Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
SCRIPTA UNIANDRADE
NÚMERO 7 ANO 2009
ISSN 1679-5520
Publicação Anual da Pós-Graduação em Letras
UNIANDRADE
Reitor: Prof. José Campos de Andrade
Vice-Reitora: Prof. Maria Campos de Andrade
Pró-Reitora Financeira: Prof. Lázara Campos de Andrade
Pró-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão:
Prof. M.Sc. José Campos de Andrade Filho
Pró-Reitora de Planejamento: Prof. Alice Campos de Andrade Lima
Pró-Reitora de Graduação: Prof. M.Sc. Mari Elen Campos de Andrade
Pró-Reitor Administrativo: Prof. M.Sc. Anderson José Campos de Andrade
Editoras: Brunilda T. Reichmann e Anna Stegh Camati
CONSELHO EDITORIAL
Anna Stegh Camati, Brunilda T. Reichmann, Sigrid Renaux.,
Mail Marques de Azevedo, Cristiane Busato Smith
CONSELHO CONSULTIVO
Prof. Dr. Maria Sílvia Betti (USP), Prof. Dr. Anelise Corseuil (UFSC), Prof. Dr. Carlos
Dahglian (UNESP), Prof. Dr. Laura Izarra (USP), Prof. Dr. Clarissa Menezes Jordão
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Dr. Thaïs Flores Nogueira Diniz (UFMG), Prof. Dr. Beatriz Kopschitz Xavier (USP),
Prof. Dr. Graham Huggan (Leeds University), Prof. Dr. Solange Ribeiro de Oliveira
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Cunha Resende (UFMG), Prof. Dr. Célia Arns de Miranda (UFPR), Prof. Dr. Simone
Regina Dias (UNIVALI), Prof. Dr. Claus Clüver (Indiana University).
Projeto gráfico, capa e diagramação eletrônica: Brunilda T. Reichmann
Revisão: Anna S. Camati, Sigrid Renaux, Mail Marques de Azevedo,
Brunilda T. Reichmann
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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Soneto LIX
Tradução de Barbara Heliodora
Se nada é novo, e o que hoje existe
Sempre foi, porque falha a nossa mente
E, se esforçando por criar, insiste,
Parindo o mesmo filho novamente!
Que do passado houvesse uma mensagem,
Já com mais de quinhentas translações,
Mostrando em livro antigo a sua imagem
Quando a escrita mal tinha convenções!
Pr’eu ver o que então diria o mundo
Da maravilha dessa sua forma;
Se nós ou eles vamos mais ao fundo,
Ou se a revolução nada reforma.
Estou certo que os sábios do passado
A alvo bem pior tenham louvado.
(1564-1616)
Scripta Uniandrade / Brunilda T. Reichmann / Anna Stegh
Camati – n. 7 - . –
Curitiba: UNIANDRADE, 2009.
Publicação anual
ISSN 1679-5520
1. Lingüística, Letras e Artes – Periódicos
I. Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE
– Programa de Pós-Graduação em Letras
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SUMÁRIO
Apresentação
07
DOSSIÊ TEMÁTICO:
RELEITURAS CONTEMPORÂNEAS DE SHAKESPEARE
Shakespeare: lírico dramático, dramaturgo lírico
11
Solange Ribeiro de Oliveira
Relações transtextuais: reconceptualizações do conceito de blason
nos sonetos CXXX de Shakespeare e XX de Neruda
37
Sigrid Renaux
O discurso do poder matriarcal na comédia shakespeariana
51
Marlene Soares dos Santos
Apropriações/adaptações de Shakespeare:
o Hamlet intermidiático de Robert Lepage
73
Thaïs Flores Nogueira Diniz
As três faces da rainha: estudo comparativo do papel
de Gertrudes nas três versões de Hamlet
81
José Roberto O’Shea
Fabrício Mateus Coêlho
Hamlet e as performances femininas: das primeiras aventuras
no teatro ao filme de Asta Nielsen
95
Liana de Camargo Leão
Mail Marques de Azevedo
Um estudo sobre Hamlet: morte – causa e consequência
121
Verônica Daniel Kobs
O verso de Manuel Bandeira em sua tradução de Macbeth
133
Marcia A. P. Martins
Paulo Henriques Britto
Um olhar oriental sobre Shakespeare:
Trono manchado de sangue de Akira Kurosawa
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151
Célia Arns de Miranda
Suzana Tamae Inokuchi
5
“Cruel are the times”: an analysis of scene 2,
act 4 in three productions of Macbeth
181
Dolores Aronovich Aguero
Bloody heath and bloody chambers in Macbeth,
by Roman Polanski
195
Brunilda T. Reichmann
Mulheres sem pecado: discurso misógino e a tragédia
do feminino em Otelo, de William Shakespeare
205
Ana Claudia de Lemos Monteiro
Fernanda Teixeira de Medeiros
O entre-lugar de Shakespeare na televisão brasileira:
uma análise da minissérie Otelo de Oliveira
217
Cristiane Busato Smith
A dramaturgia da misturada:
A história do amor de Romeu e Julieta, de Ariano Suassuna
229
Paulo Roberto Pellissari
As contradições de Frei Lourenço nos filmes de Wise,
Zeffirelli e Luhrmann
247
Luciana Ribeiro Guerra
Anna Stegh Camati
Reescrevendo A tempestade: personagens shakespearianas
em Indigo, de Marina Warner
261
Maria Clara Versiani Galery
Shakespeare´s The Winter´s Tale adapted to a made-for-tv film
275
Aline de Mello Sanfelici
José Roberto O’Shea
Reflexões sobre as linguagens cênicas de Shakespeare:
o duplo travestimento em O mercador de Veneza
289
Anna Stegh Camati
Narrativa gráfica e metaficção: as releituras de Sonho de uma noite
de verão e A tempestade em Sandman, de Neil Gaiman
301
Enéias Farias Tavares
Resenha
Dossiês dos próximos números
Normas da revista
6
325
Luiz Roberto Zanotti
331
333
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Apresentação
A abertura, maleabilidade e plasticidade quase infinita dos textos de
Shakespeare proporcionam inúmeras possibilidades de reflexão crítica e renovação
criativa. Ao longo dos séculos, suas peças foram inúmeras vezes levadas à cena,
relidas, traduzidas, apropriadas, adaptadas e reinventadas em novos contextos
históricos, geográficos e culturais nas mais variadas mídias e linguagens, privilegiando
certos aspectos e minimizando outros. O dossiê temático da sétima edição da Revista
Scripta Uniandrade – Releituras contemporâneas de Shakespeare – mostra a permanente
atualidade da obra do dramaturo e poeta, inserido em um processo cultural em
constante mutação.
O ensaio de abertura deste volume examina os traços dramáticos da criação
lírica shakespeariana e o lirismo de sua produção dramática. Solange Ribeiro de Oliveira,
em “Shakespeare: lírico dramático, dramaturgo lírico”, analisa algumas canções e
passagens líricas nas peças, e mostra que o pendor narrativo do bardo se manifesta
também na série de 154 sonetos que apresentam temas semelhantes àqueles explorados
em alguns textos dramáticos como Antony and Cleopatra, Twelfth Night e The Merchant
of Venice. O soneto CXXX, por sua vez, é discutido em um artigo de caráter
comparativista por Sigrid Renaux que encontrou, no soneto XX de Neruda, elementos
semelhantes aos utilizados por Shakespeare. Em “Relações transtextuais:
reconceptualizações do conceito de blason nos sonetos CXXX de Shakespeare e XX de
Neruda”, a pesquisadora realiza uma análise formal e temática minuciosa para mostrar
como o conceito de blason aparece modificado no poema do poeta hispânico.
As abordagens desenvolvidas pela crítica feminista e materialista cultural
fundamentam o ensaio de Marlene Soares dos Santos, “O discurso do poder matriarcal
da comédia shakespeariana”, no qual a autora argumenta que muitas personagens
femininas assumem o papel de protagonistas nas comédias de Shakespeare por
dominarem o universo da comicidade, fazendo repercutir, em uma época de poder
patriarcal, o discurso do poder matriarcal no teatro.
O ensaio seguinte, de Thaïs F. N. Diniz, inaugura uma série de artigos que
versam sobre a peça e o personagem mais textualizados do cânone shakespeariano.
Em “Adaptações/apropriações de Shakespeare: o Hamlet intermidiático de Robert
Lepage”, a autora se debruça sobre os processos criativos do encenador canadense na
transcriação intitulada Elsinore, um espetáculo totalmente intermidiático que combina
a arte performática com as novas tecnologias. Na sequência, em “As três faces da
rainha: estudo comparativo do papel de Gertrudes nas três versões de Hamlet”, José
Roberto O’Shea e Fabrício Mateus Coelho objetivam iluminar a caracterização da
rainha Gertrudes em três versões de A tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca. Os
autores demonstram que a personagem é ambígua, sobretudo em relação ao seu
conhecimento prévio ou não do regicídio, no Q2 (Segundo In-Quarto) e no F (Folio),
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e que ela apresenta maior transparência, sendo dócil, carismática e solidária com o
filho, no Q1 (Primeiro In-Quarto).
Em “Hamlet e as performances femininas: das primeiras aventuras no teatro
ao filme de Asta Nielsen”, Liana de Camargo Leão e Mail Marques de Azevedo
examinam a construção do personagem-título por mulheres a partir de três perspectivas
críticas principais: a inclusão de traços femininos na caracterização do protagonista no
próprio texto; a tradição da representação do personagem por mulheres, a partir do
século XVIII; e o impacto da performance de duas grandes atrizes, Sarah Bernhardt e
Asta Nielsen no cinema mudo. O artigo “Um estudo sobre Hamlet: morte – causa e
consequência” investiga o conflito existencial vivido por Hamlet. Verônica Daniel
Kobs aborda o trágico no texto de Shakespeare a partir de raízes gregas e reflete sobre
o filme Hamlett: vingança e tragédia, de Michael Almereyda, com base nas considerações
teóricas de Claus Clüver, Júlio Plaza e Patrice Pavis.
Após uma breve apresentação das treze traduções brasileiras da peça mais
curta de Shakespeare, Marcia A. P. Martins e Paulo Henriques Britto discutem o
processo tradutório em “O verso de Manuel Bandeira em sua tradução de Macbeth”.
As estratégias formais empregadas pelo poeta brasileiro para recriar em português a
métrica da poesia dramática shakespeariana são mapeadas e problematizadas pelos
autores. No artigo seguinte, intitulado “Um olhar oriental sobre Shakespeare: Trono
manchado de sangue de Akira Kurosawa”, Célia Arns de Miranda e Suzana Tamae
Inokuchi analisam a passagem do texto shakespeariano Macbeth para a grande tela, a
partir de considerações teóricas propostas por Patrice Pavis, adaptadas e aplicadas para
o estudo da produção fílmica do cineasta japonês.
As teorias da adaptação fílmica, como abordagem teórica, são utilizadas em
mais dois artigos sobre transescrituras. Em “Cruel are the times: an analysis of scene
2, act 4 in three productions of Macbeth”, Dolores Aronovich Aguero argumenta que
a filmagem da cena mencionada no título do seu artigo varia de acordo com as
intenções de cada uma das produções analisadas, dentre elas Macbeth, o filme feito
para a TV em 1979, baseado na aclamada montagem de Trevor Nunn, com Judi
Dench e Ian McKellen, o filme de 1971, Macbeth, dirigido por Roman Polanski, e
Homens de respeito (1991), de William Reilly. O estudo de Brunilda T. Reichmann,
“Bloody heath and bloody chambers in Macbeth, by Roman Polanski”, mostra como
o cineasta traduz o rico subtexto de Shakespeare em imagens em seu filme. As três
interpolações, inseridas na cena de abertura, no episódio do assassinato do rei Duncan,
e no final do filme, intensificam a atmosfera lúgubre e ampliam o âmbito do
questionamento do bardo sobre a natureza e o destino humanos.
A tragédia Otelo foi revisitada por Cristiane Busato Smith. A partir do
enfoque dos estudos culturais, em “O entre-lugar de Shakespeare na televisão brasileira:
uma análise da minissérie Otelo de Oliveira”, a autora focaliza as inquietações da época
pós-ditadura inseridas na transposição da tragédia shakespeariana para o universo da
favela e do carnaval.
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O ensaio de Paulo Roberto Pellissari, “A dramaturgia da misturada: A
história do amor de Romeu e Julieta, de Ariano Suassuna”, examina a criação artística do
poeta e dramaturgo, mostrando como a narrativa do casal de amantes ganha nova
feição no processo de transculturação no nordeste brasileiro. O autor salienta que essa
recriação dramática assume importantes funções sociais no contexto da cultura-alvo,
dentre elas o estabelecimento de uma arte erudita brasileira a partir das raízes de
manifestações artísticas populares. Em “As contradições de Frei Lourenço nos filmes
de Wise, Zeffirelli e Luhrmann”, Luciana Ribeiro Guerra e Anna Stegh Camati lançam
luz sobre Frei Lourenço, uma personagem que aparece modificada em cada uma das
adaptações fílmicas discutidas devido às flutuações do Zeitgeist.
Privilegiando abordagens pós-coloniais e feministas, em “Reescrevendo A
tempestade: personagens shakespearianas em Indigo, de Marina Warner”, Maria Clara
Versiani Galery traça a trajetória de personagens inspirados no texto shakespeariano,
principalmente Miranda e Calibán. A reescritura de Warner oferece uma alternativa ao
contexto patriarcal da Tempestade, resgatando vozes silenciadas na peça de Shakespeare.
Aline de Mello Sanfelici e José Roberto O’Shea realizam um estudo sobre a
peça The Winter’s Tale adaptada para a mídia televisiva pela BBC, em “Shakespeare’s
The Winter’s Tale adapted to a made-for-tv-film”. Os autores objetivam demonstrar
como o texto se concretiza sonora e visualmente por meio de estratégias relacionadas
a gestos, expressão facial e corporal, vestuário, marcação e outros elementos ausentes
no texto shakespeariano.
A transformação da convenção dramática do travestimento em “arma
subversiva” por Shakespeare, para questionar as noções de gênero e as relações de
poder na sociedade elisabetana-jaimesca, é problematizada por Anna Stegh Camati
em “Reflexões sobre as linguagens cênicas de Shakespeare: o duplo travestimento em
O mercador de Veneza”. Nessa comédia, o uso criativo do duplo disfarce esclarece os
mecanismos de construção dos comportamentos sociais.
As narrativas gráficas ou histórias em quadrinhos têm revisitado a biografia
e a obra de Shakespeare. Em “Narrativa gráfica e metaficção: as releituras de Sonho de
uma noite de verão e A tempestade em Sandman, de Neil Gaiman, Enéias Farias Tavares
busca elucidar os processos de construtividade do autor inglês que se apropria de Shakespeare
e sua obra como elementos intertextuais e para refletir sobre a criação artística.
Na resenha intitulada “Shakespeare, novas veredas sob múltiplos olhares e
abordagens” que tece reflexões sobre o livro “Shakespeare sob múltiplos olhares”
(organizado pelas professoras Anna Stegh Camati e Célia Arns de Miranda), Luiz
Roberto Zanotti, no parágrafo introdutório, compara o conteúdo da coletânea com a
diversidade de rizomas em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. A metáfora do
sertão roseano também é válida para as releituras contemporâneas de Shakespeare,
publicadas neste volume, visto que abrem um leque de considerações críticas que
oferecem ao público leitor uma visão aprofundada sobre a poética de Shakespeare.
As editoras
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SHAKESPEARE:
LÍRICO DRAMÁTICO, DRAMATURGO LÍRICO
Solange Ribeiro de Oliveira
[email protected]
If music be the food of love, play on.
Shakespeare, Twelfth Night.
RESUMO: Estudo da criação lírica
shakespeariana, examinada sob a
perspectiva de seu entrelaçamento com a
obra dramática. Como representações do
lírico, analisam-se algumas canções e textos
encontrados nas peças e nos Sonetos,
sendo estes últimos vistos também como
veículos do entrelaçamento entre o lírico
e o dramático. Para a investigação dos
traços assim associados, o ensaio discute
a função de canções encontradas em
Hamlet. Por outro lado, aponta-se a
existência de uma narrativa e de
personagens implícitos nos 154 sonetos,
bem como sua relação com os temas do
racismo e do homoerotismo explorados
em algumas peças, especialmente Antony
and Cleopatra, Twelfth Night e The Merchant
of Venice. Essa relação temática é
considerada um dado adicional que ilustra
a impossibilidade de uma separação radical
entre os gêneros lírico e o dramático na
obra de Shakespeare.
ABSTRACT: The paper discusses
Shakespeare´s lyricism, examined from
the perspective of its connection with his
drama. As representatives of
Shakespearean lyricism, the essay
examines some songs and fragments
found in the plays and also in the 154
Sonnets, the latter being seen as a meeting
point for the lyrical and dramatic elements
involved. For the investigation of the
features thus interconnected, the text
discusses the function of some songs
found in Hamlet. On the other hand, the
paper underlines the existence of
characters and of a narrative implicit in
the Sonnets, as well as their relationship
with the themes of racism and
homoeroticism also explored in some
plays, especially Antony and Cleopatra,
Twelfth Night and The Merchant of Venice.
This thematic relationship is taken as
additional evidence of the impossibility
of a radical separation between the lyric
and the dramatic in Shakespeare´s works.
PALAVRAS-CHAVE: Shakespeare. Obra dramática. Sonetos e canções.
KEY WORDS: Shakespeare. Drama. Sonnets and songs.
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Reconhecendo o caráter protéico da lírica, a crítica literária
contemporânea tem proclamado a virtual impossibilidade de estabelecer uma
distinção precisa entre esse e outros gêneros literários1. A constatação é
amplamente confirmada pela obra shakespeariana. Considerando-a em seu
conjunto, forçosamente concluiremos pela inexistência de uma separação radical
entre criação lírica e produção dramática. A propósito dessa imbricação, começo
por lembrar que as canções shakespearianas, sua mais clara manifestação
lírica, não são composições autônomas. Existem no contexto das peças, como
partes integrantes delas, contribuindo para a construção da atmosfera ou para
a caracterização das personagens. Também em seus Sonetos (Sonnets, 1609), ao
lado da linguagem rebuscada e do cerebralismo barroco, irrompe um
extravasamento emotivo com inegáveis elementos líricos. Embora de forma
diversa da encontrada nas canções, a sequência shakespeariana imbrica-se
igualmente com a produção dramática. Pela criação de personagens e de uma
conflituosa narrativa implícita – a história de amor e traição, triangulada pelo
eu lírico, sua amada e seu amigo – bem como pelo entrelaçamento com dados
associados ao homoerotismo e ao racismo, a série de 154 sonetos pode ser
vista como uma recapitulação condensada de elementos encontrados em peças
anteriores. Na celebrada dark lady – a silenciosa ouvinte do eu lírico –
reverberam ecos da protagonista de Antônio e Cleópatra (Antony and Cleopatra,
1607), criada dois anos antes. Como a rainha egípcia, a dama simultaneamente
adorada e execrada pelo sonetista implícito deve parte de seu fascínio a uma
personalidade enigmática e imprevisível. Do mesmo modo, o tema da
homossexualidade, pertinente para a leitura dos sonetos, evoca personagens
criados anteriormente, como os dois Antônios, o de Noite de Reis (Twelfth Night,
1602) e o de Mercador de Veneza (The Merchant of Venice, 1596-1598). Na última
peça, tal qual o autor implícito dos sonetos, o melancólico amigo de Bassânio
perde para uma mulher o amor de um homem, pelo qual mostra-se pronto a
sacrificar a própria vida.
Resumindo: se, descontadas as especificidades de cada gênero, canções
e sonetos apontam para algumas peças, a recíproca é verdadeira: em certos
momentos a dramaturgia shakespeariana reveste-se de lirismo. Nas tragédias
e comédias saltam à vista textos que, excetuada sua forma estrita e sua
articulação com a trama dramática, poderiam ser lidos como fragmentos líricos,
por sua musicalidade e pela expressão de sentimentos, percepções e reflexões
de subjetividades dominadas por intensa emoção2. Essa interação entre o lírico
e o dramático, presente em toda a criação shakespeariana, contribui crucialmente
para a articulação de seu esplêndido conjunto.
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Para uma reflexão menos genérica, tomemos inicialmente as canções
incrustadas na produção dramática. A elas, no sentido estrito, o lirismo
shakespeariano remete em primeiro lugar. Conforme lembra a etimologia, a
poesia lírica vem do grego lyra, designação de poemas musicados, recitados
nos tempos clássicos ao som da lira. A associação de palavras e acompanhamento
musical caracterizou a poesia lírica de inúmeras literaturas, dos tempos mais
remotos até os inícios da cultura impressa na Renascença. No ocidente, atingiu
o apogeu em formas como a chanson e a pastorela, cantadas por trovadores
provençais. Na esteira dessa tradição, o equivalente à poesia lírica original é a
canção, sua herdeira natural, encontrada em todas as culturas até os tempos
modernos.
Inseridas nessa tradição, mas acompanhadas por instrumentos
elisabetanos e integradas com a trama dramática, as canções shakespearianas
são poemas cantados, que fundem elementos verbais e acompanhamento
musical. Nas peças, Shakespeare embutiu mais de cinquenta dessas
composições, além de centenas de rubricas solicitando a presença da música.
O recurso pode ser explicado de várias formas. Dada sua popularidade na
época, a arte musical constituía um atrativo adicional para os vários grupos
sociais presentes na heterogênea platéia elisabetana. Para os menos cultos, as
canções também facilitavam a compreensão de aspectos do enredo ou da
linguagem poética. Contribuíam ainda para sugerir a atmosfera adequada à
ação, além de complementar a caracterização das personagens.
Nem sempre a autoria das canções pode ser atribuída a Shakespeare.
Sabe-se que ele frequentemente adaptou e citou (não raro, com alterações) a
letra de baladas conhecidas e de poemas compostos por outros (como nas
canções de Ofélia em Hamlet). O poeta apropriou-se também de títulos e
fragmentos de numerosas baladas populares, todas conhecidas de seu público,
por tradição oral ou por partituras de baladas, impressas em livretos (chapbooks),
cantadas e comercializadas nas ruas, ou, no campo, por vendedores como o
Autolycus de The Winter´s Tale. São desse tipo duas baladas cantadas em Hamlet
bem como, mencionada na mesma peça, “Bonny Sweet Robin”, cuja letra não
sobreviveu. Também não se pode com certeza atribuir ao dramaturgo a letra
de “O mistress mine”, hoje uma das canções shakespearianas mais conhecidas,
nem afirmar que a melodia seja a que foi originalmente cantada. Entre as
canções mais conhecidas, “Full fathom Five” e Where the bee sucks”, de
Robert Johnson, foram provavelmente compostas para a encenação original
de The Tempest 3.
Não é fácil saber como soariam as canções. As primeiras edições das
peças incluem suas letras, mas não as partituras das melodias. Algumas canções
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acompanhadas da letra e da música sobrevivem em textos contemporâneos
de Shakespeare ou publicados pouco depois, mas as palavras raramente
coincidem perfeitamente com as encontradas nas peças. Em geral os
manuscritos originais só aludem vagamente a composições não documentadas.
Em certos casos, canções publicadas muito mais tarde, nos anos 1650 e 1660,
podem ser atribuídas a compositores atuantes meio século antes (como as
duas canções de Ariel em The Tempest). Texto e melodia de baladas e canções
populares raramente sobrevivem juntos e têm de ser acoplados com base em
outras fontes. As melodias são muitas vezes encontradas em partituras para
instrumentos de corda ou teclado de fins do século XVI ou início do século
XVII. Estudiosos nossos contemporâneos tentam recuperar o conjunto para
proporcionar a audição mais próxima possível da execução original. Esse
esforço é ilustrado, entre outros, pelo trabalho do pesquisador e músico Ross
W. Duffin, Shakespeare’s Songbook 4. Este cancioneiro contém 160 canções das
peças, muitas delas com textos musicados para encenações originais. Para
recuperar melodias e letras menos conhecidas, Duffin consultou manuscritos
e fólios, procurando, dentro do possível, as interpretações mais autênticas.5
Além de diversão e ornamento, as canções desempenham um papel
importante nas peças. Em The Tempest, por exemplo, as entoadas por Ariel
atuam como agentes catalisadores da ação, impulsionando e direcionando os
acontecimentos. Podem também substituir solilóquios, como pistas para o
acesso à consciência das personagens. Em Hamlet essa função evidencia-se
nos fragmentos cantados por Ofélia, a jovem inicialmente cortejada e depois
abandonada pelo príncipe. Desconhecemos as melodias, que indubitavelmente
integrariam o lirismo do conjunto. Isso não impede que, tendo sobrevivido as
letras, elas penetrem a subjetividade da personagem. As palavras refletem sua
angústia em face da dupla perda, a do pai e a do homem amado. Ao mesmo
tempo, oferecem elementos para esclarecer um dos pontos obscuros da trama,
o relacionamento de Ofélia com Hamlet. As canções situam-se no ato IV,
cena v, quando, exibindo sinais de loucura, a jovem surge cantando perante o
rei Cláudio e a rainha Gertrudes. As letras envolvem temas de morte e de
amor não correspondido, condizentes com o enredo. Mais especificamente,
uma das canções menciona um amante que, após seduzir a amada, recusa-se
a desposá-la. Teria sido essa a experiência de Ofélia, submetida à intensa
opressão da sociedade patriarcal? Teria ela desconsiderado os conselhos do
pai e do irmão, e tido com o príncipe uma intimidade não permitida pela
ideologia da época? Há quem responda afirmativamente, ou mesmo acredite
que, abandonada, Ofélia estivesse grávida. No repressivo contexto da época,
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agregado à dor pela perda do pai e ao sentimento de culpa por lhe ter
desobedecido, tanto bastaria para explicar o colapso nervoso da personagem.6
Nesse sentido, a letra das canções é mais do que sugestiva. Uma
delas menciona a dificuldade feminina de penetrar nos sentimentos de um
homem. Através da canção, Ofélia parece expressar sua dúvida a respeito do
amor de Hamlet. Teria algum dia sido realmente amada por ele? A personagem
canta:
How should I your true love know
From another one?
By his cockle hat and staff,
And his sandle shoon.
(Act IV Sc. V, 23-26)
Como distinguir de todos
O meu amante fiel?
Pelo bordão e a sandália;
Pela concha do chapéu.
A letra de outra canção menciona um encontro matinal de namorados no
dia de São Valentim, protetor dos amantes fiéis. Parece assim sugerir a fé
inicial de uma donzela no amor do namorado:
To-morrow is Saint Valentine’s Day,
All in the morning betime,
And I a maid at your window,
To be your Valentine.
Amanhã é São Valentino
E bem cedo, eu, donzela
Para ser tua Valentina
Estarei em tua janela.
Entretanto, o tema da jovem abandonada após a perda da virgindade logo
emerge da voz que canta:
Then up he rose, and donn’ed his clothes,
and dupp’d the chamber-door;
let in the maid, that out a maid
never departed more.
(Act IV Sc. V, 48-54)
E ele acorda e se veste
E abre o quarto para ela.
Se vê a donzela entrando
Não se vê sair donzela.
O tema retorna nos versos seguintes:
By Gis and by Saint Charity,
Alack, and fie for shame!
Young men will do’t, if they come to’t;
By cock, they are to blame.
Quoth she, before you tumbled me,
You promised me to wed.
So would I ha’ done, by yonder sun,
An thou hadst not come to my bed.
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Por Jesus e Santa Caridade
Vão pro diabo os pecados
Os rapazes fazem o que podem
Mas como eles são malhados!
Disse ela:”Antes de me atracar,
Você prometer casar”.
“Pelo sol, eu o tinha feito
Se não fosses ao meu leito”.
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Teria sido essa a história de Ofélia e Hamlet? Teria ele descumprido uma
promessa de casamento? A canção sugere que sim, indicando uma razão
plausível para a loucura da personagem. Outra razão seria a morte do pai, também
mencionada na canção de Ofélia:
They bore him barefaced on the bier;
Hey non nonny, nonny, hey nonny;
And in his grave rain’d many a tear:—
Fare you well, my dove!
O puseram no caixão com o
rosto descoberto.
olelê, olelê, olelê.
Caíram chuvas de lágrimas na
campa,
Vai em paz, meu pombinho!
(. . .)
And will he not come again?
And will he not come again?
No, no, he is dead:
Go to thy death-bed:
He never will come again.
His beard was as white as snow,
All flaxen was his poll:
He is gone, he is gone,
And we cast away moan:
God ha’ mercy on his soul!
And of all Christian souls, I pray God.
God be wi’ ye.
E ele não voltará mais?
E ele não voltará mais?
Não, não, ele está morto
Em leito de paz e conforto
Não voltará nunca mais.
Tinha a barba branca como a
neve
Tinha a cabeça tão leve
Foi embora, foi embora,
É inútil nosso pranto.
Que Deus o proteja, agora
E para todas as almas cristãs, eu
peço a Deus-7
Deus esteja convosco
Nas palavras de Laertes, aqui temos “ thoughts and remembrance
fitted”, “pensamentos e recordações se harmonizam”: reunidos, os fragmentos
cantados por Ofélia desvendam a história de sua loucura, dando aos outros
personagens e ao próprio público acesso a sua subjetividade. A propósito, a
revelação da subjetividade sempre foi associada à poesia lírica. Segundo a
persistente concepção romântica, o poema lírico dá voz a um eu solitário,
entregue à meditação ou à comunicação com um ouvinte não identificado. A
associação entre letra e melodia persiste mesmo quando, a partir de 1400,
poesia e música passam a distanciar-se cada vez mais. Na Inglaterra, surgem
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
formas predominantemente melódicas como o madrigal, e diferentes tipos de
cânone, entre as quais o glee, o catch e o round, que submetiam à música o
elemento verbal. Após a Renascença, malgrado os esforços de autores
relativamente recentes como Hopkins (1844- 1889), Swinburne (1837-1909)
e Yeats (1865- 1939), a lírica preservou apenas o elemento verbal, tornando
mero vestígio sua origem melódica. O rompimento do vínculo entre palavra
e música resultou numa nova forma dupla, a poesia lírica nossa conhecida: ela
combina as palavras de modo a tornar inseparáveis sua forma oral e escrita.
O que então chamamos de musicalidade reduz-se à combinação eufônica do
estrato sonoro, que, de qualquer forma, é inseparável da linguagem verbal8.
Na obra de Shakespeare, a expressão da subjetividade lírica conduz
inevitavelmente a seu ciclo de 154 Sonnets, a respeito dos quais não custa
lembrar alguns dados históricos. A série, publicada em 1609 pelo editor Thomas
Thorpe — talvez sem permissão do autor— congrega, em miniatura, um
traço muito típico de toda a obra de Shakespeare: responde a uma moda
contemporânea, mas, ao fazê-lo, remete a temas caros ao poeta, também
desenvolvidos nas peças, embora, como um todo, o estilo dos poemas aproximese mais dos primeiros textos dramáticos do que dos de sua maturidade. Como
algumas peças, vários sonetos abordam, além de questões étnicas, a problemática
de gênero, envolvida na subjetividade gay. A respeito, o pré- rafaelita Dante
Gabriel Rossetti sugeriu em 1882 uma alteração na forma de publicação dos
sonetos: o de número CXXVI deveria ser seguido das palavras “Fim da Primeira
Parte”. O CXXVII iniciaria a “Segunda Parte”, que terminaria no CLII,
restando para os dois últimos o subtítulo “Epílogo à Segunda Parte”. A divisão
proposta parece-me perfeita, justificada, do meu ponto de vista, também por
coincidir com o tratamento das questões racial e de gênero. Os sonetos I a
CXXVI ( a “Primeira Parte” de Rossetti) envolvem a temática homoerótica: a
paixão idealizada do autor implícito por um belo cavalheiro. Os da “Segunda
Parte” implicam a questão racial, pois detêm-se numa obsessão lasciva por
uma jovem morena, apresentada como “negra” em razão de características
físicas e morais. Nos dias atuais, a sonoridade melódica dos sonetos é atestada
pelas gravações de muitos deles, musicados9. Neste texto, contudo, pretendo
apenas focalizar aspectos temáticos que os relacionam com as peças.
Em 1609, quando surgiu em letra de forma o ciclo shakespeariano,
já declinara a moda de soneteering, representada pelas grandes sequências
anteriores, como Astrophel and Stella de Sir Philip Sidney (1580) e os Amoretti
de Edmund Spenser (1595). Ao embarcar, um tanto tardiamente, na onda
sonetista, Shakespeare talvez cortejasse a respeitabilidade literária, já que, para
seus contemporâneos, tal como acontece com as atuais novelas de televisão,
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criações dramáticas (mesmo a sua, no auge do gênio e da popularidade), não
eram consideradas literatura. Isso explica o fato de o dramaturgo, ao contrário
do que ocorreu com a produção dramática, ter-se empenhado na publicação
de seus poemas narrativos, Vênus e Adonis (Venus and Adonis, 1593) e O Estupro
de Lucrécia (The Rape of Lucrece, 1594).
Da perspectiva formal, pode-se dizer que Shakespeare também não
inovou, pois adotou o já tradicional soneto inglês, também intitulado
shakespeariano. Este diverge do modelo petrarquiano. Em vez de formar
dois quartetos e dois tercetos, os quatorze versos do soneto shakespeariano
(decassílabos iâmbicos) distribuem-se por três quartetos de rimas cruzadas,
arrematados por um dístico, sem intervalo entre as linhas. Do ponto de vista
temático, a voz lírica exprime sua subjetividade abordando conflitos amorosos
e reflexões sobre a brevidade da vida e da beleza, em oposição à perenidade da
arte.
Esgotada a edição de 1609, os sonetos voltaram a circular em 1640,
republicados por Ben Jonson. Esse outro poeta-dramaturgo, admirador e rival
do Bardo, sabia o que fazia. Os Sonetos, quase tanto quanto as peças, desafiam
o tempo. Apesar do maneirismo datado, propiciam ainda uma leitura instigante.
À sua óbvia beleza e musicalidade, acrescentam a atração de múltiplos enigmas.
A quem se dirigem os de número I a CXXVI? A um jovem nobre, patrono de
Shakespeare, Henry Wriothesley, terceiro conde de Southampton? A William
Herbert, terceiro conde de Pembroke, último protetor do poeta? E os poetas
rivais, mencionados nos sonetos LXXVIII a LXXXVI? Referem-se a
contemporâneos? Nesse caso, quem seriam?
Outras interrogações continuam sem resposta. Os dezessete poemas
iniciais – que estimulam o jovem a casar-se, para que sua beleza se perpetue
nos descendentes – representariam uma reação protestante contra o celibato
imposto aos padres católicos? Por outro lado, quem se esconderia sob a face
da mulher celebrada nos sonetos CXXVII a CXLII? Uma amante de carne e
osso, traiçoeira e imprevisível? Uma figura histórica, Lady Penelope Rich ou
Anne Hathaway, esposa do poeta? Mary Fitton, dama de honra de Elizabeth
I, ou Penelope Devereux, outra dama da rainha? Ou ainda, pelo contrário,
não passaria a amada misteriosa, apelidada pela crítica de dark lady, de mera
criação literária?
Por essa misteriosa dama, a subjetividade lírica manifesta uma paixão
com todos os vezos de verdadeira, em seu desencanto cruel. Pois, como
explicitam vários dos poemas, a decantada mulher morena, irresistível sem
ser bela, está longe de ser fiel, ou mesmo moralmente aceitável. Falsa e
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promíscua, inclui entre os amantes o rapaz amado pelo eu lírico, objeto dos
protestos e louvores contidos nos cento e vinte e seis sonetos iniciais. Arma-se
assim uma dupla traição, pela amada e pelo amigo. No soneto XLII, à guisa de
consolo, o eu lírico elabora um sofisma delicado, muito próprio da sofisticada
filigrana barroca: a traição dupla resultaria do próprio amor que amada e
amigo dedicariam a seu cantor: unindo-se, eles amariam um no outro a imagem
ali deixada pelo adorador de ambos. Essa triangulação amorosa associa-se à
hipótese da homossexualidade, ou bi-sexualidade, da persona poética, e, através
dela, do próprio autor empírico, o homem Shakespeare. Será dele a voz que
murmura sob o soneto CXLII? Arrisco uma tradução:
That thou hast her it is not all my grief,
And yet it may be said I loved her dearly;
That she hath thee is of my wailing chief,
A loss in love that touches me more nearly.
Loving offenders thus I will excuse ye:
Thou dost love her, because thou know’st I love her;
And for my sake even so doth she abuse me,
Suffering my friend for my sake to approve her.
If I lose thee, my loss is my love’s gain,
And losing her, my friend hath found that loss;
Both find each other, and I lose both twain,
And both for my sake lay on me this cross:
But here’s the joy; my friend and I are one;
Sweet flattery! then she loves but me alone.
Não dói só que tu tenhas minha amada
Mesmo amando eu a ela com ternura;
Dói mais ter ela a ti. A ti ligada,
Inflige ela a mim perda mais dura.
A dupla traição, entanto, aceito,
Pois sei que a amas por amá-la eu,
E ela a ti, por ter-te eu no peito;
Foi só por mim que a ti ela se deu.
Se te perco, ela te ganha a ti.
Se a perco, o ganho é todo teu.
Um tem ao outro, e eu os dois perdi.
Dupla cruz, que o duplo amor me deu.
Mas sendo o amado e eu uma só chama,
Doce consolo! É a mim que ela ama.
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Seleciono esse soneto como uma amostra do elemento dramático
latente na sequência. Além das habituais efusões amorosas, dos avanços, recuos,
súplicas, queixumes, louvores e censuras típicos do lirismo petrarquiano, os
sonetos, ao mesmo tempo que vão se tornando sintaticamente mais complexos,
deixam entrever, protagonizado pelos três personagens – o autor implícito, seu
amigo e sua amada – um enredo, uma história de amor e ódio, atração e repulsa,
pontuada de contradições. O eu lírico dilacera-se entre dois amores problemáticos:
a paixão homossexual pelo amigo, representado como súmula de dotes
incomparáveis, e o desejo mórbido, não menos poderoso, por uma mulher
nada admirável. Nem ao menos sendo bela, a dark lady arrasta o amante para
um rodamoinho de duvidosos prazeres. No conjunto, mesmo descartada a
hipótese da possível referência autobiográfica, os conflitos inscritos na sequência
traem o exercício de uma sensibilidade exacerbada, que confere profundidade
aos personagens do triângulo amoroso.
Nesse processo, coloca-se um conflito entre orientações sexuais
divergentes, debatidas em nossos dias como parte da problemática de gênero.
Não cessa aí a relevância dos sonetos para as temáticas atuais. O culto à dama
negra, a black mistress do eu lírico, também desencadeia uma discussão sobre o
problema racial, já presente na Inglaterra renascentista. Com essa dupla
temática, a da homoerotismo e a do racismo, os sonetos podem ser lidos
como um eixo irradiador, que remete a outras peças, compostas quase nos
mesmos anos e perpassadas pelas mesmas questões. Refiro-me especificamente
à já mencionada Antônio e Cleópatra (Antony and Cleopatra, 1607), além de O
Mercador de Veneza (The Merchant of Venice, 1596-1598), Noite de Reis (Twelfth
Night, 1602 ) e Otelo (Othello,1603). Nos sonetos, surpreende também algo
que só se torna frequente na arte pop do século XX: a celebração do prosaico,
do cotidiano, da imagem que não é privilégio dos bafejados pela fortuna ou
pela fama. Nesse sentido, é típico o Soneto CXXX, que traduzo livremente:
My mistress´eyes are nothing like the sun;
Coral is far more red than her lips´red;
If snow be white why then her breasts are dun;
If hairs be wires, black wires grow on her head.
I have seen roses damasked, red and white,
But no such roses see I in her cheeks.
And in some perfumes there is more delight
Than in the breath that from my mistress reeks. .
I love to hear her speak, yet well I know
That music hath a far more pleasing sound;
I grant I never saw a goddess go;
And yet, by heaven, I think my love as rare
As any she belied with false compare.
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Não briha como o sol o olhar da amada;
Mais que seus lábios, é rubro o coral;
Tem seios que não lembram neve em nada
Negros cabelos, de arame, em espiral.
Branca ou rubra, a rosa adamascada
Não vejo florescer em sua face.
E quisera que a brisa almiscarada
Seu hálito de fato perfumasse!
Amo ouvi-la falar. Contudo, sei
Os sons de sua voz canto não são.
O andar das deusas não presenciei;
Mas a amada, bem vi, pisa no chão.
Todavia, por Deus, ela supera
Muita musa que bela se quisera.
Outro soneto, o CXLI, retoma a mesma temática: também nega à
amada os atributos cantados pela lírica renascentista. A dama não se mostra
agradável aos olhos do eu lírico, que notam nela “mil defeitos” (a thousand
errors ). Ela também repele a seus outros sentidos. Nem por isso deixa o amante
de “amar o que os olhos desprezam” (loves what they despise)”, flagelo” (plague)
para o “pecado” (sin) de um “coração desavisado” (foolish heart). Em minha
tradução livre:
In faith I do not love thee with mine eyes,
For they in thee a thousand errors note;
But ’tis my heart that loves what they despise,
Who, in despite of view, is pleased to dote.
Nor are mine ears with thy tongue’s tune delighted;
Nor tender feeling, to base touches prone,
Nor taste, nor smell, desire to be invited
To any sensual feast with thee alone:
But my five wits nor my five senses can
Dissuade one foolish heart from serving thee,
Who leaves unswayed the likeness of a man,
Thy proud heart’s slave and vassal wretch to be:
Only my plague thus far I count my gain,
That she that makes me sin awards me pain.
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Em teu rosto meus olhos não se enlevam
Por ver ali, patentes, faltas mil;
O coração é que ama o que desprezam
Os olhos, e idolatra o que é vil.
Tua voz não me encanta quando ouvida;
Teu sentimento só ao mal se inclina,
Teu cheiro e paladar, nada convida
À festa sensual. É minha sina
Ver que, mesmo frustrados, meus sentidos
Não me fazem deixar de te servir
Teu escravo e vassalo, inamovidos,
Prosseguem neste jugo sem porvir.
Como prêmio, só tenho este contigo:
Se me fazes pecar, dás o castigo.
O soneto evoca um amor conflituoso, inexplicável, por uma mulher
desprovida dos encantos celebrados pelos sonneteers. Ademais, como o CXXX,
o CXLI assume um cunho metalinguístico. Refugando a fórmula habitual, de
irrestrito louvor à beleza física e espiritual da amada, o texto satiriza a gasta
lírica renascentista, com suas símiles convencionais, antíteses paralelas e
paradoxos forçados. O soneto sugere, enfim, a necessidade de renovação
poética, na verdade pouco surpreendente: Já na peça Dois Cavalheiros de Verona
(Two Gentlemen of Verona), datada de vários anos antes (1598), Shakespeare
zomba dos sonetistas e de seus “sonetos lamentosos”.
Não é demais repetir: com sua referência a uma mulher comum,
de pele escura e cabeleira emaranhada, o soneto CXXX contrasta em tudo
com a dama cantada na poesia isabelina: a pudica “fair lady”, de cândidos
olhos azuis, nívea pele e cabelos dourados. Encontra-se aí uma temática que
os sonetos partilham com Othello e The Merchant of Venice: a questão racial.
Sem ser propriamente negra, a black mistress diverge da beleza nórdica,
encarnada na fair lady. Diversamente desta, recebe um tratamento nada
lisonjeiro por parte do eu lírico, embora este se confesse dominado por
incontrolável paixão. Parcialmente debitada a seu tipo moreno, a falta de beleza
da dama é constantemente repisada— a começar pelo soneto CXXVII,
primeiro da série a ela dedicada. O poema deixa transparecer a ancestral
repulsa européia à pele escura. O soneto CXXXI acrescenta que a dama nem
sequer é bela, embora possa parecê-lo a olhos equivocados. Traduzo quatro
versos:
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For well thou know’st to my dear doting heart
Thou art the fairest and most precious jewel.
