível requinte técnico das fotografias, bem como o apuro fisionómico das modelos em geral evitam-no —, mas muitas poses roçam a vulgaridade. Ou, melhor dizendo, estão no limiar de 12.05 cultura visual Armando Vilas Boas www.avbdesign.com 1 O género pin-up é um clássico da iconografia norte-americana. 2 As poses estereotipadas são uma das características clássicas deste género. 3 Encontram-se muito poucas poses alternativas ao género “convidativo”. 8 12.05 4 A fusão da modelo no ambiente não é de todo uma preocupação da revista. 5 O estéreotipo de mulher robusta parece nunca passar de moda nesta área. 6 A vertente mais glamorosa de uma modalidade pouco fotogénica. 7 Uma fisionomia alternativa ao mainstream norte-americano. 9 newsletter APOGESD uma espécie de pudor provocante, o que inclui a tradicional gama de poses sedutoras, com feições sérias ou sorridentes, não esquecendo o clássico beijo para o leitor. 2 Em tanta pose, contam-se pelos dedos de uma mão as que destoam desta tendência. 3 Tratam-se na sua maioria de poses “in your face”, ou seja, excessivamente declarativas, como já não se usa na fotografia de moda há já umas décadas. As modelos chegam, por força da encenação, a ficar desgarradas dos contextos nos quais se encontram 4, apesar de os cenários escolhidos (e claramente enumerados no índice de três páginas da revista, bem como nas legendas das imagens), serem «paradisíacos». Raras vezes a modelo parece estar naturalmente integrada no cenário, nomeadamente porque está sujeita a iluminação artificial e não solar — a iluminação artificial destina-se a realçar e tornar bem visíveis todos os pormenores do corpo, das peças de vestuário e dos adereços. O conteúdo da revista é, todo ele, fortemente erotizado, ainda que o seja por vezes mais pelas palavras do que pelas imagens. De facto, ainda que a dose de texto seja quase irrelevante (a componente literária é tão pouco importante que em 132 páginas só 16 estão numeradas), o seu teor mais ou menos lascivo faz a apologia da dolce vita. As fotografias cultivam-no também, como é evidente, mas por vezes com um carácter menos erótico do que os textos prenunciam: logo na capa é-nos anunciada uma «sessão escaldante», «muito quente» e com «tudo à vista». A ideia da capa é atrair os leitores, mas isto é quase publicidade enganosa. O que de facto encontramos no interior são imagens desinteressantes, pouco imaginativas e recheadas de poses clássicas. O expoente do mau gosto é uma secção dedicada à pintura corporal, na qual as modelos são decoradas (sempre que os seios e a zona púbica estivessem visíveis foram pudicamente cobertos com tops e cuecas) com equipamentos de equipas desportivas norte-americanas. É o kytsch no seu máximo esplendor! Coerente com a sua origem, tudo nesta revista é feito para agradar aos destinatários. As modelos são um exemplo. Apesar da diversidade cromática (há-as de todas as cores de pele, com cabelos do louríssimo ao pretíssimo e com todas as variedades cromáticas de íris e de lábios), são quase todas raparigas enxutas, que já têm idade para votar mas ainda não têm cara de ter filhos, e que claramente não passam fome. Muitas delas possuem um ar familiar e simpático, predominando, ao gosto americano, uma fisionomia do tipo mulher fértil: ancas largas, constituição robusta e peitos bem definidos.5 É sabido que os seios são uma obsessão nos eua, tal como as “bundinhas” o são no Brasil, por isso frequentemente encontramos poses em que os seios estão comprimidos um contra o outro, de modo a ampliar o volume (e as vendas)! A multiculturalidade das modelos é, ainda assim, surpreendente, apesar de reflectir não só a mescla cultural que são os eua como também as tendências actuais ao nível da moda. O mesmo acontece com os fotógrafos, maquilhadores, cabeleireiros e até assistentes. Das 18 modelos usadas só duas praticam desporto: Marisa Miller (surf ) e Michelle Lombardo (futebol americano), mas a revista premeia-nos nas páginas finais com poses de três atletas medalhadas nos Jogos Olímpicos de Atenas, no ano passado: Jennie Finch (basebol), Amanda Beard (natação) e Lauren Jackson (basquetebol). As duas primeiras imiscuem-se com as modelos profissionais, por serem bonitas e fisicamente equilibradas, mas a basquetebolista, apesar de “só” ter 1,87m, parece mais desengonçada e trôpega.6 Raramente as atletas são boas modelos fotográficas, apesar de tal depender muito da cultura em que se inserem e da modalidade que praticam, a qual pode afectá-las grandemente a nível da modelação do corpo. Inegavelmente, nas acepções estéticas geralmente aceites, uma halterofilista dificilmente será uma modelo invejável. Por outro lado, nadadoras como Amanda Beard parecem prestar-se mais facilmente a esta tarefa. Nos desportos aquáticos há, de resto, exemplos de praticantes como Estella Warren que, tendo tido uma prestação profissional bem sucedida na natação sincronizada canadiana, passou entretanto para o mundo da fotografia publicitária e de moda, para além do cinema, com assinalável sucesso como modelo e actriz. Este Especial Biquinis da Sports Illustrated termina em beleza, com fotografias de Venus Williams, que parece ter prestações tão boas na fotografia como no ténis. É possuidora de um corpo muito equilibrado, bastante fibroso e torneado, sem no entanto ser excessivamente seco. É um corpo claramente treinado, mas expressivo e inegavelmente elegante. O rosto, apesar de não se enquadrar nos cânones de beleza deste tipo de publicação, é bastante expressivo.7 Estamos num mundo competitivo, onde qualquer pretexto serve para vender papel e onde todos anseiam por receitas, muitas vezes à custa seja do que for. Desde que o público goste, justifica-se até a importação de modelos culturais que nos são estranhos e não partilham dos nossos valores. Mas esta é uma conversa velha e retórica, a de se a saciedade do público deve ou não sobrepor-se a conceitos morais, estéticos ou mesmo éticos — no final, o cliente tem sempre razão... Mais proveitoso do que criticar os promotores de uma imprensa de baixa qualidade é, quanto a mim, tentar fomentar a educação do público receptor, para que saiba distinguir o trigo do joio e aprenda a desejar uma comunicação social de qualidade, baseada em padrões qualitativos contemporâneos. Foi essa a vontade deste artigo, porque, mais importante do que apontar o dedo a esta ou aquela publicação, parece-me ser tentar vislumbrar que caminho a nossa sociedade globalizada toma em termos de valores humanos, porque a comunicação social muitas vezes mais não é do que o espelho da nossa sociedade, ainda que não necessariamente na sua forma mas pelo menos nos seus vícios. Alicia Hall, vencedora do “Sports Illustrated 2005 Swimsuit Model Search” dentre 3.000 candidatas, foi descrita ao longo do concurso pelos juizes e outras candidatas como «snobe, arrogante, vaidosa». A agora modelo, «que não entra numa sala de aulas desde o oitavo ano», é peremptória em afirmar as suas intenções: «Tive uma vida muito difícil e estou determinada a ser bem sucedida». Na votação final, aberta ao público, os norte-americanos não deixaram de eleger esta declarada guerreira — the american way!