Yet, in good faith, some say that thee behold,
Thy face hath not the power to make love groan;
Bem sabes, meu olhar apaixonado
Te vê qual bela jóia preciosa
Mas para outros que te têm olhado
Tua face de tal poder não gosa.
Não que o louvor à mulher morena fosse totalmente estranho à arte
renascentista. Subsidiariamente ao culto da dama loura, despontava em poemas
isolados certa fascinação pela beleza trigueira. Isso não impedia conotações
racistas, que associavam insinuações negativas, de natureza moral, à descrição
da pele, dos olhos e do cabelo escuros. Vale lembrar a afirmação de Derrida:
“o racismo é inseparável da linguagem. (...) atos de violência racial (...) têm de
corresponder a palavras. [O racismo] institui, declara, escreve, inscreve,
prescreve”. 10 Com o vocabulário dos sonetos, a língua inglesa ratifica
exemplarmente essa afirmação. Os de número CXXVII a CLII, dedicados à
amada morena, jogam todo o tempo com os pares de antônimos, fair e black,
fair e dark, fair e foul, traduzíveis como branco, claro, louro, em contraste com
preto, escuro, moreno, que descrevem o físico da amada.
Os pares de opostos embutem conotações morais. Além de claro e
louro, fair tinha o sentido de limpo, puro, imaculado. O antônimo, foul, significando
sujo, impuro, imoral, detestável, harmonizava-se com a denotação pejorativa
também latente em dark e black. A dubiedade de sentido desses pares de
antônimos aflora em vários sonetos. Enxertados de inúmeros trocadilhos, os
adjetivos contrastantes sugerem os conflitos do eu lírico, dividido entre seus
dois amores. Ao belo jovem cantado nos sonetos I a CXXVI, atribuem-se
todas as virtudes, além da beleza física. Justifica-se assim a adoração
homoerótica. Pelo contrário, a atração pela black lady inspira sentimentos de
culpa, atribuíveis à perversidade, que o eu lírico liga aos traços negróides da
amada. O autor implícito acusa a dama de ser falsa, mentirosa, sádica,
chantagista, imprevisível, e também de traí-lo sem cessar, e não apenas com o
jovem louro. A black mistress chega a encorajar atenções de outros amantes na
presença de seu adorador, que, em contrapartida, mistura a seus queixumes
repetidas referências à pele escura da traidora. A brancura do jovem louro,
pelo contrário, é enfaticamente ligada a uma suposta superioridade moral.
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Julgue o leitor as ressonâncias racistas do soneto CXLIV, que, na tradução de
Ivo Barroso, compara os dois seres amados pela persona lírica:
Two loves I have of comfort and despair,
Which like two spirits do suggest me still:
The better angel is a man right fair,
The worser spirit a woman coloured ill.
To win me soon to hell, my female evil,
Tempteth my better angel from my side,
And would corrupt my saint to be a devil,
Wooing his purity with her foul pride.
And whether that my angel be turned fiend,
Suspect I may, yet not directly tell;
But being both from me, both to each friend,
I I guess one angel in another’s hell:
Yet this shall I ne’er know, but live in doubt,
Till my bad angel fire my good one out.
Dois amores -- de paz e desespero
Eu tenho que me inspiram noite e dia:
Meu anjo bom é um homem puro e vero;
O mau, uma mulher de tez sombria.
Para levar a tentação a cabo,
O feminino atrai meu anjo e vive
A querer transformá-lo em diabo,
Tentando-lhe a pureza com a lascívia.
Se há de meu anjo corromper-se em demo
Suspeito apenas, sem dizer que seja;
Mas sendo ambos tão meus, e amigos, temo
Que o anjo no fogo já do outro esteja.
Nunca sabê-lo, embora desconfie,
Até que o meu anjo contagie.
Reverberam aqui ecos da tradição misógina e racista que atribui à
mulher morena maior sensualidade, e, portanto, maior capacidade de sedução,
paralela à superior potência sexual creditada ao homem negro por ideologia
semelhante. Insinua-se também uma referência velada ao mito da insaciabilidade
sexual da mulher. Comum nas sociedades patriarcais, o mito se atrela ao temor
de que a sexualidade feminina constitua uma ameaça à ordem estabelecida:
em função de um insaciável apetite, toda mulher seria uma devoradora do
homem, ansiaria por mantê-lo sob seu jugo, qual Ulisses retido por Circe em
sua ilha. O feixe de associações negativas explica os termos nada lisonjeiros
dirigidos à dama no soneto CXXXV, pontilhado de trocadilhos obscenos em
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torno de vários sentidos do termo Will. A palavra pode ser o diminutivo de
William (primeiro nome de Shakespeare), mas também, na gíria da época,
significa “vagina”, “pênis” ou simplesmente “desejo sexual”. O soneto exorta
a dama a não invejar outras mulheres. Ela deveria contentar-se com sua nefasta
atração, que garantiria, mais que a qualquer outra, a satisfação de sua luxúria.
Embutindo os trocadilhos centrados em “Will”, os versos iniciais, traduzidos
por mim, bastam para indicar o tom do texto:
Whoever hath her wish, thou has thy Will
And will to boot, and Will in over-plus
Se outras têm desejo, tu tens Will
Will e mais Will, e Will em abundância...
Na mesma linha, o soneto CXXXVII praticamente equipara a dark
lady a uma prostituta: refere-se a ela como enseada (bay) ou espaço público
(common) accessível a todos os homens. Numa época impregnada pela associação
entre sexualidade e pecado, a paixão por tal mulher certamente bastaria para
inspirar no eu lírico o sentimento de culpa tantas vezes reiterado. Entretanto,
a postura racista é salientada pelo fato de que, embora fruto de uma atração
homoerótica, já estigmatizada na Renascença cristã, o amor do eu lírico pelo
jovem não parece inspirar remorso – provavelmente por ser ele claro, louro, ou
fair, que também significava puro, virtuoso. A luta entre os dois amores torna-se
uma guerra entre o céu e o inferno, o espírito e a carne – com o triunfo da
última, nos sonetos CXXX e CLI. Em outras palavras, a adoração ao jovem
louro equivale a “amor verdadeiro”. A atração pela mulher morena não passa
de “lascívia pecaminosa”. O tom de condenação moral é explicitado em
CXLVII, com o trocadilho que nem tento traduzir, centrado na palavra fair:
I have sworn thee fair, and thought thee bright
Who art as black as hell, as dark as night.
Jurei que eras bela, achei-te até pura,
Tu, negra como inferno, e, como a noite, escura.
Apesar dos paradoxos e sofismas que algumas vezes matizam esse
julgamento, o eu lírico, sob o efeito de uma paixão doentia (comparada a uma
febre no soneto CXLVII) raramente deixa de condenar a amada. Uma exceção
é o soneto XXXII, que inverte o julgamento negativo. O jogo de paradoxos,
habitual na poesia eufuística, serve à atribuição do adjetivo fair ( pura, branca),
à dama negra, tornando-se foul (vis) os que não têm a sua cor. Traduzo:
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Then will I swear beauty herself is black
And all they foul that thy complexion lack.
A própria beleza negra se fez
São vis os que não têm a tua tez.
No louvor à beleza negra, esse soneto destoa de todos os demais.
Contudo, de certa forma, ele reitera a caracterização da protagonista de Antônio
e Cleópatra. Como sucede com a dama dos sonetos, a rainha egípcia é na peça
tão sedutora quanto traiçoeira e imprevisível – sendo essa a fonte paradoxal
de seu inexcedível encanto. Tais contradições não se aplicam ao jovem louro.
Virtualmente todos os sonetos da primeira parte da sequência cantam-lhe as
virtudes, além da beleza. Por outro lado, a emoção patente, as referências a
incidentes amorosos, a dores por ausências e infidelidades mútuas, evidenciam
o caráter homoerótico dos versos. Shakespeare não foge, pois, ao tratamento
da questão gay, só abertamente debatida após as revoluções culturais do século
XX. Ao leitor, fica a pergunta: como podem os sonetos expressar emoção tão
eloquente, sem uma base real? Tratar-se-ia de uma atração platônica, não
consumada? As barreiras (impediments) mencionadas no soneto CXVI referemse apenas à interdição social contra a homossexualidade? Ou, como querem
alguns, o autor simplesmente versaria um tema convencional na poesia da
época? Volto a traduzir livremente:
Let me not to the marriage of true minds
Admit impediments. Love is not love
Which alters when it alteration finds
Or bends with the remover to remove:
O, no! it is an ever-fixed mark,
That looks on tempests and is never shaken;
Love’s not Time’s fool, though rosy lips and cheeks
Within his bending sickle’s compass come;
It is the star to every wandering bark,
Whose worth’s unknown, although his height be taken.
Love alters not with his brief hours and weeks,
But bears it out even to the edge of doom.
If this be error and upon me proved,
I never writ, nor no man ever loved.
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Que não haja barreiras à união
De almas fiéis. Não é amor o amor
Que as mudanças e o tempo alterarão
Ou, na luta, se curva ao opressor.
Oh, não! É um alvo eterno, inamovível
Que enfrenta tempestades sem tremer.
Foge à foice do tempo, muito embora
Este roube a beleza à face rubra;
Estrela- guia na procela horrível
Lá no alto, conserva seu poder.
Não se prende o amor à breve hora
Até que chegue a morte e o descubra.
Se estou errado, e isso for provado,
Nunca escrevi, nem ningúem foi amado.
A leitura tradicional desse soneto – como hino de louvor a um amor
ideal e eterno – pode ser ampliada, ou mesmo questionada. Na verdade, os
sonetos próximos do CXVI insistem em deplorar as infidelidades de ambos os
amantes, bem como as ciladas armadas para os olhos do corpo e da alma. Nesse
contexto, o amor se projeta como uma estrela-guia para a superação de todos os
obstáculos, inclusive, suponho, os enfrentados por amantes do mesmo sexo. A
esse respeito, o XX dissipa todas as dúvidas. Claramente misógino e homoerótico,
não poderia ser mais explícito: proclama que a natureza, prodigalizando ao amado
a beleza da mulher, poupou-lhe os defeitos do caráter feminino. Tão belo resultou
o objeto criado, que despertou a paixão de sua criadora. Para consumar esse
amor, a natureza, apresentada como mulher, dotou sua criatura de certo detalhe
anatômico. Sendo assim, só mulheres podem usufruir plenamente do físico do
amado. Ao eu lírico, que é homem, resta valorizar o amor espiritual e contentar-se
com ele. Não custa conferir o texto, confrontando minha tradução e o original:
A woman’s face with nature’s own hand painted,
Hast thou, the master mistress of my passion;
A woman’s gentle heart, but not acquainted
With shifting change, as is false women’s fashion:
An eye more bright than theirs, less false in rolling
Gilding the object whereupon it gazeth;
A man in hue all hues in his controlling,
Which steals men’s eyes and women’s souls amazeth.
And for a woman wert thou first created;
Till Nature, as she wrought thee, fell a-doting,
And by addition me of thee defeated,
By adding one thing to my purpose nothing.
But since she prick’d thee out for women’s pleasure,
Mine be thy love and thy love’s use their treasure.
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Tens de mulher o rosto, obra prima
Da natureza, meu senhor/senhora;
Da mulher, deu-te a ternura fina
Sem o vício que nela se deplora.
Teus olhos brilham mais, e mentem menos
Ao pousar, puro ouro, em outro olhar.
Homem nos atos, mesmo os mais pequenos,
Sabes mulher e homem fascinar.
Ao te criar mulher, a natureza
Por ti se apaixonou, e acrescentou
A teu corpo um detalhe, com certeza
Útil a ela, mas que a mim frustrou.
Às mulheres, portanto, dás prazer.
Quanto a mim, basta o amor que me hás de ter.
Clara declaração de paixão de um homem por outro, o poema reitera o louvor
a um amor alegadamente altruísta, que, em sua renúncia, beira ao masoquismo.
Pode-se questionar a natureza autobiográfica desses versos. Mas
seria difícil negar que seu homoerotismo, como o racismo latente, repete-se
na criação dramática, da qual seleciono e traduzo pequenos trechos abaixo.
Nesse sentido, os Sonetos podem ser lidos como ponte entre o lirismo de
Shakespeare e suas peças. Destaco aqui O Mercador de Veneza que
simultaneamente evidencia a dramatização tanto do homoerotismo quanto
do racismo. O primeiro verso do texto contém a famosa declaração de Antônio:
In sooth I know not why I am so sad. A misteriosa tristeza proclamada pela
personagem pode ser atribuída à frustração de ver o idolatrado amigo Bassanio
prestes a disputar a mão da bela e rica Pórcia. Na verdade, Bassânio parece
retribuir o amor de Antônio, pois, já casado, afirma amá-lo tanto quanto à
esposa e à própria vida. Traduzo suas palavras em IV, I, 279-82:
Antonio, I am married to a wife
Which is as dear to me as life itself;
But life itself, my wife, and all the world,
Are not with me esteem’d above thy life:
Antonio, desposei uma mulher
A quem amo como à própria vida;
Mas vida, esposa, o mundo inteiro
Não valem para mim mais que tu mesmo…12
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Além de sua discreta representação do homoerotismo13 – a peça se destaca
como uma contundente dramatização de racismo. Traduzo a queixa do
usurário Shylock a respeito dos insultos gratuitos recebidos pela simples
razão de sua condição de judeu:
You call me misbeliever, cut-throat dog,
And spit upon my Jewish gaberdine,
Chamam-me de infiel, cão circuncidado,
Escarram sobre os meus trajes judeus ( I, iii)
O racismo aflora também na velada repulsa de Pórcia pelo príncipe de
Marrocos. Em palavras dirigidas a sua dama de companhia, a herdeira se regozija ao
ver que, não tendo acertado na escolha do cofre contendo seu retrato, o pretendente
negro fica obrigado a renunciar à pretensão de desposá-la. Eis o comentário da jovem:
Let all of his complexion choose me so.
Que todos da sua cor façam a mesma escolha! (II vii )
Seria fácil ampliar esta discussão sobre o racismo, que lembra a
caracterização da dama negra dos Sonetos. Poderíamos também passar à análise
do mesmo tema em Otelo, o que, contudo, estenderia este ensaio além do
razoável. Da copiosa bibliografia sobre o assunto, limito-me a destacar dois
trabalhos, indicados na bibliografia abaixo. Para finalizar, gostaria de retomar
observações feitas ao longo deste texto: no triângulo amoroso que articula os
Sonetos é possível detectar elementos dramáticos. Em contrapartida, as peças
não raro apresentam textos onde o lírico rivaliza com o dramático. É ainda
em O Mercador de Veneza que encontro uma ilustração bastante clara. Em V, i.,
vencidas as dificuldades para a realização de seu casamento interracial, a judia
Jéssica mantém um terno diálogo com Lorenzo, seu marido cristão. O local
não poderia ser mais propício ao lirismo: o jardim enluarado em frente à casa
de Pórcia, no reino encantado de Belmont. Em suas falas, os recém-casados
recapitulam as histórias de pares de amantes da literatura clássica: Troilus e
Créssida, Píramo e Tisbe, Eneas e Dido, Jasão e Medéa. Encerrando o diálogo,
entrecortado de ternos gracejos, o casal rememora o desfecho feliz de seu
próprio trajeto amoroso. Traduzo:
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
29
LORENZO. In such a night
Did Jessica steal from the wealthy Jew,
And with an unthrift love did run from Venice
As far as Belmont.
JESSICA. In such a night
Did young Lorenzo swear he lov’d her well,
Stealing her soul with many vows of faith,
And ne’er a true one.
LORENZO. In such a night
Did pretty Jessica, like a little shrew,
Slander her love, and he forgave it her.
LORENZO.Numa noite assim
Jéssica deixou furtivamente o rico judeu
E com um amor perdulário fugiu de Veneza
Para Belmont.
JESSICA. Numa noite assim
O jovem Lorenzo jurou que a amava muito,
Seduzindo-a com juras de fiel amor,
Todas elas falsas.
LORENZO. Numa noite assim
Tal qual uma bruxinha, a linda Jéssica,
Caluniou seu amor, e ele a perdoou.
Interrompido pela chegada do criado Stéfano, o breve duelo verbal
basta para tingir de lirismo essa cena, já impregnada de infalíveis imagens
poéticas, o jardim perfumado e o brilho do luar. A platéia é conduzida à
subjetividade dos amorosos, para reviver com eles sua história de amor.
Por seu incomparável lirismo destaco também a fala do protagonista
de Rei Lear (King Lear) em V, iii. Perdida a batalha que poderia devolver-lhe o
trono, o rei é condenado à prisão juntamente com sua caçula, a piedosa Cordélia,
antes injustiçada pelo pai. Ao lado da filha, Lear não lamenta a condição de
prisioneiro. Pelo contrário, sonha com o cárcere como espaço abençoado
onde ele e Cordélia poderão gozar dos prazeres simples, esquecidos nos palácios.
Da senilidade, o velho rei exibe apenas uma espécie de meninice, transfigurada
em poesia. Em seu devaneio, vê-se outra vez menino, amante de contos antigos.
Imagina-se criança, correndo “atrás das asas ligeiras” de borboletas coloridas,
como a persona poética de nosso Casimiro de Abreu, cantor da infância.14
Poucos textos, na poesia ou no drama, parecem-me rivalizar em lirismo
com este extravasamento emotivo do velho rei, que traduzo:
30
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Come, let’s away to prison:
We two alone will sing like birds i’ the cage:
When thou dost ask me blessing, I’ll kneel down,
And ask of thee forgiveness: so we’ll live,
And pray, and sing, and tell old tales, and laugh
At gilded butterflies, and hear poor rogues
Talk of court news; and we’ll talk with them too,
Who loses and who wins; who’s in, who’s out;
And take upon’s the mystery of things,
As if we were God’s spies: and we’ll wear out,
In a wall’d prison, packs and sects of great ones,
That ebb and flow by the moon.
Vem, vamos embora para a prisão.
A sós, cantaremos como pássaros na gaiola.
Quando me pedires a benção, por-me-ei de joelhos
E te pedirei perdão; assim vamos viver,
E orar, e cantar, e contar velhas histórias, sorrir
Às borboletas douradas, e ouvir essa gente boba
Dar notícias da corte; conversaremos com eles
Sobre quem vence ou é vencido; goza ou perde
favores;
Assumiremos o mistério das coisas,
Como espiões de Deus; e, lá dentro da prisão
Sobreviveremos às turbas e grupos de poderosos,
Que vem e vão como a maré ao luar.
Nesse momento, Lear parece encarnar toda a humanidade, que, a
seus olhos, precisa re-aprender a rezar, e, como a criança, aconchegar-se na
intimidade do amor. Longe dos jogos de poder, na abençoada prisão imaginada
pelo rei, há espaço e tempo para o comércio com o divino e a reflexão sobre
o “mistério das coisas”.
Um lirismo igualmente tocante reveste a fala de Gertrude em Hamlet
IV, vii, quando a rainha narra a Laerte a morte de sua irmã Ofélia. Na tradução
de Millôr Fernandes:
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
31
There is a willow grows aslant a brook,
That shows his hoar leaves in the glassy stream;
There with fantastic garlands did she come
Of crow-flowers, nettles, daisies, and long purples
That liberal shepherds give a grosser name,
But our cold maids do dead men’s fingers call them:
There, on the pendent boughs her coronet weeds
Clambering to hang, an envious sliver broke;
When down her weedy trophies and herself
Fell in the weeping brook. Her clothes spread wide;
And, mermaid-like, awhile they bore her up:
Which time she chanted snatches of old tunes;
As one incapable of her own distress,
Or like a creature native and indued
Unto that element: but long it could not be
Till that her garments, heavy with their drink,
Pull’d the poor wretch from her melodious lay
To muddy death.
Há um salgueiro que cresce inclinado no riacho
Refletindo suas folhas de prata no espelho das águas;
Ela foi até lá com estranhas grinaldas
De botões-de-ouro, urtigas, margaridas,
E compridas orquídeas encarnadas,
Que nossas castas donzelas chamam dedos de defuntos,
E a que pastores, vulgares, dão nome mais grosseiro.
Quando ela tentava subir nos galhos inclinados,
Para ir pendurar as coroas de flores,
Um ramo invejoso se quebrou;
Ela e seus troféus floridos, ambos,
Despencaram juntos no arroio soluçante.
Suas roupas inflaram e, como sereia,
A mantiveram boiando certo tempo;
Enquanto isso ela cantava fragmentos de velhas canções,
Inconsciente da própria desgraça
Como criatura nativa desse meio
Criada pra viver nesse elemento.
Mas não demoraria pra que suas roupas
Pesadas pela água que a encharcava,
Arrastassem a infortunada do seu canto suave
À morte lamacenta. (p. 115-116)
32
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
A musicalidade do texto é testemunhada por sua utilização em letras de
canções, como na gravação acessada por mim em 27/02/2009, no www.youtube.15
Incrustado num diálogo, o texto shakespeariano é simultaneamente
descritivo e narrativo, lembrando a interação de gêneros mencionada por
David Lindley, citada na nota 1, acima. A fala de Gertrude inclui elementos
geralmente associados ao lirismo: sonoridade melodiosa, riqueza de
expressividade sensória e de efusão emotiva16. Pontilhada de ricas imagens
visuais, que inspiraram obras de arte como a Ophelia (1851-52) de John Everett
Millais, a descrição revela uma terna empatia com a jovem morta, e, indiretamente,
a subjetividade compassiva da rainha. Contribui, assim, para a caracterização da
mãe de Hamlet e para redimi-la das faltas que, propositadamente ou não, cometeu
contra o filho e o marido assassinado. Uma vez mais, a criação shakespeariana
celebra um enlace feliz entre lirismo e criação dramática. Relembra, assim a
imbricação de gêneros hoje apontada como típica da criação pós-moderna.
Por isso, como pela fusão do erudito e do popular, testemunhada, entre outros
traços, por certas canções em suas peças, não será demais concluir que a
criação shakespeariana projeta-se como sempre já pós-moderna.
Notas
1
A propósito da dificuldade de definição da poesia lírica, e de sua interação com
outros gêneros, ver LINDLEY, 1985, p. 13 e 23. No caso de Shakespeare, o autor
considera a presença do lírico em Romeu e Julieta, III, v, sob a forma da aubade.
2
A propósito, resumo a definição de poema lírico encontrada no dicionário de termos
literários de M. H. Abrams: poema que expressa os sentimentos, percepções e
pensamentos de uma persona poética, de modo intensamente pessoal, emocional
ou subjetivo (ABRAMS, 1993, p. 123).
3
A propósito, ver Songs and Dances from Shakespeare. The Broadside Band. Saydisc
Records, England, 1995.
4
DUFFIN, Ross D. Shakespeare’s Songbook. New York: D. D. Norton & Company,
2004. A edição, anotada e complementada por CD , inclui gravações muito variadas,
com baladas, canções de amor, cânones, canções báquicas (“drinking songs”), entre os
quais “Hold Thy Peace”, “It Was a Lover and His Lass”, “Jog On”, “There Dwelt a
Man in Babylon”, “You Spotted Snakes”. Outro estudo interessante é Songs from
Shakespeare´s Plays and Popular Songs of Shakespeare Time, organizado por Tom Kines
em 2007. Cf também o CD Songs and Dances from Shakespeare. The Broadside Band.
Director Jeremy Barlow, Deborah Roberts (soprano) e John Potter (tenor).
5
A propósito, ver http://www.npr.org/templates/story/story.php?storyId=
1847184. Acesso: 07 mar. 2009.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
33
6
A propósito, ver DUNN, Leslie C e Nancy A. Jones, 1994, p. 50-64.
As traduções das letras de canções cantadas por Ofélia são de Millor Fernandes, 1999,
p. 101-103, 106-107.
8
Para a dupla caracterização da poesia lírica – a representação da subjetividade e a
ênfase no elemento sonoro – ver dois textos assinados por Marjorie Perloff e Craig
Dworkin, publicados na revista PMLA de maio de 2008. Perloff contempla o aspecto
fônico da semântica poética, Dworkin, as reverberações semânticas do estrato sonoro.
Ao destacar a estruturação sonora inerente à poesia, Perloff lembra que, nessa arte, o
nexo interno entre som e sentido, presente em toda linguagem verbal, manifesta-se
mais clara e insistentemente. Deixa de ser apenas latente para tornar-se manifesto
(p.749). Segundo a autora, o aspecto sonoro da criação poética é relegado a segundo
plano pela crítica atual, mais centrada no sentido do que na organização fonêmicomorfêmica dos poemas analisados (p.750). Perloff acrescenta que essa postura tem
sido estimulada pela persistente concepção romântica da poesia lírica. A propósito, a
pesquisadora observa que a coleção de ensaios denominada “The New Lyric Studies”,
incluída na revista PMLA de janeiro de 2008, continua aceitando a premissa de que o
domínio da lírica é a subjetividade, por mais irônica ou descentrada que possa
apresentar-se na poesia de nossos dias.
9
A propósito, cf. a gravação do soneto XVIII, musicado. Disponível em: http://
www.youtube.com/watch?v=m2j3x5hWOrY&NR= Acesso: 1 fev 2009.
10
DERRIDA, 1985, p. 329-38, especialmente p. 331. Tradução da autora.
11
A propósito do racismo implícito nesses sonetos, cf. também meu trabalho
“Shakespeare´s Sonnets: A Case of Non-Translation”, 2002.
12
Tradução da autora.Sobre a questão da homosexualidade em The Merchant of Venice
e outros textos, ver BAKER, Deborah and KAMPS, Ivo. 1995, History, p. 1-21.
Também, na mesma obra, BELSEY, Catherine. Love in Venice, p. 196-213. Sobre o
homoerotismo entre Antonio e Sebastian, ver PEQUIGNEY, Joseph, 1995, p. 178195.
13
O laço homossexual parece ainda mais claro no relacionamento de Sebastian com
outro Antonio, em Twelfth Night (Noite de Reis).
14
Para o leitor brasileiro, a fala de Lear soa como um prenúncio dos versos de Casimiro
de Abreu em “Meus oito anos”:
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
— Pés descalços, braços nus —
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
7
34
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
REFERÊNCIAS
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DERRIDA, Jacques. Racism´s Last Word. GATES JR., Henry Louis (ed). Race, Writing
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
35
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WELLS, Stanley; TAYLOR, Gary (editors). William Shakespeare. The Complete Works.
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www.youtube. Anne-Sofie von Otter sings Songs to Words by William Shakespeare
Op 31. Acesso: fev 2009:
http://www.youtube.com/watch?v=m2j3x5hWOrY&NR=1, soneto XVIII,
musicado. Acesso: fev. 2009.
CD – Songs and Dances from Shakespeare. The Broadside Band. Director Jeremy
Barlow, Deborah Roberts (soprano) e John Potter (tenor).
Artigo recebido em 19 de dezembro de 2008.
Artigo aceito em 29 de maio de 2009.
Solange Ribeiro de Oliveira
Professora Emérita da UFMG.
Livre-docente da Universidade de Londres.
Docente aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais e da Universidade
Federal de Ouro Preto.
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
RELAÇÕES TRANSTEXTUAIS:
RECONCEPTUALIZAÇÕES DO CONCEITO
DO BLASON NOS SONETOS CXXX
DE SHAKESPEARE E XX DE NERUDA1
Sigrid Renaux
[email protected]
RESUMO: A partir do conceito do blason,
este artigo apresenta, através de uma
abordagem transtextual, uma releitura
deste conceito em dois sonetos de amor:
como hipotexto, no soneto CXXX de
Shakespeare, no qual o poeta parodia as
convenções dos sonetos corteses de sua
época e a “falsa comparação” da beleza
idealizada da mulher amada com imagens
da natureza; como hipertexto, no soneto
XX de Neruda, no qual o poeta retoma e
reescreve não só o conceito já parodiado
por Shakespeare para descrever sua amada
Matilde Urrutia, mas também as
imperfeições físicas que caracterizam a
“Dark Lady” de Shakespeare. As
similaridades formais, textuais e temáticas
entre ambos os sonetos projetam como
o texto nerudiano dialoga com o
shakespeareano e como o conceito do
blason adquire novo alento em Neruda.
ABSTRACT: Starting from the blazon
conceit, this article presents, by way of a
transtextual approach, a re-reading of
this concept in two love sonnets: as
hipotext, in Shakespeare’s Sonnet
CXXX, in which he parodies the
conventions of the courtly sonnets of
his time and the “false comparison” of
the idealized beauty of the beloved
mistress with Nature images; as
hypertext, in Neruda’s Sonnet XX, in
which he retakes and rewrites not only
the conceit already parodied by
Shakespeare to describe his beloved
Matilde Urrutia, but also the physical
imperfections which characterize
Shakespeare’s “Dark Lady”. The formal,
textual and thematic similarities between
both sonnets project how the Nerudian
text enters into dialogue with the
Shakespearean and how the blazon conceit
acquires new life in Neruda.
PALAVRAS-CHAVE: Blason. Soneto. Shakespeare. Neruda.
KEY WORDS: Blazon. Sonnet. Shakespeare. Neruda.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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O leitor shakespeareano que se depara com os Cien sonetos de amor de
Pablo Neruda não pode deixar de ficar impressionado pelas relações formais,
textuais e temáticas que podem ser estabelecidas, já à primeira vista, entre o
soneto XX de Neruda e o soneto CXXX de Shakespeare. Entretanto, como
essas relações são auto-evidentes – “a transtextualidade, ou transcendência
textual do texto”, que Genette define como “tudo que o coloca em relação,
manifesta ou secreta com outros textos”(GENETTE, 2005, p.7) –, a percepção
das mesmas necessita ser mais explorada a fim de projetar não apenas a
significância da transcendência textual do texto de Neruda em relação ao de
Shakespeare, mas simultaneamente reavaliar o matiz lúdico que colore o soneto
de Shakespeare, ao ele parodiar as convenções do soneto de amor petrarquiano
e da forma do blason em voga em sua época.
Como elemento arquitextual, o soneto (de sonetto> pequeno som ou
canção), como é de notório saber, originou-se na Itália no século XIII. Apesar
de a forma ter sido usada através da Idade Média tardia por todos os poetas
líricos italianos para poemas de amor e, particularmente, para aquela devoção
semi-platônica e semi-religiosa à dama ou Donna que subsequentemente tornouse um clichê da poesia amorosa, foi na realidade Petrarca que estabeleceu o
soneto como uma das formas poéticas mais importantes: um poema de catorze
linhas dividido em uma oitava apresentando o tema ou problema e rimando
abbaabba, e um sexteto solucionando-o, geralmente rimando cdecde. Quando
Sir Thomas Wyatt e o Earl of Surrey importaram a forma petrarquiana para a
Inglaterra nos inícios do século XVI, o esquema de rimas foi modificado por
Surrey para abab, cdcd, efef, gg, devido à maior dificuldade de rimar em inglês e
foi esta forma, com variações – como a forma do soneto spenseriano –, a mais
usada na Inglaterra no final do século XVI e portanto também por Shakespeare:
novamente com variações sutís no pentâmetro jâmbico e nos padrões de
rimas e, especialmente, na divisão do pensamento em três quartetos e um
dístico concludente (CUDDON, 1992, p.702 e 895-6).
É de consenso geral que os 154 sonetos de Shakespeare foram escritos
entre 1593 e 1598, os primeiros 126 dedicados a um jovem elegante, nobre e
louro, enquanto os outros, de 127 a 152, são meditações sobre as relações do
poeta com uma misteriosa “Dark Lady” – não apenas “dark-skinned, darkeyed and dark-haired”(VIOLI, 1965, p.12), mas também “wanton, perverse,
and alluring”(SAMPSON, 1961, p. 272) –, da qual Shakespeare aparentemente
estava profundamente enamorado. Sua identidade, como a do rapaz, tem sido
conjeturada mas nunca completamente estabelecida pelos estudiosos de
Shakespeare. Entretanto, mesmo que o soneto CXXX de Shakespeare
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
My mistress’ eyes are nothing like the sun;
Coral is far more red than her lips’ red;
If snow be white, why then her breasts are dun;
If hairs be wires, black wires grow on her head.
I have seen roses damask’d, red and white,
But no such roses see I in her cheeks;
And in some perfumes is there more delight
Than in the breath that from my mistress reeks.
I love to hear her speak, yet well I know
That music hath a far more pleasing sound;
I grant I never saw a goddess go;
My mistress, when she walks, treads on the ground:
And yet, by heaven, I think my love as rare
As any she belied with false compare. (SHAKESPEARE, 1952, p. 74)
já tenha sido exaustivamente comentado como paródia das convenções dos
sonetos corteses de sua época e sua “falsa comparação” da beleza idealizada
da amada com imagens da natureza concretizadas no conceito do blason, é
preciso recordar suas características principais a fim de ver como o hipertexto
shakespeareano, como exemplo do que Genette chama hipertextualidade –
“toda relação que une um texto B (hipertexto) a um texto anterior A (hipotexto)
do qual ele brota, de uma forma que não é a do comentário”(GENETTE,
2005, p. 19) – , servirá por sua vez como hipotexto para o uso que Neruda
fará do mesmo conceito. Pois, como Genette salienta adiante, “a
hipertextualidade (...) também é evidentemente um aspecto universal (...) da
literariedade: é próprio da obra literária que, em algum grau e segundo as
leituras, evoque alguma outra e, nesse sentido, todas as obras são hipertextuais”
(GENETTE, 2005, p. 29).
O conceito, como termo literário, veio a denotar um procedimento
figurativo bastante elaborado que muitas vezes incorpora a metáfora, a
comparação, a hipérbole ou o oxímoro, destinado a surpreender e deleitar por
seu espírito e engenhosidade. Como os conceitos dos sonetistas estavam entre
os mais comuns e os compositores de sonetos de amor possuíam um grande
número de conceitos convencionais dos quais podiam fazer uso (CUDDON,
1992, p. 177-8), estes já tinham se tornado um lugar-comum na época de
Shakespeare, pois “sequences of sonnets about love, real or assumed, became
an irresistible poetical fashion during the decade from 1590 to 1600”
(SAMPSON, 1961, p. 271). O soneto CXXX, portanto, satiriza especificamente
a convenção do conceito do blason – usado pelos seguidores do petrarquismo
para descrever versos que se ocupavam em detalhar as várias partes do corpo
da mulher (CUDDON, 1992, p. 97-8): a amada de Shakespeare, em vez de
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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ser “divine, holy, and the ideal of beauty: white-skinned, rosy-cheeked, lilyhanded, blonde”(VIOLI, 1965, p.15), como no Epithalamion (1595) de Spenser
Her goodly eyes like sapphires shining bright,
Her forehead ivory white,
Her cheeks like apples which the sun hath rudded,
Her lips like cherries charming men to bite,
Her breast like to a bowl of cream uncrudded,
Her paps like lilies budded,
Her snowy neck like to a marble tower,
And all her body like a palace fair. (KERMODE & HOLLANDER, 1973,
p. 827-8)
ou no soneto 39 Fidessa (1596) de Bartholomew Griffin, entre outros, tem seu
catálogo de atributos físicos subvertidos num contreblason.
No primeiro quarteto, “My mistress’ eyes are nothing like the sun:” já
anula a comparação tradicional dos olhos da amada com as estrelas brilhantes
e com o sol, como no verso “her eyes the brightest stars the heavens hold” de
Griffin, ou no soneto XLIX de Shakespeare “Against that time when thou
shalt strangely pass/ and scarcely greet me with that sun, thine eye”
(SHAKESPEARE, 1952, p. 33) e, portanto, também anula o simbolismo
implícito do olho com o sol – “the beauteous eye of heaven” – associado com
esta imagem. Consequentemente, as outras conotações favoráveis do sol
pertinentes neste contexto – luz, esplendor, céu, paraíso, juventude (de VRIES,
1974, p.170 e 447-8)1 – também são implicitamente retirados dos olhos de
sua amada, deste modo aprofundando as implicações negativas da comparação
negada.
A falta de brilho nos olhos de sua amada é então ainda mais enfatizada
pela falta de cor nos lábios: “Coral is far more red, than her lips red”. A
comparação dos lábios a coral vermelho é obviamente outro lugar-comum,
como no verso IV de Spenser, ou no verso “her pretty lips of red vermilion
dye”, de Griffin, nos quais os lábios, como zona erógena diretamente relacionada
com sexualidade, representam a amada (como pars pro toto) e são
tradicionalmente relacionados com coral e cerejas. Pelo fato de o coral vermelho,
além de ser apreciado para fins ornamentais e ser classificado entre pedras
preciosas, estar também relacionado pela cor ao sangue, saúde, amor e ser um
epíteto consagrado dos lábios, enquanto a cor vermelha é, similarmente,
simbólica de fogo, amor, paixão, como também a cor do ruborizar e
corresponder ao coral, as imagens na comparação shakespeareana – lábios/
coral/vermelho – sobrepõem-se simbolicamente, pois o coral equivale ao
40
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
amor e aos lábios, e o vermelho equivale ao amor. Toda esta carga simbólica
é assim novamente removida dos lábios da amada, que perdem seu poder de
atrair o amante através da ausência da cor vermelha e portanto seu potencial
de incitar nele a paixão.
Ao descermos o olhar do rosto para os seios, o “catalogue verse”
paródico de Shakespeare continua a reforçar pela elaboração (CUDDON,
1992, p. 123) as várias partes do corpo da amada: “if snow be white, why then
her breasts are dun”. Se a comparação tradicional dos seios com neve, marfim
e brancura, como nos versos de Spenser, já suscita sugestões de pureza,
castidade e santidade, essas associaçãos são ainda mais realçadas pelo
simbolismo dos seios como feminilidade madura, local de adoração e fonte de
inspiração poética, deste modo projetando o poder dessa imagem como evocada
pelos poetas. Mesmo se a pele natural nunca é tão branca como a neve, a
introdução repentina do qualificativo “dun” causa então um impacto, pois
esta cor parda ou castanho- acinzentada – Kermode traduz “dun” como “tan”
(KERMODE & HOLLANDER, 1973, p. 963), o que a faz parecer menos
impactante – novamente iria retirar as associações positivas da neve e da
brancura em relação aos seios.
Erguendo o olhar novamente para os cabelos da amada – “If hairs
be wires, black wires grow on her head”– devemos nos lembrar que a
comparação dos cabelos com arame era comum na época elizabetana, pois na
Renascença os arames eram usados em jóias e bordados como também para
montar penteados, estando portanto associados com beleza e trato. O que
está sendo contrastado com o ideal invisível de beleza feminina é na realidade
o fato de que os “arames” são negros, em vez de dourados, como no verso de
Griffin “My lady’s hair is threads of beaten gold” ou no quadro “Flora” de
Bartolomeo Veneto (ECO, 2007, p. 176).
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Deste modo, mesmo que o simbolismo dos cabelos seja mantido no
verso, como poder mágico e espiritual, fertilidade e amor, sua relação com o
fogo e os raios solares e portanto com o crescimento de forças primitivas é
retirado dos arames negros. São apenas os cabelos dourados, simbolizando
raios de sol, que retêm esta qualidade, enquanto os cabelos negros ou castanhos
escuros estão relacionados com as forças ctônicas. Assim, o brilho e a luz
emanando dos cabelos dourados da amada idealizada está novamente ausente,
acrescentando uma outra qualidade “negativa” à sua aparência física, se
levarmos em consideração o lugar-comum de “dourado”.
O movimento negativo progressivo do blason continua no segundo
quarteto, já que “I have seen roses damask’d, red and white,/ But no such
roses see I in her cheeks”, em contraste com o verso “Her cheeks, red roses,
such as seld have been”, de Griffin, comenta a ausência de tais rosas nas faces
da amada. As associações da rosa damascada com uma jovem enrubescida –
branca e rubra – como também as associações de faces rosadas com juventude,
ambas derivando do simbolismo da rosa (como princípio feminino, amor físico,
primavera, beleza; a rosa vermelha associada ao fogo e à caridade; a rosa
branca à virtude e virgindade), são retiradas das faces da amada, deixando-a
pálida e sem encantos.
A rosa também nos prepara, por meio do aroma implícito, a passar
das imagens visuais acima às imagens olfativas em “And in some perfumes is
there more delight/ Than in the breath that from my mistress reeks”. A
controvérsia crítica sobre o significado de “reeks” – interpretado como
“emanates”, sem nenhum sentido de “stinks” (KERMODE & HOLLANDER,
1992, p. 936) – não impede a comparação negativa de produzir efeito na
descrição da amada. Pois, mesmo que “reek” provavelmente não tenha sido
tão sugestivo de odores fétidos como hoje em dia, a hipérbole paródica ainda
contrasta agudamente com o prazer que os perfumes trazem a um amante,
como no verso de Griffin “Her smiles and favours, sweet as honey be”,
lembrando-nos que no mundo tradicional dos sonetistas o hálito da amada
sempre tinha um odor mais doce que perfume. Considerando o simbolismo
implícito no cheiro (se agradável, como ponte para o céu, enquanto o mau
cheiro está relacionado ao pecado) como derivado das associações contidas
em incenso – palavra coletiva para qualquer perfume, especialmente a
fragrância de árvores e flores; homenagem a uma deidade; inspiração –
enquanto o hálito é equivalente ao ar e ao vento, torna-se claro que, apesar do
exagero jocoso, o hálito da amada não conduz à inspiração, como o perfume
faria. Deste modo, assim como o brilho, a luz e a cor, relacionados à visão, são
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
negados, agora o perfume, relacionado ao cheiro, é negado através de seu
antônimo.
No terceiro quarteto, o poeta usa uma imagem auditiva para declarar
que a voz da amada não é muito agradável: “I love to hear her speak, yet well
I know/ That music hath a far more pleasing sound”. Mesmo assim, apesar
de não ser tão eficaz como a música – associada à religião como indutora de
êxtase e também à cura, fertilidade e criação, como no soneto de Petrarca à
Laura “(...) and when she spoke/ More than an earthly voice it was that
sang”– o som da voz da amada continua a exercer seu poder sobre o poeta, já
que escutar a amada, mais do que vê-la, implica em que agora não é seu
aspecto físico mas sua voz – como existência imaterial – que o mantém em
transe, fazendo a progressão, mesmo se paródica, tornar-se mais espiritual.
O catálogo das “imperfeições encantadoras” da amada se encerra
com a introdução de uma imagem cinestética juntamente com uma visual: “I
grant I never saw a goddess go;/ My mistress, when she walks, treads on the
ground”. O uso de três verbos de movimento simultaneamente paraleliza o
movimento no soneto da descrição do rosto e corpo da amada, a seu hálito e
voz, à descrição seguinte de seu caminhar, assim também resumindo os
conceitos apresentados nos versos anteriores: primeiro as partes de uma mulher
(olhos, lábios, seios, cabelos, faces, hálito, voz) e agora a mulher completa – e
não uma deusa – pisando na terra. Consequentemente, a convenção dos
sonetistas de afirmar que a deusa adorada tinha somente qualidades divinas
também é ridicularizada por Shakespeare, ao retirar da amada todas as
associações positivas entre movimento, leveza e divindade, como concretizados
nos versos de Petrarca “The way she walked was not the way of mortals/ But
of angelic forms (...)”. Além disso, a sobreposição dos significados de go/
walk/tread amplia as associações simbólicas do modo de caminhar da pessoa
como expressando sua condição social ou disposição de ânimo: neste caso,
pisando na terra, acentuando desta maneira novamente a materialidade e peso
dos passos da amada. Juntamente com a “stepped progression toward the
closing couplet” (PREMINGER & BROGAN, 1993, p.1167-8), progressão
esta expressa literalmente no movimento da amada nos versos 11-12, todo o
conceito do blason é agora subitamente interrompido com a palavra “ground”,
com suas sugestões de que a realidade foi alcançada. A amada, sempre em
contraste com uma mulher idealizada invisível ou uma deusa, teve todas as
conotações simbólicas positivas das imagens da Natureza, concretizadas no
conceito, removidas nas comparações: a luz e o esplendor dos olhos, a cor e a
paixão dos lábios, o ouro e o brilho dos cabelos, a coradura e a beleza das
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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faces, o perfume e a inspiração do hálito, a música, como indutora de êxtase,
da voz e a leveza, semelhante a de uma deusa, dos passos.
Mesmo assim, a conjunção adversativa “entretanto”, que introduz o
dístico concludente, traz uma outra mudança de direção ao soneto, no sentido
de que as comparações realísticas e/ou hiperbólicas no contreblason não afetam
seu amor pela amada: “and yet, by heaven, I think my love as rare/ As any
she belied with false compare”. A asseveração “by heaven”, ao recuperar o
conceito de “goddess”, ergue os olhos do leitor novamente da imagem do solo
no qual a amada pisa, deste modo acrescentando uma solenidade extra à
declaração de que o que segue é verdade: que o amor do poeta pela amada é
tão “raro” – incomum, raramente encontrado, extraordinário, precioso, de
uma qualidade fora do comum – quanto o de qualquer mulher retratada ou
poeticizada pelo amante com comparações falsas e insinceras. A sobreposição
dos significados de “belied” e “false compare” enfatizam pela redundância o
poder negativo do clichê do blason, com seus epítetos e suas metáforas fixas
usadas pelos sonetistas menores. Assim, com esta conclusão , Shakespeare
está julgando não o soneto de amor petrarquiano em si mesmo – como
hipotexto – mas o que seus seguidores na Inglaterra estavam fazendo, pois, se
“to write a love sonnet after Petrarch is to petrarchize (...) as much is true of
any poet who casts his poetry, or simply his verse, in a mould already in use,
yet no one refuses to acknowledge his originality if he produces a personal
impression in the form which another has invented”(LEGOUIS &
CAZAMIAN, 1961, p. 306).
Ao nos voltarmos para o soneto XX de Neruda, como hipertexto ao
hipotexto shakespeareano,
Mi fea eres una castaña despeinada,
mi bella, eres hermosa como el viento,
mi fea, de tu boca se pueden hacer dos,
mi bella, son tus besos frescos como sandías.
Mi fea, dónde están escondidos tus senos?
Son mínimos como dos copas de trigo.
Me gustaría verte dos lunas en el pecho:
las gigantescas torres de tu soberanía.
Mi fea, el mar no tiene tus uñas en su tienda,
mi bella, flor a flor, estrella por estrella,
ola por ola, amor, he contado tu cuerpo:
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
mi fea, te amo por tu cintura de oro,
mi bella, te amo por una arruga en tu frente,
amor, te amo por clara y por oscura. (NERUDA, 1956, p. 134)
tornam-se imediatamente visíveis as relações transtextuais entre os dois sonetos,
através de paralelismos de similaridade e contraste.
Apesar de ambos os poetas empregarem a forma do soneto, Neruda
usa a divisão original petrarquiana em vez da shakespeareana. Assim, a
apresentação do tema continua até o final do primeiro terceto, para então ser
resolvido no segundo terceto. Além disso, o soneto de Neruda está escrito em
versos não rimados, em contraste com o de Shakespeare – uma escolha
estilística que ele justifica na dedicatória dos Cien Sonetos de Amor a Matilde
Urrutia:
Señora mía muy amada, gran padecimiento tuve al escribirte estos mal
llamados sonetos y harto me dolieron y costaron, pero la alegría de ofrecértelos
es mayor que una pradera. Al proponérmelo bien sabía que al costado de
cada uno, por aficción electiva y elegancia, los poetas de todo tiempo
dispusieron de rimas que sonaron como platería cristal o cañonazo.
Yo con mucha humildad hice estos sonetos de madera, les di el sonido de
esta opaca y pura substancia y así deben llegar a tus oidos. Tú y yo caminando
por bosques y arenales, por lagos perdidos, por cenicientas latitudes,
recogimos fragmentos de palo puro, de maderos sometidos al vaivén del
agua y la intemperie. De tales suavizadísimos vestigios construí con hacha,
cuchillo, cortaplumas, estas madererías de amor y edifiqué pequeñas casas
de catorce tablas para que en ellas vivan tus ojos que adoro y canto. Así
establecidas mis razones de amor te entrego esta centuria: sonetos de madera
que sólo se levantaron porque tú les diste vida. (NERUDA,1956, p.111112, minha ênfase).
Perfeitamente ciente de que os poetas de todos os tempos usaram
rimas que soavam como jóias de cristal ou como uma disparo de canhão e,
portanto, fazendo uso do soneto como arquitexto, Neruda em sua modéstia
chamou suas linhas não rimadas de “sonetos de madera” e deu-lhes um som
de madeira, confirmando assim novamente que “matters of relationship
between form and content are (...) susceptible of considerable control in the
hands of a skilled poet, and the ultimate solution in any given instance may
override theoretical considerations in the interests of artistic
integrity”(PREMINGER & BROGAN, 1992, p. 1167-8).
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45
Em contraste com a amada, mas misteriosa, “Dark Lady” de
Shakespeare, a quem estão dedicados os sonetos 127 a 152, os Cien sonetos de
amor de Neruda, como visto, são todos ostensivamente dedicados a Matilda
Urrutia, seu “amor de outoño” e terceira e definitiva esposa. Os elementos
paratextuais que em Shakespeare estão limitados ao título “Sonnets”, deste
modo adquirem uma importância muito maior em Neruda, pois a dedicatória
ajuda a identificar não apenas a dama a quem os sonetos são ofertados mas
também a maneira como eles foram compostos. Como ele ademais afirma
em Confieso que he vivido, “al hablar para ella le he dicho todo en mis cien
sonetos de amor. Talvez estos versos definen lo que ella significa para
mí”(NERUDA, 1985, p. 124).
Enquanto, em Shakespeare, a descrição das “imperfeições” físicas da
amada é apresentada na terceira pessoa, em contrapartida à beleza feminina
idealizada na tradição petrarquiana, Neruda se dirige diretamente a sua amada,
chamando-a alternativamente “mi fea” – termo de carinho em espanhol – e
“mi bella”, ao descrever suas características físicas, deste modo ressaltando a
concretude e proximidade de sua amada Matilda.
Apesar de ambos os poetas reconceptualizarem o conceito do blason,
cada linha do soneto de Neruda precisa ser contrastada com o soneto de
Shakespeare, a fim de melhor projetar as relações que podem ser estabelecidas
entre os dois textos.
Por esta razão, mesmo que à primeira vista a descrição dos cabelos
da amada em “Mi fea eres una castaña despeinada” como cabelos castanhos
despenteados parece ser uma imperfeição, lembrando os “black wires” de
Shakespeare, em Neruda a imperfeição não está na cor dos cabelos de Matilda
– castanhos, com conotações simbólicas de sensualidade, voluptuosidade e
mágica, além de nos lembrar da cor castanho-avermelhada da castanheira –,
mas no fato de que estão despenteados. Entretanto, suas implicações negativas
– relacionadas com as deidades do mundo subterrâneo e com Medusa (como
Matilda foi apelidada na Itália) – são anuladas pelo fato de que estão associadas
com o cabelos crespos de Matilda, e portanto uma imagem de naturalidade,
em contraste com os cabelos bem-penteados, artificialmente belos, em moda
naquela época. Mesmo o nome da residência de Neruda, “La Chascona”
alude aos cabelos emaranhados de Matilda, que são ainda mais “celebrados”
no soneto XIV de Neruda e que também foram retratados por Diego Rivera
num quadro da casa:
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
A linha 2, “mi bella, eres hermosa como el viento”, aparentemente
apresenta outra mulher, como mencionado acima: o conceito de beleza
feminina, como aquela qualidade que incita prazer e admiração, está associada
aqui com o vento, acrescentando assim às conotações simbólicas de beleza –
nobreza, virtude e imortalidade – as do vento como espírito criativo, liberdade,
indutor de inspiração poética e força vital, todos eles sugerindo o poder que
a beleza dela exerce sobre Neruda e que o inspira. Concomitantemente, a
comparação nos lembra, por meio dos conceitos de leveza e vaporosidade,
da mulher idealizada nos sonetos elizabetanos, pairando sobre o chão e, assim,
em contraste com a amada de Shakespeare, que “pisa no chão”.
Em contraste com o verso 2, que é mais retórico, o tom coloquial do
verso 1 é retomado em “mi fea, de tu boca se pueden hacer dos”, ao referirse o poeta à boca da amada como grande demais para ser bela. A sugestão
humorística, que retém mesmo assim as associações da boca com o poder da
fala e com as forças vitais, enquanto seu tamanho está relacionado com o
poder de auto-afirmação – além de nos lembrar da depreciação jocosa de
Shakespeare de que os lábios de sua amada não eram suficientemente rubros
– é, mesmo assim, redimida em “mi bella, son tus besos frescos como sandías”.
Ao comparar os beijos da amada à frescura das melancias, a significância do
beijo, como sinal de afeição, é assim ainda mais enriquecida pela imagem
gustativa, através das associações da melancia com a suculência das frutas,
como também com fertilidade e desejos carnais, desta maneira anulando a
referência hiperbólica negativa à boca da amada.
No segundo quarteto, Neruda passa, como Shakespeare, do rosto
aos seios. O que está sendo comparado parodicamente, entretanto, não é a
cor mas o tamanho, pois enquanto na época elizabetana os seios estavam
associados à brancura da neve, como visto, o conceito nerudiano de uma
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linda mulher parece incluir seios grandes – os signos externos de seu “poder”.
Mas os seios de “mi fea” são tão minúsculos como duas conchas de trigo, a
hipérbole negativa deste modo retirando as associações positivas dos seios
com feminilidade, fertilidade, lugar de adoração, bem como as associações
semelhantes do trigo com fertilidade. Por esta razão, o poeta gostaria de vê-la
com “duas luas” no peito que, como imagens de plenitude relacionadas com o
feminino e com fecundidade, iriam consequentemente resgatar o poder
simbólico dos seios. Além disso, ao metaforizar os seios como “as gigantescas
torres de sua soberania”, ele está simultaneamente projetando a posição e
autoridade da amada como uma rainha, resgatando a imagem tradicional da
mulher idealizada como deusa e, conseqüentemente, da “anti-deusa”
shakespeariana.
Ao continuar desenvolvendo o conceito do blason no primeiro terceto,
Neruda enfatiza, em “Mi fea, el mar no tiene tus uñas en su tienda” a pequenez
de suas unhas que, em contraste com unhas longas – atributos das sedutoras
ou de mulheres aristocráticas, como signo de ócio – não seriam consideradas
“preciosas” o suficiente para serem guardadas no fundo do mar, como o
colecionador de imensos tesouros afundados. Por outro lado, após chamá-la
novamente de “mi bella”, Neruda detém-se nas várias partes do corpo da
amada, metaforizando seus atributos físicos como flores, estrelas e ondas,
relacionando-a assim à terra, ao céu e ao mar: a flor, simbolizando beleza e
amor feminino; as estrelas, luz celestial, pureza, ideal inalcançável; e as ondas,
o feminino, em virtude de suas linhas curvas. E, ao explicitamente dizer “he
contado tu cuerpo”, Neruda está simultaneamente usando metalinguagem,
desta maneira chamando a atenção ao conceito do blason que ele está
reconceptualizando, do mesmo modo como Shakespeare, mencionando a “falsa
comparação”, está também usando metalinguagem, mas por razões diferentes,
como visto.
Como a palavra ‘cuerpo” vem seguida de uma vírgula, o último terceto
por conseguinte introduz uma nova série de atributos da mulher amada, mas
com valores invertidos, pois agora ele ama a “mi fea” pela sua cintura de
ouro, e a “mi bella” pela ruga na testa, estabelecendo através deste procedimento
um paralelo com o amor “raro” de Shakespeare pela sua amada. Mas, ao
repentinamente percebermos que essas oposições pertencem à mesma mulher,
também percebemos que, ao contrário de Shakespeare que ama sua “senhora”
apesar das imperfeições, Neruda ama a sua exatamente por causa delas. Se ele a
ama pela sua cintura de ouro – e, portanto, como metal precioso, associado ao
sol, fogo, fertilidade e divindade, enquanto também nos lembra dos cabelos
dourados da mulher idealizada elizabetana – o louvar da ruga na testa, por
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outro lado, sugere não apenas que sua pele não é mais tão macia como a de
uma mulher jovem, mas também, por meio da expressão “arrugar uno la
frente”, que ele ama igualmente suas expressões de rancor e preocupação. A
última linha –”amor, te amo por clara y por oscura” – esclarece o conceito
completo, ao Neruda se dirigir novamente a ela como “amor” e declarar que
a ama por ser simultaneamente “clara” – transparente, brilhante, sem
ambiguidades – e “oscura” – morena, ininteligível, misteriosa – destarte
reconceptualizando o conceito do blason por apontar, como Shakespeare, para
um conceito de beleza e amor que fica além de meros atributos físicos.
Portanto, apesar de terem sido compostos em línguas, lugares e épocas
diferentes, as similaridades formais, textuais e temáticas entre os dois sonetos,
projetados através de relações transtextuais, enfatizam não apenas a maneira
como um texto trava diálogo com o outro por meio do conceito do blason, ao
ambos os poetas incorporarem a metáfora, a comparação e a hipérbole a este
expediente figurativo, e a maneira como o conceito do blason, já parodiado por
Shakespeare, adquire vida nova em Neruda; elas igualmente realçam o modo
como ambos os poetas mantêm sua integridade artística, ao controlarem a
relação entre forma e conteúdo e entre convenção e inovação. Acima dessas
considerações, entretanto, está o fato de que ambos ampliaram as concepções
limitadas de beleza de suas épocas: apesar de cada época histórica ter seus
próprios padrões culturais, em última análise a beleza está no olhar de quem
a contempla e aqueles atributos que pareciam ser anti-estéticos nos contextos
culturais de Shakespeare e de Neruda são irrelevantes ante o conceito de
beleza que ambos os poetas revelaram e diante do conceito de amor que
ambos expressaram.
Nota
1
Todas as outras associações simbólicas usadas são desta obra.
REFERÊNCIAS
CUDDON, J. A. The Penguin Dictionary of Literary Terms and Literary Theory. 3rd. ed.
London: Penguin Books, 1992.
ECO, Umberto (org.). História da Beleza. Trad. Eliana Aguiar. Rio: Record, 2007.
GENETTE, Gérard. Palimpsestes: La Littérature au Second Degré. Paris: Seuil, 1982.
KERMODE, Frank & HOLLANDER, John (eds.) The Oxford Anthology of English
Literature. Vol. I. New York: Oxford University Press, 1973.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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LEGOUIS, Émile & CAZAMIAN, Louis. A History of English Literature. London:
Dent, 1961.
NERUDA, Pablo. Confieso que he vivido. Barcelona : Seix Barral, 1985.
________. Veinte poemas de amor y una canción desesperada. Cien sonetos de amor. Buenos
Aires: Losada, 1956.
PREMINGER, Alex & BROGAN, T.V.F., eds. The New Princeton Encyclopedia of
Poetry and Poetics. Princeton: Princeton University Press, 1993.
SAMPSON, George. The Concise Cambridge History of English Literature. Cambridge:
Cambridge University Press, 1961.
SHAKESPEARE, William. The Complete Sonnets, Songs and Poems of William
Shakespeare. Henry W. Simon, ed. New York: Pocket Books, 1952.
VIOLI, Unicio. Shakespeare’s The Sonnets. New York: Monarch Press, 1965.
VRIES, Ad de. Dictionary of Symbols and Imagery. Amsterdam: North-Holland, 1974.
Artigo recebido em 28 de novembro de 2008.
Artigo aceito em 27 de março de 2009.
Sigrid Renaux
Pós-Doutora em Literatura Inglesa e Norte-Americana pela Universidade de
Chicago, EUA.
Doutora em Língua Inglesa, Literatura Inglesa e Literatura Norte-Americana pela
USP.
Professora Titular de Literatura Inglesa e Norte-Americana do Curso de Letras da
UNIANDRADE.
Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE.
Professora Titular de Literaturas de Língua Inglesa da UFPR (aposentada).
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
O DISCURSO DO PODER MATRIARCAL
NA COMÉDIA SHAKESPEARIANA
Marlene Soares dos Santos
[email protected]
Nosso namoro não é qual peça antiga:
João fica sem Maria. Sem sua rédea,
Senhoras, teríamos u’a comédia.
Trabalhos de amor perdidos.V.2
Perdoa-me, querida. De agora em diante,
você pode fazer o que bem entender.
As alegres matronas de Windsor. IV.4
RESUMO: O espetáculo era um dos
pilares do poder monárquico na era
elisabetana, tendo a rainha como a sua
maior estrela. As performances reais e as
pompas das cerimônias eram duplicadas
no teatro que, concomitantemente,
reproduzia outros discursos do poder, o
patriarcal e o seu próprio. Este podia
propagar e reforçar as ideologias
dominantes ou apresentar as emergentes
e deslanchar ideias potencialmente
subversivas. Este artigo discute como o
poder matriarcal, um dos discursos de
menor circulação na época, penetra no
teatro shakespeariano e repercute nas
comédias. Nestas, muitas personagens
femininas assumem o papel de
protagonistas por dominarem o universo
da comicidade, principalmente em
Trabalhos de amor perdidos e As alegres
comadres de Windsor.
ABSTRACT: Spectacle was one of the
pillars of the monarchical power in the
Elizabethan era, having the queen as its
biggest star. The royal performances and
their pomp and circumstance were
duplicated in the theatre which, at the
same time, reproduced other power
discourses, the patriarchal one and its
own. This could propagate and reinforce
dominant ideologies or present emergent
ones and give rise to potentially
subversive ideas. This article discusses
how the matriarchal power, one of the
least circulating discourses at the time,
finds its way into the Shakespearean
theatre, and echoes in the comedies. In
these, many feminine characters assume
the role of protagonists for their
dominance of the comic universe, chiefly
in Love’s Labour’s Lost and The Merry
Wives of Windsor.
PALAVRAS-CHAVE: Shakespeare. Discurso. Poder matriarcal. Comédia.
KEY WORDS: Shakespeare. Discourse. Matriarchal power. Comedy.
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Introdução
O poder era muito desigualmente distribuído na era elisabetana (15581603). A maior parte era reservada ao Estado, centralizado na corte, onde era
redistribuído de acordo com as necessidades e interesses políticos. O resto da
sociedade era bem menos aquinhoado, devendo-se levar em conta que, em
uma cultura tradicionalmente hierarquizada, os diversos discursos do poder
eram subordinados ao grau de prestígio das instituições e/ou pessoas que os
faziam circular. O teatro era uma das instituições que competia com outras –
a Igreja, por exemplo – para se fazer ouvir, enquanto o homem,
independentemente da sua posição na hierarquia, era ouvido sempre em
contraposição à mulher, por encontrar abrigo no sistema patriarcal da época.
O teatro, em geral, e o shakespeariano, em particular, veiculava os vários
discursos circulantes na sociedade na medida do que lhes era permitido, dando
até vez à mulher, revelando vestígios do poder matriarcal apreendidos na
época. Este artigo argumenta que a voz feminina é particularmente ouvida
nas comédias de Shakespeare, especialmente em Trabalhos de amor perdidos e
As alegres matronas de Windsor, onde as mulheres assumem o papel de
protagonistas ao dominarem o universo da comicidade, fazendo valer a força
do discurso matriarcal.
O poder da monarquia
O poder estatal era centrado na figura de Elisabete I, que o exercia
com o maior absolutismo, alicerçado na sua popularidade. Esta se desenvolvera
graças a um contexto sócio-político-cultural favorável em que a Inglaterra se
afirmava como nação na Europa e ao carisma da rainha, consciente de se ver,
“no mínimo, uma persona ficta e o seu mundo como um teatro. Ela acreditava,
piamente – a ponto de ser uma convicção religiosa – em exibição, solenidade
e protocolo, todo o aparato teatral do poder real” (GREENBLATT, 1993, p.
167). Segundo um dos seus mais famosos biógrafos, ela teria dito, uma vez,
aos membros do Parlamento que “nós, monarcas, estamos colocados em um
palco, à vista do mundo inteiro” (NEALE, 1934/1957, p. 287). Desde cedo,
devido à sua posição social como uma possível herdeira do trono, colocandoa sempre em evidência, Elisabete teve que aprender a se apresentar ao público
e aprimorar a sua vocação histriônica como relata um outro biógrafo:
Elisabete era uma atriz nata. E a arte havia aperfeiçoado a natureza. A sua
educação enfatizara a retórica: isto é, o uso da linguagem como um veículo
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
para comunicar pensamentos e sentimentos e, no mínimo, igualmente,
para escondê-los. Elisabete tinha-se tornado senhora de todos os seus
mistérios: ela podia, não só representar um roteiro, como podia escrevê-lo
e dirigi-lo, também. (STARKEY, 2001, p. 89)
A espetaculosidade do poder real se fazia presente em várias ocasiões:
desfiles, paradas e recepções a governantes estrangeiros em que a rainha era
a maior atração; ela marcava presença ora em uma carruagem, precedida e
seguida por cortesãos ou em uma liteira, carregada nos ombros dos nobres,
ora a cavalo ou em sua barcaça no rio Tâmisa. Os londrinos eram privilegiados
com as exibições do poder real, mas Elisabete percebia que, em uma época
deficiente em meios de comunicação de massa, ela precisava viajar pelo resto
do país para que houvesse uma interação maior entre soberana e súditos. Suas
viagens eram realizadas no verão e programadas para que ela atingisse os
lugares mais longínquos; e ela as fazia com “a intenção deliberada de
transformar a monarquia, de uma entidade remota e sem rosto, em uma
entidade viva” (SOMERSET, 1997, p. 474). E isso ela conseguia, se
movimentando de uma cidade à outra, levando consigo a pompa da corte
com um séquito impressionante, fingindo ter prazer em ouvir longos discursos
e ver espetáculos tediosos especialmente preparados para ela, mas sinceramente
se regozijando com as demonstrações de amor do seu povo. Tais peregrinações,
guardadas as devidas proporções, se assemelhavam às turnês teatrais das
companhias londrinas que levavam a sua arte aos mais diversos e distantes
lugares da Inglaterra.
Além das performances reais e das viagens, Elisabete estimulou o
cultivo do mito da Rainha Virgem, que, no início do seu reinado, disfarçava a
preocupante intenção da rainha de não se casar e, assim, deixar o trono vago
com a sua morte. A(s) Guerra(s) das Rosas entre as famílias de Lancaster e
York pela coroa inglesa culminando com a ascensão dos Tudors ao trono,
ainda pairava(m) no cenário político como uma ameaça de uma nova disputa
pelo poder real. Na verdade, com a grande perspicácia política de que era
possuidora, a rainha percebia os perigos que um casamento seu poderia originar.
A Inglaterra, após mais de duas décadas de rompimento com a Igreja Católica,
ainda se encontrava dividida em matéria de fé cristã. Desde o estabelecimento
da religião anglicana por seu pai, Henrique VIII, que se tornara o Chefe da
Igreja em 1533, a população se via desnorteada com as diferentes crenças
religiosas dos seus sucessores: o protestantismo de Eduardo VI (1547-1553),
a volta ao catolicismo com Maria I (1553 -1558) e a retomada do anglicanismo
por Elisabete em 1558. Casando-se com um dos membros da sua aristocracia,
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
53
dependendo de sua fé, ela iria desagradar a outros. Se desposasse um príncipe/
rei estrangeiro, mesmo que fosse protestante, ela poderia ser acusada de ser
politicamente influenciada pelo marido como já vira acontecer com a sua
antecessora, a sua meio-irmã Maria, casada com Filipe II da Espanha. Não
restava a Elisabete senão se contentar em ser “casada com o seu povo”, e
através de atos políticos, panfletos propagandísticos e textos poéticos, propiciar
a criação de uma mitologia secular: o culto de Gloriana, a Rainha Virgem,
também chamada de Astraia, Cíntia e Diana, personagens mitológicas
caracterizadas por sua castidade. Além de tornar aceitável a sua decisão de
permanecer solteira, ela utilizou a construção do mito para outros fins:
O culto de Gloriana foi habilmente construído para reforçar a ordem pública
e, mais ainda, para deliberadamente substituir as exterioridades da religião
antes da Reforma – o culto da Virgem e dos santos com suas respectivas
imagens, procissões, solenidades e júbilo secular. Assim, ao invés dos
diferentes aspectos do culto a Nossa Senhora, temos os “diversos amores”
da Rainha Virgem; ao invés dos rituais e festividades de Corpus Christi,
Páscoa e Ascensão, temos as novas festas do dia da elevação de Elisabete ao
trono e do seu aniversário. (STRONG, 1999, p.16)
Assim, mesmo não se tratando de cerimônias solenes, em que o povo
era meramente espectador, a presença da rainha pairava sobre as festividades
mais populares que permitiam que ele fosse participante. As aparições públicas
na capital, as visitas a outras cidades e o culto à sua figura mitificada criavam
uma grande autoridade invisível, sendo Elisabete “um governante sem um
exército permanente, sem uma burocracia altamente desenvolvida, sem uma
extensa força policial, um governante cujo poder é constituído por celebrações
teatrais da glória real e violência teatral desferida sobre os inimigos daquela
glória” (GREENBLATT, 1985, p.44).
A espetaculosidade do poder real, como nos alerta a citação acima,
também tinha o seu lado sombrio: a teatralidade das punições. Segundo Michael
Foucault “o soberano de maneira direta ou indireta, exige, resolve e manda
matar, executar os castigos, na medida que ele, através da lei, é atingido pelo
crime. Em toda a infração há um crimen majestatis, e no menor dos criminosos
um pequeno regicida em potencial” (FOUCAULT, 1984, p. 50). Enquanto
algumas ofensas menores eram punidas na própria prisão, outras podiam ser
punidas com chicotadas e horas em um pelourinho em praça pública; já as
maiores, como homicídios, eram castigadas pela morte na forca. Havia mais
de mil enforcamentos por ano na Inglaterra e no País de Gales (PRITCHARD,
1999, p. 204), que se constituíam em verdadeiros espetáculos a começar pelo
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cadafalso, lembrando um palco, em que se erguia a forca – um temporariamente
armado no pátio da famosa Catedral de São Paulo, um dos lugares mais
frequentados de Londres – e o ritual que ali se desenrolava, com um público
de centenas de pessoas, dependendo da enormidade ou popularidade do crime.
E quem atravessasse a ponte de Londres estava sujeito a observar a cena
macabra das cabeças dos traidores da coroa fincadas nas duas extremidades
como um aviso do que aconteceria àqueles que ousassem desafiar o Estado.
O poder no teatro e o poder do teatro
O teatro elisabetano floresceu em uma época teatral por excelência,
não só no sentido de performance da realeza, como, também, no sentido do
extraordinário desenvolvimento da arte de representar, que originou o
surgimento de várias casas de espetáculo nos subúrbios de Londres – “the
Liberties”.
Deve-se ressaltar a proximidade de Elisabete com o teatro, do qual
ela era uma ardente entusiasta que o defendia dos seus inimigos, principalmente
os puritanos do Conselho Administrativo da Cidade. Impedidos de se
estabelecerem dentro dos limites de Londres, cercada por antigas muralhas e
pelo rio Tâmisa, os atores conseguiam sobreviver graças à estratégia de terem
que “ensaiar” para poderem representar para a soberana, quando chamados
ao palácio durante festas e comemorações. A corte controlava o teatro através
da censura prévia das peças exercida pelo Mestre de Cerimônias, que, acreditase, era bem mais rigoroso em se tratando de temas sensíveis ao Estado.
O poder real era reproduzido no teatro, principalmente nas peças
históricas shakespearianas, tendo como protagonistas monarcas ingleses,
apresentando alguns deles como atores consumados, como são os casos de
Ricardo III e o príncipe Hal, o futuro Henrique V. As festivas exibições de
poder com música, discursos, carros alegóricos, pequenas representações e
tableaux vivants, também eram duplicadas no teatro: “estas cerimônias populares
eram o principal espetáculo nas vidas dos cidadãos que ocupavam a maior
parte dos lugares nos teatros públicos. Era fácil para os dramaturgos duplicarem
sobre o enorme palco do Globe, Rose ou Swan tais procissões que, na vida
real, atraíam uma multidão de espectadores para as ruas, para as janelas e até
para os tetos das casas” (GRIFFIN, 1951, p. 13).
O poder do teatro era considerável em uma época sem outros meios
de comunicação, informação e distração, que eram oferecidas nos palcos.
Entretanto, como a profissão de ator não era reconhecida, os homens de
teatro tinham que se valer do patrocínio de aristocratas que lhes dava o direito
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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de usarem a sua libré e de serem (re)conhecidos como seus “servos” para não
infringirem a Lei de Punição de Vagabundos, Patifes e Pedintes Inveterados
que datava de 1572. O patronato dos nobres lhes assegurava proteção, um
lugar na hierarquia social e o direito de exercer a profissão, mas não lhes
oferecia apoio financeiro. Para conseguir este, os atores tinham que lançar
mão de um outro patronato: o dos espectadores, que lhes garantia o dinheiro
necessário para a sobrevivência. O que significa que o poder do teatro estava
limitado por três outros: o da rainha, o da nobreza e o do público, pois “o
teatro não era simplesmente uma extensão do poder monárquico. O palco
tinha que ter sucesso no mercado do mesmo modo como tinha que prestar
contas à censura da corte. Seus espetáculos eram mercadorias que o público
pagava para ver e sobre as quais, consequentemente, exercia um certo controle”
(HOWARD, 1994, p. 4-5).
Além de informar e distrair, o teatro possuía uma função ambígua
na sociedade elisabetana, ambiguidade esta presente na sua própria localização:
parte da cidade de Londres, entretanto, fora dela, nos subúrbios para além das
suas fronteiras; e, também, na sua situação: tendo de agradar a três patronos.
Ele podia reproduzir e reforçar o discurso das ideologias dominantes ou
apresentar outros de novas maneiras de ver/pensar e semear/deslanchar idéias
potencialmente subversivas ou, ainda, colocar dois discursos opostos, lado a
lado, concomitantemente. Os defensores do teatro alegavam que ele inculcava
nos espectadores o respeito à moral, à tradição e à autoridade vigentes; os
seus detratores o consideravam pernicioso por questionar os valores, os
costumes e a hierarquia da sociedade. Estes não deixavam de ter razão nas
suas diatribes contra o teatro, que circulavam em vários panfletos, pois, apesar
das limitações impostas pelos seus três patrocinadores, ele ainda era muito
poderoso, desafiando a ordem social de várias maneiras.
A própria insistência em resistir aos puritanos do Conselho
Administrativo de Londres que lhe proibiram de existir dentro da cidade já
era um ato de desafio. Um outro era o desrespeito à Lei do Vestiário que
determinava que cada cidadão ou cidadã se vestisse de acordo com a sua
classe social, estipulando tipos de tecidos e cores pertencentes a cada uma. Os
atores procediam, em sua grande maioria, das camadas menos privilegiadas
da população; ao interpretarem personagens oriundos da nobreza, eles teriam
que se vestir como tais, o que ia de encontro ao que era proibido fora do
teatro; e, o que era ainda mais desafiador era o fato de os rapazes terem que
usar roupas femininas, visto que não existiam atrizes na época. Acrescentemse a isso não só os discursos questionadores e potencialmente subversivos das
cenas que se desenrolavam no palco como, também, o que acontecia na platéia:
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as consequências ideológicas da presença do público. Dentro do prédio, a
sociedade altamente hierarquizada e segregada da época se desarticulava, pois
os espectadores provinham de diversos segmentos sociais, e as prioridades de
título e de status cediam à do dinheiro para conseguir os melhores lugares. As
mulheres, que o sistema patriarcal insistia em cercear-lhes a liberdade e segregálas em casa, ignoravam conselhos e ordens, e iam ao teatro. E a presença
feminina se estabelecia como parte importante dos lucros, como atesta
Shakespeare no epílogo da segunda parte de Henrique IV: “Todas as fidalgas
aqui presentes me perdoaram; e se os fidalgos não o fizerem, os fidalgos não
estarão de acordo com as fidalgas, coisa que nunca se viu em uma assembléia
igual a esta” (Epílogo, p. 179). E, na comédia Como quiserem, o epílogo é falado
pela heroína Rosalinda que admite, “Não é moda ver a dama como epílogo”,
e ordena às mulheres, “pelo amor que têm aos homens, que gostem tanto
desta peça quanto lhes der prazer” e ordena aos homens, “pelo amor que têm
às mulheres” que, entre eles e as mulheres “a peça possa agradar” (V.4.189;197201). Note-se a preocupação do dramaturgo em agradar as espectadoras,
que, como já vimos, podiam exigir os seus direitos como pagantes.
Deve-se ter em mente que um Estado absolutista como o elisabetano
estaria sempre vigilante em se tratando de uma instituição tão popular quanto
o teatro: peças eram censuradas, atores e dramaturgos encarcerados e prédios
fechados. Entretanto, não se pode esquecer uma outra arma deste teatro que,
hoje, só conhecemos através da palavra impressa: a presença física dos atores
que, com signos não-verbais, como um gesto, uma expressão facial, uma postura
corporal, um sotaque ou uma intonação poderiam reconstruir o que a censura
tentara destruir ou suprimir. O poder do teatro tinha várias maneiras de se
impor.
O poder patriarcal: ideologia e subversão
O sistema patriarcal na era elisabetana era alicerçado na tradição, na
religião e na política, e concedia todo o poder ao homem. Ele centrava uma
autoridade despótica na figura do pai e do marido, mas, enquanto os filhos,
mais tarde, se libertavam e, reproduziam o modelo paterno, as mulheres
permaneciam vítimas, submissas aos homens da família (pai, marido, irmão e
filho) em particular e aos homens da sociedade em geral. O patriarcado
encontrou uma grande aliada na misoginia, já que “as mulheres foram
confrontadas com uma bateria de argumentos filosóficos, científicos e legais
destinados a provar e codificar para o homem a sua ‘inferioridade inerente’.
Mais tarde, o cristianismo acrescentou um argumento teológico com um impacto
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tão profundo que suas ramificações estão conosco até hoje” (HOLLAND,
2006, p. 11).
Pesquisadores da história e da cultura inglesas dos séculos XVI e
XVII são unânimes em afirmar que a mulher perdeu espaço na sociedade
destas épocas. Entre os fatores que contribuíram para isso encontram-se as
mudanças na economia – de agrária para mercantilista – em que o trabalho
familiar, comunal, gradativamente cedeu espaço ao trabalho individual,
separando tarefas masculinas e femininas, confinando as mulheres ao lar e ao
trabalho doméstico; e, também, as mudanças na religião, sendo o protestantismo,
apoiado pelo Estado (que pregava a subordinação dos súditos ao soberano),
extremamente responsável pelo fortalecimento do patriarcado (STONE, 1990,
p. 109-146). Como nos informa Jack Holland,
À medida que a nova fé protestante se estabilizava, e o fervor revolucionário
diminuía, também diminuía a disposição dos reformadores para conceder
igualdade às mulheres. Em 1558, o fundador do protestantismo escocês,
John Knox, publicou um panfleto intitulado “O primeiro protesto contra
a monstruosa autoridade das mulheres”, atacando o papel mais importante
que as mulheres estavam assumindo na nova fé. A família patriarcal foi
mais do que reforçada: agora, não somente o pai sabia o que era certo, mas
ele sabia mais do que o padre, cujo papel ele adotou, a ponto de liderar a
família nas preces diárias e conduzir as leituras da Bíblia. O papel subordinado
da mulher foi reafirmado, resumido nas palavras do grande poeta puritano
inglês John Milton (1608-1674): “Ele somente para Deus; ela para Deus
nele. (HOLLAND, 2006, p. 134)
As outras desvantagens que a abolição do catolicismo trouxe para as
mulheres foram: a proibição aos cultos das santas, em geral, e da Virgem
Maria, em particular, que deixaram as mulheres espiritualmente desamparadas
em momentos difíceis; a falta de um padre confessor que, muitas vezes, as
ajudava nos problemas domésticos e a extinção dos conventos que suprimia a
possibilidade de uma vida fora do casamento (STONE, 1990, p. 141). “A
abolição dos conventos removeu uma esfera de atividade separada e
independente para as mulheres, na qual, durante a Idade Média, mulheres,
individualmente, alcançaram proeminência intelectual por estarem livres de
obrigações familiares. A família era, agora, o único sistema de apoio para as
mulheres, poucas entre elas estando em situação de se sustentarem”(JARDINE,
1983, p. 50).
Apesar de tantas restrições, as inglesas eram consideradas mais livres
do que as suas contemporâneas européias, variando o trajeto entre a casa e a
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igreja, sendo vistas nas ruas, nos mercados e nos teatros, o que justificaria um
provérbio comum na época: “a Inglaterra é o paraíso das mulheres, o inferno
dos cavalos e o purgatório dos criados”. Entretanto, deve-se constatar que era
uma autonomia permitida, uma liberdade vigiada e uma mobilidade controlada
visto que a mulher não tinha nenhum poder político e só existia como ser
social em relação à instituição do casamento, definida como solteira, casada
ou viúva.
A mulher ideal, construída através de panfletos morais, tratados
educacionais, manuais de conduta, textos literários e pregações da Igreja e do
Estado, era frágil, submissa, modesta, virtuosa, casta, silenciosa e sempre pronta
a obedecer aos homens; as esposas terminavam as cartas aos maridos assinando
“sua fiel e obediente esposa” (STONE, 1990, p. 139). Se havia mulheres que
se esforçavam para atingir esse ideal, e outras que, simplesmente, se resignavam
com a sua posição, muitas outras apresentavam comportamentos que
desafiavam o sistema. A própria Elisabete era um exemplo vivo da contradição
entre ideologia e prática, sendo chefe de um Estado patriarcal, mandando
quando, devido ao fato de ser mulher, deveria obedecer.
Além da rainha, encontramos várias figuras femininas
desestabilizadoras do patriarcado: por exemplo, Moll Cutpurse, poderosa líder
do submundo londrino, tão famosa que ficou imortalizada em uma peça The
Roaring Girl (A arruaceira) de Thomas Dekker e Thomas Middleton; bruxas,
supostamente dotadas de poder sobrenatural maligno que ameaçava homens
e comunidades; megeras, perturbadoras das ordens familiar e social. Ameaçado,
o sistema punia severamente quem ousasse desafiá-lo: Moll Cutpurse foi presa
várias vezes, as mulheres tidas como bruxas eram queimadas na fogueira; e as
megeras eram castigadas por meio da “cucking stool”, uma cadeira em que
elas eram mergulhadas em um rio e retiradas pouco antes de se afogarem; e
da “scolds bridle”, um freio com uma ponta bem afiada para machucar a
língua, que podia causar infecção e a consequente morte. Definitivamente
houve mais mulheres subversivas que ousaram questionar a ideologia do
patriarcado, mas que não foram registradas pela história que sempre foi escrita
por homens. Como explica Rosalind Miles
A história mais antiga das mulheres foi devotada a se esmiuçar sobre crônicas
em busca de rainhas, abadessas e mulheres sábias a serem contrapostas a
figuras masculinas equivalentes em autoridade e capacidade, criando heroínas
à imagem de heróis: Joana d’Arc, Florence Nightingale, Catarina, a Grande.
Essa versão de cartão postal, ou de álbum de figurinhas da história das
mulheres, embora tenha valor ao afirmar que as mulheres podem ser
competentes e poderosas, tinha duas fraquezas – reforçava o falso efeito do
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domínio da história pelos homens, já que sempre havia mais governantes
e “gênios” homens do que mulheres; e deixava de considerar a realidade da
maioria das vidas femininas, sem oportunidade ou apetite para tais
atividades. (MILES, 1988, p. 10)
O fato de que as mulheres resistiram muito mais às restrições que
lhe foram impostas pelo patriarcado, apesar de ser grandemente ignorado, nos
alerta para relativizarmos a noção da completa hegemonia das estruturas
patriarcais na sociedade inglesa da época em discussão. Estas podiam suportar
discursos contraditórios e até contestatórios, porque estes não eram amplamente
circulados, mas, mesmo assim, encontravam ecos na dramaturgia
shakespeariana.
O poder matriarcal na dramaturgia shakespeariana
As mulheres, como todos os seres oprimidos, sempre procuraram
meios de resistência à opressão, e os encontraram no espaço limitado que o
patriarcado lhes havia destinado – a casa, onde o discurso feminino poderia se
opor/impor ao masculino, pois,
seria, naturalmente, absurdo afirmar que a realidade privada correspondia
inteiramente à retórica pública, e há inúmeros exemplos de mulheres
elisabetanas que dominavam seus maridos. O seu monopólio de certas
responsabilidades no trabalho doméstico, sua capacidade de dar ou negar
favores sexuais, o seu controle sobre os filhos, sua habilidade em ralhar,
tudo isso lhes proporcionava alavancas de poder dentro de casa. (STONE,
1990, p. 139)
Reforçando a opinião acima, podemos acrescentar uma outra que
privilegia duas das alavancas mencionadas: “uma fala independente e a
sexualidade eram ambas formas de prerrogativas femininas e, especialmente
quando utilizadas pelas esposas, funcionavam como desafios diretos à ordem
patriarcal das coisas” (HENDERSON, 1997, p. 178). Além da língua e da
sexualidade, as mulheres se valiam da histrionice para penetrar nas brechas
que o poder masculino, descuidadamente, lhes cedia. Fazendo uma breve
análise da dramaturgia shakespeariana, vamos averiguar como as personagens
femininas, com os poucos instrumentos à sua disposição, se comportam para
conseguirem, se não quebrar, pelo menos, rachar, as estruturas que sustentam
o patriarcado, demolindo a sua hegemonia.
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
As peças inspiradas na história da Inglaterra focalizam a luta pelo
poder político, que é o tema de Rei João como, também, o das duas tetralogias:
a primeira, em ordem de composição, consta das três partes de Henrique VI
mais Ricardo III; a segunda inclui Ricardo II, as duas partes de Henrique IV e
Henrique V. Como os próprios títulos indicam, os reis são os protagonistas,
lutando para conseguir ou manter a coroa, atuando em campos de batalha, e
há poucos espaços que podem ser ocupados pelas mulheres. Entretanto, mesmo
assim, quatro mulheres se destacam nessas peças por usarem as armas ao seu
dispor e mudar o rumo dos acontecimentos. Elas são a rainha Eleanor e Lady
Falconbridge em Rei João, Joana d’Arc na primeira parte de Henrique VI e a
rainha Margaret, a única personagem presente em todas as peças da tetralogia,
o que já é um forte indicador da sua importância.
A rainha Eleanor já era poderosa na história européia, tendo sido
casada com dois reis, Luís VII da França e Henrique II da Inglaterra, e continua
poderosa no drama; ela se utiliza das armas da política para influenciar o
reinado do seu filho João. Mas a peça também apresenta uma outra interessante
figura feminina, Lady Falconbridge, que, em uma breve aparição, mostra toda
a força que as mulheres podem ter em restritas ocasiões: quando ela anuncia
que o seu filho Felipe, não é filho do seu marido, Sir Roberto Falconbridge,
mas de Ricardo Coração de Leão, irmão do rei. Em uma época em que não
havia exames de DNA, só as mulheres poderiam saber quem era o pai de seus
filhos. Como corretamente argumenta Phyllis Rackin,
Autorizada pelo princípio de herança patrilinear, a sociedade patriarcal
dependia para a sua própria existência das esposas e mães cujos corpos
continham aquela herança que era transmitida de pai para filho. Como
resultado, as mulheres significam uma fonte constante de ansiedade; pois –
como as inumeráveis piadas de corno de Shakespeare continuamente insistem
– nenhum homem podia realmente saber se ele era o pai do menino que
estava destinado a herdar o seu nome e a sua propriedade. As únicas
depositárias do mais importante e mais perigoso de todos os segredos, as
mulheres corporificavam a verdade que ameaçava desonrar os heróis e
deserdar os seus filhos, e, ao fazer isso, subvertiam todo o projeto da
história patriarcal. (RACKIN, 1990, p. 160)
Joana d’Arc, apesar de ser chamada de “prostituta” e “feiticeira”
pelos ingleses, se apossa da prerrogativa essencialmente masculina de manejar
armas e guerrear. Pode-se encontrar traços de feminilidade na sua loquacidade
com a qual consegue persuadir o duque de Borgonha, “encantando-o com as
suas palavras”, a abandonar os ingleses e lutar ao lado dos franceses. Já a
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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rainha Margaret entra em cena quando Joana sai, no último ato da primeira
parte de Henrique VI, usando a sua sexualidade para conseguir se casar com o
rei. Nas duas partes seguintes, ela toma as rédeas do poder do marido, faz
política e vai à guerra. Derrotada em Ricardo III, ela ainda vive na corte, onde
assusta a todos com a sua língua ferina e as suas profecias terríveis que
terminam por se realizar. Pode-se concluir que Margaret atua significativamente
na tetralogia devido à sua destreza em se utilizar do poder, tanto masculino
quanto feminino.
Nas tragédias inspiradas na história de Roma aparecem três mulheres
fortes: Tamora em Titus Andronicus, Cleópatra em Antônio e Cleópatra e Volúmnia
em Coriolano, todas habilmente se movimentando no mundo político, dominado
por homens. Esta última o faz através do seu filho, Coriolano, cuja figura de
soldado ela moldou desde que ele era criança, ao mesmo tempo, tornando-o
emocionalmente dependente dela. No decorrer da ação, os papéis familiar e
político se confundem quando Volúmnia, se incumbe, juntamente com outra
matrona, Valéria, a esposa Virgilia e o filho de Coriolano de impedir que este
invada a cidade. É o poder matriarcal que salva Roma, como bem o reconhecem
os senadores.
Tamora era rainha dos Godos e se torna Imperatriz de Roma,
recorrendo às armas femininas – sexualidade e teatralidade – para participar
ativamente do poder político através da sua manipulação do imperador.
Cleópatra – a mais poderosa das mulheres shakespearianas – é uma rainha
que não precisa governar através de um rei, pois ela é soberana de um Estado
que ela consegue manter independente usando os seus instrumentos femininos
de sedução, retórica e performance; cativando, primeiro, Júlio César e, segundo,
Marco Antônio.
Nas chamadas “tragédias domésticas” como Romeu e Julieta e Otelo, o
poder patriarcal é o grande responsável pela morte dos dois amantes na
primeira, sendo Julieta desafiada a desposar Paris contra a sua vontade, e a de
Desdêmona na segunda, cujo pai desaprova o seu casamento com Otelo e
semeia a dúvida da sua fidelidade no espírito do marido. Tanto Julieta como
Desdêmona desafiam o patriarcado, casando por amor, com homens de sua
escolha, e pagam por isso.
As outras tragédias como Hamlet, Macbeth e Rei Lear privilegiam a
luta pelo poder político no meio das famílias reais, e as mulheres apenas se
aproximam dele. Ofélia e Gertrudes são protótipos de mulheres frágeis e
submissas; Lady Macbeth aparece poderosa no início da peça, desaparece e
só ressurge, enfraquecida, na famosa cena de sonambulismo; Cordélia
desagrada ao pai com a força da sua integridade, mas não consegue reconduzi-
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lo ao trono; e as suas irmãs, Regan e Goneril, apesar de aparentemente
angariarem mais poder ao ficarem sozinhas – a primeira, por viuvez; a segunda,
por desavenças com o marido – precisam de Edmundo para guerrear por elas.
A critica shakespeariana em geral elege as comédias como o gênero
dominado pela presença feminina, e “se Shakespeare não parece um feminista,
pelo menos, parece um homem que toma o partido da mulher” (BAMBER,
1982, p. 2). Não há dúvida de que o universo da comicidade abriga heroínas
admiráveis, exemplos de determinação e coragem; entretanto, poucas entre
elas conseguem exercer o seu poder além do permitido pelas leis sociais e
cômicas como acontece nas denominadas “comédias românticas”; nas
“sombrias” e nos “romances” as mulheres são submissas ao patriarcado, apesar
de algumas apresentarem alguma resistência.
As personagens femininas das comédias sombrias Troilus e Créssida,
Medida por medida e Bom é o que acaba bem têm a sua sexualidade como um dos
alicerces da trama. Senão, vejamos: Helena de Tróia e Créssida são julgadas e
denegridas pelos homens por serem consideradas devassas; Isabela em Medida
por medida e Diana em Bom é o que acaba bem, para preservarem as suas
virgindades, têm que recorrer ao “truque de substituição na cama”, o que vai
obrigar Ângelo a casar com Mariana e Helena com Bertram. Julieta é
condenada por estar grávida em Medida por medida e Helena, igualmente grávida,
tem que provar a Bertram e a todos que ele é o pai do seu filho em Bom é o que
acaba bem. É relevante assinalar que todas as três heroínas – Créssida, Isabela
e Helena – por causa da sua sexualidade, são submetidas a humilhações pelos
homens das peças: a primeira, passando de mão em mão e sendo beijada por
todos no acampamento dos gregos; a segunda, sendo ordenada a trocar a sua
castidade pela vida do irmão, e a terceira, sendo rejeitada pelo marido, que
nega ter tido relações sexuais com ela e que também desqualifica Diana, que
trocou de lugar com Helena na cama.
Nos romances – Péricles, Cimbeline, O conto do inverno e A tempestade –
até mesmo Imogênia que, a princípio, desafia a ordem do seu rei e pai Cimbeline
para casar com Póstumo, no final perdoa o marido que lhe havia mandado
matar por considerá-la adúltera; em Péricles, uma filha se submete tanto ao pai
que se torna sua amante, e em A tempestade, Próspero manipula Miranda para
servir aos seus propósitos. Só em O conto do inverno uma voz feminina ousa se
erguer mais alto do que a do rei: é a voz de Paulina que, ao defender a rainha,
se arrisca em ser punida; mas, ela não tem poder; é apenas uma dama da corte.
De início, deve-se assinalar que, as mulheres que dominam o universo
das comédias românticas são muito mais fortes do que os homens, com exceção
de Petrúquio em A megera domada e Benedito em Muito barulho por nada. Com
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exceção de Olívia em Noite de reis que é rica e independente, e Pórcia em O
mercador de Veneza que é igualmente rica, mas dependente da vontade de um
pai morto para escolher um marido, outras desafiam as normas da sociedade
patriarcal, desobedecendo aos pais para casar por amor e fugindo de casa
para consegui-lo. É o caso de Sílvia em Dois Cavalheiros de Verona, Hérmia em
Sonho de uma noite de verão, Jéssica em O mercador de Veneza e Ana em As alegres
matronas de Windsor. As mulheres também questionam a posição da mulher no
casamento através de suas línguas ferinas como o fazem Adriana em A comédia
dos erros, Catarina em A megera domada e Beatriz em Muito barulho por nada. As
heroínas das comédias exercitam o seu talento histriônico fazendo vários papéis
masculinos: Júlia vai ser pajem em Os dois cavalheiros de Verona e, também,
Viola em Noite de Reis; Jéssica passa por archoteiro, e Pórcia e Nerissa
representam um advogado e o seu assistente em O mercador de Veneza enquanto
em Como Quiserem, Rosalinda proporciona uma excelente performance como
Ganimede. Alíás, ela é a mais bem dotada de talento teatral entre todas as
outras figuras femininas das comédias, visto que, além de representar, ela
escreve uma parte do roteiro para ela e outras personagens – Orlando, Sílvio,
Phebe e o seu pai – e os dirige, também. Entretanto, o poder de todas essas
heroínas é exercido apenas temporariamente, pois a ideologia patriarcal apesar
de contestada e desestabilizada, é resgatada no final. Todas elas, até as poderosas
Pórcia, Beatriz e Rosalinda são gentilmente levadas a sucumbirem aos ditames
da hegemonia social através do amor e do casamento. Entretanto, isto não
acontece em duas comédias: em Trabalhos de amor perdidos, as mulheres, embora
apaixonadas, se recusam a se casar, e em As alegres matronas de Windsor, elas já
são casadas, e lutam pela sua autonomia. Nestas duas peças, o discurso patriarcal
não consegue convencer as figuras femininas a abrirem mão de seu poder.
O poder matriarcal em Trabalhos de amor perdidos
Provavelmente escrita entre 1594 e 1595, no início da carreira de
Shakespeare, Trabalhos de amor perdidos mostra o dramaturgo inteiramente
dependente da sua imaginação (não se conhece nenhuma fonte literária) e
exuberante no uso da linguagem (65% de verso e 35% de prosa), que ele
utiliza com extraordinária maestria. Em um enredo muito tênue – o Rei de
Navarra e seus três amigos resolvem fazer da corte uma “academia do saber”,
proibida às mulheres, e se esquecem da programada visita da Princesa de
França e suas damas em missão diplomática – pode-se dizer que a guerra dos
sexos se trava tendo a esperteza e as palavras como armas. E se prestarmos
atenção ao desejo do jovem pajem “que a esperteza de meu pai e a língua de
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minha mãe venham em meu socorro!” (I.2.113-114) que antecede a chegada
da Princesa e o seu séquito, veremos que os homens não são socorridos, e que
as mulheres, já possuidoras da língua da mãe, se apropriaram da esperteza do pai.
Tendo acabado de jurar total devoção aos estudos por três anos, os
rapazes sucumbem imediatamente aos encantos das moças, e à proposta de
cortejar “as francesinhas”, o rei responde confiante: “Cortejar, só, não. Vamos
conquistar” (IV.3.462). Só que eles não contavam com a inteligência e
irreverência das damas nem com a firmeza e a autoridade da Princesa. Eles
são por elas ridicularizados porque os consideram perjuros, frívolos e tolos.
Biron bem que entende que “Moças espertas podem virar praga / A castigar
os homens que perjuram” (IV.3. 481-482). Ele tinha razão: ao descobrir que
os homens pretendem lhe fazer uma visita disfarçados de russos, a Princesa
planeja virar o jogo fazendo com que ela e suas damas troquem de identidades:
“Somos bem espertas, ao criticar / Dessa forma, os que nos vêm cortejar....Vão
rir de nós? O troco vão levar./ Se vêm nos cortejar por diversão, / Caçoada
por caçoada é a intenção. / Eles vão abrir seu coração, / Sem saber, à amada
trocada e, então, / Nós é que vamos rir, ao lhes mostrarmos/ Nossos rostos,
quando os cumprimentarmos” (V.2. 78-79; 176-183). Rosaline reafirma as
intenções da Princesa e escolhe um alvo particular: “Eles é que são uns tolos,
ao buscar / Ser assim criticados. Vou tentar / Torturar Biron antes de voltar./
... Rebaixá-lo a ponto de me tornar sua / Sina, e ele em meu bobo transformar”
(V.2.80-82;92-93). Além de Biron, o Rei, Dumaine e Longaville são feitos de
bobos pelas suas respectivas amadas, que se divertem muito à custa do seu
patético amadorismo teatral: “Ficaremos nós aqui, criticando / Sua peça
fracassada. E, não aguentando / Nossos risos, a corja, envergonhada, / Vai
sem graça, botar o pé na estrada” (V.2.196-199).
Nas batalhas do amor, os homens são totalmente derrotados pela
língua das mulheres. O discurso masculino – verboso, cheio de preciosismos e
artifícios, contrasta com o feminino – franco, direto e realista, e revela os seus
autores como fingidos, irresponsáveis e frívolos: “Uma tal profusão de
hipocrisia, / Mentiras mil que só um tolo diria” (V.2.71-72). Sem dó nem
piedade, mas com muito humor, as moças desconstroem toda a retórica
masculina replicando com literalidade às suas metáforas: “Rei: Diz dos milhares
de passos que andamos, / Para dar uns passos co’elas na grama./ Rosaline:
Não pode ser. Pergunta-lhes, então, / Quanto mede um passo só. Pois se
andaram / Milhares, um, por certo, saberão” (V.2.231-232;235-237). Ou, “Rei:
Salve! Um bom dia, doce senhora!/ Princesa: Se é preciso salvar, bom não
seria!” (V.2.416-417). Ou, ainda: “Biron [para a Princesa que ele julga ser
Rosaline]: Só u’a doce palavra, por piedade. / Princesa: Mel, leite, e açúcar;
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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são três na verdade” (V.2.290-291). A destreza lingüística das damas é bem
analisada por Boyet, membro do séquito da princesa:
Zombaria de mulher é afiada
Como a navalha, cujo corte oculto
Corta um fio, onde não se via nada:
Sua conversa parece ter tal vulto,
Tem tal juízo, tanto discernimento!
Tem opiniões mais certeiras que setas,
Tiros, ventos, e o veloz pensamento. (V.2.314-320)
O final da comédia mostra que a ousadia shakespeariana já se fazia
presente desde o início da sua carreira: a forma cômica tradicional do final
feliz é desafiada e já anunciada no título, e Trabalhos de amor perdidos termina
em morte, sem casamento e sob total controle feminino. A peça dos Nove
Heróis é interrompida com a chegada de Marcade, o mensageiro que vem
anunciar a morte do pai da Princesa, o que determina o seu retorno à França
imediatamente. A imaturidade masculina se faz sentir quando o Rei sugere à
ela: “E já que o tópico do amor surgiu / Primeiro, não devemos nós deixar /
A nuvem da dor afastar o seu intento” (V.2.901-903). Estarrecida com estas
palavras, a Princesa só consegue retrucar: “Não o entendo, e isso aumenta
mi’a tristeza” (V.2.907).
As damas, apesar de apaixonadas, não aceitam os defeitos dos seus
amados e lhes dão penitências que, se cumpridas após um ano e um dia, elas
poderão aceitá-los como maridos. Assim, a comédia romântica termina sem a
união dos casais e sem ceder à hegemonia social que preconizava a instituição
do casamento; ao contrário das peças que só temporariamente davam o poder
às mulheres, Trabalhos de amor perdidos evidencia que não só os destinos dos
homens dependem delas, como o do próprio gênero da peça, como mostra a
primeira epígrafe deste artigo: “Nosso namoro não é qual peça antiga: / João
fica sem Maria. Sem sua rédea, / Senhoras, teríamos u’a comédia” (V.2. 10551057).
O poder matriarcal em As alegres comadres de Windsor
O final de Trabalhos de amor perdidos é prolongado com a presença de
Armado, que anuncia duas canções em honra da coruja e do cuco, que
defendem o inverno e a primavera, respectivamente, e que teriam sido
apresentadas para finalizar Nove Heróis, se a peça não tivesse sido interrompida.
A primeira é sobre a primavera:
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
O cuco, mui galhofeiro,
No alto de árvores cantando,
Repete, alegre, o dia inteiro,
De homens casados zombando:
Cuco! Cuco!
E logo outra ave o imita:
“Bem-te-vi! E vi!” Coitados!
Como esse canto irrita
O ouvido dos casados! (V.2.1086-1094)
Como nos esclarece Aimara Resende, “no imaginário inglês,
especialmente na época de Shakespeare, o cuco era associado ao marido
enganado, por duas razões: o som do nome cuckoo se aproxima do de cuckold
ou corno em português: além disso, o hábito que essa ave tem de colocar os
ovos em ninhos de outros pássaros, leva à conotação de marido traído”
(RESENDE, 2006, p. 231).
As alegres matronas de Windsor focaliza, no seu enredo principal, a
maior ansiedade masculina em relação ao casamento reproduzida
extensivamente nos vários textos da época, literários ou não: ser traído pela
esposa e, consequentemente, ser chamado de corno e ridicularizado como
sugere a canção acima.
Escrita depois de Trabalhos de amor perdidos, provavelmente no período
de 1597 a 1598, As alegres matronas de Windsor, em termos formais, se assemelha
à primeira comédia por dois fatores: o de não ter uma fonte determinada e o
de apresentar uma destreza linguística extraordinária, só que em prosa – 87.8%
em toda a peça. Entretanto, as duas comédias se distanciam no que se refere
ao contexto sócio-político-cultural: ao contrário de Trabalhos de amor perdidos
em que a ação se desenrola na França e entre a nobreza, em As alegres matronas
de Windsor o local é a cidade provinciana de Windsor, na Inglaterra, e sua
classe média.
Como o título indica, as protagonistas são duas mulheres bemhumoradas, Senhora Pajem e Senhora Ford que são vizinhas e amigas, e que
a partir da chegada de Dom João Falstaff (personagem principal das primeira
e segunda partes de Henrique IV) se mostram desafiadoras do sistema patriarcal.
Na mais realista das comédias shakespearianas, pois retrata a cultura doméstica
da época, e o romance de Ana Pajem com Fenton é apenas periférico, os
temas da vingança e do ciúme são tratados pelo viés do cômico.
Falstaff, sem dinheiro e confiante nos seus dotes de conquistador,
resolve cortejar as duas matronas ao mesmo tempo, enviando-lhes cartas iguais:
“Aqui está uma carta para ela [Madame Pajem]; dizem que ela, também,
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
67
controla a bolsa do marido. Estou certo de que descobri duas Guianas, cheias
de ouro e liberalidades. Explorarei as duas, de ambos os lados, minhas Índias
Ocidentais, orientais e horizontais. Vai, entrega esta carta a Madame Pajem. E
esta aqui, você a entrega a Madame Ford” (I.3.p.19). Ao descobrirem o golpe,
as duas mulheres, ajudadas por Madame Leva-e-Traz, decidem se vingar do
sedutor.
Deve-se ressaltar a informação obtida por Falstaff de que ambas as
mulheres “controlam as bolsas dos maridos”, o que já é um grande indício de
poder. Juntando-se a ele, temos o depoimento da Senhora Leva-e-Traz, que
nos dá uma boa idéia da autonomia que as mulheres conquistaram dentro da
instituição do casamento: “Dom Pajem é um homem extraordinário. Nenhuma
mulher de Windsor leva uma vida igual à mulher dele. Ela faz o que quer,
diz o que bem entende, compra tudo que deseja, dorme quando tem vontade,
levanta quando bem lhe agrada e o marido não diz nada. Verdade que ela
merece” (II.2.p.36). A senhora Ford parece ter as mesmas regalias, mas com
uma diferença: o ciúme doentio do marido que perturba o seu bem-estar.
Como já foi mencionado, o aspecto da sexualidade feminina que
concedia um pouco de poder à mulher era a possibilidade de traírem os maridos,
transformando-as em algozes e eles, em vítimas. Nesta peça, as matronas
honestas vão usar esta arma para poderem se vingar de dois destruidores de
reputação: o conquistador barato e o marido ciumento. Para tanto, elas vão
usar, além da sexualidade o seu talento teatral, escrevendo, dirigindo e
representando o roteiro da vingança, e se divertindo em ridicularizar os homens,
como diz Madame Ford: “Não sei o que me dá mais prazer: se é enganar
Falstaff ou enganar meu marido fingindo que o engano” (III.3.p.55). Enquanto
o Senhor Pajem confia inteiramente em sua mulher, o Senhor Ford o considera
um idiota e mostra que não confia em nenhuma; acreditando na encenação
das mulheres, ele condensa, em um solilóquio extremamente revelador, todo
o medo masculino de ter a honra manchada pelo comportamento infiel da
mulher e de ser chamado de corno:
Sinto que o coração vai rebentar de ódio. Eu não posso esperar! Quem ousa
repetir que meu ciúme era infundado? Minha mulher mandou chamá-lo,
marcaram hora e local, está tudo combinado. Quem poderia pensar em
coisa semelhante? Minha cama ficará manchada, meus cofres serão saqueados,
minha reputação dilacerada. E eu não só tenho que aguentar todas essas
infâmias, como ainda sou obrigado a ouvir as maiores ofensas da boca
daquele que me ultraja. Nomes! Apelidos! Qualificativos! Lúcifer, ainda vai.
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Satanás, eu suporto. Belzebu, eu engulo. Asmodeu, vá lá! São todos
apelativos demoníacos, designativas infernais. Mas, corno! E corno
consentido! Corno! Não. O próprio diabo nunca foi chamado disso, apesar
dos chifres. Pajem é um quadrúpede, um perfeito asno. Confia na mulher.
Não tem ciúmes. Eu com mais facilidade confiaria minha manteiga a um
flamengo, o meu queijo a um galês como o Hugo, minhas reservas de
aguardente a um irlandês, do que minha mulher a ela própria. Porque,
quando está só, a mulher pensa. Quando pensa, conspira. Quando conspira,
age. Pois quando deseja qualquer coisa, a mulher realiza, não lhe importando
os meios. Eu agradeço ao céu o meu ciúme. O encontro é às onze horas.
Vou surpreender minha mulher, castigar Falstaff e rir de Pajem. Vou
correndo. Melhor três horas antes que um minuto depois. Corno! Corno!
Corno! (II.2.p.40)
As matronas se vingam de Falstaff fazendo-o, primeiro, sair escondido
da casa dos Ford em uma cesta de roupa suja e ser jogado no rio, e, segundo,
obrigando-o a se disfarçar de mulher para escapar da fúria de Ford, mas
mesmo assim, levando umas bordoadas. E, ele termina castigado por toda
cidade de Windsor quando, a pedido das mulheres, coloca uma cabeça de
veado para encontrá-las no parque, portando, assim, os chifres que pretendia
colocar nas testas dos maridos. Enquanto isso, o marido ciumento é punido,
sendo ridicularizado por amigos e vizinhos, parte da comunidade masculina,
por acusar a mulher inocente. Nada mais resta a Ford do que se penitenciar
do seu erro e outorgar a sua esposa o direito conquistado por ela, como indica
a segunda epígrafe deste artigo: “Perdoa-me querida. De agora em diante,
você pode fazer o que entender” (IV.4. p.72).
Ao contrário de Trabalhos de amor perdidos, esta comédia respeita as
normas da forma e termina com um final muito feliz incluindo um casamento,
o de Ana Pajem e Fenton, e uma confraternização geral. Deve-se assinalar que as
mulheres continuam controlando a peça até o seu desfecho, fazendo com que
este seja marcado por uma inclusão total até com a participação de Falstaff,
proposta por Madame Pajem: “Bom marido, vamos todos pra casa / Falarmos
mais e mais desta noite hilariante / Dom João Falstaff vai conosco! /
Cavalheiros, avante!” (V.5.90).
Se dentro do universo da peça o poder matriarcal triunfa, fora dele,
é o patriarcal que o faz: “ironicamente, enquanto o título As alegres comadres de
Windsor aponta, sem sombra de dúvida, para a absoluta centralidade das matronas,
a história das encenações teatrais tende a dar o status de protagonistas aos atores
que representam os papéis de Ford e Falstaff ” (SCHAFER, 2000, p. 145).
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69
Conclusão
Como foi sugerido acima, na era elisabetana, o poder – do Estado,
do teatro e da sociedade – possuía contradições que desautorizam quaisquer
afirmações sobre o seu alcance ilimitado. O Estado, durante setenta anos, de
1553 a 1603, sendo sucessivamente chefiado por duas rainhas, Maria e
Elisabete; o teatro, tendo que lidar com três patronatos, um dos quais era
consideravelmente feminino; e a sociedade, regida por um sistema patriarcal,
sendo frequentemente ameaçada não só pelas figuras das bruxas e megeras,
como também, por mulheres de diversos segmentos da sociedade, cujos
desafios ao status quo não foram relatados. Como nos explica Alison Sim,
A mulher ideal dos reinados dos Tudors, de acordo com a literatura da
época, era uma mulher casta, silenciosa e obediente, descrita em todos os
livros cheios de conselhos sobre a organização da casa e da família, e como
uma mulher bem educada deveria se comportar. Estes livros dão a impressão
de que essas mulheres eram quietas e submissas, que nunca emitiam opiniões
em público, e que cediam aos desejos dos seus maridos em tudo. Todos
estes livros foram escritos por homens, e temos poucas evidências do que
as mulheres pensavam sobre este ideal. O comportamento registrado destas
mulheres sugere que elas tinham uma abordagem diferente na vida real.
(SIM, 2005, p. 137)
Além dos manuais de conduta, os textos, em geral, e os literários, em
particular, tendem a preservar as perspectivas daqueles cujas vozes falavam
mais alto e dominavam a sociedade. Os textos teatrais, por sua vez, por motivos
já explicados, veiculam opiniões e pensamentos outros, que nos permitem
avaliar o maior/menor grau de resistência feminina à ideologia dominante.
Shakespeare, em suas comédias, principalmente em Trabalhos de amor perdidos
e As alegres matronas de Windsor, indica que se deve relativizar a idéia do poderio
absoluto do patriarcado, mostrando como o poder matriarcal, com as poucas
armas ao seu dispor, ainda assim, ocasionalmente, consegue se impor e fazer
valer a sua vontade.
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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Artigo recebido em 19 de junho de 2009.
Artigo aceito em 25 de setembro de 2009.
Marlene Soares dos Santos
Pós-Doutora em Teatro Norte-Americano pela Universidade de Yale, EUA.
Doutora em Literatura Inglesa pela Universidade de Birmingham, Inglaterra.
Mestre em Língua Inglesa pela Universidade da Califórnia, Los Angeles, EUA.
Professora Titular de Literatura Inglesa da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).
Professora Emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Professora de Pós-Graduação do Programa Interdisciplinar de Lingüística
Aplicada (UFRJ).
Membro fundador do Centro de Estudos Shakespeareanos (CESh).
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
APROPRIAÇÕES/ADAPTAÇÕES DE SHAKESPEARE:
O HAMLET INTERMIDIÁTICO
DE ROBERT LEPAGE*
Thaïs Flores Nogueira Diniz
[email protected]
RESUMO: Juntamente com sua equipe,
o dramaturgo canadense Robert Lepage
criou um centro de pesquisa em Quebec,
o Ex Machina, que emprega um método
revolucionário de produção baseado em
dois princípios: a reescrita de obras
anteriores e a combinação da arte
performática com as novas tecnologias.
Este texto pretende analisar o espetáculo
Elsinore de acordo com estes princípios.
Esta performance solo será analisada
primeiramente como uma adaptação que
depende de um texto canônico para o
tema, personagens e idéias em torno dos
quais o espectador é estimulado a
participar. Em seguida, a análise terá
como base a riqueza dos recursos que
Lepage incorporou ao texto, a intermidialidade, tomada como algo muito
além da tradicional mistura de mídias,
resultando em um espetáculo totalmente
intermidiático
ABSTRACT: Together with his team, the
playwright Robert Lepage has created a
multicultural research centre in Quebec
that employs a revolutionary method of
production based on two principles: the
“recycling of already existing texts and the
meshing of types of performance art and
new technologies”. This text aims at
analyzing the spectacle Elsinore according
to these two principles. This one man show
will first be analysed as an adaptation
which depends on a canonical text for the
theme, characters and ideas around which
the spectator is stimulated to participate.
Then, the analysis will have as its basis
the richness of the resources that Lepage
has incorporated into the text, taking
intermediality beyond the traditional
mixing of media, resulting in a totally
intermedial work
PALAVRAS-CHAVE: Robert Lepage. Elsinore. Intermidialidade. Shakespeare. Hamlet.
KEY-WORDS: Robert Lepage. Elsinore. Intermediality. Shakespeare. Hamlet.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
73
Algumas produções recentes de obras de Shakespeare, principalmente
da peça mais encenada do autor, Hamlet, frequentemente provocam
controvérsia entre os acadêmicos, críticos e diretores de teatro sobre o modo
como esta peça deve funcionar no palco. Uma delas, a produção de Matthew
Warchus para a temporada da Royal Shakespeare Company em 1997, por
exemplo, se enquadra dentro das produções controvertidas. Esta versão, nas
palavras de Sarah J. Rudolph (1998, p. 234, minha tradução) “libera o texto
do seu cenário original e, ao mesmo tempo, sugere como a inovação pode ser
redutível em termos de acuidade histórica”1. Além de eliminar o episódio de
Fortimbras e as cenas do fantasma nas muralhas do castelo, inventa cenas de
Hamlet criança e apresenta os coveiros cantando “September Song”. O ator,
Alex Jenkings, que faz o papel de Hamlet, traz para o palco um personagem
muito mais visceral, se comparado com os papeis de Hamlet anteriores
(RUDOLPH, 1888, p. 235).
Assim como esta produção, em que há muitos cortes nas linhas, falas
e personagens e uma reorganização do material, há ainda outras, que fazem
parte do que se chamou de “sobrevivência de Shakespeare”. Esta sobrevivência
se deve, segundo Margaret Kidnie, ao fato de que uma peça não é, de modo
algum, um objeto estático, mas um processo dinâmico que evolui no tempo,
de acordo com as necessidades e sensibilidades dos espectadores. Porém a
linha divisória entre as obras consideradas como “sobrevivência de Shakespeare”
e o drama moderno “baseado” em Shakespeare não é muito claramente
definida. A categoria “drama moderno baseado em Shakespeare” pode ser
exemplificada por algumas produções, entre elas, o Hamlet, por Charles
Marowitz e o Elsinore, criado por Robert Lepage (KIDNIE, 2009, p. 90).
A reestruturação de Hamlet feita por Charles Marowitz, publicada
em 1963, quando o Teatro do Absurdo estava em voga, é uma versão
perfeitamente válida da peça, na qual o dramaturgo usa o texto “original”
como material para novas idéias, porém nunca afirma que as palavras são de
Shakespeare. O dramaturgo nos apresenta uma colagem daquilo que o próprio
personagem encontra quando regressa ao lar: o pai morto, a mãe casada
novamente, a corte cheia de traições, o estado ameaçado de invasão e uma
enorme pressão sobre ele para agir de um modo que ele se sentia incapaz2. As
cenas e as falas da peça são embaralhadas, sobrepostas e repovoadas. É o
próprio Marowitz que afirma que “a peça foi segmentada em uma colagem
com as linhas justapostas, as sequências reordenadas, os personagens misturados
ou ausentes e tudo encenado em pequenos fragmentos descontínuos que
apareciam como flashes subliminares da vida de Hamlet e das palavras de
Shakespeare radicalmente rearranjadas”(HOLDERNESS, 1998, p. 34, minha
74
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
tradução).3 Há outros personagens diferentes cujas falas nos são familiares,
porém endereçadas a outros personagens. A peça pode ser considerada uma
sátira; mais ou menos como Rosencrantz and Guildenstern Are Dead, com a qual
poderia ser comparada.
Já Elsinore, de Robert Lepage, uma performance solo, não tem a
finalidade de explorar o texto de Shakespeare, mas pode ser considerada uma
sucessão deslumbrante de perícia visual, um espetáculo de mágica, destinado
a exibir, com maestria, as estratégias de um verdadeiro feiticeiro (WOLFF,
1998, p. 237). É o próprio dramaturgo que afirma que o que o atraiu em
Hamlet foi a possibilidade de ligar os atos que o personagem precisava executar
a seus próprios pensamentos.4
Ao refletirmos sobre essas duas performances – a de Lepage e a de
Marowitz – tão diferentes das anteriores, surge a pergunta relacionada ao
conceito de sobrevivência postulado por Kidnie: seriam as estratégias dessas
duas performances, se comparadas às de outros diretores contemporâneos,
uma questão de grau ou cada uma delas poderia ser considerada uma
adaptação? Segundo Ruby Cohn, mesmo que seja uma ramificação, uma
derivação, qualquer adaptação de Shakespeare é reconhecível. Esta visão –
de que toda adaptação de certo modo declara seu status como adaptação –
faz parte da visão que Linda Hutcheon tem do fenômeno da adaptação, como
produto e como processo.
Como não se conhece toda a fortuna crítica de uma obra, e
principalmente a de Hamlet, fica difícil classificar definitivamente se a versão
é uma adaptação ou uma obra independente. Por esse motivo, Kidnie usa o
termo adaptação de maneira mais ampla, referindo-se a uma categoria de
algo em constante evolução e que vai sendo modificado a cada momento e a
cada espaço de recepção. Assim, se compreendemos uma obra como um
processo ao invés de um produto fixo, temos muitas alternativas na medida
em que cada obra vai sendo modelada em consequência e como resultado de
sua produção.
Em 2002, a revista Canadian Theatre Review dedicou um número inteiro
às adaptações de Shakespeare no Canadá. Os editores afirmam que escritores
e dramaturgos, quando estão reescrevendo, citando ou desafiando as obras de
Shakespeare, “fazem algo com Shakespeare” e não simplesmente “adaptamno”. Alguns exemplos de adaptações realizadas pelo mundo afora iniciam o
volume que depois apresenta vários espetáculos, escritos e/ou encenados no
Canadá, classificados como reproduções, homenagens, apropriações,
explorações, citações, traduções, adaptações e transadaptações de vários tipos:
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
75
dramáticos e narrativos. Um dos capítulos inclui o texto de Elsinore, a adaptação
de Hamlet por Robert Lepage. Na introdução ao texto, os editores argumentam
que o que deu fama à peça não foi o texto, mas o palco inovador, controlado
por computador.
Robert Lepage se define como um forasteiro não só em termos
pessoais e geográficos, mas também em termos artísticos: um homossexual
numa cultura predominantemente heterossexual; um separatista francófono e
uma voz quebequense numa nação dominada pelo inglês e, ainda, uma voz
que fala de fora do Quebec e mesmo de fora do Canadá, numa combinação
de línguas. Assim, enquanto apoiado por sua companhia de colaboradores de
longa data, ele se autodenomina um performer auto-suficiente, um auteur, que
combina as funções de diretor, designer, engenheiro de iluminação, ator principal
e dramaturgo. Embora seu trabalho possa se definir como um teatro da era
pós-industrial e pós-nacional, suas produções se assemelham a imagens póshumanas do cyborg, por integrarem máquinas e vídeo com ações ao vivo nas
quais os mecanismos parecem ser uma expansão do corpo do performer.
O objetivo deste texto é analisar a peça Elsinore que pode ser
caracterizada como uma ramificação/enxerto de Hamlet. Esta obra foi
concebida na mesma época em que duas outras importantes produções de
renomados dramaturgos o foram: Qui Est Là , de Peter Brook e Hamlet: a
monologue, de Robert Wilson, ambas baseadas em Hamlet. Lepage já havia
encenado várias peças de Shakespeare e sempre recorre a elas com a mesma
ambição: que Shakespeare seja visto de forma diferente. Elsinore não é
propriamente uma colagem: há linhas e até cenas que são cortadas mas a
história, como um todo não foge às expectativas. O que é surpreendente
sobre o modo com que Lepage modela o texto não é o radicalismo, mas a
familiaridade. Seja como uma produção independente ou como uma adaptação,
Elsinore permanece facilmente reconhecível através da manipulação do palco
e da tradição editorial que acompanharam a peça como texto e como
performance através dos tempos.
A idéia de Elsinore surgiu depois que Lepage e o designer, Carl Fillion,
leram muitas versões de Hamlet e viram várias de suas adaptações
cinematográficas. Este então criou um protótipo de uma máquina que
constituiria o cenário. As imagens eram projetadas numa tela gigante que ia do
chão ao teto, constituída de três painéis. O painel central era provido de um
sistema de roldanas que o fazia passar facilmente da posição vertical para a
horizontal, e de onde se destacava uma parte movediça circular, uma plataforma
onde havia aberturas, que serviam como portas, janelas ou alçapões, qualquer
que fosse a posição em que esta se encontrasse, e se transformavam em
76
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
quase tudo: o deque do navio, as escadas para o quarto da rainha, uma mesa
etc. Esta plataforma também girava sobre seu próprio eixo, de modo que
tanto um lado como o outro do círculo podiam ser vistos.
A adaptação se centrava nos clichês da peça e na mistura das cenas,
que eram apresentadas em ordem aleatória. O local, o castelo propriamente
dito, torna-se algo muito importante, um espaço multiplicado em vários outros:
biblioteca, quarto da rainha, túmulo e o lago onde Ofélia se afoga. Em
consequência, o palco assume proeminência e neste cenário desenrolam-se os
acontecimentos, interrompidos pela presença constante do processo tecnológico
– que incluía a voz eletronicamente modificada, efeitos de som e técnicas de
dublagem – enquanto o bloco parede/assoalho/teto, no qual o ator se movia,
se erguia, se abaixava e se movimentava. São momentos de pura magia.
Para ilustrar todo esse aparato, a cena de Polônio se mostra elucidativa.
Os espectadores encontram esse personagem pela primeira vez quando ele
vai informar os soberanos da loucura do príncipe que está apaixonado por
sua filha, Ofélia. O ator aparece vestido com roupas pesadas, com uma barba
postiça amarrada por uma tira atrás da cabeça, murmurando algumas palavras
e tentando manter o equilíbrio na plataforma que gira debaixo de seus pés. A
imagem que temos é a de um grotesco Polônio ocupadíssimo, que nunca
chega a lugar nenhum. No painel ao fundo, a carta de Hamlet para Ofélia,
para a qual o personagem chama nossa atenção apontando com uma vara, é
projetada em tamanho grande. A plataforma ergue-se para formar uma parede,
levando com ela o ator, que fica em pé na abertura central. Assim que a porta,
anteriormente um alçapão, gira para o lado contrário, Polônio sai de cena,
caindo na cena seguinte, onde o público o vê, olhando para cima, para as
pernas de Hamlet enquanto este lê sentado numa estante na biblioteca, efeito
que foi possível graças à colaboração de um dublê de corpo.
Esta versão, construída por meio de alta tecnologia, reduz a peça a
uma caixa de mágica, onde o conflito humano é ofuscado em prol da
engenhosidade visual de Lepage. O texto fica subordinado à imagem; a idéia,
ao efeito e a química da interação entre os personagens, ao narcisismo da
exibição. Segundo Kidnie (2009, p.140), tanto o Hamlet personagem como
Hamlet, a peça de teatro, nesta produção, consistem de superfícies e imagens
que Lepage explora e exibe por meio de uma técnica do ator5 e de um efeito
propiciado por um cenário único que leva o público a uma reação única. O
evento – cada encenação de Elsinore – incorpora fisicamente uma experiência
deste fim de século que muda os contornos de um texto canônico, um
personagem canônico e um autor canônico. O público nunca terá
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
77
experimentado um Hamlet como este e deixará o espetáculo sem ter aprendido
nada de novo a respeito da peça, mas conhecendo uma nova maneira de
encená-la. E, uma vez que se adentra o hall do castelo do príncipe dinamarquês
em companhia deste ator, diretor e mestre das novas mídias, nunca mais se
terá uma experiência semelhante dessa tragédia moderna de Shakespeare,
pois Elsinore é uma obra de imaginação infinita.
Notas
*
Uma versão reduzida deste texto foi apresentada no II ABRALIC, em São José do
Rio Preto em 2009.
1
“[…] realizes the potential of liberating a text from its original setting and at the
same time it suggests how innovation might prove at least as reductible as historical
accuracy”.
2
Disponível em: http://www.theexit.org/media/hamlet.html. Acesso em: 9 jun.
2009.
3
“The play was spliced-up into a collage with lines juxtaposed, sequences rearranged,
characters dropped or blended, and the entire thing played out in short discontinuous
fragments which appeared like subliminal flashes out of Hamlet’s life, in every case,
used Shakespeare’s words, though radically rearranged”.
4
Disponível em: http://www.changeperformingarts.it/Lepage/elsinore.html.
Acesso: 5 out. 2009.
5
Para um estudo desta técnica, ver o capítulo 4, Practical Workshops and Rehearsal
Techniques (DUNDJEROVIC, 2009, p. 89-141).
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237-240, May 1998.
Artigo recebido em 02 de março de 2009.
Artigo aceito em 07 de junho de 2009.
Thaïs Flores Nogueira Diniz
Pós-doutora pela University of London.
Doutora pela UFMG e Indiana University at Bloomington.
Professora Associada da FALE/UFMG.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
79
80
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
AS TRÊS FACES DA RAINHA:
ESTUDO COMPARATIVO DO PAPEL
DE GERTRUDES NAS TRÊS VERSÕES DE HAMLET
José Roberto O’Shea
[email protected]
Fabrício Mateus Coêlho
[email protected]
RESUMO. Inserindo-se nos contextos
teatrais elisabetano e jaimesco, este ensaio
trata das três versões de A Tragédia de
Hamlet, Príncipe da Dinamarca, de William
Shakespeare, publicadas, respectivamente,
em 1603 (Primeiro In-Quarto, Q1), 16045 (Segundo In-Quarto, Q2) e 1623 (Fólio,
F). Topicalizando a construção da
personagem da Rainha Gertrudes, o
ensaio conclui que, enquanto em Q2 e F
Gertrudes é um tanto ambígua,
sobretudo quanto à conivência, ou ao
conhecimento prévio do regicídio que
deflagra o conflito da peça, em Q1, a
Rainha é mais dócil, carismática e solidária
com o filho. Longe de pretendermos
identificar ou “escolher” uma construção
de Gertrudes em detrimento das outras
duas, nosso objetivo neste ensaio é
ressaltar diferenças entre as três “faces” da
Rainha da Dinamarca, na expectativa de
contribuirmos para uma compreensão
mais abrangente dessa peça
shakespeariana tão fundamental.
ABSTRACT. Inserted in the Elizabethan
and Jacobean theatrical contexts, this
essay addresses the three versions of The
Tragedy of Hamlet, Prince of Denmark, by
William Shakespeare, published
respectively in 1603 (First Quarto, Q1),
1604-5 (Second Quarto, Q2), and 1623
(Folio, F).
Foregrounding the
construction of Queen Gertrude’s
character, the essay concludes that, while
in Q2 and F Gertrude is rather
ambiguous, particularly as regards
conniving, or having previous knowledge
about the regicide that triggers the play’s
conflict, in Q1 the Queen is a milder figure,
sympathetic with her son, and also
charismatic. Far from wanting to
“choose” a given construction of
Gertrude over the other two, our objective
in this essay is to stress differences among
the three “faces” of the Queen of
Denmark, in the expectation to contribute
to a broader understanding of such a
fundamental Shakespearean play.
PALAVRAS-CHAVE: Shakespeare. Hamlet. Hamlet Primeiro In-Quarto. Gertred.
KEY-WORDS: Shakespeare. Hamlet. Hamlet Primeiro In-Quarto. Gertred.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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Se Shakespeare é o centro do cânone ocidental, A Tragédia de Hamlet,
Príncipe da Dinamarca é, por assim dizer, o centro do centro, o texto mais
frequentemente analisado de toda a Literatura Ocidental. No entanto, a despeito
de tal centralidade e da presença constante desse texto na crítica, um fato
crucial costuma passar despercebido: a existência de três Hamlets – a saber, o
Primeiro In-quarto (Q1) (1603), o Segundo In-quarto (Q2) (1604-5) e o Fólio
(F) (1623), este último constituindo uma coletânea de peças do autor impressa
postumamente por dois de seus ex-sócios.
Q2 e F são as versões mais aceitas no universo literário como de real
autoria do dramaturgo William Shakespeare, sendo geralmente reconhecidas
como versões autênticas devido a determinadas características que as
enquadram mais significativamente na obra shakespeariana, sobretudo a
“inteligência” do texto e a beleza da linguagem. Sendo mais conhecidas, Q2 e
F foram e são comumente traduzidas para diversas línguas, incluindo o
português, e muitas vezes aparecem “unidas” em uma única versão criada
por editores que mesclam os dois textos, originando uma forma híbrida.
O Primeiro In-Quarto, no entanto, tem sido a menos explorada das
três versões. Devido à notória falta de consenso entre os estudiosos quanto à
origem real do texto — revisão do “original”; encurtamento para encenação;
primeira versão da peça posteriormente estendida pelo próprio Shakespeare
—, o Primeiro In-quarto de Hamlet, incluído por Alfred W. Pollard no grupo
de “In-quarto espúrios” (bad quartos), tem sido deixado de lado em grande
parte das análises da obra. Mesmo entre os especialistas, são relativamente poucos
os que atentam para a primeira versão impressa da peça, o já mencionado Primeiro
In-Quarto “espúrio” (URKOWITZ, 1992, p. 258). Desafiando o consenso,
Kathleen Irace, ao ponderar sobre a verdadeira origem da versão, afirma que
“algumas das características especiais de Q1 parecem tão inteligentes que é
fácil imaginar que o próprio Shakespeare fosse responsável por elas, mesmo
que ele as tenha eliminado posteriormente da versão revisada (Q2)” (IRACE,
1998, p. 2).1
Ao falar sobre as idéias geradoras da “aversão” acadêmica em relação
a Q1, Steven Urkowitz (1992, p. 258) também afirma que tais “crenças comuns,
compartilhadas dentro da comunidade editorial, conquistaram o status de
dogma, e que desafios a estes dogmas têm se deparado com brados de
indignação e escárnio”. No entanto, continua ele, essas crenças não estão
embasadas em nenhuma metodologia coerente ou observações confirmáveis.
Para Urkowitz,o texto de Q1 deve ser valorizado por suas qualidades intrínsecas
— características que muitas vezes estabelecem contrastes interessantes em relação
à Q2 e F — e por ser, efetivamente, um documento do teatro renascentista.
82
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
A primeira evidência desse fato, conforme relembra Robert Burkhart,
está no próprio título da versão impressa de 1603: “The Tragic History of Hamlet
– Prince of Denmark – by William Shakespeare – As it has been diverse times acted by
his Highness’ servants in the City of London: as also in the two Universities of Cambridge
and Oxford, and elsewhere.”2 Burkhart insiste que ao invés de manter-se embate
para provar por que razões o Primeiro In-Quarto é um texto ruim, os estudiosos
deveriam investigar aspectos próprios desse texto e encorajar os leitores
contemporâneos a procurarem pelo rico e inesperado prazer da leitura dessa
versão “obscurecida”: “Devemos reconhecer que o texto de Q1 de Hamlet
pode ser estudado de maneira proveitosa como um produto da mesma indústria
teatral que deu origem aos trabalhos de Marlowe, Shakespeare e Jonson”,
propõe Burkhart (1975, p. 288).
Baseados nesse ideal já aderido por companhias de teatro e por edições
célebres, como a New Cambridge Shakespeare e a Oxford (O’SHEA, p. 2),
foram desenvolvidos os trabalhos da tradução de J. R. O’Shea do Primeiro
In-Quarto de Hamlet para o Português (a primeira tradução desse texto para
a Língua Portuguesa) e este ensaio comparativo de Q1, Q2 e F, focado no
papel de Getrudes, mãe de Hamlet, Rainha da Dinamarca, e personagem de
acentuado contraste na construção das três versões da peça.
São inúmeras e impressionantes as diferenças entre a versão de 1603
(Q1) e as versões subsequentes Q2 e F. Dentre elas, a mais exclamativa é, sem
dúvida, a discrepância entre suas extensões. De acordo com Irace, o Segundo
In-Quarto, que é a mais extensa versão da obra, possui 4.056 linhas; o Primeiro
Fólio possui 3.907 linhas, e o Primeiro In-Quarto, consideravelmente menor,
possui apenas 2.221 linhas. Outras diferenças significativas são a alteração
dos nomes de alguns personagens; a variação da participação de determinados
personagens na trama; a reordenação e recombinação de certos acontecimentos
e falas do enredo; atribuições de falas de um personagem a outro; bem como
a presença de rubricas exclusivas, além de uma cena absolutamente inédita
entre Horácio e a rainha Gertrudes.
A despeito das várias diferenças elencadas entre as versões, a
caracterização de Gertrudes se destaca por ser esta talvez a personagem com
as discrepâncias mais impactantes e significativas para o enredo da primeira
versão, em contraste com as seguintes. Apesar de ser expressivamente mais
breve do que as versões posteriores e de ter inúmeras falas e mesmo cenas a
menos, Q1 possui uma cena inexistente em Q2 e F, entre o amigo de Hamlet,
Horácio, e a mãe do Príncipe, a rainha, cena esta que, unida a outros detalhes
de caracterização da personagem, permite aos leitores uma interpretação
bastante diversa do papel de Gertrudes na trama. A personagem pode passar
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
83
a ser vista como uma mulher mais amável e dócil do que nas versões mais
longas, ou até mesmo como inocente no plano de assassinato de seu primeiro
marido, o rei Hamlet. Isso sem mencionar o fato de que “a mãe de Hamlet é
suficientemente verossimilhante para ter sido frequentemente tratada pela
crítica como se fosse um ser de carne e osso” (OLIVEIRA, 2008, p. 42).
Cientes da importância do papel de Gertrudes como personagem
ativa na trama em qualquer das versões, e da possibilidade de uma expressiva
inversão desse papel na versão mais curta da obra, procuramos com este
trabalho analisar desde as diferenças mais perceptíveis até as mais sutis que se
manifestam na construção da personagem, visando à identificação de dados
concretos sobre a magnífica construção desta personagem nos três textos em
contraste. Em ordem de extensão, comecemos pelo Segundo In-Quarto.
Gertrudes no Segundo In-quarto
Relembrando: o Segundo In-Quarto (Q2), publicado em 1604-5, é a
versão mais extensa e “bem acabada” da obra, contendo mais de 4000 linhas;
Q2 é também, ao lado do Primeiro Fólio (1623), a versão mais aceita no
universo literário como de real autoria do dramaturgo; Q2 e F costumam ser
reconhecidas como versões autênticas devido a características presentes nestas
que as enquadram mais significativamente no drama shakespeariano, por
exemplo, a inteligência temática e a graciosidade da linguagem. Sendo uma das
versões mais conhecidas, Q2 é comumente traduzida para diversas línguas, inclusive
o português, e muitas vezes aparece, como define o neologismo, “conflacionada”
ao Fólio, em uma única versão criada por editores que mesclam os dois textos,
originando uma versão híbrida que, na verdade, não foi escrita por Shakespeare e
jamais foi encenada como tal na Inglaterra durante o período jaimesco.
Topicalizando a Rainha da Dinamarca, vale dizer que, de modo geral,
uma leitura pouco crítica do Segundo In-quarto pode gerar certa ambivalência
quanto ao possível envolvimento de Gertrudes na trama de traição e homicídio
que dá origem à história, ou, ao menos, quanto ao seu conhecimento dos
fatos criminosos. Teria sido Gertrudes cúmplice de Cláudio no assassinato do
marido? Estaria ela a par da identidade do assassino, sendo conivente com
este? No entanto, Q2 parece eximir a Rainha de culpa em relação ao assassinato
do marido. Não há em Q2 qualquer fala na qual a personagem confesse ou
denuncie a sua participação na trama de Cláudio para matar o irmão, ou
mesmo conhecimento da existência de tal arranjo. Tampouco existe qualquer
passagem em que algum personagem afirme saber do envolvimento da Rainha
na morte do marido. O próprio fantasma do rei Hamlet, sabidamente a primeira
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
vítima da tragédia, endossa o fato de que Gertrude merece ao menos o
benefício da dúvida, e adverte o filho: “(...) But howsomever thou pursues this act
taint not thy mind nor let thy soul contrive against thy mother aught; leave her to heaven
(...)” (1.5.84-86), sendo que ele próprio, um ser místico conhecedor de verdades
além das possibilidades da razão humana, não sabe, ou aparenta não saber, de
nada que atribua culpa à esposa.
É verdade, no entanto, que Hamlet durante a discussão que tem
com a mãe, na célebre cena da alcova, logo após a encenação da peça dentro
da peça, através da qual o Príncipe julga ter visto comprovada a culpa do tio,
parece insinuar que a Rainha partilhasse do crime de Cláudio:
A bloody deed – almost as bad, good mother,
As kill a king and marry with his brother. (3.4.26-27)
A insinuação, no entanto, pode ser explicada com base na indignação e na
revolta do Príncipe por ver sua mãe casada, dedicada e apaixonada pelo homem
que, segundo a denúncia do Fantasma, matou seu pai e usurpou sua coroa.
Para T. S. Eliot (OLIVEIRA, 2008, p. 19), numa peça que é exemplo de
excessos – a mais longa do cânone shakespeariano – e que possui cenas
supérfluas e incoerentes, também parecem excessivos o luto prolongado de
Hamlet e o seu sofrimento em face ao comportamento da mãe. Hamlet,
numa cena permeada de erotismo concedido pelo local (aposentos da rainha)
e por um discurso apaixonado (OLIVEIRA, 2008, p. 44), parece assumir o
papel de marido traído, que se impõe diante da esposa com acusações e
posicionamento mais severos do que os exigidos pelas ações desta. Além disso,
outra questão central do texto, e que contribui para a aspereza da censura de
Hamlet em relação à mãe, conforme apontado por Oliveira (2008, p. 42), é o
horror à sexualidade feminina, comum nas sociedades patriarcais.
Principalmente em relação a uma figura feminina que, segundo os críticos,
reúne aspectos da mais dedicada ternura e devoção, além de uma sexualidade
exacerbada e destruidora do homem.
Com efeito, mesmo que o Príncipe acusasse Gertrudes diretamente, tal
acusação seria questionável, já que a única fonte de informações acerca do
assassinato é o fantasma do Rei Hamlet, que, a propósito, nada menciona
sobre o possível envolvimento da Rainha, culpando-a tão-somente por ter se
rendido à sedução de Cláudio e ao seu “leito incestuoso”:
O Hamlet, what falling off was there,
From me whose love was of that dignity
That it went hand in hand even with the vow
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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I made to her in marriage, and to decline
Upon a wretch whose natural gifts were poor
To those of mine. (1.5.47-52)
Porém, a possível conivência não é a única culpa plausível de ser
imputada à complexa e contraditória Rainha da Dinamarca. Personagem
marcadamente dividida entre seu papel de rainha, esposa e mãe, Gertrudes
não é inocente do “pecado” de um amor impossível, de se apaixonar pelo
irmão do seu marido, e talvez tê-lo feito mesmo enquanto o Rei Hamlet ainda
estava vivo. Contudo, em nenhuma passagem dos três textos há qualquer
indicação de que o amor de Gertrudes por Cláudio datasse de antes da morte
do seu primeiro marido. O uso da palavra incesto, aponta Oliveira (2008, p.
31), remonta ao fato de que a teologia renascentista considerava o casamento
entre cunhados ato incestuoso. Além do mais, os próprios insultos do Fantasma
ao seu irmão, quando, no primeiro momento em que conversa com Hamlet,
chama o irmão de “besta adúltera”, surpreendentemente, deixam dúvidas
quanto à real existência de adultério. Ann Thompson e Neil Taylor (2003, p.
214) afirmam que Shakespeare já fizera uso da palavra adulterate em outras
obras, com um sentido mais genérico e próximo em significado a “corrupto”,
e que, além disso, é notoriamente incerta a intenção do Fantasma ao utilizar
essa palavra, já que sua indulgência para com a Rainha em diferentes pontos
da peça indicaria conhecimento por parte deste da inocência de sua esposa.
Por outro lado, a inferência de que houve de fato adultério é cabível
se for levada em conta a presteza com que a rainha se casou com Cláudio e as
inúmeras demonstrações de amor e submissão ao novo rei. Um último fator
que sugere a possibilidade de adultério é a confissão da Rainha de estar ciente
de suas próprias “máculas”, em face das inúmeras acusações proferidas pelo
filho em relação ao seu casamento com o cunhado na já citada cena da alcova:
O Hamlet, speak no more.
Thou turn’st my very eyes into my soul
And there I see such black and grieved spots
As will leave there their tinct. (3.4.87-90)
Acreditamos que a afirmação da existência de tal mácula em seu espírito
indique uma culpabilidade mais significativa do que a de ter se casado
novamente em tão curto período após a viuvez, algo que lhe doa
profundamente, mas algo que a Rainha não tenha tido forças para evitar —
um possível adultério.
86
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Além de rainha e esposa, Gertrudes se destaca na obra ao
desempenhar seu papel de mãe. Em diversos momentos da história ela expressa
de maneira clara amor e preocupação com o filho, dentre eles: quando se
preocupa com a loucura de Hamlet e tenta descobrir o motivo de tal
perturbação; quando pede que este sente-se perto dela durante a apresentação
da peça, “Come hither, my dear Hamlet, sit by me” (3.2.105); quando o defende
durante a luta com Laertes, pedindo a Laertes que releve o comportamento
de Hamlet já que seria resultado de loucura:
For love of God, forbear him (5.1.262)
………………………………
This is mere madness,
And thus awhile the fit will work on him.
Anon, as patient as the female dove
When that her golden couplets are disclosed,
His silence will sit drooping. (5.1.274-277)
Finalmente, esse afeto é expresso quando a Rainha brinda o sucesso do filho
durante a luta com floretes, mesmo contrariando a ordem do Rei,
desobedecendo-o, fatalmente, pela primeira e única vez em toda a peça:
Queen: (...) The Queen carouses to thy fortune, Hamlet.
King: Gertrude, do not drink.
Queen: I will my lord. I pray you pardon me. (5.2.271-274)
Até mesmo Cláudio confirma a veracidade do amor de Gertrudes
por seu filho, ao explicar o porquê de sua cautela ao lidar com o príncipe:
“The Queen his mother lives only by his looks” (4.7.12-13).
No entanto o amor de Gertrudes por Hamlet disputa espaço com o
amor pelo Rei e com o desejo de restabelecer harmonia, ou ao menos o status
quo anterior, além do desejo de reinar ao lado do homem que ama e ver este
e seu filho se relacionando amigavelmente:
Good Hamlet, cast thy knighted colour off
And let thine eye look like a friend on Denmark (...). (1.2.68-69)
Gertrudes chega a frisar o fato de que Cláudio é agora “pai” de Hamlet:
“Hamlet, thou hast thy father much offended” (3.4.8). Talvez na intenção de alcançar
tal harmonia, a Rainha pede a Guildenstern e Rosencrantz que espiem e
investiguem Hamlet, no intuito de descobrirem o motivo de sua loucura
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
87
repentina, oferecendo-lhes recompensas à altura das posses reais. Tal atitude,
entretanto, não anula as demonstrações de afeto maternal, mas revela uma
complexidade de caráter da Rainha do Segundo In-Quarto, personagem repleta
de contradições e sentimentos conflitantes que apontam intensa
verossimilhança e que expressam a magnitude da humanidade conferida por
Shakespeare a seus personagens mais marcantes.
Gertrudes no Primeiro Fólio
A Gertrudes do Primeiro Fólio não apresenta grandes discrepâncias
em relação à Gertrudes retratada no Segundo In-Quarto; portanto, há pouco
a acrescentar. O Primeiro Fólio tem cerca de 150 linhas a menos que Q2,
mas, por seu turno, apresenta linhas exclusivas. No texto do Fólio é a própria
Rainha que chega à conclusão de que é sensato receber Ofélia quando esta,
enlouquecida em consequência da morte do pai e do desamor de Hamlet,
pede para falar com Gertrudes — e não Horácio quem a aconselha a tal,
atitude que sugere uma monarca mais ponderada. Além disso, na briga que
ocorre durante o sepultamento de Ofélia, é o Rei quem diz a Laertes que a
atitude de Hamlet é resultado de sua loucura, fala pertencente à rainha em
Q2. Isso diminui a interseção de Gertrudes pelo filho nesta cena, mas ela,
ainda sim, o defende: “For the love of God, forbear him” (5.1.269). Apesar de tais
discrepâncias, as falas da Rainha em F divergentes de Q2, ao nosso ver, não
implicam em mudanças no caráter da personagem ou na sua importância
para a obra. Portanto, essa “segunda” rainha apresenta uma face similar à
primeira, isto é, à de Q2.
Gertrudes no Primeiro In-quarto
No Primeiro In-Quarto da peça (Q1), as mudanças relacionadas às
Gertrudes, aqui chamada Gertred, são as mais notáveis. A começar pela
extensão da sua participação na trama: já consideravelmente breve nas versões
mais longas, e ainda mais reduzida na versão mais curta. Também quanto às
marcações de palco, podemos destacar diferenças: por exemplo, no texto de
Q2, a rainha participa ativamente da cena com Guildenstern e Rosencrantz,
definindo a entrevista e controlando o movimento no palco; já em Q1 a
rainha mantêm-se apenas como um adjunto do Rei, não dizendo ou fazendo
nada de substancial (URKOWITZ, 1992, p. 280).
Em consonância com a “nova” caracterização de Gertrudes, e
contribuindo essencialmente para esta, está a já mencionada cena inédita do
88
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Primeiro In Quarto de Hamlet. De acordo com Irace (1998, p. 36), de todos
os “Primeiros In-Quartos” das peças de Shakespeare, o Primeiro In-Quarto
de Hamlet é o único a possuir uma cena que não esteja presente nas versões
mais extensas. Tal cena — na qual Horácio avisa a Rainha que Hamlet retornara
à Dinamarca (depois de ter sido enviado à Inglaterra pelo rei em um
estratagema deste para matar Hamlet), décima quinta cena de Q1 — concentra
informações de três cenas diferentes em Q2 e F e, além disso, corrobora a
acentuada “nova” personalidade da Rainha em Q1.
Se em Q2 e no Fólio, a inocência da Rainha quanto à trama para
assassinar o rei Hamlet é inferida a partir da ausência de trechos que comprovem
sua culpa, em Q1, além da mesma falta de acusações explícitas, a inocência da
Rainha é declarada por ela mesma e demonstrada por suas ações. Durante a
discussão com Hamlet na alcova, ao ouvi-lo revelar que Cláudio matara o
antigo rei, Gertred demonstra espanto e total desconhecimento do acontecido:
But, as I have a soul, I swear by heaven
I never knew of this most horrid murder. (11.85)
Em seguida, na mesma cena, a Rainha promete, em nome de Deus, fazer
tudo o que puder para auxiliar Hamlet naquilo que ele decidir fazer em relação
ao Rei:
Hamlet, I vow by that Majesty
That knows our thoughts and looks into our hearts
I will conceal, consent and do my best –
What stratagem soe’er thou shalt devise. (11.97-100)
Irace (1998, p. 51) afirma que em Q1 fica patente que Gertrudes não é
culpada de nada além, é claro, de um casamento indiscreto. Mais além, no já
citado exclusivo diálogo com Horácio, Gertred afirma perceber a vilania na
aparência do Rei, assim como sua perícia em dissimulá-la, e se propõe a manipulálo, agradando-o e obedecendo-lhe, para que ele não desconfie da trama:
Then I perceive there’s treason in his looks
That seemed to sugar o’er his villainy.
But I will soothe and please him for a time
(For murderous minds are always jealous). (14.10-13).
Outra diferença importante, já mencionada mas não discutida, é a
“omissão” da Rainha durante a cena na qual Cláudio cumprimenta e instrui
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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Rosencrantz e Guildenstern para que espionem Hamlet. No texto de Q1, a
participação de Gertrudes na cena é limitada a uma linha, ao passo que nas
versões mais extensas, ela lisonjeia os espiões, afirma que sua ajuda receberá
recompensas dignas de rei e ainda ordena aos criados que os conduzam até
seu filho.
Contudo, essa Rainha justa e aliada do filho no Primeiro In-Quarto é
também apaixonada pelo novo marido. Ela não aceita o crime perpetrado e
permanece irredutível ao lado de Hamlet, mas ama Cláudio e parece desejar
que ele nunca tivesse cometido tal mal. Quando Hamlet lhe revela o crime,
seu amor pelo atual marido e o desejo de restabelecer harmonia na corte
fazem-na tentar convencer o filho de que toda a história não passava de fruto
de seu destempero, chegando mesmo a pedir-lhe que esqueça tudo o que
acabara de falar:
Alas, it is the weakness of thy brain
Which makes thy tongue to blazon thy heart’s grief.
[...]
But, Hamlet, this is only fantasy
And, for my love, forget these idle fits. (11.83-88).
A relutância em aceitar o que o filho lhe contara torna-se ainda mais plausível
se levarmos em consideração o fato de que Gertred realmente acreditava que
o filho estivesse louco. Por fim, uma outra demonstração de amor ao Rei
acontece quando Laertes esbraveja com este que seu pai fora assassinado, e a
Rainha interfere, em defesa do Rei, alegando que Corambis (Polônio em Q1)
fora assassinado, sim, mas não por Cláudio.
As ações e as palavras registradas no Primeiro In-Quarto revelam
uma Rainha cuja face maternal é bem mais impactante do que nas outras
duas versões. Além de acreditar em Hamlet e se dispor prontamente a auxiliálo quando este lhe revela a trama do assassinato do pai, Gertred se mostra
constantemente preocupada com o filho, com o seu bem-estar, sua segurança
e sanidade. E a maneira como Gertred se despede de Horácio na cena exclusiva
é evidente demonstração dos fortes sentimentos maternos da Rainha em Q1:
Thanks be to heaven for blessing of the Prince!
Horatio, once again I take my leave,
With thousand mother’s blessings to my son. (15.31-33)
Concluindo: se, por um lado, as faces da Rainha em Q2 e F são mais
ambíguas, sobretudo quanto à conivência, ou ao conhecimento prévio no que
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
diz respeito ao regicídio que pontua a peça, ambiguidade esta que, para muitos,
remete à intrigante complexidade dos grandes personagens shakespearianos,
por outro, em Q1, a Rainha é mais dócil, solidária e carismática. Além das
importantes e já mencionadas ações e palavras da soberana que apontam para
esta conclusão, há também pequenos fatos de sutil relevância: ela aqui não
pede ao filho que abandone o luto pelo pai; ela se mostra sinceramente feliz
ao vê-lo inclinado à diversão, num momento em que acredita que o filho está
louco: “(...) it joys me at the soul / he is inclined to any kind of mirth” (8.2223); ela não evidencia culpa ou estigma durante o desenrolar da história e
principalmente diante das duras palavras que ouve de Hamlet na reveladora
cena em seus aposentos. Longe de pretendermos identificar ou “escolher”
uma construção de Gertrudes em detrimento das demais, nosso objetivo neste
ensaio foi ressaltar diferenças entre as três “faces” da Rainha da Dinamarca,
na expectativa de contribuirmos para uma compreensão mais abrangente desse
texto shakespeariano tão fundamental.
Notas
A tradução dos trechos originalmente em língua inglesa é de nossa autoria.
2
Isto é, “A Trágica História de Hamlet – Príncipe da Dinamarca – por William
Shakespeare – Como diversas vezes encenada pelos criados de sua Alteza na Cidade
de Londres: assim como em ambas as Universidades de Cambridge e Oxford, e em
outras localidades”.
1
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Artigo recebido em 03 de julho de 2009.
Artigo aceito em 30 de setembro de 2009.
José Roberto O’Shea
Pós-Doutor em Letras e Artes pela Universidade de Exeter, Inglaterra.
Pós-Doutor em Letras e Artes pela Universidade de Birmingham, Inglaterra.
Doutor em Literatura Inglesa e Norte-Americana pela Universidade da Carolina do
Norte, EUA.
Professor Titular de Literatura Inglesa e Norte-Americana e de Tradução do Curso
de Letras da UFSC.
Professor de Pós-Graduação em Inglês e Literatura Correspondente da UFSC.
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93
Fabrício Mateus Coêlho
Aluno do curso de graduação em Letras da UFSC.
Faz parte do Programa de Iniciação Científica, com bolsa concedida pelo CNPq.
Contemplado com uma bolsa FIPSE/CAPES, para cursar um semestre letivo na
Universidade da Califórnia em Los Angeles.
94
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
HAMLET E AS PERFORMANCES FEMININAS:
DAS PRIMEIRAS AVENTURAS NO TEATRO
AO FILME DE ASTA NIELSEN*
Liana de Camargo Leão
[email protected]
Mail Marques de Azevedo
[email protected]
RESUMO: Este trabalho examina as
performances de Hamlet por mulheres sob
três ângulos: evidências no texto
dramático de Shakespeare de traços
femininos do personagem; a tradição da
performance feminina de Hamlet em
palcos ingleses, a partir do século XVIII,
em parte como resistência a padrões de
conduta e normas restritivas impostas à
mulher; a performance de Hamlet por duas
grandes atrizes, Sarah Bernhardt e Asta
Nielsen, e seu papel decisivo nos
momentos iniciais da história do cinema
mudo. Para enfatizar a importância do
estudo da feminilidade em Hamlet,
analisa a reação da crítica que tende a
considerar excessivamente masculina e
agressiva a performance de algumas atrizes,
enquanto vê associações com o universo
feminino nas interpretações de atores
famosos.
ABSTRACT: This text examines
performances of Hamlet by female
actresses from three different angles:
evidences in Shakespeare’s dramatic text
of the protagonist’s feminine features;
the tradition of the performance of
Hamlet by actresses on the British stage,
from the XVIII century onwards, partly
as resistance to patriarchal standards and
restrictions; the performance of Hamlet
by two great actresses, Sarah Bernhardt
and Asta Nielsen, and their relevance to
the early history of silent movies. Finally,
to emphasize the importance of studying
the feminine in Hamlet, it analyzes critical
commentaries that tend to point out
excessive masculinity and aggressiveness
in some actresses, as well as features of
femaleness in the performance of famous
actors.
PALAVRAS-CHAVE: Hamlet. Performance feminina. Cinema mudo. Teatro.
KEYWORDS: Hamlet. Feminine performances. Silent movies. Theatre.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
95
Uma mente realmente grande deve ser,
necessariamente, andrógina.
Samuel Taylor Coleridge
Shakespeare was androgynous.
Virginia Woolf
Introdução
É fato inegável que o papel de Hamlet, desde as últimas décadas do
século XVIII, é o que mais tem inspirado atrizes de diferentes grandezas a
desafiar convenções e a encarnar no palco o mais conhecido e, paradoxalmente,
o mais misterioso e controverso dos heróis de Shakespeare. É paradoxal,
também, a inversão que se produz na performance do todo-masculino teatro
shakespeariano: da Ofélia renascentista interpretada por rapazes imberbes
para um Hamlet sombrio vivido por mulheres, a estrutura do elenco sofre
profunda reversão. Ainda um terceiro paradoxo: na primeira transposição da
tragédia para o cinema, em 1900, o jovem Hamlet foi vivido por uma mulher,
o que se repete no primeiro longa-metragem baseado na peça, em 1920.
Este trabalho objetiva, em um primeiro momento, examinar uma
peculiaridade fascinante do texto de Shakespeare, ou seja, analisar as passagens
que evidenciem traços femininos de Hamlet e que possam ter levado intérpretes
e diretores a acentuar esse aspecto na representação da peça no teatro e no
cinema. Em um segundo momento, delineia-se, de forma breve, a tradição de
atrizes que ousaram subir ao palco como Hamlet e que abriram caminho para
que, também no cinema, outras atrizes pudessem representar o ambicionado
papel, consagrador ou destruidor de reputações artísticas. Finalmente, discutemse, com maior amplitude, dois importantes momentos iniciais da história do
cinema mudo, em que Hamlet é representado por duas grandes atrizes
merecidamente célebres – a francesa Sarah Bernhardt e a dinamarquesa Asta
Nielsen.
A melancolia e o feminino no texto shakespeariano
É possível apontar, no texto do drama, passagens específicas que
põem em relevo o lado feminino de Hamlet, quando visto por outras
personagens ou revelado nas suas próprias atitudes e solilóquios. Logo no
início da peça se dá o primeiro contato da plateia com o príncipe da Dinamarca:
surge, na cena 2 do primeiro ato, um Hamlet sombrio, vestido de negro, em
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
atitude de profundo sofrimento e luto pelo pai, em contraste com a atmosfera
festiva da corte que celebra as bodas de Gertrudes e Cláudio. Hamlet está
apartado visual e, também, espiritualmente da corte em festa. Sua mãe lhe
pede que dispense a cor soturna; o novo rei, seu tio, julga ser o luto de Hamlet
fruto de obstinada teimosia e de um sofrimento impróprio de um homem:
CLAUDIUS: Dedicar ao pai esse tributo póstumo, Hamlet,
Revela a doçura da tua natureza.
Mas, você bem sabe, teu pai perdeu um pai;
O pai que ele perdeu também perdeu o dele;
Quem sobrevive tem, por certo tempo,
O dever filial de demonstrar sua pena.
Mas insistir na ostentação de mágoa
É teimosia sacrílega, lamento pouco viril. (MILLOR, 1995, p. 109)1
Ao final da cena, em seu primeiro solilóquio, o jovem príncipe,
amargurado, contempla a possibilidade da morte – “Oh, se esta carne rude
derretesse/ E se desvanecesse em fino orvalho! / Ou que o Eterno não
tivesse oposto/ Seu gesto contra a própria destruição” (MENDONÇA, 2004,
p. 44). O desejo expresso de morrer revela à plateia seu estado de profunda
melancolia, “em um lamento pouco viril”.
Coincidência recorrente ou desígnio específico, o solilóquio do príncipe
da Dinamarca, na cena 2 do segundo ato, vale-se novamente de termos do
universo feminino para expressar a suprema degradação a que chegara:
HAMLET:
[...] Oh, vingança!
Ah, que jumento eu sou! Isso é decente,
Que eu, filho de um pai assassinado,
Chamado a agir por anjos e demônios,
Qual meretriz sacie com palavras
Meu coração, côas pragas das rameiras
E das escravas! (MENDONÇA, 2004, p. 111)
A execração furiosa de Hamlet volta-se essencialmente contra ele
mesmo, pois, ao invés de vingar um pai muito amado, limita-se a proferir
palavras vazias, impropérios e maldições que melhor caberiam a uma rameira
ou à mais baixa das criadas; a comparação de Hamlet com meretrizes e escravas,
que falam ao invés de agir, reflete a oposição tradicional à época entre as
palavras da mulher e as ações do homem – “As mulheres são palavras, os
homens ações” [“Women are words, men deeds”] (THOMPSON & TAYLOR,
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2006, p. 277). A hesitação em agir para vingar o pai assassinado faz com que
Hamlet se julgue fraco e impotente, como as mulheres que podem apenas praguejar.
No outro extremo do drama, próximo ao dènouement trágico, na cena
2 do quinto ato, quando está prestes a bater-se em combate com Laertes, por
instigação de Cláudio, Hamlet confidencia a Horácio sentir maus presságios,
como os que talvez perturbassem uma mulher:
HORÁCIO: Perderá a aposta, meu senhor.
HAMLET: Não creio. Desde que ele foi para a França, eu tenho treinado
constantemente. Eu vencerei, com a vantagem que me oferecem. Mas não
podem imaginar a angústia que sinto aqui no coração; mas não importa.
HORÁCIO: Mas, não, meu bom senhor.
HAMLET: Isso é tolice, mas é a espécie de pressentimento que talvez
perturbasse uma mulher. (MENDONÇA, 2004, p. 225-226)
Embora se mostre capaz de transformar “palavras” em “ações” com
inteligência e audácia, “o príncipe melancólico”, um dos epítetos que identificam
Hamlet, se reconhece presa de uma angústia feminina, em contraste com a
confiança que demonstra em sua habilidade no manejo da espada. Outras
passagens acentuam a melancolia profunda do herói, o “mal do século” nos
tempos da renascença inglesa. Descrita por Timothy Bright, em seu Treatise of
Melancholie (1586), texto que Shakespeare provavelmente conhecia, foi, mais
tarde, magistralmente esmiuçada por Robert Burton em seu colossal Anatomy
of Melancholy (1621). Bright identifica a melancolia como um mal que atinge,
sobretudo, as mulheres e as camadas sociais intelectualizadas. Burton escreve
que “o luto é lamento pouco viril” e que “a melancolia transforma o homem
em mulher” (Citado em HOWARD, 2007, p. 142). Tanto Bright quanto Burton
mencionam, como importantes sintomas da melancolia, o isolamento físico e
espiritual, o desespero e a consequente impotência em agir, males que se
observam no príncipe.
Daí o desejo de morte expresso por Hamlet desde o primeiro
solilóquio, quando reflete sobre a corrupção do mundo, que o atinge muito de
perto com o casamento incestuoso da mãe, pouco tempo após a morte de um
Rei “tão excelente” e marido amoroso. Diante de tantos males, o suicídio
surge como alternativa desejável, que esbarra, no entanto, na proibição
estabelecida pelo Todo Poderoso do “assassinato de si mesmo”:
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
HAMLET: Oh, se essa carne rude derretesse,
E se desvanecesse em fino orvalho!
Ou que o Eterno não tivesse oposto
Seu gesto contra a própria destruição!
Oh, Deus! como são gestos vãos, inúteis,
A meu ver, esses hábitos do mundo.
Que horror! São quais jardins abandonados
Em que só o que é mal na natureza
Brota e domina! Mas chegar a isto!
Morto há dois meses só! Não, nem dois meses!
Tão excelente rei, em face deste,
Seria como Hiperion frente a um sátiro.
Era tão dedicado á minha mãe
Que não deixava nem a própria brisa
Tocar forte o seu rosto. Céus e terra!
Devo lembrar? (MENDONÇA, 2004, p. 225-226)
Hamlet revela sentir-se prisioneiro em seu próprio país, como é
prisioneiro também da melancolia que lhe ensombra o espírito. É no diálogo
com Rosencrantz e Guildenstern que vem a refletir mais longamente sobre a
profundidade de sua desilusão com a vida terrena:
HAMLET: […] Ultimamente – não sei por que – perdi toda a alegria,
desprezei todo o hábito dos exercícios, e, realmente, tudo pesa tanto na
minha disposição que este grande cenário, a terra, me parece agora um
promontório estéril; este magnífico dossel, o ar, vede, este belo e flutuante
firmamento, este teto majestoso, ornado de ouro e flama – não me parece
mais que uma repulsiva e pestilenta congregação de vapores. Que obra de
arte é o homem! Como é nobre na razão! Como é infinito em faculdades!
Na forma e no movimento, como é expressivo e admirável! Na ação, é
como um anjo! Em inteligência, é como um Deus! A beleza do mundo! O
paradigma dos animais! E, no entanto, para mim, o que é esta quintessência
do pó? O homem não me deleita. Não, nem a mulher, embora o seu
sorriso pareça dizê-lo. (MENDONÇA, 2004, p. 99)
Nada é capaz de arrancá-lo do profundo estado de melancolia, em
que foi lançado pela morte do pai e pelo comportamento de Gertrudes, sua
mãe. Hamlet perdeu a alegria de viver; o mundo se tornou apenas um
promontório estéril que congrega vapores pestilentos; os seres humanos, antes
comparados a anjos, obras-primas, quase deuses, se reduziram à quintessência
do pó.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
99
As passagens comentadas são apenas algumas dentre tantas que
comprovariam a melancolia de Hamlet, e que permitiriam aproximar sua
personalidade e atitudes dos sentimentos e reações femininas. Com base em
indícios textuais, pretende-se, nesse ensaio, defender a hipótese de que os
traços femininos do personagem foram determinantes na abertura de caminhos
para as atrizes. Ao viverem no palco o papel-título do drama, elas desafiaram
convenções e estereótipos, resgatando o conceito maior da arte de representar
que é o fingimento, independentemente de cor, sexo e idade.
Os primeiros Hamlets femininos no teatro
Para chegar ao ponto em que a ausência radical das atrizes dos palcos
da renascença2 dá lugar à audácia da mulher de representar Hamlet, é
necessário voltar na história, para o momento em que sobe ao palco a primeira
atriz a encarnar o herói. E aqui, a história começa não nos palcos de Londres,
mas nas províncias; a protagonista não é uma atriz destacada, mas alguém de
reputação suspeita, que se faz passar por homem e, como tal, acaba na prisão,
onde partilha a cela com outros detentos.
Sob o pseudônimo de “Charles Brown”, persona adotada na vida e no
teatro, Charlotte Charke (c.1713-1760) exerceu ofícios tradicionalmente
reservados aos homens: foi pajem do Conde de Anglesey; vendeu salsichas,
foi padeiro e estalajadeiro. No teatro também ousou exercer funções tipicamente
masculinas: liderou um grupo de atores mambembes; gerenciou o Little Theatre
em Haymarket, em Londres; manipulou marionetes com expertise; foi
dramaturga; e encarnou papéis masculinos: Tragedo, personagem da peça The
London Merchant, de George Lillo, em 1731; Rodrigo, de Otelo, em 1732 e, por
diversas vezes, Hamlet.
Filha caçula do ator, dramaturgo e poeta laureado Colley Cibber e da
atriz Katherine Shore, aos 16 anos Charlotte rompeu com os pais para se
casar com o violinista Richard Charke, que logo depois a abandonou, com
uma filha pequena. Sem poder contar com a ajuda financeira, nem com a
proteção e respeitabilidade do pai, precisou lutar contra as inúmeras dificuldades
enfrentadas pelas mulheres em um mundo masculino, que lhes oferecia raras
opções profissionais.
Charlotte transformou sua dura experiência de vida na autobiografia
A Narrative of the Life of Mrs. Charlotte Charke (1755), a primeira autobiografia
de uma atriz inglesa. É um relato de suas aventuras e desventuras no teatro
itinerante, quando excursionou com uma pequena companhia pelo interior do
país, interpretando, entre outros papéis, o personagem Hamlet. Embora a
100
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
versão resultante não tivesse ultrapassado o nível do burlesco, Charlotte revela
certo tino para a montagem teatral, ao justificar sua decisão de interpretar o
herói: “não havia homens competentes o bastante para fazê-lo”; ela estava
“mortificada em ouvir personagens de capital importância como Hamlet [...]
rasgados em pedaços [...] e por vozes dissonantes que davam a impressão de
uma gata em trabalho de parto” (REHDER, 2000, p. 153). Pelo resto da vida
– ela morreria cedo, aos 47 anos, pobre e desamparada – Charlotte continuou
a representar papéis masculinos, dentro e fora do palco.
Para Charlotte, representar Hamlet foi uma extensão de sua postura
transgressora perante os papéis sociais reservados à mulher e uma provocação
às normas rígidas que lhe regiam o comportamento. Pelo pioneirismo no
teatro e rebeldia em relação ao restrito universo destinado às mulheres, seu
legado vem sendo reavaliado hoje, não apenas sua obra escrita – a autobiografia,
peças e romances, − mas, principalmente, sua postura excêntrica e anticonvencional.
A primeira atriz de renome a viver Hamlet nos palcos da Grã-Bretanha
foi Sarah Siddons (1755-1831), cuja carreira teve início na década de 1770,
no papel de Pórcia no importante teatro londrino Drury Lane. Diante das
críticas pouco encorajadoras, a jovem atriz preferiu excursionar com um grupo
de atores pelo interior do país, nos seis anos seguintes. Foi um período de
intensa aprendizagem, em que, por diversas vezes, Siddons interpretou Hamlet,
com reações muito positivas das platéias de Birmingham e Manchester, em
1776; de Liverpool, em 1778; e de Edimburgo e Bristol, em 1781. Embora se
tratasse de palcos menos valorizados que os de Londres, Sarah Siddons dedicou
cuidados especiais à construção de seu personagem, até mesmo em detalhes
de guarda-roupa. Seu Hamlet traja sempre uma longa túnica negra – o “inkycloak”, mencionado no texto –, com o que evita o apelo erótico da mulher
vestida em trajes masculinos.
Siddons vinha de uma família de atores itinerantes que, apesar disso,
não aceitou facilmente a sua escolha de uma profissão que, para as mulheres,
ainda era vista com reservas. Evidentemente, não houve qualquer oposição
familiar a que seus irmãos, John Philip Kemble (1757-1823) e Charles Kemble
(1775-1854), seguissem o mesmo caminho. Os Kemble tiveram papel relevante
no teatro britânico da época, mas Siddons eclipsou os irmãos e tornou-se a
intérprete mais importante de seu tempo.
Siddons e John Philip atuaram juntos pela primeira vez em Hamlet,
em 1783, nos papéis de Ofélia e do jovem príncipe, respectivamente. Para
muitos críticos, era apenas a bela estampa do ator que sustentava sua
interpretação, descrita como rígida, sem variedade de tom ou de estado de
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
101
espírito: seu príncipe era grave, melancólico, formal e recitativo. Leigh Hunt,
um dos primeiros grandes críticos teatrais do romantismo, comparou a
interpretação de John Philip como Hamlet à de um mau professor de retórica
enquanto a atuação de sua irmã foi saudada como viva: ele era “um homem
em uma armadura”, “uma rocha”, enquanto ela era “carne e sangue”.
Siddons e John Philip contracenariam em várias outras peças
shakespearianas, em que se repetiria o resultado da primeira: John Philip correto
no papel principal e Siddons arrebatando platéias com o brilhantismo de sua
interpretação: Desdêmona, Rosalinda, Ofélia, Cordélia, Volúmia, a Rainha
Catarina, Lady Macbeth compõem o catálogo de heroínas shakespearianas
que a transformaram na maior estrela do teatro Drury Lane, conquistando,
como corolário, respeitabilidade para a profissão de atriz. O selo de aprovação
oficial veio em 1785, com o convite para que Siddons realizasse uma leitura
de Hamlet para a família real. A atriz soubera combinar a ousadia de representar
Hamlet – ainda que longe dos palcos londrinos, e provavelmente por essa
mesma razão – à conquista da respeitabilidade (MANVELL, 1971, p. 329).
Em 1802, mais de vinte anos após interpretar Hamlet pela primeira
vez, Siddons retorna ao papel. Apesar de atriz consagrada, ela evita Londres e
viaja para Dublin, onde se apresenta para um grupo de amigos. Por mais
intelectualmente estimulante que fosse o papel do príncipe da Dinamarca, a
experiência não valia o risco de perder o respeito de uma sociedade que, em
grande parte, ainda via com preconceito atrizes no desempenho de papéis
masculinos.
Os motivos das pioneiras Charlotte Charke e Sarah Siddons para
interpretar Hamlet foram, portanto, radicalmente diversos: para a primeira,
subir ao palco em trajes masculinos invadindo o território dos grandes atores
trágicos foi um ato ostensivo de rebeldia e de transgressão das normas sociais;
Siddons, ao contrário, é atraída pelo potencial dramático do papel e pela
possibilidade de explorar nuances inusitadas da emoção, mas reserva a ousadia
de encarnar o herói trágico mais complexo da história do drama para palcos
menos concorridos, por valorizar a respeitabilidade recém-alcançada para a
profissão de atriz.
Seguindo os passos de Charke e Siddons, inúmeras outras atrizes,
com motivações diversas, são atraídas para o papel de Hamlet, para cuja
composição trazem concepções únicas, que produzem, na história do teatro e
na sociedade de seu tempo, impactos diferenciados. Destacamos, aqui, quatro
nomes: as inglesas Jane Powell (1761-1831), Julia Glover (1779-1850), Julia
Seaman (1837-1909) e a americana Charlotte Cushman (1816-1876).
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Powell e Glover são as primeiras a representar Hamlet nos palcos
londrinos, ambas com desempenhos admiráveis. Com elas se consolida a prática
de atrizes mais velhas em papeis masculinos, quando escasseiam as
oportunidades de encarnar as heroínas do mundo dramático de Shakespeare.
Por serem mais velhas quando vêm a interpretar o príncipe, Powell e Glover
escapam às insinuações de utilizar o palco com fins de apelo sexual, de modo
que contribuem para conferir respeitabilidade à performance de Hamlet por
mulheres, não mais acusadas de imoralidade.
Julia Seaman ilustra o outro lado da moeda: o preconceito arraigado
em relação a mulheres em papéis masculinos. Apesar de tal prática ter-se
tornado frequente, ao longo do século XIX, e vista com menos restrições pela
sociedade, houve criticas mordazes a algumas dessas interpretações,
consideradas atos ostensivos de rebeldia, desprovidos quase sempre de valor
artístico.
Seaman foi criticada por ser demasiadamente agressiva e masculina,
e se tornou alvo de insinuações de homossexualidade. Apesar de ter encarnado
Hamlet em mais de 200 apresentações, um possível índice de sucesso de
público, sua atuação é descrita com ironia por um crítico do New York Times,
na edição de 10 de novembro de 1874: “A interpretação da senhorita Seaman
foi vigorosa. [...] Não fosse pela exigência do enredo, ela teria, sem dúvida,
assassinado o rei Cláudio em sua primeira aparição, e de modo heróico, o que
teria sido muito gratificante para a platéia. Os conhecidos solilóquios da
personagem não deixaram entrever qualquer sinal da emoção de Hamlet”
(MUSE, 2007, p. 532).
Charlotte Cushman, a atriz trágica mais importante na cena americana
do período, celebrizada no papel de Lady Macbeth, é famosa, também, pela
interpretação magistral de personagens masculinos – Romeu, o Cardeal Wolsey,
e Hamlet. Como Seaman, Cushman foi alvo de rumores sobre sua orientação
sexual e provável envolvimento amoroso com as atrizes com quem
contracenava. Diferentemente de Seaman, porém, tais críticas se limitaram à
vida particular da atriz, e seu talento inegável foi amplamente aplaudido,
recebendo elogios entusiastas de grandes líderes como Lincoln e Disraeli, bem
como de figuras proeminentes da época, a exemplo de Walt Whitman. Seu
vigoroso Hamlet, em cuja composição evitou o melodrama e o sentimentalismo,
recebeu muitos elogios, tanto nos Estados Unidos como na Grã-Bretanha,
que percorreu em tournées vitoriosas. Figura-chave na consolidação dos direitos
da mulher no âmbito teatral, Cushman é lembrada, ainda hoje, por sua luta
pela emancipação feminina.3
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Se algumas atrizes foram criticadas por excesso de masculinidade e
agressividade ao compor Hamlet, é curioso lembrar que o fenômeno inverso
se dá com a interpretação de atores celebrados no papel do príncipe da
Dinamarca. Assim, a crítica teatral vê na composição de Hamlet por três dos
maiores intérpretes shakespearianos dos séculos XVIII e XIX, − David Garrick
(1717-1779) e Edmund Kean (1789-1833), na Inglaterra, e Edwin Booth
(1833-1893), nos Estados Unidos −, em algum momento de suas longas
carreiras, evidentes associações com o universo feminino.
Garrick, o grande ator-gerente (actor-manager) de teatro do século
XVIII, interpretou Hamlet por mais de trinta anos. Compunha um príncipe
ativo e sedento por vingança, no que o auxiliavam cortes textuais drásticos –
especialmente de monólogos e das falas longas – sem prejuízo, entretanto, da
complexidade e subjetividade do herói. O crítico do St. James’s Chronicle descreve,
em fevereiro de 1772, a interpretação de Garrick como permeada de “um
tipo de tristeza feminina”, mais voltada para o luto pela morte do pai do que
tocada pela inconstância da mãe. Essa impressão de feminilidade,
coincidentemente ou não, havia sido detectada quase vinte anos antes, em
1754, por Georg Lichtenberg, um visitante alemão, que descreve o príncipe
de Garrick como “completamente tomado por lágrimas de dor. As últimas
palavras ‘Rei tão excelente’ ficam inteiramente perdidas; apenas as captamos
pelo movimento da boca que treme e se contrai imediatamente após a fala,
como se a represar toda a clara expressão de dor dos lábios, que podem
facilmente tremer com emoção não masculina” (MILLS, 1985, p. 34).
O Hamlet de Edmund Kean, que viveu o papel em mais de vinte
anos de montagem da peça, é também associado ao comportamento
tempestuoso das mulheres. Na cena da morte, especialmente enfatizada pelo
ator, Kean atinge, segundo a crítica, os limites da emoção em manifestações
violentas de personalidade feminina. É ilustrativo o comentário sobre o
envenenamento de Hamlet, na interpretação do ator, publicado em The Tatler de
1831:
Quais são os efeitos de tal veneno? Dor interna intensa, visão cambaleante,
inchaço nas veias das têmporas. Tudo isso Kean consegue detalhar com
incrível realidade: seus olhos se dilatam e perdem o brilho; ele torce as mãos
em um esforço vão para represar a emoção; as veias pulsam nas têmporas;
suas costelas tremem, como se a vida enfraquecesse, e sua mão pende dos
lábios endurecidos, e ele emite um grito da natureza que em seu corpo
expira, um grito tão perfeito que só posso compará-lo ao desmaio de uma
mulher, ou aos gemidos de uma criança. (MILLS, 1985, p. 58)
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Do outro lado do Atlântico, Edwin Booth, o maior ator norteamericano do século XIX, também consagrado por longos anos – mais de
quarenta – de interpretação do papel de Hamlet foi alvo de comentários
semelhantes. Como Garrick, Booth enfatizaria a relação do príncipe com o
fantasma e sua emoção em rever o pai morto. O London Evening Standard, de
8 de novembro de 1880, comenta a cena em que Horácio descreve o encontro
com o fantasma como um momento em que o príncipe experimenta “emoção
feminina”: “agitação extrema, a respiração curta e um movimento dos lábios
ou da garganta que indicava que um tremor lhe percorria o corpo”; ao
questionar os soldados sobre o fantasma, o faz com “voz suave e feminina,
em fala repleta de pausas, angustiada [...] se fosse uma mulher a pronunciar
tais palavras e de tal modo, se pensaria que as lágrimas não estavam longe”
(CLARKE, 1882, p. 87). Mary Isabella Stone, em Edwin Booth’s Performances
(1990), compreende a composição de Hamlet por Booth como baseada na
profunda afeição que liga o príncipe a Horácio; a beleza do ator e a graciosidade
de seus movimentos revelam que “Booth pensava em Hamlet como feminino
em sua sensibilidade, mas não como efeminado” (STONE, 1990, p. 93).
Se a análise seletiva do texto dramático evidencia a relevância do
feminino na caracterização de Hamlet, o estudo das atrizes que viveram o
papel nos leva a um patamar elevado de compreensão dos traços mais sutis
do personagem. Nesse particular, o papel da crítica teatral revela-se de suma
importância, ao destacar, tanto na performance de atrizes que se travestem,
como no desempenho de atores que põem em relevo a feminilidade do
príncipe, nuances da complexa construção do herói shakespeariano, que revelam
traços desapercebidos nas performances mais convencionais. Seria mais uma
razão a inspirar grandes atrizes a escolher esse papel.
A focalização restrita deste trabalho deixa de lado o aspecto
quantitativo do fenômeno: durante o século XIX, mais de 200 atrizes4,
profissionais e amadoras, tanto na Grã-Bretanha quanto nos Estados Unidos,
interpretaram Hamlet. Apenas um exame detalhado da vida profissional dessas
mulheres, dos motivos da escolha e das consequências para suas carreiras,
bem como das condições que cercaram as performances, permitiria esboçar
uma explicação abrangente para o fenômeno, o que extrapola nossos objetivos.
Cabe aqui apenas enfatizar que, durante os séculos XVIII e XIX, o
mundo do teatro oferecia uma das poucas alternativas profissionais abertas às
mulheres, submissas ao jugo de pais, maridos, irmãos, ou parentes do sexo
masculino e confinadas à esfera do lar. O teatro era potencialmente um espaço
de liberdade e autonomia, e acenava com a possibilidade de conforto financeiro.
Interpretar Shakespeare quando seu status de clássico começa a se consolidar,
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graças especialmente à valorização de sua obra pelos românticos, confere
importância e dignidade às intérpretes do papel: encarnar Hamlet, o herói
trágico mais admirado no romantismo, representa, ao mesmo tempo, uma
afirmação da capacidade feminina de enfrentar um papel complexo e um ato
simbólico de liberdade e do direito pleno de representar.
O cinema como meio de expressão dramática vem apresentar, nas
primeiras décadas do século XX, novos desafios aos artistas de teatro. Mais
uma vez, as mulheres demonstram desassombro ao enfrentar as exigências da
nova tecnologia: “Eu conto com esse filme para me tornar imortal”, são as
palavras proféticas de Sarah Bernhardt.
Sarah Bernhardt, do teatro ao cinema
A transição do teatro para o cinema, na performance de Hamlet, é
levada a efeito por Sarah Bernhardt. Em 1889, a Divina Sarah, uma das
maiores atrizes de todos os tempos, consagrada como protagonista de Fedra,
de Racine, e de A dama das camélias, de Alexandre Dumas, tem ao seu dispor
o Théâtre des Nations, rebatizado em sua homenagem. A atriz, que durante
toda a carreira havia interpretado diversos papéis masculinos com grande
sucesso5, escolheu o papel de Hamlet para a reinauguração do teatro. Em sua
longa carreira teatral, de 1858 a 1922, Bernhardt representara apenas algumas
personagens femininas de Shakespeare: Cordélia, em 1867; Desdêmona, em
1878; Lady Macbeth, em 1884; Ofélia, em 1886 e Pórcia, em 1916. Hamlet
era um desafio à sua habilidade cênica e um marco a ser conquistado.
Os desafios da empreitada eram muitos. Sarah, aos 55 anos deveria
encarnar o jovem príncipe, que, segundo a peça, tem cerca de 30 anos. Como
francesa, o desafio era duplo: vencer o desprezo dos iluministas de seu país
pelo teatro de Shakespeare − Voltaire chamara o bardo de selvagem e bêbado
− e, ainda, viver um dinamarquês, criação de um dramaturgo inglês. Dessa
forma, grandes diferenças separavam a atriz do personagem: sexo, idade,
língua e cultura.
Sarah assim justifica sua escolha: “não prefiro os papéis masculinos,
mas os cérebros masculinos”; para ela, Hamlet abria “um campo vasto para a
exploração das sensações e sofrimentos humanos” (BERNHARDT, 2006,
p.137). Maurice Rostand observa sobre o talento da atriz: “Havia duas pessoas
em Sarah, uma extremamente viril e outra extremamente feminina, e ela era
a soma dessas duas partes em um só corpo” (Citado em HOWARD, 2007, p.
139).
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Em contraposição ao preconceito arraigado de que uma mulher jamais
poderia interpretar o papel, Sarah defende de modo provocador o argumento
oposto: viver Hamlet, ao mesmo tempo jovem e dono de um pensamento
poderoso, estava fora das possibilidades de interpretação dos atores masculinos.
Escreve:
Uma mulher é mais bem equipada que um homem para interpretar papéis
como L’ Aglion e Hamlet. Esses papéis retratam rapazes de 20 ou 21 anos
com mentes de homens de 40. Um rapaz de 20 anos não pode compreender
a filosofia de Hamlet nem o entusiasmo poético de L’Aiglon. Um homem
mais velho [...] não tem a aparência de um rapaz, nem possui a pronta
adaptabilidade de uma mulher que consegue combinar a leveza do corpo de
um jovem com a maturidade de pensamento de um homem. Uma mulher
mais facilmente aparenta o papel, e ainda tem a maturidade mental para
compreendê-lo.6
O resultado da ousadia da atriz foi aplaudido pelo público e crítica
franceses, que consideraram sua interpretação revolucionária: esse Hamlet
não é o herói melancólico e inativo do romantismo, mas um príncipe vigoroso
e sedento de vingança, um Hamlet mais masculino do que muitos outros
representados por atores. Nas palavras da própria atriz, um príncipe “masculino
e decidido, mas ainda assim reflexivo [que] pensa antes de agir, um traço que
indica grande força e grande poder espiritual” (BERNHARDT, 2006, p.138).
O Hamlet de Bernhardt não apenas conquistou Paris, mas deu um
passo decisivo para a redescoberta e revalorização da obra de Shakespeare
em solo francês; mais ainda, abriu caminho para que muitas atrizes vivessem
o papel nos palcos europeus, na França e também na Alemanha, Áustria,
Bélgica, Itália, Holanda, Polônia e Rússia7.
Os aplausos de Paris se repetiriam, posteriormente, em apresentações
pelo interior da França, por outros países europeus, nos Estados Unidos e, em
17 de outubro de 1905, também no Brasil, em uma apresentação no Teatro
Lírico no Rio de Janeiro. Em Londres, onde a peça estreou em junho de 1899,
no teatro Adelphi, a crítica se dividiu em relação à peça. Alguns críticos
rejeitaram a tradução francesa de Marcel Schowob e Paul Morand, que
desprezara o verso em favor da prosa; outros julgaram o Hamlet de Sarah
excessivamente agressivo e masculino; ainda outros se uniram às vozes elogiosas
do continente.
Uma das críticas mais mordazes foi a de Max Beerbohm, figura
eminente da época e confesso admirador da atriz; em seu artigo “Hamlet,
Princess of Denmark”, publicado em 17 de junho de 1898 no jornal Saturday
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Review, ele, de modo profético, expressa o temor de que a empreitada de Sarah
em representar Hamlet viesse a ser copiada por outras atrizes:
Espero sinceramente, enquanto há tempo, que o exemplo de Sarah
interpretando Hamlet não crie um precedente entre as mulheres. [...] Sem
dúvida, na complexidade de sua natureza, Hamlet possui traços femininos.
[...] Creio ser essa a desculpa de Sarah para interpretar o papel. Naturalmente
ela não tentaria fazer Otelo – pelo menos arrisco-me a supor que não,
embora seja perigoso supor o que ela poderia não fazer –, assim como o seu
ilustre compatriota, Mounet-Sully, não tentaria interpretar Desdêmona. [...]
Mounet-Sully não seria mais aceitável como Lady Macbeth que como
Desdêmona. Ficaria absurdo (conquanto é minha opinião) nem um pouco
mais absurdo que Sarah no papel de Hamlet. Sarah não devia ter julgado
que a fraqueza de Hamlet se relaciona de algum modo com sua mente e seu
corpo femininos. (GOLD e FIZDALE, 1994, p. 258)
Com verve e acidez, Beerbohm conclui seus comentários sobre o que classificou
como uma “aberração” e produto da “vaidade desmesurada” da atriz:
Seus amigos deviam tê-la impedido, os críticos nativos não deviam tê-la
encorajado, os aduaneiros de Charing Cross deviam ter confiscado o gibão
de zibelina e as meias; amante de sua corte incomparável, sofro mais do que
me divirto quando penso em sua aberração no Adelphi; desta vez nem sua
voz estava bonita. [...] O melhor que pode se dizer de seu desempenho é
que ela atuou (como sempre) com aquela dignidade que é fruto do autodomínio. [...] Em sua interpretação, embora nem melancólico nem
sonhador, Hamlet pelo menos era um pessoa importante e inequivocamente
de boa cepa. Sim, o único elogio que se pode conscientemente fazer-lhe é
que seu Hamlet era do começo ao fim uma très grande dame. (GOLD e
FIZDALE, 1994, p. 258)
É a própria Sarah que, com igual verve, responde a um hipotético
crítico, que poderia muito bem ser Max Beerbohm; em carta publicada em 16
de junho de 1899, no Daily Telegraph, escreve:
Reprovam-me por ser ativa demais, viril demais. Parece que na Inglaterra
deve se representar Hamlet como um triste professor alemão. [...]. Dizem
que meu desempenho não é tradicional. Mas o que é tradição? Cada ator
traz suas próprias tradições [. . .]. Na cena da capela Hamlet decide não matar
o rei, que está rezando, não por ser indeciso e covarde e sim por ser inteligente
e tenaz. Quero matá-lo quando estiver pecando, não quando se encontra
num instante de arrependimento, pois quer que ele vá para o Inferno, e não
para o Céu. Aos que estão absolutamente determinados a ver em Hamlet
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uma alma de mulher, fraca e indecisa, eu vejo a alma de um homem resoluto
e sensato quando se depara com o espectro do pai e fica sabendo de seu
assassinato, Hamlet resolve vigiá-la, porém é o oposto de Otelo que age
sem pensar. Hamlet pensa antes de agir, o que indica grande força e uma
alma vigorosa. Hamlet ama Ofélia, e contudo renuncia ao amor, renuncia
aos estudos, renuncia a tudo a fim de alcançar seu objetivo, e o alcança: mata
o rei quando o encontra num estado do mais nefando, do mais criminoso
pecado. [...] Para encerrar, monsieur, permita-me dizer que Shakespeare, com
seu gênio colossal, pertence ao universo, e que uma mente francesa, alemã
ou russa tem o direito de admirá-lo e compreendê-lo. (GOLD e FIZDALE,
p. 259)
Além de Bernhardt, outras vozes discordantes se ergueram em meio
às criticas negativas. O influente crítico do Daily Telegraph, Clement Scott,
aplaudiu entusiasticamente a produção francesa e celebrou a interpretação de
Sarah, entre outros acertos, por enfatizar os aspectos cômicos da peça:
A maioria dos Hamlets ingleses, com exceção de Irving e Forbes-Robertson,
enfatiza a tragédia e ignora a comédia. O charme dos dois melhores Hamlets
franceses consiste na nota dominante da comédia, aquela veia rara de humor,
o capricho excêntrico que está nas próprias artérias de Hamlet. Nunca as
cenas com Polônio e com Rosencrantz e Guildenstern foram encenadas tão
admiravelmente como por Sarah Bernhardt. (SCOTT, s.d.)
Para Scott, as cenas com o fantasma e a do envenenamento eram magníficas,
salientando-se nesta última o beijo de Hamlet nos cabelos da mãe morta.
Scott resumiu assim o espetáculo:
A coisa toda era elétrica e imaginativa, e poética. Nunca saí de uma encenação
de Hamlet com menos cansaço. Tudo aconteceu como num sonho delicioso.
Em geral, a peça é exaustiva. Mas, não há cansaço com Sarah Bernhardt —
somente enlevo. Creio que poderia assistir tudo de novo na mesma noite
— isso não é um elogio pequeno, é? O fato é que com um novo cérebro
para interpretar essa obra-prima, Hamlet é sempre novo. Fiquei encantado
com a versão francesa do texto imortal. Trazia as idéias de Shakespeare
condensadas em uma casca de noz! Nada que fosse essencial era omitido.
[…] Em Hamlet não queremos somente novas leituras, novas ideias,
mudança pelo prazer da mudança. Queremos o ator ou atriz que interpreta
Hamlet que tenha o gênio ou dom da inspiração. Esses atributos pertencem
a Sarah Bernhardt. Nenhum estudante de drama admirou com maior
entusiasmo que eu a qualidade soberba da técnica da maior artista que eu
jamais vi atuar. Com seu Hamlet eu a vejo como uma artista ainda maior,
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porque sua tarefa era heróica em seu significado e importância. […] Então,
começo a considerar se o temperamento francês não é mais apropriado à
peça que o temperamento filosófico alemão, ou que o temperamento
apaixonado italiano, ou que o temperamento alerta americano, ou que o
temperamento fleumático inglês. [...] Merci! merci! Artista supremamente
aquinhoada! (SCOTT, s.d.)
Em 1900, a grande dama do teatro deu um passo além e decidiu
eternizar um pequeno trecho da montagem que tanto desagradara parte dos
críticos ingleses, utilizando um novo meio de comunicação: o cinema.
Marcando o dèbut de Sarah no cinema, exibido pela Phono-CinèmaThéâtre na Exposição Universal de Paris de 1900, Le Duel d’ Hamlet é dirigido
por Clément Maurice e tem duração de apenas dois minutos; na era do cinema
mudo e de tecnologia bastante rudimentar – uma única câmera, parada e
frontal, registra o duelo entre Hamlet e Laertes – o filme trazia já uma inovação:
a possibilidade de gravar previamente o som do entrechoque das espadas e
apresentar a gravação sincronizada com a exibição da película.
Por um lado, a aventura de Sarah nos primórdios do cinema
exemplifica a relação entre filme e teatro – os filmes se originavam em geral
de produções teatrais com o objetivo de promovê-las, o que era verdade
especialmente no caso das peças shakespearianas, pelo prestígio que emprestavam
à nova arte. No caso de Sarah, entretanto, o filme teve um propósito maior, que
envolveu a escolha do papel; em suas palavras: “Nenhum personagem feminino
abriu um campo tão vasto para explorar as emoções e o sofrimento humanos
como Hamlet. [...] Eu conto com esse filme para me tornar imortal”
(SALMON, 1984, p. 167).
E, de fato, Sarah se tornou imortal, não apenas por ter representado
Hamlet, mas principalmente por todos os outros papéis que, em sua longa
carreira, encantaram as plateias do mundo.
Asta Nielsen como o príncipe da Dinamarca: a revelação da alma
feminina de Hamlet
Em 1920, outra musa internacional, a dinamarquesa Asta Nielsen,
protagoniza o maior sucesso de bilheteria do cinema alemão daquele ano:
Hamlet, drama de vingança. Nielsen, hoje injustamente esquecida, era então
considerada a primeira estrela internacional de cinema, − atuou em mais de
70 filmes entre 1910 e 1932 −, e cultuada por grandes atrizes como Greta
Garbo e Marlene Dietrich. Como relata Ann Thompson, “em 1914, ela era a
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estrela de cinema mais popular na Alemanha e conhecida no mundo inteiro.
Na Alemanha havia cigarretes ‘Asta’, e penteados à moda de ‘Asta’; “Asta Nielsen”
era o nome de cinemas em San Francisco, Düsseldorf e Nagasaki; seu retrato
decorava trincheiras de ambos os lados durante a Primeira Grande Guerra”
(THOMPSON, 1997, p. 216).
O Hamlet dinamarquês, dirigido por Svend Gade e Heinz Schall, é a
primeira obra da produtora de cinema de Asta Nielsen, a Art-Film. Como no
caso de Bernhardt que decide produzir Hamlet assim que assume a direção do
teatro rebatizado com seu nome, para Asta, a filmagem do drama é um projeto
pessoal obsedante. Mas, diferentemente da atriz francesa, uma mulher que
interpreta um cobiçado papel masculino, Asta é uma mulher que interpreta
uma mulher que finge ser homem. Para explicar essa afirmação, é preciso
examinar o complicado enredo do filme.
Os três quadros com intertítulos que abrem a película esclarecem as
fontes da obra. No primeiro quadro, lê-se: “Essa versão cinematográfica de
Hamlet é baseada nas Antigas Lendas de onde Shakespeare retirou a primeira
concepção para sua Tragédia imortal”8 [“This screen version of Hamlet is
based upon the Ancient Legends from which Shakespeare drew his first
conception for his immortal Tragedy”].
A lenda escandinava da Historiae Danicae, de Saxo Grammaticus
(?1150-1206) é a fonte original não só do Hamlet de Shakespeare, mas também
do filme de Nielsen. A lenda narra a história de dois irmãos, Horwendill e
Feng, que governam a Jutlândia. Horwendill é casado com Gerutha e tem um
filho, Amleth. Por inveja, Feng mata o irmão, casa-se com a cunhada, e tornase rei da Jutlândia. Amleth ainda é um menino e para se proteger do tio,
enquanto cresce e ganha forças para vingar o assassinato do pai, finge-se de
louco. Como na lenda, o Amleth adulto do filme cumpre sua vingança e
incendeia o lugar onde Cláudio e membros da corte dormem, depois de uma
bebedeira. Enfrenta e vence o tio em um combate de espadas, ao qual Amleth
sobrevive vindo a reinar por longo tempo.
O segundo e terceiro quadros se referem a outra importante fonte
para o filme, que o tornam radicalmente diferente da obra de Shakespeare:
Quadro 2: O filme também apresenta a hipótese do eminente estudioso
shakespeariano norte-americano Dr. Edward P. Vining...
Quadro3: … que Hamlet era uma mulher que, por razões de estado, teve
que se disfarçar de homem.
É o roteirista do filme, Erwin Gepard, quem descobre o livro do
professor Edward P. Vining – que, na verdade, não é um estudioso de
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Shakespeare ou de literatura, mas um graduado de Yale, especialista em estradas
de ferro. A teoria de Vining, explicitada em The Mystery of Hamlet: An Attempt
to Solve An Old Problem (1881)9, é uma interpretação extravagante da peça que
faz grande sucesso na Europa no final do século XIX: propõe que a solução
para o mistério de Hamlet e sua demora em agir advenha do fato de ele ser
uma mulher, e, portanto, “incapaz de obter a vingança que lhe é imposta”
(VINING, s.d.).
Para defender sua hipótese, Vining realiza uma análise minuciosa,
embora enganada, da peça, citando como suporte não apenas trechos extensos
da peça como nomes importantes da literatura e da crítica literária – William
Hazlitt, Goethe, Dowden e Schlegel, entre outros. Ao retomar a interpretação
de Hazlitt, por exemplo, Vining se pergunta se as características elencadas
pelo crítico sobre o príncipe – Hamlet é refinado em seus sentimentos, mas
lhe falta força de vontade e paixão; é flexível, fraco e melancólico – não
seriam essencialmente femininas. Vining enfatiza o “amor de Hamlet por
Horácio e seu ciúme de Ofélia”, e aponta atributos tanto físicos quanto
psicológicos que identificariam o personagem como uma mulher: ele é pequeno,
delicado e “cheinho”; é fraco, vacilante, impulsivo, lacrimoso e tem medo da
morte; é ainda avesso à bebida, sensível ao frio e a cheiros; enfim, falta-lhe “a
energia, a força, a prontidão para agir que é inerente ao personagem masculino”
(VINING, s.d.).
Em determinado ponto de sua análise, Vining se pergunta sobre as
intenções de Shakespeare ao desenhar o personagem. Considera que
Shakespeare entretém a ideia de Hamlet ser mulher: “Essa não era sua
Concepção Original para a personagem — Shakespeare pode nunca ter cedido
inteiramente a essa Fantasia, mas certamente ele brincou com essa idéia [...]
Não poderia Shakespeare ter entretido o Pensamento de que Hamlet poderia
ser uma Mulher?” (VINING, s.d.).
Para Vining, se Hamlet fosse uma mulher estariam explicados o
mistério e o silêncio que caracterizam o personagem:
‘O resto é silêncio.’ O que está condenado ao silêncio? Horácio sabe tudo o
que nós sabemos sobre os eventos que acontecem no palco quando ele não
está presente: é apenas necessário aguardar sua próxima entrada para se ter
a prova de que Hamlet lhe contou tudo. Nada lhe foi escondido, a não ser
um mistério antigo e solene que deve ser levado à tumba. Ah, coração
partido que até na morte deve sofrer em silêncio! Será o selo do silêncio
algum dia quebrado? Será que a piedade humana algum dia abarcará as
profundezas da dor que assolam sua vida infeliz? Até no silêncio essa dor
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clama por compaixão. Seria essa sua carga — que, tendo nascido para o
amor e a proteção, foi, sem remorsos, alijado de todo o amor terreno, toda
a compreensão humana? — que essa necessidade de uma natureza nobre e
vigorosa na qual se apoiar, uma natureza que complementasse a sua própria
e abundante doçura e nobreza com força viril lhe é negada. […] Quem
saberá? Possivelmente nem mesmo Shakespeare resolveu o enigma que o
destino gradualmente lhe impôs quando Hamlet crescia sob suas mãos.
(VINING, s.d.)
Retornando ao filme, são, portanto, duas as principais ideias
emprestadas da inusitada interpretação de Vining: Hamlet é uma mulher, criada
como príncipe por razões de Estado; e Hamlet é apaixonado por Horácio.
Essas ideias aparecem de forma clara não só nas imagens, mas também nos
quadros com intertítulos, intercalados entre as cenas do filme, que auxiliam o
espectador a compreender o enredo. É preciso adicionar que esses intertítulos
são de dois tipos: os compostos por frases que resumem os acontecimentos, e
que podem vir antes ou depois da cena em questão; ou transcrições adaptadas
de falas da peça. Vejamos:
Nas primeiras cenas do filme, alternam-se o combate em campo
aberto entre os reis da Dinamarca e da Noruega e o nascimento do herdeiro
da coroa dinamarquesa nos aposentos da rainha. O rei da Noruega é morto e
carregado para fora do campo de batalha. No quarto da Rainha, nasce a
criança:
Quadro 10: “É um menino -- boa aia -- um Príncipe para a Dinamarca?”
Quadro 11: “Ai, Majestade. É uma Princesa.”.
Nesse momento, a cena retorna para a guerra e mais um corpo ferido
é carregado para fora do campo de batalha; os intertítulos do quadro 12
esclarecem: “O Rei está ferido – mortalmente!”.
Os quadros seguintes explicam com clareza o que se passa nos aposentos
da Rainha:
Quadro 13: O esquema engenhoso da ama.
Quadro 14: “Anuncie ao povo que é um menino.”
Quadro 15: “Assim, a senhora salva a coroa e se mantém rainha.”
Surpreendentemente, o rei, que todos julgam morto, retorna da guerra.
Informado sobre a mentira da rainha, decide sustentá-la, como esclarece o
quadro 21: “”Nosso povo não saberá que sua rainha pode mentir.”
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A próxima cena mostra os reis da Dinamarca na varanda do palácio,
conversando sobre o futuro do jovem príncipe, que está em um canto afastado
do jardim; os quadros explicativos auxiliam no entendimento da ação:
Quadro 22: “Chegou a hora de ele ocupar seu lugar entre os jovens de sua
idade”.
Quadro 23: “O senhor considera seguro mandá-lo para Wittenberg?”
Quadro 24: “A senhora o ensinou como guardar bem o seu segredo?”
Logo, Hamlet, uma moça travestida de rapaz, parte para a Universidade
de Wittenberg, onde faz amizade com Horácio, por quem se apaixona, e
conhece o jovem Fortimbrás.
Quando o Rei Hamlet morre, o príncipe retorna à Dinamarca com
Horácio, e encontra seu tio, Cláudio, casado com sua mãe e instalado no trono
como novo monarca; o texto do quadro 54 não deixa dúvida sobre a rapidez
com que se seguem o enterro do rei e o novo casamento da rainha: “Príncipe,
o senhor chega na hora certa. Ali temos ao mesmo tempo a refeição do
funeral e a celebração das bodas!”.
Cabe ressaltar neste ponto, que os intertítulos retomam o trecho do
Hamlet de Shakespeare: “as carnes do enterro foram servidas frias nas bodas”.
O procedimento de incorporar aos quadros explicativos frases da peça será
utilizado várias vezes de modo que, embora se trate de um filme mudo, o
espectador consegue reter algo da linguagem verbal de Shakespeare.
Evidentemente, há enormes diferenças entre a peça e o filme de
Nielsen, que não se devem apenas à incorporação da teoria de Vining. Em
Shakespeare, o fantasma do rei aparece em uma das cenas iniciais do primeiro
ato, enquanto no filme, Hamlet toma conhecimento do crime de Cláudio em
uma visão, junto ao túmulo do pai. Nada de sobrenatural é exibido à platéia
que deve deduzir o que acontece do olhar assombrado de Hamlet e das
explicações dos quadros com intertítulos:
Quadro 57: “Oh, que voz parece me falar do além túmulo?”.
Quadro 58: “Oh, Hamlet, se você um dia amou seu pai, vingue minha
morte maligna”.
Quadro 59: Hamlet jura vingar seu pai.
O príncipe, que já suspeitava de uma relação adúltera entre a mãe e
o tio, resolve investigar a morte do pai e descobre a adaga de Cláudio em um
poço infestado de serpentes venenosas, o que prova que o usurpador do
114
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trono assassinara o rei, como deixa claro o quadro 65: “A adaga de meu tio.
Como se eu adivinhasse…”.
Para ganhar tempo enquanto arquiteta a vingança, Hamlet se finge
de louco para todos, com exceção de Horácio:
Quadro 67: “Muito simples! Farei papel de louco!”
Quadro 68: “Somente você, Horácio, saberá que a loucura é apenas uma
máscara para me proteger.”
Para distrair Hamlet de seu estado melancólico, Polônio, conselheiro
do rei, chama Ofélia à corte. Mas é Horácio quem se apaixona por Ofélia e,
para impedir o namoro, Hamlet decide cortejar a jovem:
Quadro 85: Hamlet está quase morrendo de amores por Horácio.
Quadro 86: “Uma bela moça!”
Quadro 87: Hamlet decide manter Horácio longe de Ofélia.
Quadro 88: “Se eu seduzir Ofélia, eu a manterei longe de Horácio”.
Suspeitando que Hamlet tem conhecimento do que realmente
aconteceu e que sua loucura é mero disfarce, Cláudio envia o príncipe,
acompanhado de Rosencrantz e Guildenstern, à Noruega, com uma carta
que sela a sua morte. Hamlet descobre a carta e a troca por outra, em que
Cláudio ordena a Fortimbrás que mate os dois acompanhantes de Hamlet,
como deixa claro o quadro 155: “Levem os dois. Que sejam executados.”.
Auxiliado por Fortimbrás, Hamlet retorna à Dinamarca. Ao chegar
próximo ao castelo, o príncipe se depara com Cláudio que bebe com amigos
em uma cabana. Junta-se ao grupo e finge beber também, mas quando todos
adormecem, entorpecidos pela bebida, Hamlet ateia fogo ao local e tranca as
portas. Deste modo, no filme, Cláudio partilha do mesmo destino do
personagem da lenda Amleth: a morte pelo fogo.
Ao descobrir o assassinato de Cláudio, a rainha, enfurecida, planeja
com Laertes adicionar veneno à ponta de uma das espadas que seriam utilizadas
no duelo com Hamlet, para vingar a morte do rei. Os dois jovens duelam.
Como na peça, Hamlet troca de espada com Laertes, a quem fere mortalmente.
Implacável em sua sede de vingança, a rainha propõe, então, ao filho um
brinde, em que uma das taças de vinho fora envenenada. Hamlet recusa a
bebida. Inadvertidamente, um criado troca os copos e a Rainha ingere seu
próprio veneno. Na continuação da luta, Laertes fere Hamlet, mas sucumbe
ao veneno dos ferimentos. Ao amparar Hamlet, desfalecido, Horácio descobre
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seu verdadeiro sexo e compreende, finalmente, a origem do sentimento
poderoso que os unia:
Quadro 187: “Eu estou morrendo, Horácio.”
Quadro 188: “Somente a morte revela seu trágico segredo”.
Quadro 189: “Seu coração de ouro era o coração de uma mulher!”
Quadro 190: “Só agora compreendo o encanto que você tinha sobre mim.”
Quadro 191: “Tarde demais. Amada! Tarde demais!”.
O resumo acima evidencia que a proposta dos diretores e do roteirista
não foi transpor fielmente o enredo da peça para o cinema. O filme é uma
reinterpretação do Hamlet shakespeariano – do qual retém temas, personagens
e a linha geral do enredo, além de algumas frases –, à luz da teoria de Vining.
Isso não significa, tampouco, que o diretor aceite a interpretação excêntrica
do professor norte-americano. A esse respeito, o próprio Gad declarou: “Só
Deus sabe de onde aquele homem [Vining] tirou essa idéia bizarra, mas os
professores norte-americanos de fato descobrem as coisas mais inacreditáveis.”
Uma declaração de Asta Nielsen evidencia igualmente sua percepção de que
o filme não era uma transposição fiel da peça: “Não era de modo algum um
filme sobre a peça de Shakespeare”10. No filme, tragédia, vingança e melodrama
se misturam na história da princesa, a quem cabe vingar a morte de seu pai, e
que não pode confessar o amor que sente, porque se esconde, desde a infância,
sob uma identidade masculina.
São óbvias as limitações do filme como transposição da tragédia de
Shakespeare, mas, como linguagem cinematográfica, o trabalho de Nielsen e
dos diretores recebeu grandes elogios de crítica e de público. Além disso,
considerando-se o estágio incipiente da nova arte, o filme se utiliza de recursos
técnicos já bastante complexos que o colocam na vanguarda da história do
cinema. Provêm do expressionismo alemão, por exemplo, a alternância de
close-ups e planos médios; o emprego de iluminação com fortes contrastes
entre luz e sombra, e cenas intercaladas de exterior e de interior, as últimas
com tomadas em longos corredores e escadarias, para enfatizar a predominância
de linhas diagonais e de ângulos inusitados.
Inovador é também o estilo de atuação de Asta Nielsen, mais contido
nos gestos, e que, por esse motivo, se distancia da performance convencional
dos atores de teatro. A possibilidade do cinema de fixar a expressão do rosto,
especialmente dos olhos dos atores, permite que a plateia penetre o mundo
interior das personagens, sem necessidade de palavras, tornando os intertítulos
explicativos supérfluos para os que conhecem o enredo. O Hamlet dinamarquês
inaugura, assim, um paradigma de absoluta liberdade na transposição do drama
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shakespeariano do palco para a tela, não só em termos de enredo como de
interpretação.
Conclusão
Que uma mulher estivesse à frente do projeto apenas reforça nossa
hipótese de que encarnar Hamlet representa para as atrizes, desde há
praticamente 300 anos, uma afirmação de resistência aos rígidos padrões de
conduta e nor mas restritivas impostas à mulher na sociedade e,
consequentemente, no palco. Um natural espírito de rebeldia, conjugado à
necessidade financeira, faz de Charlotte Charke o caso exemplar da atriz que
se transveste para desafiar normas e padrões sociais. Entretanto, o exame
cuidadoso de sua obra, em tempos recentes, evidencia preocupação e cuidado
com a performance teatral. As duas Sarahs, Siddons e Bernhardt, atrizes célebres
em suas respectivas épocas, embora separadas por mais de cem anos,
demonstram a mesma atração pelo desafio de dar vida a um personagem
complexo, de personalidade multifacetada. Não se pode afirmar que a rebeldia
exclua a preocupação estética, nem que esta seja a única motivação das atrizes
que ousaram viver nos palcos e, modernamente, nas telas, o controverso
herói. É indispensável lembrar que interpretar Hamlet lhes permitiu colocar
em prática o conceito maior da arte de representar.
Asta Nielsen está entre aqueles iniciados que percebem no cinema o
meio de acesso ideal à vida interior das personagens, sem necessidade de
palavras: as tomadas em close-up, que abrem aos espectadores a visão privilegiada
da expressão facial e do olhar do ator, bastariam para revelar às platéias as
infinitas nuances de um dos mais celebrados personagens da história do teatro.
De fato, o herói shakespeariano vem exercendo, através dos tempos,
fascínio obsessivo sobre plateias e críticos, sobre atores e atrizes de épocas e
nacionalidades diversas, o que aponta para a universalidade da personagem.
“Todos nós somos Hamlet”, escreve o critico romântico inglês William Hazlitt.
Estariam incluído indiscriminadamente neste “nós” homens e mulheres de
todas as idades, falantes da língua de Shakespeare e de todas as línguas civilizadas
do planeta, escritores e artistas plásticos, mas, principalmente, aqueles a quem
cabe encarnar Hamlet efetivamente, mesmo que pelo curto período de uma
performance: atores celebrizados no desempenho do papel, e atrizes talentosas,
que enfrentaram com galhardia os obstáculos que lhes negavam a glória de
viver o personagem mais marcante da dramaturgia em língua inglesa.
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Notas
*Agradecemos à Profa. Dra. Marlene Soares dos Santos (UFRJ) a generosa leitura
desse texto. As possíveis falhas são de responsabilidade das autoras.
1
Conforme as características do trecho citado, serão utilizadas as traduções de Millôr Fernandes
ou a de Anna Amélia Carneiro de Mendonça. Para facilitar as referências será dado o nome do
tradutor, seguido da data de publicação da tradução e do número da página.
2
Sobre as especificidades da convenção cênica do travestismo, ver “Then and Now:
Crossdressing in Shakespearean Drama” (SANTOS, 2007, p. 123-136).
3
No Brasil, possivelmente a primeira atriz a interpretar o príncipe foi a italiana Giacinta
Pezzana-Gualtieri (1841-1919), conhecida por suas posturas feministas e por sua
dedicação ao teatro de inovação. Em 1882, Pezzana foi muito aplaudida no teatro São
Pedro Alcântara, no Rio de Janeiro, e no teatro São José, em São Paulo. A crítica
comparou sua atuação favoralmente a de outros dois grandes atores italianos que
também fizeram o papel de Hamlet nos palcos brasileiros: Gustavo Salvini, em 1871,
no teatro São Pedro Alcântara, no Rio de Janeiro, e no teatro Santana, em São Paulo;
e Ernesto Rossi, em 1871 apenas no Rio de Janeiro, no teatro Lírico Fluminense, e,
em 1879, novamente no Rio de Janeiro, no teatro Imperial Dom Pedro II, e também
em São Paulo, no teatro São José. Sobre o assunto, Sábato Magaldi transcreve a
seguinte crítica: “A grandiosa tragédia está montada pobremente, mas ainda assim foi
um sucesso. Constitui soberba surpresa o papel do legendário Hamlet entregue à
interpretação da grande artista italiana. É um prodígio, um trabalho além de sua linha
natural – cenas houve em que chegou a exceder-se a si própria” (MAGALDI, 2000,
p.18). Em 1905, será a vez de Sarah Bernhardt encarnar o príncipe da Dinamarca nos
palcos brasileiros; depois de Sarah, o Brasil ainda pôde ver a atriz portuguesa Ângela
Pinto que também fez o papel do príncipe, apresentando-se no teatro Apolo do Rio
de Janeiro, e no teatro São José, em São Paulo; segundo Magaldi, a atriz enfatizava a
cena de loucura e a questão da vingança na peça, mas não foi muito apreciada pela
crítica brasileira (MAGALDI, 2000, p. 52).
4
As mais completas pesquisas sobre o assunto são de Tony Howard, Women as
Hamlet, e de Kerry Powell, Women and Victorian Theatre; os trabalhos elencam e analisam
um número grande de atrizes que subiram aos palcos para interpretar Hamlet e
outros papéis masculinos.
5
Em 1868, fez o Querubim em As bodas de Figaro, de Beaumarchais; em 1869, Zanetto,
em O passante, de Francois Coppée; em 1874, o pajem em A bela Paula, de Louis
Denagrousse; em 1896, Lorenzo em Lorenzaccio, de Musset; em 1900, o duque em
L’Aiglon, de Rostand; em 1916, Marc Bertrand em Du Théâtre au champ d’honneur, de
Louis Payen; e, em 1921, o protagonista de Daniel, de Louis Verneuil.
6
Disponível em: http://libcdm1.uncg.edu/u?/Hansen,18. Acesso: 4 dez. 2009.
7
Sobre o assunto, ver Howard, 2007, p. 109- 113.
8
Todas as traduções dos intertítulos são de nossa autoria, realizadas a partir da cópia
do filme com intertítulos em inglês que nos foi oferecida pelo Instituto de Filmes da
Dinamarca. É preciso lembrar que os intertítulos variam de cópia para cópia, exatamente
porque o original era em alemão e as cópias distribuídas foram traduzidas nas
respectivas línguas dos países, de modo que mesmo em inglês há divergências nas
traduções de cópias diferentes do filme.
118
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9
Todas as citações do texto de Vining são retiradas do texto completo que está em
domínio público; por essa razão não é possível indicar o número da página.
Disponível em: http://books.google.com. Acesso: 24 out. 2009.
10
Disponível em: http://shea.mit.edu/ramparts/newstuff4.htm. Acesso: dez. 2009.
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SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad. Millôr Fernandes. Porto Alegre: Editora
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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Disponível em: http://www.archive.org/details/somenotablehaml00scotgoog.
Acesso: 2 dez. 2009.
Artigo recebido em 08 de maio de 2009.
Artigo aceito em 28 de setembro de 2009.
Liana de Camargo Leão
Pós-Doutora em Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São
Paulo.
Mestre em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade Federal do Paraná.
Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Professora Adjunta de Literaturas de Língua Inglesa da Universidade Federal do
Paraná.
Membro do Centro de Estudos Shakespearianos (CESh).
Membro da International Shakespeare Association (ISA).
Mail Marques de Azevedo
Doutora em Letras (Área de Concentração em Língua Inglesa e Literaturas Inglesa e
Norte-Americana) pela Universidade de São Paulo.
Mestre em Letras pela Universidade Federal do Paraná - UFPR.
Professora aposentada da Universidade Federal do Paraná - UFPR.
Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE.
120
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
UM ESTUDO SOBRE HAMLET:
MORTE — CAUSA E CONSEQUÊNCIA
Verônica Daniel Kobs
[email protected]
RESUMO. O presente trabalho pretende
identificar, em Hamlet, de Shakespeare,
resquícios da filosofia que orientava a
produção das tragédias gregas, a exemplo
de Édipo-rei, de Sófocles, sobretudo. Além
disso, será analisado o conflito existencial
vivido pelo protagonista, no texto
original e no filme Hamlet: vingança e
tragédia, de Michael Almereyda, lançado
em 2000. Tal processo, denominado por
Claus Clüver e por Júlio Plaza de
“tradução intersemiótica”, será associado
ao conceito de “adaptação” formulado
por Patrice Pavis. Já com base nos
estudos de Joseph Campbell e Junito
Brandão, a partir dos solilóquios, bem
aproveitados na adaptação cinematográfica,
será possível consolidar o perfil psicológico
do personagem, permitindo relacionar a
vingança de Hamlet ao seu destino,
determinado, em grande parte, pelas
ações do tio usurpador.
ABSTRACT. The present work intends
to identify, in Hamlet, by Shakespeare,
traces of the philosophy that guided the
production of Greek tragedies,
emphasizing Oedipus Rex, by Sofocles.
Besides, the existential conflict lived by
the protagonist will be analyzed, in the
original text and in Hamlet: revenge and
tragedy (EUA, 2000), by Michael
Almereyda. This process, named by Claus
Clüver and Julio Plaza “intersemiotic
translation”, will be associated to Patrice
Pavis’ concept of “adaptation”. Based on
studies by Joseph Campbell and Junito
Brandão, the soliloquies, extremely well
utilized in cinematographic adaptation,
will be examined to make possible the
consolidation of the character’s
psychological profile, allowing us to relate
the revenge of Hamlet to his destiny,
determined mainly by the actions of his
usurping uncle.
PALAVRAS-CHAVE: Adaptação. Universalidade. Família. Conflito existencial.
KEY-WORDS: Adaptation. Universality. Family. Existential conflict.
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Introdução
A exemplo da versão cinematográfica de Romeu e Julieta, dirigida por
Baz Luhrmann e protagonizada por Leonardo DiCaprio e Claire Danes, Hamlet:
vingança e tragédia, de Michael Almereyda, propõe uma releitura do clássico,
mantendo, entretanto, a linguagem da peça de Shakespeare. Porém, o texto,
recebendo uma moldura nova, pelo diferente e atual contexto que o
compreende, passa por um intenso processo de revitalização e crítica, ao
mesmo tempo. O grande desafio imposto à obra de Shakespeare é passar a
fazer parte de um mundo atual, o que comprova a universalidade dos temas
que compõem Hamlet. Como sempre ocorre, com qualquer tipo de arte, há
uma sucessão de movimentos que optam pelo resgate, para negar ou para
reforçar o que veio antes. Isso pode ser relacionado à tradição, ou, em outros
termos, a uma cadeia de coisas perfeitamente encadeadas e que constroem a
História. Se um elo se romper, colocará em risco os que vêm depois dele,
pois, se um elemento da rede é afetado, acaba por desestabilizar os outros, em
menor ou maior grau.
No caso de Hamlet, pode-se afirmar, ainda, que Michael Almereyda
leva em conta grande parte das releituras da peça de Shakespeare que o
antecederam, mas com a proposta de aliar o antigo ao contemporâneo de
modo mais abrupto e consolidando, mais uma vez, a supremacia e a
credibilidade da obra em questão, especificamente nesse processo de
transposição do texto para a tela. Em artigo intitulado A permanência do Hamlet,
Luiz Angélico da Costa faz referência à via de mão dupla que surge, pelo fato
de Hamlet ser uma das peças mais retomadas ao longo dos anos: “Hamlet, a
peça, tem sido a obra shakespeariana com o maior número de leituras através
destes quatro séculos de sua existência. Freud e Lacan, entre outros, fizeram
as suas também. [...]. Mais do que as peças que lhe deram origem, o Hamlet de
Shakespeare mantém-se como um convite a novas interpretações e traduções
[...]” (COSTA, 2008, p. 1).
Claus Clüver, adotando a terminologia de Leo Hock, diferencia
“transposição” de “tradução”, por avaliar que a tradução garante maior
autonomia e liberdade do texto recriado em relação ao texto-base ou original,
como comprova o trecho a seguir: “[...] Leo H. Hock [...] propôs, numa
extensão do termo de Jakobson, chamar um texto que se aproxima do textofonte de ‘traduction intersémiotique’, como um caso especial de ‘transposition
intersémiotique’ que normalmente abrange itens mais ‘autônomos’” (CLÜVER,
1997, p. 42-3). Mais adiante, o autor completa: “Ler um texto como tradução
de outro texto envolve uma exploração de substituições e semiequivalências,
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de possibilidades e limitações. No caso de traduções intersemióticas, alguns
leitores fascinam-se com as soluções encontradas, enquanto outros podem
ver nisso a melhor demonstração das diferenças essenciais entre os vários
sistemas de signos” (CLÜVER, 1997, p. 43).
Na contemporaneidade, principalmente, a diferença é que assinala a
riqueza de uma obra. Em vez da similaridade, ressalta-se a alteridade, formandose, com todas as releituras de Hamlet feitas até então, um conjunto com
diferentes nuances e que oferecem um novo modo de olhar a obra de
Shakespeare, que parece, por isso, inesgotável. Isso se dá, claro, pela distância
temporal e pelo processo de “transculturação”, também mencionado por Clüver.
Somem-se a isso as diferenças impressas, nos produtos das inúmeras releituras,
pelos instrumentos próprios, às vezes exclusivos de cada sistema sígnico; afinal,
para se fazer um filme a partir de uma peça teatral, é necessário investir em
outros recursos, o que acaba por desacelerar, e muito, a preocupação com a
linguagem e a gestualidade, principais matérias-primas do texto e do espetáculo
teatral.
Em um dos muitos significados que Patrice Pavis oferece para o
termo “adaptação”, o autor ressalta o fato de, hoje, o critério de fidelidade
não mais imperar nesse processo, sobrando mais espaço à recriação; afinal, “a
transferência das formas de um gênero para outro nunca é inocente” (PAVIS,
1999, p. 11). No que se refere à junção entre o antigo e o novo, Pavis menciona
que a adaptação é uma “tradução que adapta o texto de partida ao novo
contexto de sua recepção com as supressões e acréscimos julgados necessários
à sua reavaliação” (PAVIS, 1999, p. 11). Fechando o raciocínio, se há “supressões
e acréscimos”, há crítica e “produção do sentido”, com total impossibilidade
de uma releitura “inocente”.
“Ser ou não ser”
Em Hamlet: vingança e tragédia, o diretor, usando a liberdade para
reavaliar o clássico, em sua releitura mantém a obrigação do protagonista de
vingar a morte do pai. No entanto, longe de ser uma opção, já que é justamente
a necessidade de vingança que dá início aos conflitos vividos por Hamlet, isso
não serviria de instrumento para o “julgamento” do clássico. Por isso, coerente
com a modernidade, o diretor investe nas relações interpessoais, potencializando
o solilóquio mais importante da peça, em que Hamlet reflete sobre a existência,
e relacionando-o a outras partes de fundo filosófico para consolidar o conflito
que sustenta a tragédia.
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123
Já no início do filme, Hamlet aparece, em imagens em preto e branco,
com um copo na mão. Por vezes, seu rosto é visto através do copo, o que o
distorce. Isso, além da embriaguez sugerida, serve de reforço ao estado de
espírito conturbado do personagem, que, nessa cena, declama fragmentos
que correspondem a esta transcrição, da tradução feita por Anna Amélia Carneiro
de Mendonça: “Ultimamente — não sei por que — perdi toda a alegria, [...].
Que obra de arte é o homem! Como é nobre a razão! Como é infinito em
faculdades! Na forma e no movimento como é expressivo e admirável! Na
ação, é como um anjo! Em inteligência é como um Deus! A beleza do mundo!
O paradigma dos animais! E, no entanto, para mim, o que é essa quintessência
do pó?” (SHAKESPEARE, 1995, p. 75-6, II, ii). A inversão em relação ao
texto original, já que o trecho transcrito abre o filme, tem o intuito de mostrar
o impacto da morte do pai sobre Hamlet, que parece mergulhado em um
clima de desesperança e de completa inanição. Quando a câmera se afasta e o
plano se abre, o espectador percebe que a cena que acabou de ver é um filme
que Hamlet fez e está revendo em seu computador, o que é apenas uma das
aberturas à metalinguagem no filme, exacerbando por completo o recurso
usado por Shakespeare, quando Hamlet mostra a seu tio, através da peça
dentro da peça, que já sabe de tudo.
Desde o início, porém, o conflito existencial, que atingirá tanto a
esfera ética quanto a moral, é estabelecido pelo diretor. A razão disso, em se
tratando de uma tragédia, é assim apresentada por Bárbara Heliodora: “[...] a
trama tem de retratar a parte perturbada da vida do herói que precede e
conduz à sua morte, pois nenhuma morte repentina ou acidental em meio à
prosperidade seria suficiente para o gênero. A tragédia é, essencialmente, um
relato de sofrimento e calamidade que conduz à morte” (HELIODORA,
2004, p. 126).
Em Hamlet: vingança e tragédia, a brincadeira metalinguística ganha
continuidade com uma das partes mais interessantes e surpreendentes do
filme. O solilóquio mais importante e conhecido do texto original é declamado
por Hamlet dentro de uma videolocadora, em meio a vários filmes. Claro que
nada que aparece na tela é aleatório. Hamlet caminha por um corredor, ladeado
por fitas de vídeo dispostas em prateleiras que têm a placa action. A cada passo
que ele dá, enquanto fala, as placas de action vão se seguindo uma a outra,
como se anunciassem uma espécie de clímax. Ao fundo desse corredor, três
televisores exibem cenas de explosão e de dois inimigos que lutam. Bem ao
fundo, passando quase despercebida, há uma placa colorida com a frase Go
home happy, uma brincadeira, em tom extremamente jocoso e parodístico, em
relação ao que Hamlet estava vivendo. Continuando a cena, Hamlet continua
124
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declamando seu solilóquio, mas agora cercado por inúmeras fitas de vídeo
com a inscrição blockbuster, o que pode ser interpretado de modo ambíguo,
pois o “grande sucesso” pode tanto remeter ao clássico quanto ao pop, dualidade
que traduz o filme de Almereyda, que prima pela combinação do atual com o
antigo. Terminando sua fala, Hamlet volta pelo mesmo corredor das placas
que anunciam action e mais action. Nos televisores, ao fundo, há, agora, a
imagem de um dos lutadores, em meio a chamas.
Em outra parte do filme, bem antes do solilóquio que opõe “ser” e
“não ser”, o mesmo tipo de conflito ganha destaque. A cena introduz o conceito
de “inter-ser” e é uma criação do diretor, que dialoga com a obra de
Shakespeare, além de inseri-la no panorama da modernidade, definido pela
dependência existente entre o sujeito e a sociedade. Segundo Stuart Hall, a
noção de sujeito sociológico reagiu à do sujeito Iluminista, regido pelo
individualismo: “De acordo com essa visão, que se tornou a concepção
sociológica clássica da questão, a identidade é formada na ‘interação’ entre o
eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o
‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os
mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem”
(HALL, 2001, p. 11).
Na esteira do sujeito sociológico, portanto, Almereyda inclui, no filme,
o trecho de um programa de tevê a que Hamlet assiste e no qual o entrevistado,
adepto da seita budista, explica:
Temos a palavra “ser”, mas eu proponho a palavra “inter-ser”. “Inter-ser”,
porque ninguém pode ser sozinho, estando sozinho. Você precisa de outras
pessoas para ser. Precisa de outros seres para ser. Precisa de pai, mãe e de tio,
irmão, irmã, amizades. E também de sol, rio, ar, árvores, pássaros, elefantes,
etc. Logo, é impossível ser, estando sozinho. Você precisa “inter-ser” com
tudo e todos. Portanto, “ser” significa “inter-ser”. (Hamlet, 2000)
Essa passagem revela-se de suma importância, quando associada ao
conteúdo da peça e do filme, porque expõe, para o protagonista, a necessidade
de ele entender a morte do pai como um problema seu, não por causa do
parentesco, apenas, mas também pela sua responsabilidade com todo o reino.
Apenas enfrentando seu tio e sua mãe, de modo a investigar as suspeitas
levantadas pelo espectro de seu pai, ele poderia corrigir o que estava errado.
Desse modo, “ser” ou “inter-ser”, em vez da simples opção por “não ser”, ou
pelo “[...] repouso/ Na ponta de um punhal [...]” (SHAKESPEARE, 1995, p.
89, III, i), significava assumir a herança, bem como a responsabilidade e os
riscos que vinham com ela.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
125
Aproveitando a relação entre “ser” e “inter-ser” incluída na adaptação
de Hamlet para o cinema, observe-se que Joseph Campbell, em seus estudos,
que comumente associam psicologia e mitologia, faz menção à família como
se essa fosse uma arena de conflitos. Além disso, fica explícito o vínculo entre
o conceito de usurpação e uma passagem da obra O herói de mil faces: “O
campo de batalha simboliza o campo da vida, no qual toda criatura vive da
morte da outra” (CAMPBELL, 1997, p. 231-2). Importante ainda é notar a
intensidade dos conflitos ente pai, mãe e filho. Flügel, referência usada por
Campbell frequentemente, afirma que a figura do pai é associada à alma,
enquanto a da mãe, ao corpo ou à matéria, o que se revela de extrema relevância
em Hamlet porque o fato de o espectro do pai aparecer para o filho, clamando
por vingança, reforça a sintonia existente ente os dois, já que, por mais que o
filho, inicialmente, encare o progenitor como um rival, acaba igualando-se a
ele. Esse aparente conflito, que deve ser transmutado, depois, em continuidade,
é caracterizado da seguinte forma por Flora Süssekind:
Vampirescamente o membro mais jovem deve revigorar toda a árvore.
Quando se recusa a buscar a bênção familiar, quando ao invés da
hereditariedade percebem-se diferenças, é o pai quem se torna repentinamente
“estéril”. [...]. Quando “filho” se torna sinônimo de “diferença”, de
“descontinuidade”, percebe-se que, por maior que tenha sido a árvore onde
se inscreve o nosso corpo, resta apenas um “duplo traço” cortando todos
os ramos seguintes ao nosso. (SÜSSEKIND, 1984, p. 24-5)
A partir do exposto acima, em Hamlet, o pai, ao voltar como fantasma,
exige que o filho o “substitua”, pedindo a aniquilação das diferenças em favor
da continuidade, concretizando a afirmação de Flügel. Tal postura obriga
Hamlet a apresentar, de modo mais marcado, seu perfil contemplativo e
reflexivo em relação a tudo e a todos, através do contato com o sobrenatural.
Campbell chega a comparar Hamlet a Édipo, afirmando que ambos buscam,
“nas trevas, um reino mais elevado que o da mãe luxuriosa e incorrigível,
afetada pelo incesto e pelo adultério” (CAMPBELL, 1997, p. 122). No caso
de Édipo-rei não, mas, em se tratando de Hamlet, a busca por “um reino mais
elevado” pode, ainda, ser associada à condição de fellow do protagonista, a
qual, por sua vez, possibilita o engrandecimento do conflito instituído pela
missão recebida pelo fantasma do pai: “O fantasma talvez seja um demônio,/
Pois o demônio assume aspectos vários/ [...] preciso/ Encontrar provas menos
duvidosas” (SHAKESPEARE, 1995, p. 85).
126
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
No início, o dilema é apenas ético, mas, aos poucos, atinge a esfera
moral: “Eu nem sei por que vivo e apenas digo/ ‘Isso deve ser feito’, pois não
faltam/ Razões, vontade e força e os próprios meios/ Para fazê-lo [...]./ De
ora avante, terei ódio sangrento,/ Ou nada valerá meu pensamento”
(SHAKESPEARE, 1995, p. 128-9, IV, iv). E é justamente nessa parte que
Hamlet decide levar sua vingança adiante, optando por “ser”, ou seja, por
assumir o legado que lhe cabia e reestabelecer a ordem, em sua família e em
seu reino; afinal, o ato de Claudius tinha repercutido enormemente. A expiação
era uma exigência e o instrumento era Hamlet.
Machina fatalis
Na cultura grega da Antiguidade, as pessoas de uma mesma família
são inseridas em um processo atávico de punição pelos erros de seus
ascendentes. Desse modo, o erro de um antecessor espalha o caos sobre toda
a família e deve ser corrigido por ele ou por alguém das futuras gerações. O
descontrole (hýbris) que gera o erro (hamartía) exige que se cumpra um longo
e penoso caminho de expiação (catábasi), a fim de que, ao término dos
obstáculos, ocorra uma espécie de renascimento, com o reestabelecimento da
ordem e do equilíbrio (anábasi). No caso específico de Hamlet, têm relevância
o descontrole e o erro.
O descontrole se opõe ao comedimento estoico, ou ao que os mitólogos
denominam métron, e é resultado de uma escolha, apenas sob o ponto de vista
cristão. Na cultura pagã, o excesso é parte inerente da trajetória do herói,
previamente traçada e inalterável (môira=destino). Logo, a força de tragédias
como Édipo-rei e Hamlet está, justamente, na tentativa vã de o herói resistir,
evitando o descontrole, mas de, ao fim, esse se mostrar inevitável. Retomando
a tragédia de Sófocles, isso pode ser facilmente ilustrado com a tentativa de
Édipo de fugir de Corinto, em direção a Tebas, evitando que se cumprisse a
profecia do oráculo de que ele mataria seu pai e se casaria com sua mãe.
Como os pais que ele conhecia eram Pólibo e Mérope, partiu, achando estar
fazendo o certo. No entanto, como não cabe aos mortais tentar mudar o que
lhes foi pré-determinado, Édipo, sem saber, tentando evitar seu destino,
caminhava em direção a ele.
Desse modo, torna-se possível uma leitura que identifique, na peça
de Shakespeare, influências não apenas do mundo elisabetano, mas também
e, sobretudo, da tragédia grega, o que vai contra a leitura de críticos como
Barbara Heliodora, que, em Reflexões shakespearianas, observa: “No mundo
elisabetano, [...] estamos em um universo essencialmente cristão, no qual o
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127
princípio do livre arbítrio é de suma importância, pois, segundo ele, cada
homem é responsável por todas as suas ações” (HELIODORA, 2004, p.
122). Além de, em Hamlet, haver um transbordamento dessa responsabilidade,
pois não é apenas quem comete o erro que paga por ele (e esse é o primeiro
ponto que justifica a leitura da peça com base nos padrões das tragédias
gregas), a própria autora, páginas adiante, refere-se à inevitabilidade dos fatos,
o que não corresponde totalmente à escolha propiciada ao personagem pelo
livre-arbítrio:
A calamidade não acontece, não é enviada: ela se origina de ações executadas
por seres humanos. Porém, temos que admitir que há circunstâncias que
pesam sobre esses seres [grifo nosso], o que acaba por sugerir uma cadeia
aparentemente inevitável de acontecimentos: mesmo que as ações cruciais
sejam de responsabilidade do herói, elas desencadeiam conseqüências e forças
que conduzem inevitavelmente à catástrofe final. (HELIODORA, 2004, p.
127)
Para os gregos, essas “circunstâncias” constituem a môira, que, segundo
Junito Brandão, significa destino, o qual “simbolicamente é ‘fiado’ para cada
um. [...] o destino, em tese, é fixo, imutável, não podendo ser alterado nem
pelos próprios deuses” (BRANDÃO, 2002, p. 141). Hamlet demonstra total
consciência da incapacidade, sua e de qualquer outro, de mudar o que já fora
traçado, quando, advertido por Horácio de que sua vingança poderia custarlhe a vida, afirma: “Se tiver que ser agora, não está para vir; se não estiver
para vir, será agora; e se não for agora, mesmo assim virá” (SHAKESPEARE,
1995, p. 165). Não é só a idéia de destino, tal como o concebiam os gregos,
que fica explícita no trecho transcrito acima, mas também a segurança de que,
tendo cometido um descontrole, mesmo que em função do erro de outro
(Claudius), sua punição viria, mais cedo ou mais tarde. Levando-se em conta
a tarefa que o fantasma do pai impõe a Hamlet, desde que lhe apareceu pela
primeira vez, e também sua nobreza, o momento em que o protagonista age
por impulso, matando Polônio em vez de Claudius, serve para diminuir sua
areté, que pode ser entendida como superioridade ou excelência.
Outro impedimento para o uso do livre-arbítrio é a condição de
Hamlet, um príncipe, que, como tal, não pode agir apenas pensando em si
mesmo; afinal, depende dele o futuro de todo o reino da Dinamarca. No
texto de Shakespeare e também no filme de Almereyda isso é lembrado por
Laerte a Ofélia: “Ele não pode, qual os sem valia,/ Escolher seu destino, dessa
escolha/ Depende a segurança e o bem do Estado” (SHAKESPEARE, 1995,
p. 45). Isso é mencionado por Barbara Heliodora como uma herança medieval.
128
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Porém, já no teatro grego, acontecia da mesma forma. Édipo, ao se casar com
Jocasta, assume o trono de uma Tebas devastada e assolada pelas piores
desgraças, que só teriam fim, de acordo com o oráculo, quando o assassinato
do rei fosse expiado. Por essa razão, tanto no texto de Shakespeare, que inclui
a célebre frase: “Algo está podre aqui na Dinamarca” (SHAKESPEARE, 1995,
p. 52), quanto no de Sófocles, “[...] a importância da função do protagonista
empresta-lhe um significado simbólico que extrapola a ação para toda a
comunidade” (HELIODORA, 2004, p. 126).
Dessa maneira, a condição superior dos personagens e a repercussão
de seus atos levam à associação muito comum, na cultura grega da Antiguidade,
entre génos e hamartía, termos que podem, de modo simplificado, ser traduzidos
por família e erro, respectivamente: “[...] qualquer hamartía [...] tem que ser
religiosa e obrigatoriamente vingada. Se a hamartía é dentro do próprio génos, o
parente mais próximo será igualmente obrigado a vingar o seu sanguine coniunctus.
Afinal, no sangue derramado está uma parcela da vida, do sangue e, por
conseguinte, da alma do génos inteiro” (BRANDÃO, 2002, p. 77). Curiosamente,
recaíam sobre Hamlet a obrigação de vingar a morte do pai e, ao mesmo
tempo, o castigo pelo ato de Claudius, dando início à tal cadeia de erros e
purgações, denominada por Junito Brandão machina fatalis e entendida também
como “transmissão da falta” ou “hereditariedade do castigo”: “A essa idéia do
direito do génos está indissoluvelmente ligada a crença na maldição familiar, a
saber: qualquer hamartía cometida por um membro do génos recai sobre o génos
inteiro, isto é, sobre todos os parentes e seus descendentes ‘em sagrado’ ou
‘em profano’” (BRANDÃO, 2002, p. 77).
Não se esquecendo do fato de Claudius ambicionar o trono, o génos
amplia-se, adquirindo, além de família, também o significado de reino, que
padece pela ação de seus governantes. Com base nisso, justifica-se a frase que
Almereyda usa para fechar Hamlet: vingança e tragédia: “As idéias são nossas,
mas seus resultados não nos pertencem” (Hamlet, 2000). A ação de Claudius
inclui Hamlet na machina fatalis e o personagem tem sua vida transformada
desde o momento em que, para aumentar suas desconfianças, o espectro do
pai aparece para ele, ordenando a vingança, por isso o uso do imperativo na
fala do pai ao filho. Hamlet não escolhe seu destino. Ao contrário, ele lhe é
imposto: “[...] Maldito fado/ ter eu de consertar o que é errado”
(SHAKESPEARE, 1995, p. 59). Como Édipo, Hamlet também tenta lutar
contra seu destino, recusando-se a matar Claudius, mesmo depois de saber de
tudo, mas as coisas se precipitam e se avultam, com a morte da mãe e as
palavras de Laerte, ao final da peça e do filme, provocando a catástrofe. Pelo
sangue derramado por Claudius, cumpre-se a maldição familiar. Como se não
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
129
bastassem os fatos de Hamlet ser responsável pela morte de Polônio e de
pesar sobre ele a culpa pela morte de Ofélia, ele descobre o envenenamento
da mãe, mata o tio e morre, com Laerte, depois de um duelo arquitetado pelo
rei usurpador. O final, típico da tragédia, concretiza o discurso de Rosenkrantz
sobre os efeitos da ação de um soberano, tão avassaladores que provocam
não só a sua própria queda, mas a de todos que o cercam: “[...] a majestade/
Não sucumbe sozinha; mas arrasta/ Como um golfo o que a cerca; e como a
roda/ Posta no cume da montanha altíssima/ A cujos raios mil menores coisas/
São presas e encaixadas; se ela cai,/ cada pequeno objeto, em conseqüência/
Segue a ruidosa ruína. O brado real/ faz reboar a voz universal”
(SHAKESPEARE, 1995, p. 108).
Conclusão
A partir dos ingredientes extremamente variados que Almereyda usa
em sua adaptação cinematográfica de Hamlet, não só na execução do filme,
mas nos temas que percorrem o texto original e que são preservados no
filme, para que não se perca a essência shakespeariana, a exemplo do
cruzamento do mito com a filosofia, chega-se ao conceito de Júlio Plaza, que
entende tradução intersemiótica como renovação ou diálogo crítico. Dessa
forma, sobretudo em se tratando da adaptação de um clássico, exige-se que o
novo e o antigo estejam em sintonia constante. Por isso, em Hamlet: vingança
e tragédia, se a linguagem ficou responsável pela permanência, a transformação,
para a atualização ou revitalização da obra de Shakespeare, ficou a cargo de
uma nova perspectiva espaço-temporal. O novo Hamlet, personagem do ano
2000, não vive na Dinamarca, mas em Nova Iorque. Porém, mantém-se a
referência dinamarquesa, através de uma brincadeira que faz de Ethan Hawke,
protagonista do filme, herdeiro da Denmark Corporation e do Hotel Elsinore.
A própria mescla espacial, temporal e linguística, que une o tradicional
com o contemporâneo e que foi enaltecida pelo trânsito que permitiu a
transformação de uma peça de teatro em filme, em um processo que favorece
um tipo de mídia totalmente diferenciado, é encarada como característica da
pós-modernidade:
O período da pós-modernidade [...] caracteriza-se também por uma recorrência à história, pela crítica do “novo” (opondo convenção à invenção),
pela recuperação da categoria do público, isto é, por uma ênfase na recepção
e, sobretudo, por uma imensa inflação babélica de linguagens, códigos e
hibridização dos meios tecnológicos, que terminam por homogeneizar,
130
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
pasteurizar e rasurar as diferenças: tempo de mistura. (PLAZA, 2003, p.
206)
Como um palimpsesto, a tradução intersemiótica realça o novo
produto, mas abre clareiras para que, através delas, o espectador/leitor possa
chegar ao texto original. Há, portanto, dois planos e é justamente essa
duplicidade, que se faz presente em todo processo de adaptação, a responsável
pelo destaque dado à recepção, já que o espectador do filme, para um melhor
entendimento da obra, deve, também, ter lido o texto de Shakespeare, a fim
de estabelecer o diálogo necessário. Mais ainda: o espectador/leitor deve
interpretar as mudanças feitas, apreendendo a postura crítica que existe por
trás de cada uma delas, o que o faz refletir, simultaneamente, sobre os valores
tradicionais e os contemporâneos. Em suma, a adaptação desempenha a função
de marcar o alcance imenso da obra original, ao mesmo tempo em que a
revitaliza, mas não por simples opção do diretor e sim porque a própria obra
permite essa atualização, dada a sua amplitude.
Ao mesmo tempo, a duplicidade serve para questionar e relativizar
os conceitos de criação e de autoria, já que o novo se faz assumidamente
sobre o antigo. Prática pós-moderna ou característica comum a todas as
criações? Obviamente, a prática não é nova. É a profusão de debates que a
pós-modernidade propicia sobre esse assunto, a partir de obras que se fazem
a partir de recortes de jornal, discursos históricos ou trechos de obras clássicas,
que permite a inserção dessa característica no conjunto de traços comuns a
esse período artístico-literário: “[...] numa visão co-extensiva à formulada por
Haroldo de Campos a respeito da Tradução Poética, concebemos a Tradução
Intersemiótica como [...] um outro nas diferenças, como síntese e re-escritura
da história. Quer dizer: como pensamento em signos, como trânsito de sentidos,
como transcriação de formas na historicidade” (PLAZA, 2003, p. 209). Relendo
e recontextualizando o clássico, o diretor, que é, antes de tudo, um receptor,
expressa uma nova visão da obra original em seu produto, um filme, nesse
caso específico, o qual será recebido por milhares de espectadores, que também
farão suas leituras, com alguma chance de essas resultarem em outras obras
de arte, as quais ficarão conhecidas por outros milhares de espectadores, etc.,
etc. É nesse processo, de respostas que produzem reflexões e perguntas, que,
por sua vez, pedem novas respostas, que são construídos a História e o processo
infinito da crítica, sempre vinculada à criação ou à recriação.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
131
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, J. de S. Mitologia grega. Vol. I. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1997.
CLÜVER, C. Estudos interartes: conceitos, termos, objetivos. In: Literatura e sociedade
2: revista de teoria literária e literatura comparada. São Paulo: Universidade de São
Paulo, 1997.
COSTA, L. A. da. A permanência do Hamlet. Disponível em: http://
www.iupe.org.br/ass/resenhas/res-040723-hamlet.htm. Acesso em: 02 set. 2007.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
Hanlet: vingança e tragédia. Direção de Michael Almereyda. EUA: Jason Blum, Andrew
Fierberg, Callum Greene, Amy Hobby e John Sloss; Imagem Filmes, 2000. 1 dvd
(112 min); son.; 12 mm.
HELIODORA, B. Reflexões Shakespearianas. Rio de Janeiro: Lacerda, 2004.
PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.
SHAKESPEARE, W. Hamlet. Tradução de Anna Amélia Carneiro de Mendonça. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
SÜSSEKIND, F. Tal Brasil, qual romance? Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
Artigo recebido em 13 de dezembro de 2008.
Artigo aceito em 17 de abril 2009.
Verônica Daniel Kobs
Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná – UFPR.
Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Paaná – UFPR.
Coordenadora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.
Professora de Literatura Brasileira da Uniandrade.
Membro consultor do Conselho Editorial da Secretaria de Cultura do Estado do
Paraná.
132
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
O VERSO DE MANUEL BANDEIRA
EM SUA TRADUÇÃO DE MACBETH
Marcia A. P. Martins
[email protected]
Paulo Henriques Britto
[email protected]
RESUMO: Este artigo faz, inicialmente,
uma breve apresentação das 13 traduções
brasileiras da tragédia Macbeth, de William
Shakespeare, publicadas até hoje; a seguir
se detém na realizada pelo poeta
modernista Manuel Bandeira, com o
objetivo de examinar as estratégias
formais por ele empregadas. A análise
focaliza especialmente as soluções
encontradas pelo tradutor para recriar em
português o pentâmetro jâmbico branco,
que é o metro mais característico da
poesia dramática shakespeariana, e o
tetrâmetro, com rimas emparelhadas, que
aparece na fala das bruxas. De modo geral,
Bandeira opta pelo decassílabo, aumenta
o número de versos com o fim de
diminuir a necessidade de fazer cortes no
texto e procura manter bem nítido o
contraste entre o verso das bruxas e o
dos nobres, utilizando um metro mais
curto rimado para se opor ao decassílabo
branco.
ABSTRACT: This article briefly presents
the 13 Brazilian translations of
Shakespeare’s Macbeth published to the
present and proceeds to examine the
translation published by the Modernist
poet Manuel Bandeira, analyzing the
formal strategies he employed. Emphasis
is given to the solutions found by
Bandeira when recreating in Portuguese
the blank verse that is the most
characteristic meter of Shakespearean
drama and the rhymed couplets of
trochaic tetrameter spoken by the Weird
Sisters. Generally speaking, Bandeira
chooses the decasyllable, increases the
number of lines so as to minimize cuts
in the text and attempts to preserve a
sharp contrast between the verse
associated with the witches and that
reserved for the noble characters, using a
shorter, rhymed line in opposition to the
unrhymed decasyllable.
PALAVRAS-CHAVE: Shakespeare. Tradução teatral. Versificação. Métrica.
KEY WORDS: Shakespeare. Drama translation. Verse. Meter.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
133
Macbeth, escrita em 1606, é considerada uma das quatro grandes
tragédias shakespearianas, junto com Hamlet (1600-1601), Otelo (1603-1604)
e Rei Lear (1605-1606). Apesar de não se incluir entre as peças com vários
supostos originais, como Hamlet, já que o único texto existente foi publicado
na edição do Primeiro Fólio, em 1623, apresenta possíveis interpolações, como
as cenas das quais Hécate participa. Essa tragédia, a mais curta de todas, tem
como fonte principal as crônicas de Holinshed — The Chronicles of England,
Scotland and Ireland — e gira em torno da ambição do guerreiro escocês Macbeth
e sua esposa, que não medem consequências para garantir a ascensão ao
trono profetizada pelas bruxas.
Embora de estrutura relativamente simples, é uma peça extremamente
sinistra no clima e violenta nas ações, desde o mau tempo e os trovões
associados à presença do sobrenatural encarnado pelas Weird Sisters até as
vívidas descrições de batalhas e assassinatos. Como analisa A. C. Bradley, “In
its language, as in its action, the drama is full of tumult and storm” (1904:
309). Cromaticamente ela é toda rubra e cinzenta, um rio de sangue em meio
à neblina e ao ar poluído.
Essa história “cheia de som e fúria”, de linguagem fortemente
imagética e repleta de palavras associadas à violência, teria sido encenada pela
primeira vez em português do Brasil, segundo registra a bibliografia William
Shakespeare no Brasil, compilada por Celuta Moreira Gomes (1961), no ano de
1839, pela companhia teatral de João Caetano, em tradução de Francisco José
Pinheiro Guimarães a partir de um original inglês. Tal informação não aparece
no clássico Shakespeare no Brasil, de Eugenio Gomes (1961: 14), para quem o
primeiro Macbeth de João Caetano foi ao palco em 1843, usando uma tradução
de José Amaro de Lemos Magalhães baseada na adaptação francesa de JeanFrançois Ducis. De qualquer forma, essas traduções não chegaram até nós,
ao contrário das traduções integrais a partir de originais em inglês que tiveram
início com o Hamlet de Tristão da Cunha, publicado em 1933 pela Schmidt.
Desde então já foram publicadas 13 traduções brasileiras de Macbeth, a segunda
peça shakespeariana mais traduzida no Brasil, superada apenas por Hamlet,
com 15 transposições até o primeiro semestre de 2009.
As duas primeiras traduções de Macbeth para o português do Brasil
foram publicadas em 1948: a de Oliveira Ribeiro Neto (Martins), em prosa e
verso, e a de Artur de Salles (Clássicos Jackson, em edição com Rei Lear de
Jorge Costa Neves), em prosa e parelhas de dodecassílabos (alexandrinos, em
sua maioria) rimados.
134
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
A seguir, na década de 1950, foi lançada a de Carlos Alberto Nunes
(Melhoramentos), que traduziu naquele período o teatro completo em prosa
e versos decassílabos, até hoje reeditado, agora pela Agir.
Nos anos 1960, foram publicadas mais quatro: as de Nelson de Araújo,
em 1960 (Imprensa Oficial da Bahia), em prosa; de Manuel Bandeira, em
1961 (José Olympio), em prosa e versos decassílabos, reeditada pela Brasiliense,
depois pela Paz e Terra e em 2009 pela Cosac Naify; de Péricles Eugênio da
Silva Ramos (Conselho Estadual de Cultura), em 1966, em prosa e verso
(predominando o decassílabo); e de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e
Oscar Mendes, que também traduziram a obra completa (José Aguilar, 1969),
em prosa.
No ano de 1970 foi lançada mais uma tradução, dessa vez por Geir
Campos, em prosa e versos decassílabos, e só quinze anos depois houve outra,
por Barbara Heliodora, também em prosa e versos decassílabos (Nova
Fronteira, 1995).
Na década atual surgiram quatro novas traduções, realizadas
respectivamente por Beatriz Viégas-Faria, em prosa (L&PM Pocket, 2000);
Jean Melville, anunciada como em prosa e verso em edição controversa da
Martin Claret (2002)1; Fernando Nuno, sob forma de adaptação em prosa
(Objetiva, 2003); e Elvio Funck, em edição bilíngue e tradução interlinear em
prosa (EdUFSC, 2006).
São, portanto, muitas traduções, cinco em prosa e oito reproduzindo
a combinação shakespeariana de prosa, verso branco e verso rimado, sendo
que a forma usada no original inglês, o pentâmetro jâmbico, é geralmente
transformada, em português, em decassílabos, com raros casos de opção pelo
dodecassílabo (além do já mencionado Macbeth de Artur de Salles há também
os Hamlets de Péricles Eugênio da Silva Ramos, publicado originalmente pela
José Olympio em 1955, e de Lawrence Flores Pereira, que será lançado pela
Editora 34). Algumas dessas traduções não foram reimpressas ou reeditadas,
só estando disponíveis em bibliotecas e sebos; esse é o caso dos trabalhos de
Nelson de Araújo, Péricles Eugênio da Silva Ramos e, novamente, de Artur
de Salles. Outras, no entanto, têm sido reimpressas ou reeditadas com certa
regularidade, o que aumenta a sua visibilidade e, naturalmente, sua circulação.
Há edições mais acessíveis em termos de preço, como as da L&PM, em
formato de bolso, encontradas em outros pontos de venda além de livrarias,
e outras mais luxuosas, como a recente reedição do Teatro Completo em
tradução de Carlos Alberto Nunes, pela Agir, apresentada em três volumes de
capa dura e tamanho maior do que o padrão, assim como a publicação gradual
do cânone completo em tradução de Barbara Heliodora pela Nova Aguilar,
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
135
também em três volumes de capa dura e papel bíblia. Já foram lançados dois
volumes: o primeiro, com as tragédias e as comédias sombrias (2006) e o
segundo, com as comédias e os romances (2009).
No entanto, entre todas essas traduções de Macbeth uma das que
mais fascinam e atraem o interesse do público é de Manuel Bandeira, um dos
maiores nomes da poesia brasileira em qualquer época. Nossa proposta, neste
artigo, é analisar as estratégias e soluções formais da tradução de Bandeira,
em especial no que se refere às passagens em verso, seja branco ou rimado.
Procuraremos ver em que medida o contrato métrico do decassílabo é
efetivamente cumprido, bem como examinar as soluções adotadas pelo tradutor
nas passagens em que ele se afasta desse metro.
Lançada em 1961 pela José Olympio, a tradução tem sido republicada
com frequência; pela Brasiliense e pela Paz e Terra (desde 1996, estando já na
3ª edição), em formato bolso, e pela Cosac Naify (2009), em edição ilustrada
e com capa dura. As edições trazem uma nota do tradutor de duas páginas na
qual Bandeira se detém sobre a peça em si — as fontes, as possíveis
interpolações, algumas considerações sobre o tema e a linguagem — e não
menciona aspectos do processo tradutório. Não se constituem, portanto, em
edições comentadas: não há notas nem outros paratextos que apresentem ou
expliquem o autor, a obra em si ou a tradução.
Em termos de recepção crítica desse trabalho de Bandeira, foram
localizados apenas dois textos: um, do crítico teatral Sábato Magaldi, publicado
no Jornal da Tarde (1989), e outro do tradutor Giovanni Pontiero (1964), que
integra uma edição comemorativa do quarto centenário de nascimento de
Shakespeare, organizada por Barboza Mello e Olympio Monat.
O texto de Magaldi enfoca, em sua maior parte, a tragédia em si —
tema, enredo, estrutura, fontes, principais personagens —, dedicando os três
últimos parágrafos a um breve comentário a respeito das traduções de Bandeira
e Silva Ramos. Segundo o crítico, “Bandeira traduziu Macbeth em decassílabos,
equivalentes ao pentâmetro jâmbico inglês. O texto brasileiro é bonito, tendo
a grandeza de um dos poetas mais puros da língua” (1989). A seguir, Magaldi
cita Silva Ramos, que assim justificou ter produzido uma tradução da mesma
peça cinco anos após a de Bandeira, dessa vez com introdução e mais de
quinhentas notas:
Não faltará talvez quem ache demasiado pôr mais uma vez o Macbeth em
nossa língua, à vista, principalmente, das traduções anteriores dos poetas
Artur de Sales e Manuel Bandeira. A esse respeito, de fato o Macbeth é mais
afortunado que o Hamlet, que não contava em nosso país com tradução em
verso até há poucos anos (o próprio Péricles Eugênio lançou sua edição
136
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
príncipe em 1955). Mas o fato de haver traduções anteriores não quer dizer
que isso deva constituir barreira a novas traduções, pois não pode o culto
shakespeariano sofrer peias dessa ordem; assim, em nossa empresa deve ser
visto não o ridículo desejo de emular, mas o tributo de uma geração mais
recente ao cisne de Avon. (1989).
O crítico comenta, então, as duas traduções, dizendo que são ambas
“muito competentes, sensíveis e eficazes. Quem dera elas representassem a
norma dos textos transpostos para o português”. Sugere, no entanto, de forma
implícita, que falta a ambas “plena equivalência da comunicabilidade alcançada
pela palavra shakespeariana, como Millôr Fernandes conseguiu, por exemplo,
com A megera domada e O rei Lear”. Aparentemente, portanto, Magaldi considera
essas traduções em verso mais adequadas à estante do que à cena, o que
também as tornaria de certa forma “infiéis” ao caráter prioritariamente
dramatúrgico/teatral da obra shakespeariana.
Por sua vez, o texto de Pontiero — prestigiado tradutor do português
e do espanhol para o inglês — ressalta logo de início a importância de Bandeira,
cujo nome “tem sido ligado, no Brasil, ao de Guilherme de Almeida, Onestaldo
de Pennafort e Abgar Renault, uma minoria que se salientou como
competentíssima na tradução do verso, além de suas realizações na crítica e
na poesia” (1964, p. 35). Para Pontiero, o papel do tradutor de poesia é delicado
e complexo, na medida em que deve: (i) sofrer um processo mental de
identificação a fim de alcançar “reprodução fiel do conteúdo verbal e emocional
do original” para tentar transmitir “a qualidade essencial do verso sem distorção
da paráfrase ou excessivos esclarecimentos”, ou seja, economia de expressão;
e (ii) sentir a musicalidade do verso e, ao mesmo tempo, perceber
detalhadamente os efeitos da rima, assonância, aliteração e onomatopeia, além
de lutar com sutis artifícios, interrogativas pouco claras e pronomes ambíguos.
Esses requisitos, a seu ver, tornam-se ainda mais prementes no caso de Macbeth,
devido as suas complexidades de estilo e dificuldades técnicas. A seguir, Pontiero
comenta a tradução de Bandeira, fazendo uma análise comparada de trechos
do original e das soluções encontradas pelo poeta. A seleção dos fragmentos é
pautada por aspectos descritivos (a atmosfera sombria, o clima sobrenatural),
sintáticos, retóricos (a poesia da oratória de Macbeth, emprego de antíteses
para transmitir emoções em conflito) e de linguagem (manutenção de
onomatopeias e aliteração). De modo geral, aprova e valoriza as soluções do
poeta, que resultaram em “uma tradução moderna que, dotada de um sutil
reajustamento do tom e da ênfase, consegue guardar a perfeita essência da
linguagem de Shakespeare” (p. 36). Lamenta apenas que “[a] linguagem
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
137
densamente concisa de Shakespeare, a riqueza do detalhe e a força dramática
por trás de suas imagens, infelizmente [tenham] que sofrer com a tradução.
Frequentemente o português é incapaz de reproduzir a áspera precisão da
fraseologia inglesa” (p. 42), gerando traduções parafrásticas e formulações
prosaicas. Em outros momentos, no entanto, o “sentido de exatidão e equilíbrio”
de Bandeira são reafirmados, e o resultado geral é de uma tradução muito
bem-sucedida “não só quanto à atmosfera e linguagem quanto à técnica poética”
(p. 43). Em nenhum momento, no entanto, Pontiero examina a questão da
métrica e da rima nessa tradução em prosa e verso por ele tão bem avaliada
e realizada por um poeta que tanto se destacou como tradutor de poesia.
A maioria das peças do cânone shakespeariano contém verso e prosa.
Macbeth, sob essa perspectiva, não é exceção, mas a prosa aparece em muito
poucas passagens. O verso é quase sempre o blank verse – o pentâmetro jâmbico
branco, que é o metro mais característico do teatro de Shakespeare – mas as
bruxas utilizam um metro mais curto, o tetrâmetro, com rimas emparelhadas.
Vejamos, pois, de que modo Bandeira recria em português os dois tipos de verso.
Comecemos com o blank verse, a forma utilizada em cerca de noventa
por cento do texto. Cotejemos a passagem da segunda cena do primeiro ato,
em que o oficial relata ao rei o embate entre Macbeth e Macdonwald, quando
lhe perguntam como estava a luta no momento em que ele, ferido, foi obrigado
a ausentar-se do campo de batalha:
Sergeant
Doubtful it stood;
As two spent swimmers, that do cling together
And choke their art. The merciless Macdonwald—
Worthy to be a rebel, for to that
The multiplying villanies of nature
Do swarm upon him—from the western isles
Of kerns and gallowglasses is supplied;
And fortune, on his damned quarrel smiling,
Show’d like a rebel’s whore: but all’s too weak:
For brave Macbeth—well he deserves that name—
Disdaining fortune, with his brandish’d steel,
Which smoked with bloody execution,
Like valour’s minion carved out his passage
Till he faced the slave;
Which ne’er shook hands, nor bade farewell to him,
Till he unseam’d him from the nave to the chaps,
And fix’d his head upon our battlements.
138
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
DUNCAN
O valiant cousin! worthy gentleman!
Oficial
Indecidida.
Era ver dois exaustos nadadores
A agarrar-se e a anular sua perícia.
O implacável Macdonwald — bem talhado
Para rebelde, pois de vilanias
Tão cumulado pela natureza —
Das ilhas de oeste recebeu reforço
De tropas irlandesas, e a Fortuna
Sorria-lhe à diabólica empreitada
Como rameira de soldado. Tudo
Debalde, pois Macbeth (merece o nome),
Zombando da Fortuna, e com a brandida
Espada fumegante da sangrenta
Carnificina, abre passagem como
O favorito do valor e enfrenta
O miserável. Sem lhe dar bons dias,
Descose-o de um só golpe desde o umbigo
Até às queixadas, corta-lhe a cabeça,
Crava-a numa seteira.
DUNCAN
Ó bravo primo!
Ó digno cavaleiro!
Antes de examinarmos a tradução de Bandeira, talvez seja interessante
abrir um parêntese a respeito dos méritos relativos do decassílabo e do
dodecassílabo para a tradução do pentâmetro jâmbico inglês. O decassílabo,
usado na tradução em pauta, é a opção feita pela maioria dos tradutores
brasileiros; uma minoria opta pelo dodecassílabo. Em texto recentemente
publicado, Lawrence F. Pereira (2008) faz uma defesa bem argumentada do
dodecassílabo. De fato, como é possível dizer-se mais em inglês do que em
português na mesma quantidade de sílabas, dada a maior concisão do idioma
inglês, parece lógica a conclusão de que o dodecassílabo tornaria mais fácil a
tradução verso a verso, sem que o tradutor fosse levado a omitir material
sintático ou semântico a fim de não extrapolar a contagem de sílabas. Isso
compensaria a principal desvantagem do dodecassílabo: o fato de que,
diferentemente do que se dá com o decassílabo, ele é um verso de “dois
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
139
fôlegos”, para usar a formulação expressiva de Pereira. Não é à-toa que o
alexandrino francês costuma vir em dísticos rimados: é tamanha a extensão
do verso, e tal a sua tendência a se bipartir, que a presença da rima é quase
obrigatória a fim de alertar o ouvido para a verdadeira colocação da fronteira
do verso. Mas será a extensão maior do alexandrino realmente uma solução
para o problema da maior concisão do inglês? Num estudo realizado sob
orientação de um dos autores do presente texto, Débora Landsberg (2006),
comparando traduções alternativas, em decassílabos e dodecassílabos, de alguns
sonetos shakespearianos, chegou à conclusão de que, ao invés de resolver um
problema, o verso mais longo por vezes cria outro. No cotejo das traduções,
a pesquisadora observou que as perdas semânticas e sintáticas forçadas pelo
uso do decassílabo, ao menos nos exemplos analisados, resultavam numa
alteração do original menos drástica do que os frequentes acréscimos de material
inerte, redundante ou irrelevante, ocasionados pela necessidade de preencher
as doze sílabas do verso mais longo. A pesquisa de Landsberg está longe de ser
exaustiva, e a conclusão a que chegou pode parecer contraintuitiva, mas ela é
reforçada pelo resultado de um outro estudo realizado por um de nós. Cotejando
duas traduções de uma elegia de John Donne, uma em decassílabos e outra
em dodecassílabos, Paulo H. Britto (2006) constatou que o número de omissões
encontradas na tradução em decassílabos (de Augusto de Campos) foi apenas
um pouco maior do que as ocorridas na tradução em dodecassílabos (de
Paulo Vizioli), mas que, por outro lado, a tradução de Vizioli tinha sete vezes
mais acréscimos que a de Campos. De novo, trata-se da análise pontual de um
único poema, e é possível encontrar outras explicações para o fato — por
exemplo, a superioridade técnica de Campos; mais estudos de caso se fazem
necessários. Até que isso aconteça, porém, talvez seja melhor pôr em dúvida
o pressuposto aparentemente óbvio de que a extensão maior do dodecassílabo
é uma vantagem quando se trata de traduzir o pentâmetro jâmbico.
Voltemos, pois, ao trecho de Macbeth destacado acima. Como já
observamos, Bandeira trabalha com decassílabos, heroicos em sua maioria
(seis são sáficos). A primeira coisa que salta à vista é que Bandeira dá mais
importância à regularidade da metrificação do que ao número de versos, e
prefere traduzir a passagem em um número um pouco maior de versos a
fazer muitos cortes. Mesmo assim, podemos encontrar algumas omissões e
simplificações, mas que parecem ser ditadas menos pela necessidade de
economizar sílabas do que por outros motivos. Kerns and gallowglasses, um trecho
que para ser fielmente traduzido exigiria uma glosa muito extensa, causando
perda de ritmo na ação dramática — haveria que especificar que kerns são
soldados com armas leves e gallowglasses soldados que levam armas pesadas
140
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
— é reduzido a “tropas”. Por outro lado, Bandeira acrescenta “irlandesas”;
embora as “ilhas do oeste” claramente apontem para a Irlanda, a referência
geográfica pode não ser óbvia para os leitores e espectadores brasileiros, e o
tradutor opta por esclarecer este ponto. Outra omissão ocorre no verso Which
ne’er shook hands, nor bade farewell to him, simplificado para “Sem lhe dar bons
dias”, o que não causa nenhuma perda importante no plano semântico, já que
as duas expressões têm aqui o mesmo sentido irônico. Já um outro corte é
mais problemático: ao não traduzir o adjetivo brave antes de Macbeth, fica sem
sentido o comentário parentético “merece o nome”.
Examinemos outra passagem famosa em blank verse, da quinta cena
do primeiro ato:
The raven himself is hoarse
That croaks the fatal entrance of Duncan
Under my battlements. Come, you spirits
That tend on mortal thoughts! Unsex me here,
And fill me from the crown to the toe top-full
Of direst cruelty; make thick my blood,
Stop up the access and passage to remorse,
That no compunctious visitings of nature
Shake my fell purpose, nor keep peace between
Th’ effect and it! Come to my woman’s breasts,
And take my milk for gall, you murdering ministers,
Wherever in your sightless substances
You wait on nature’s mischief! Come, thick night,
And pall thee in the dunnest smoke of hell,
That my keen knife see not the wound it makes,
Nor heaven peep through the blanket of the dark,
To cry, ‘Hold, Hold!’
Até o próprio
Corvo está rouco, que crocita à entrada
Fatídica de Duncan sob as minhas
Ameias. Vinde, espíritos sinistros
Que servis aos desígnios assassinos!
Dessexuai-me, enchei-me, da cabeça
Aos pés, da mais horrível crueldade!
Espessai o meu sangue, prevenindo
Todo acesso e passagem ao remorso;
De sorte que nenhum compungitivo
Retorno da sensível natureza
Abale a minha determinação
Celerada, nem faça a paz entre ela
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
141
E o seu efeito! Vinde, ó vós, ministros
Do Mal, seja onde for que, em invisíveis
Substâncias, instigais o que é contrário
Aos sentimentos naturais humanos!
Vem, noite tenebrosa, e te reveste
Do mais espesso fumo dos infernos
Para que o meu punhal não veja o golpe
Que vibrará, nem possa o céu ver nada
Através do lençol da escuridade
Para gritar: “Detém-te!”
Nesta passagem, para os 16 versos do original Bandeira produziu 22
(no original e na tradução, o trecho começa e termina com meios-versos), um
aumento de quase 50%. O predomínio do heroico é absoluto — em apenas
dois dos versos temos uma átona na sexta posição. Observa-se também um
número muito maior de enjambements no texto de Bandeira: nove, contra apenas
dois em Shakespeare. Do ponto de vista semântico, há uns poucos acréscimos:
por exemplo, o trecho “you spirits/That tend on mortal thoughts” ganha um adjetivo
— “sinistros” — na tradução, muito provavelmente para preencher o final do
verso. Das omissões, a que mais chama atenção é o fato de ter Bandeira
suprimido uma das imagens mais fortes do trecho: “Come to my woman’s
breasts,/And take my milk for gall” (“Vinde a meus seios de mulher/E levai
meu leite em troca de fel”). Uma outra atenuação, mais discreta, ocorre perto
do final: onde Shakespeare faz lady Macbeth pedir à noite que não permita à
sua faca ver a ferida (wound) que ela produz, Bandeira escreve “Para que o
meu punhal não veja o golpe”. Pode-se supor que Bandeira tenha — de modo
consciente ou não — optado por baixar um pouco o nível de violência de um
texto que é, sem dúvida, dos mais brutais no cânone shakespeariano. No
entanto, uma das passagens mais chocantes da tragédia foi vertida de modo
bem fiel. Referimo-nos a uma fala de lady Macbeth na cena sete do primeiro ato:
I have given suck and know
How tender ‘tis to love the babe that milks me:
I would, while it was smiling in my face,
Have pluck’d my nipple from his boneless gums
And dash’d the brains out had I so sworn as you
Have done to this.
Bem conheço
As delícias de amar um tenro filho
Que se amamenta: embora! eu lhe arrancara
Às gengivas sem dente, ainda quando
142
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Vendo-o sorrir-se para mim, o bico
De meu seio, e faria sem piedade
Saltarem-lhe os miolos, se tivesse
Jurado assim fazer, como juraste
Cumprir esta empreitada.
Aqui identificamos mais uma vez algumas das outras características
das passagens já examinadas: predomínio do heroico (apenas um sáfico),
aumento do número de versos (de seis para oito), aumento do número de
enjambements (dois no original, ou um terço do total, contra a quase totalidade
dos versos na tradução). Ao contrário dos exemplos anteriores, aqui não há
nenhuma supressão digna de nota, e dos acréscimos apenas um merece
comentário: o acréscimo da interjeição concessiva “embora!”, que ressalta um
contraste na cadeia argumentativa que, no original, não estava sintaticamente
marcado. Essa tendência a explicitar o implícito, universal nas traduções, também
foi observada no primeiro trecho estudado, quando Bandeira especifica como
irlandeses os soldados enviados das “ilhas de oeste”.
Com relação ao verso associado às bruxas — no original, sempre o
tetrâmetro trocaico — Bandeira não adota uma política coerente. A primeira
cena do primeiro ato, que no original está toda em tetrâmetros rimados,
Bandeira traduz de maneira bem mais livre:
First Witch
When shall we three meet again
In thunder, lightning, or in rain?
Second Witch
When the hurlyburly’s done,
When the battle’s lost and won.
Third Witch
That will be ere the set of sun.
First Witch
Where the place?
Second Witch
Upon the heath.
Third Witch
There to meet with Macbeth.
First Witch
I come, Graymalkin!
Second Witch
Paddock calls.
Third Witch
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143
Anon.
ALL
Fair is foul, and foul is fair:
Hover through the fog and filthy air.
1ª BRUXA.
Quando novamente as três nos juntamos
No meio dos raios e trovões que amamos?
2ª BRUXA.
Quando terminada esta barulhada,
Depois da batalha perdida e ganhada.
3ª BRUXA.
Antes de cair a noite.
1ª BRUXA.
Em que lugar?
2a BRUXA.
Na charneca.
3ª BRUXA.
Ali vamos encontrar
Com Macbeth.
lª BRUXA.
Irmãs, o Gato nos chama!
2ª BRUXA.
O Sapo reclama!
3ª BRUXA.
Já vamos! Já vamos!
TODAS.
O Bem, o Mal,
— É tudo igual.
Depressa, na névoa, no ar sujo sumamos!
No original, temos onze versos de quatro pés, de corte trocaico,
rimando em pares, com exceção do terceto formado pelos versos 3, 4 e 5,
que rimam entre si. A metrificação aqui é bem irregular, mesmo para os
padrões de Shakespeare, que na sua obra de maturidade se permite bastante
liberdade prosódica: o verso 8 (“I come, Graymalkin!”) e o 9 (“Paddock calls.
– Anon!”) são muito curtos, e o 10 é longo demais; há algo de deliberadamente
grotesco nos versos, com uma versificação primitiva e um ritmo irresistível,
como uma espécie de poesia infantil pervertida. A sonoridade grosseira do
tetrassílabo trocaico rimado das bruxas contrasta vivamente com a dignidade
do pentâmetro jâmbico branco utilizado no restante da peça. Em sua tradução,
Bandeira usa uma forma ainda mais livre que a que encontramos em
144
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Shakespeare. Os três primeiros versos são decassílabos toscos, irregulares,
que violam a regra segundo a qual não pode haver acento na quinta sílaba; o
quarto é um verso de onze sílabas com um ritmo dactílico cuja musicalidade
regular, no contexto, é de todo inesperada. O quinto — “Antes de cair a noite.
— Em que lugar?” — é outro hendecassílabo, mas de ritmo bem quebrado. O
sexto, formado pelas duas falas seguintes, é um decassílabo também defeituoso,
com acento na quinta sílaba; apenas a rima com “lugar” indica que ainda
estamos no terreno do verso, com rimas emparelhadas tal como antes. Mas se
o sétimo verso, mais um decassílabo amorfo com a quinta sílaba acentuada,
claramente se compõe de “Com Macbeth” e “Irmãs o Gato nos chama!”, a
rima indica que “O Sapo reclama!” é um verso completo, com apenas cinco
sílabas; de fato, o nono verso é outro pentassílabo, que não rima com o décimo
e o décimo-primeiro — dois tetrassílabos que rimam entre si — e sim com o
verso final, o décimo-segundo, mais um hendecassílabo que, como o quarto,
tem um ritmo dactílico tão regular quanto inesperado. Embora utilize um
verso a mais que Shakespeare, metros diversos, acentos irregulares e um
esquema de rima diferente no final, nessa cena crucial Bandeira recria à
perfeição o tom grotesco do original, estabelecendo um contraste nítido com
os decassílabos brancos que constituem o corpo principal da tragédia.
Examinemos mais uma passagem em tetrâmetro trocaico, esta da
primeira cena do quarto ato:
Scale of dragon, tooth of wolf,
Witches’ mummy, maw and gulf
Of the ravin’d salt-sea shark,
Root of hemlock digg’d i’ the dark,
Liver of blaspheming Jew,
Gall of goat, and slips of yew
Silver’d in the moon’s eclipse,
Nose of Turk and Tartar’s lips,
Finger of birth-strangled babe
Ditch-deliver’d by a drab,
Make the gruel thick and slab:
Add thereto a tiger’s chaudron,
For the ingredients of our cauldron.
Escama de drago, dente
De lobo, iscas de serpente
Paulosa, ramos de teixo
Cortados no eclipse, e um queixo
De sanioso tubarão,
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
145
Mão de rã, língua de cão,
Raiz de cicuta arrancada
Da noite pela calada,
Múmia de filha do demo,
Bofe de judeu blasfemo,
Beiços de mongol, focinho
De turco, dedo mindinho
De criancinha estrangulada
Ao nascer, logo jogada
Por uma rameira ao fosso
— Tudo isso dê ponto grosso
E força à sopa do diacho!
Nessa passagem Bandeira utiliza um verso que não havia usado na
passagem das bruxas da cena de abertura — o heptassílabo, um verso popular
que, a princípio, seria uma boa alternativa para traduzir o tetrâmetro trocaico
de Shakespeare — com rimas emparelhadas, tal como no original. Mais
importante aqui do que apontar as diferenças na lista de ingredientes
horripilantes (de pouco monta), ou algumas imprecisões lexicais (mummy, aqui
“remédio feito com pó de múmia”), ou o aumento do número de versos (já
esperado), é destacar a enorme disparidade no uso de enjambements. Enquanto
no texto inglês não temos nenhum corte de verso que não corresponda a uma
pausa natural (com a possível exceção de “maw and gulf/Of the ravin’d salt-sea
shark”), na tradução temos nada menos que nove enjambements, alguns bem
enfáticos, num espaço de apenas dezessete versos. Num trecho em que caberia
um efeito de simulação de poesia popular — o que Bandeira parece ter tido
em mente ao optar pela redondilha maior — os enjambements sucessivos acabam
por tornar pouco nítidas as fronteiras entre os versos e quebrar o ritmo insistente
do original, como convém a uma fórmula de bruxaria. Comparem-se as pautas
acentuais dos quatro primeiros versos no original e na tradução (onde / = sílaba
tônica, \ = sílaba com acento secundário, - = sílaba átona e || = pausa):
Scale of dragon, tooth of wolf,
Witches’ mummy, maw and gulf
Of the ravin’d salt-sea shark,
Root of hemlock digg’d i’ the dark,
/ - / - || / - / ||
/ - / - || / - /
- - / - / \ / ||
/ - / - / - / ||
146
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Escama de drago, dente
De lobo, iscas de serpente
Paulosa, ramos de teixo
Cortados no eclipse, e um queixo
- / - - / - || / - / || / - - - / - / - || / - - / - / - - || - / -
Como se vê, no texto de Shakespeare temos sempre versos de quatro pés,
separados por uma pausa, sendo que nos dois primeiros versos há também
uma pausa medial; e, fora a irregularidade do terceiro verso, a divisão em pés
trocaicos é rígida. Já em português, a pausa jamais ocorre no mesmo ponto
dos quatro versos sucessivos, de modo que, não fosse a rima, o ouvinte não
teria como identificar as fronteiras entre os versos.
De qualquer modo, uma outra fronteira está bem marcada: a que se
observa entre o verso rude, curto e rimado das bruxas e o verso digno, longo
e branco dos personagens nobres. Veja-se, na continuação da cena analisada
anteriormente, a transição da fala de uma das bruxas para a de Macbeth:
Second Witch
By the pricking of my thumbs,
Something wicked this way comes.
Open, locks,
Whoever knocks!
Enter MACBETH
MACBETH
How now, you secret, black, and midnight hags!
What is’t you do?
ALL
A deed without a name.
MACBETH
I conjure you, by that which you profess,
Howe’er you come to know it, answer me:
Though you untie the winds and let them fight
Against the churches; though the yesty waves
Confound and swallow navigation up;
2ª BRUXA.
Pelo comichar
Do meu polegar
Sei que deste lado
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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Vem vindo um malvado.
Abre-te, porta:
A quem, não importa!
(Entra Macbeth)
MACBETH.
Eh, horrendas bruxas, filhas do demônio,
Que estais fazendo?
TODAS.
Obra que não tem nome.
MACBETH.
Eu vos conjuro, pela negra arte
Que, como quer que fosse, conseguistes
Aprender, respondei-me: ainda que os ventos,
Soltos por vós, furiosos, arremetam
Contra as igrejas; ainda que nas bravas
Ondas soçobrem todos os navios;
Assim, logo antes da entrada em cena de Macbeth, o verso das bruxas se reduz ao
pentassílabo, o que maximiza o contraste com o decassílabo da fala do protagonista.
As análises apresentadas não se pretendem exaustivas, mas cremos
que elas sejam suficientes para ao menos levantar algumas das estratégias
adotadas pelo tradutor e esboçar uma avaliação delas. Ainda que se possa
discordar de algumas soluções pontuais de Bandeira, suas escolhas básicas
parecem felizes: optou pelo decassílabo, o verso longo do português que,
conforme argumentamos, mesmo exigindo alguma compressão e omissão é
preferível ao dodecassílabo; aumentou o número de versos com o fim de
diminuir a necessidade de fazer cortes no texto; e manteve bem nítido o
contraste entre o verso das bruxas e o dos nobres, utilizando um metro mais
curto rimado para se opor ao decassílabo branco. Podemos dizer, parafraseando
as palavras do personagem Macbeth (Ato I, cena 7)2, que o Bandeira tradutor
fez sem medo tudo o que cumpre a um poeta.
Notas
1
No final de 2007 surgiram denúncias na imprensa e em listas na internet de que a
editora Martin Claret teria plagiado traduções de obras clássicas, inclusive de peças de
Shakespeare. Para mais informações, ver http://www1.folha.uol.com.br/ folha/
ilustrada/ult90u357418.shtml e http://naogostodeplagio.blogspot.com. Acesso em
4 de maio de 2009.
148
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
2
Em inglês, “I dare do all that may become a man; Who dares do more is none.”
(Fonte: edição das obras completas organizada por Stanley Wells e Gary Taylor.
Oxford: Clarendon Press. Compact Edition, 1988.) Tradução de Bandeira:
“Quanto cumpre a um homem fazer, fá-lo-ei sem medo: quem se abalança a mais,
não o é.”
REFERÊNCIAS
BRADLEY, A. C. Shakespearean Tragedy – Lectures on Hamlet, Othello, King Lear and
Macbeth. London: New Penguin Shakespearean Library, 1904.
BRITTO, Paulo H. “Fidelidade em tradução poética: o caso Donne”. Terceira
Margem X (15), jul./dez. 2006, p. 239–254.
GOMES, Celuta Moreira (1961) William Shakespeare no Brasil - Bibliografia. Separata
do volume 79 (1959) dos Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: MEC.
GOMES, Eugenio. Shakespeare no Brasil. São Paulo: MEC, 1961.
LANDSBERG, Débora. “Os sonetos de Shakespeare: estudo comparativo das
perdas e ganhos das diferentes estratégias tradutórias”. Relatórios anuais, XV
Seminário de Iniciação Científica PUC-Rio, 2007. Disponível em: http://www.pucrio.br/pibic/relatorio_resumo2007/relatorios_anuais_ctch_letras.html. Acesso:
5 maio 2009.
MAGALDI, Sábato. “A tragédia do poder ilegítimo”. Jornal da Tarde, São Paulo,
25 mar. 1989.
PEREIRA, Lawrence Flores. “Notas sobre o uso alexandrino na tradução do
drama shakespeariano”. In GUERINI, Andréia; TORRES, Marie-Hélène C.;
COSTA, Walter Carlos. Literatura traduzida & literatura nacional. Rio de Janeiro:
7Letras, 2008, p. 145-158.
PONTIERO, Giovanni. “Manuel Bandeira e Macbeth”. In MELLO, Barboza;
MONAT, Olympio. William Shakespeare: edição do IV Centenário. Rio de Janeiro: Leitura,
1964, p. 35-43.
Artigo recebido em 27 de março de 2009.
Artigo aceito em 20 de julho de 2009.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
149
Marcia A. P. Martins
Doutora em Comunicação e Semiótica, 1999, PUC/SP.
Mestre em Língua Portuguesa, 1986, PUC-Rio.
Professora Assistente do Departamento de Letras da PUC-Rio, atuando nos programas
de graduação (habilitação em Tradução) e pós-graduação em Letras (área de Estudos
da Linguagem) .
Membro da Comissão Editorial do periódico Tradução em Revista.
Membro do Centro de Estudos Shakespearianos (CESh).
Paulo Fernando Henriques Britto
Notório Saber, título concedido em 2002, pela PUC-Rio.
Mestre em Língua Portuguesa, 1982, PUC-Rio.
Professor Associado do Departamento de Letras da PUC-Rio, atuando nos programas
de graduação (habilitações em Tradução e Produção Textual) e pós-graduação em
Letras (áreas de Estudos da Linguagem e Literatura Brasileira).
Membro da Comissão Editorial do periódico Tradução em Revista.
150
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
UM OLHAR ORIENTAL SOBRE SHAKESPEARE:
TRONO MANCHADO DE SANGUE
DE AKIRA KUROSAWA
Célia Arns de Miranda
[email protected]
Suzana Tamae Inokuchi
[email protected]
RESUMO: Trono manchado de sangue de
Akira Kurosawa é uma transposição
intersemiótica da tragédia Macbeth para o
cinema. O filme também se caracteriza
como uma tradução intercultural uma vez
que a peça shakespeariana, ambientada no
reino da Escócia, é transposta para o
contexto feudal japonês. A análise da
passagem do texto de Shakespeare para a
tela foi realizada a partir da ‘série de
concretizações textuais’ proposta por
Patrice Pavis em sua obra O teatro no
cruzamento de culturas. As conceituações
do teórico francês foram, no presente
trabalho, adaptadas e aplicadas para o
estudo de uma produção fílmica.
ABSTRACT: Throne of Blood by Akira
Kurosawa is an intersemiotic
transposition of the tragedy Macbeth to
the cinema. The film is also characterized
as an intercultural translation as the
Shakespearian play, which is set in the
kingdom of Scotland, is transposed to
the Japanese feudal context. The analysis
of the passage from the dramatic text to
screen was accomplished through ‘the
series of textual concretizations’
according to Patrice Pavis in his book
Theatre at the Crossroads of Culture. The
French theorist’s conceptions were, in the
present work, adapted and applied to the
study of a filmic production.
PALAVRAS-CHAVE: Shakespeare. Macbeth. Kurosawa. Trono manchado de sangue.
Tradução intersemiótica.
KEY WORDS: Shakespeare. Macbeth. Kurosawa. Throne of Blood. Intersemiotic
translation.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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Introduzindo
Kumonosu-jô ‘was perhaps the most successful
Shakespeare film ever made’, even though ‘it had hardly
any words, and none of them by Shakespeare’.
Roger Manvell
Esta pesquisa de cunho intermidiático insere-se no âmbito dos estudos
entre a literatura e as outras artes, mais especificamente, a relação da literatura
com o cinema. Dentro desse amplo contexto, o enfoque desta pesquisa é
estabelecer as equivalências (aproximação e distanciamento)1 que existem entre
o texto-alvo, o filme Trono manchado de sangue (Kumonosu-jô) do diretor
cinematográfico Akira Kurosawa (1910-1998), e o texto-fonte, a tragédia
Macbeth de William Shakespeare (1564-1616). Além de ser uma tradução
intersemiótica, este filme se caracteriza também como uma tradução
intercultural uma vez que a peça shakespeariana, ambientada no reino da
Escócia, é transposta para o mundo medieval e feudal japonês. Apesar de esta
pesquisa abordar elementos que fundamentam essas duas formas de tradução,
o enfoque prioritário será a análise da passagem do texto shakespeariano para
a tela a partir de uma adaptação, formulada no presente estudo, das “sucessivas
concretizações textuais” propostas por Patrice Pavis (1992).
O profundo conhecimento que Kurosawa demonstra ter da obra
trágica de William Shakespeare pode não ser imediatamente perceptível para
um leitor de primeiro nível (ECO, 1994, p. 50-51). Entretanto, essa íntima
proximidade entre o diretor japonês e Shakespeare torna-se evidente na análise
das três realizações fílmicas em que o diretor adaptou a obra do dramaturgo
inglês: Trono manchado de sangue (Kumonosu-jô, 1957), baseada na peça Macbeth;
Ran (1985), baseada na peça Rei Lear e O homem mau dorme bem (Warui yatsu
hodo yoku nemuru, 1960),2 uma retomada da peça Hamlet. Esses filmes são
bastante relevantes na obra fílmica deste diretor, não apenas por serem recriações de tragédias shakespearianas, mas, sobretudo, por terem contribuído
para a consolidação de uma linguagem cinematográfica do cineasta. Um dos
motivos que, provavelmente, levou Kurosawa a adaptar, em primeiro lugar, a
peça Macbeth está em seu gosto pessoal, visto que esta era a sua tragédia
shakespeariana preferida, denominada de “meu Shakespeare preferido”,
segundo o estudioso Donald Richie (citado em RICHIE, 1984, p. 116).
Para criar sua adaptação fílmica da peça shakespeariana Macbeth,
Kurosawa demorou alguns anos a mais do que pretendia porque outro diretor
152
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
de renome filmou uma versão dessa tragédia no ano de 1948, mesma data em
que Kurosawa manifestou, pela primeira vez, essa intenção. Segundo as próprias
palavras do diretor: “Ao terminar Rashômon, eu queria fazer algo com Macbeth
de Shakespeare, mas justamente naquela época foi noticiada a versão de Orson
Welles e, portanto, adiei a minha” (Citado em RICHIE, 19843, p. 116). Durante
o período que decorreu entre o término de Rashômon (finalizado em 1949 e
lançado em 1950) e as filmagens de Trono manchado de sangue (filmado em
1956, lançado em 1957), o diretor pôde amadurecer suas idéias. Ao transpor
a tragédia shakespeariana para o feudalismo japonês, Kurosawa empreendeu
algumas escolhas como a transformação do protagonista em um valoroso
samurai no início do filme. Esta decisão modifica a personalidade de grande
parte dos personagens da narrativa.
Ao considerarmos o objeto de estudo desta pesquisa, Trono manchado
de sangue, salientamos que o título em japonês pode ser traduzido como “O
Castelo da Teia de Aranha”, sendo que este não é apenas o significado do
título do filme como também o nome do feudo onde ele transcorre. Quanto
à repercussão do filme, Maurice Hindle, em sua obra Studying Shakespeare on
Film (2007, p. 36), afirma que alguns críticos o classificam na categoria de
obra-prima. Ao discorrer sobre o universo das adaptações fílmicas
shakespearianas realizadas na mesma época, ele reitera que, após a produção
do Otelo (1955) pelo russo Sergei Yutkevich, apareceram diversas adaptações
em países de tradição não inglesa. Segundo ele, o filme de Akira Kurosawa se
destaca dentre elas. Dentro deste conjunto, Hindle reitera que, afora os filmes
Hamlet (1964) e Rei Lear (1971) que foram produzidos por Grigori Kozintsev,
Trono manchado de sangue foi o mais aclamado.
Segundo Hindle (2007, p.36), Trono manchado de sangue retrata um
enredo produzido com nuances tão dramáticas e de uma complexidade humana
tão intensa que são comparáveis às de Shakespeare, embora pouco ou nada
do texto original da peça esteja presente nas falas dos personagens dentro do
filme. Esse fato enfatiza o aspecto de que uma tradução intersemiótica e
cultural pode englobar, muitas vezes, elementos sutis, como intencionalidades
e motivações internas contidas no texto original, que são transpostas para o
contexto cultural alvo. Para Hindle, o mérito deste filme é ter alcançado êxito
ao re-trabalhar, de uma maneira radical, uma peça shakespeariana para a
grande tela sob o prisma de uma cultura e história não-ocidentais (2007, p.
99). Este filme faz parte da categoria de filmes autorais, ou seja, ele expressa
uma visão muito particular da tragédia shakespeariana da qual partiu.4
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
153
Contextualizando
[...] qualquer que seja o aspecto que examinemos desse
universo, descobriremos um reino multidimensional
sob a constante pressão das demandas conflitantes da
lealdade e da auto-expressão. Em qualquer momento
da história, sempre urgiu buscar uma conciliação entre
as forças da mudança e as da estabilidade. Juntas, elas
moldaram o mundo dos samurais.
Stephen Turnbull
Trono manchado de sangue e Ran são ambientados no universo do Japão
feudal, fato que restringe os enredos de ambos os filmes à disputa de um
único feudo. Nas duas versões a figura do samurai é um elemento central que
torna a compreensão do conjunto de preceitos de conduta que deveriam ser
seguidos pelo samurai, contidos no Caminho do Guerreiro (Bushidô), 5
imprescindível para a interpretação dos elementos culturais. Em Trono manchado
de sangue, por exemplo, Asaji (correspondente à Lady Macbeth) usa de ardis e
mentiras para conseguir que seu marido Washizu (Macbeth) transgrida esses
valores. Em Ran, apesar de a questão inerente aos valores representativos dos
samurais ainda estar presente, este enfoque foi sobrepujado pela atmosfera
de disputa que envolve o feudo: a divisão do reino entre os filhos do
protagonista torna-se o foco para o início da ação trágica, uma vez que no
contexto feudal seria impossível evitar tais conflitos, mesmo entre os familiares.
Akira Kurosawa, diretor cinematográfico de origem japonesa de maior
visibilidade no cenário do cinema mundial, ao longo de sua carreira, realizou
um total de 31 filmes, além de ter deixado dois roteiros póstumos que acabaram
sendo efetivados por outros dois cineastas. Sua obra fílmica pode ser dividida
em dois grandes gêneros: o primeiro deles é o jidaigeki,6 representado pelos
filmes de época japoneses, que se referem especificamente à Era Medieval e
se relacionam diretamente com a figura dos samurais (que pertencem à classe
denominada bushi). O segundo gênero é denominado gendaimono, sendo este
constituído pelos filmes que se passam no Japão moderno, primordialmente,
nas grandes metrópoles japonesas. Presume-se, portanto, que tanto Trono
manchado de sangue quanto Ran estejam inseridos no gênero jidaigeki, que equivale
ao western americano, se nos referirmos ao apreço que os gêneros gozam com
os seus respectivos públicos. Por ser um gênero muito popular no Japão,
existe uma profusão de títulos comerciais e, por este mesmo motivo, eles são
banalizados como forma narrativa. Kurosawa se ressentia da utilização deste
154
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
gênero apenas como uma maneira de entretenimento, sem um padrão de
qualidade ou um comprometimento histórico e artístico. Segundo suas próprias
palavras: “Sempre achei que o jidai japonês era historicamente desinformado.
Além disso, esse gênero nunca usa técnicas cinematográficas modernas. Em
Os sete samurais tentamos fazer algo a esse respeito, e Trono manchado de sangue
seguiu a mesma linha” (Citado em RICHIE, 1984, p. 116).
O enredo do filme Trono manchado de sangue está circunscrito à disputa
do feudo Castelo da Teia de Aranha, dentro do qual o castelo homônimo se
constitui na construção principal. O feudo é composto pelas seguintes
edificações, listadas a seguir em ordem progressiva de poder: Forte numero V;
Forte número IV; Forte número III; Forte número II, comandado pelo capitão
Yoshiaki Miki (Banquo); Forte número I, comandado pelo capitão Washizu
(Macbeth); Mansão do Norte, comandada pelo traidor Fujimaki (Cawdor); e
Castelo da Teia de Aranha, comandado pelo senhor feudal Lord Tsuzuki
(Duncan). O senhor é, muitas vezes, denominado apenas por tonosama ou,
simplesmente, tono, e constitui-se no governante de todo o feudo. Segundo as
profecias feitas pelo espírito maligno,7 Washizu se tornaria, primeiramente, o
senhor da Mansão do Norte e, posteriormente, o senhor de todo o feudo do
Castelo da Teia de Aranha. Miki seria, inicialmente, promovido ao posto que
estava sendo ocupado por Washizu, de comandante do Forte I e, mais tarde,
sua linhagem herdaria todo o feudo.
V
P
IV
Castelo
I
Floresta
I
II
M
(Figura 1)
M = Mansão do Norte
Fortes = I, II, III, IV, V
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
155
Em Trono manchado de sangue, inicialmente, ocorre a traição de Fujimaki
(Cawdor) a Lord Kuniharu Tsuzuki (Duncan). Este ato culmina em uma revolta
que aparece em uma das cenas iniciais do filme. Esses dois episódios têm
relação com as já citadas profecias que envolvem tanto o protagonista Washizu
quanto o seu companheiro, Miki. A realização da primeira parte da profecia
gera a ambição desmedida de sua esposa, Asaji Washizu (Lady Macbeth). Ela
decide concretizar a segunda parte da profecia não importando os meios que
fossem utilizados para alcançar esse intento. Ao tentar instigar a ambição de
Washizu com o intuito de atraí-lo para o crime, ela falha. Ardilosamente, ela
passa a mentir e a induzir o marido ao engano, sugerindo que ele estava
correndo risco de ser traído e morto traiçoeiramente pelo seu senhor. Após a
obtenção do feudo, Asaji dá o golpe final ao dar a notícia de sua gravidez ao
marido, levando-o a matar Miki e o filho: o motivo dessas mortes reside no
fato de que Washizu já havia prometido o feudo para o filho de Miki porque
ele próprio não tinha herdeiros no momento em que fez a promessa.
Trono manchado de sangue mantém, igualmente, um vínculo estreito de
proximidade com a outra adaptação shakespeariana, Ran. O primeiro filme
contém toda uma gama de elementos culturais que irão ser retomados e
desenvolvidos com maior profundidade pelo diretor nesta obra posterior,
com vinte e oito anos de intervalo. Até mesmo a imagem da(s) flecha(s), tão
marcante em Ran, é recorrente, uma vez que aparece em dois momentos no
filme Trono manchado de sangue. O primeiro momento ocorre logo no começo
quando Washizu considera que foi profundamente ofendido e ameaçado pela
revelação do espírito maligno e, novamente, próximo ao final do filme, quando
o protagonista é morto a flechadas. O que se torna extremamente interessante
nesta cena derradeira é Washizu ser executado por seus subordinados logo
após a revelação de que a floresta está se movendo. Este momento crucial
marca o julgamento e condenação de Washizu por parte de seus súditos, que
percebem através da imagem da floresta que seu senhor não passa de um
usurpador. Seus brados de nada valem, e ele é executado sumariamente.
Washizu morre com uma última flecha atravessada na garganta, tendo ao
fundo a parede externa do Castelo da Teia de Aranha que, em vez de ser uma
estrutura de proteção, transforma-se em uma prisão que o confina ao alcance
das flechas que convergem em sua direção.
A cor viva e marcante de Ran, que se assemelha a uma sucessão de
pinturas em movimento na tela, é um ponto de diferenciação em relação ao
Trono manchado de sangue uma vez que este filme foi produzido em preto e
branco (PB). Entretanto, esta aparente limitação pictórica da mídia foi
considerada por Kurosawa não apenas como um componente técnico mas,
156
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
primordialmente, como um importante elemento estético que lhe possibilitaria
exprimir a intensificação do clima sombrio referente à peça. As tonalidades
de preto e cinza permitem uma infinidade de matizes, à semelhança da pintura
a nanquim, que compõem a atmosfera tenebrosa na qual os personagens
atuam. Uma cena em que este aspecto pictórico do cenário se torna primordial
é aquela em que o senhor feudal Kuniharu Tsuzuki vai à Mansão do Norte
visitar Washizu. O quarto principal lhe é cedido e os servos se dirigem para
um outro cômodo da edificação com a finalidade de arrumá-lo para os senhores
do castelo. Este aposento é o quarto no qual o antigo senhor da Mansão, o
traidor Fujimaki, foi executado. Os servos vislumbram a mancha de sangue
do traidor impregnada na parede, que se assemelha a um quadro de arte
abstrata. Esta visão confere um caráter lúgubre à cena além de antecipar a
ação, uma vez que este quarto irá também abrigar os futuros protagonistas da
nova traição que será perpetrada por Washizu, sob a nefasta influência de sua
esposa Asaji. Em seus estudos sobre essa versão fílmica, Donald Richie
menciona que “raramente se viu um filme branco e preto tão branco e preto”,
sendo que ele ainda reitera que esse aspecto pictórico assume um caráter
narrativo no filme (1984, p. 121).
No filme Ran, Kurosawa dá um destaque particular às guerras entre
feudos vizinhos e à anexação das terras conquistadas pelo vencedor, o
protagonista Hidetora. Os senhores feudais que foram vencidos nas disputas
são sacrificados, juntamente com suas famílias, com exceção de uma única
mulher de cada um dos dois clãs inimigos (uma das filhas de cada senhor
feudal). Estas mulheres são poupadas para que a paz seja instituída através do
casamento de cada uma delas com os dois primeiros filhos de Hidetora. Gerase com isto a segunda grande vilã de Akira Kurosawa, Kaede, a esposa do
filho primogênito do protagonista. Sedenta de vingança, ela retém em suas
mãos muito da ação trágica do filme. Esta vilã que foi concebida num momento
posterior à protagonista feminina Asaji em Trono manchado de sangue, apresenta
muitos aspectos convergentes em relação a ela: além de serem as únicas grandes
vilãs de Kurosawa, ambas estão vinculadas a três elementos constituintes do
contexto cultural do Japão Medieval: o feudalismo, o mundo samurai e seu
código e o teatro Nô. Além disso, visualmente, Kaede se assemelha muito a
Asaji, sendo possível afirmar que a vilã criada em Trono manchado de sangue
acabou sendo transposta para Ran, munida de um propósito maior, a vingança.
Esta retomada ocorre após um intervalo de quase três décadas. Por um lado,
há uma ampliação do caráter malévolo destas personagens, em comparação
com as personagens equivalentes encontradas nas peças shakespearianas das
quais se originaram. Elas são transformadas em vilãs de natureza ferrenha.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
157
Por outro, ambas representam as exceções no que tange à representação das
mulheres na obra fílmica de Kurosawa tal como é salientado por Richie ao
discorrer, no trecho abaixo, sobre a índole de Asaji; as suas palavras se aplicam,
igualmente, à Kaede de Ran:
Na maioria de seus filmes as mulheres são melhores que os homens
(Domingo maravilhoso, Viver, Anjo embriagado, Nenhum pesar pela nossa juventude)
ou ao menos mais fortes (Rashômon). [Kurosawa] é bem verdade, tem o
precedente de Shakespeare, mas a senhora Asaji é muito mais má que Lady
Macbeth. Ou talvez seja apenas uma questão de grau. Assim como
Nastasya8 em O idiota possui uma força que a leva à afirmação pessoal,
também Asaji – igualmente forte – encarna o espírito da negação. Essas
mulheres são mais capazes de chegar a extremos que a maioria dos homens
dos filmes de Kurosawa. Asaji vai até o fim. Washizu hesita. (1984, p. 119)
Pensando na teoria e na prática
Translation is not only just a “window open on another
world”, or some such pious platitude. Rather translation
is a channel opened, often not without a certain
reluctance, through which foreign influences can
penetrate the native culture, challenge it, and even
contribute to subverting it.
André Lefevere
As transformações marcantes que o conceito de tradução vem
sofrendo nessas últimas décadas trazem como consequência a relativização
da noção de fidelidade textual e o reconhecimento dos textos fonte e alvo
como signos um do outro, apesar de as referências textuais entre eles, como já
foi mencionado anteriormente, não precisarem ser, necessariamente, evidentes.
A partir da nova conceituação de tradução que prevê não mais a “reprodução
mimética”, mas a transformação dos textos, as inter-relações entre textos,
mídias, artes e culturas podem ser estudadas como formas de traduções, ou
seja, como traduções intersemióticas (passagem de um sistema de signos para
outro) e como traduções interculturais (passagem de uma cultura para outra)
(DINIZ, 2003, p. 13-19). Dentro desse enfoque, dá-se relevo às questões
relacionadas à historização que “põem em jogo duas historicidades”, ou seja,
“a da obra no seu próprio contexto e a do espectador nas circunstâncias em
que assiste ao espetáculo” (PAVIS, 1999, p. 197). Na visão de Patrice Pavis
(1992, p. 2) em Theatre at the crossroads of culture, a intertextualidade derivada
do estruturalismo e da semiótica rende-se ao modelo da interculturalidade.
158
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Não é mais suficiente descrever a relação entre os textos (ou mesmo entre as
encenações) objetivando apreender o funcionamento interno. É também
necessário compreender a sua inscrição dentro dos contextos e culturas e
apreciar a produção cultural que se origina destas transferências não esperadas.
O autor reitera que o termo interculturalismo é o mais apropriado para a
compreensão da troca dialética de civilidades entre as culturas.
Pode-se afirmar que a tradução intersemiótica consiste do diálogo
entre formas de arte distintas, ou seja, entre sistemas semióticos diversos.
Esta tradução, no caso da presente pesquisa, diz respeito às interrelações entre
a tragédia shakespeariana Macbeth e a produção fílmica Trono manchado de sangue.
Julio Plaza concebe a tradução intersemiótica “como prática crítico-criativa,
como metacriação, como ação sobre estruturas e eventos, como diálogo de
signos, como um outro nas diferenças, como síntese e re-escritura da história.
Quer dizer, como pensamento em signos, como trânsito de sentidos, como
transcriação de formas na historicidade” (2003, p. 209). Plaza considera que
a criação artística da contemporaneidade acha-se drasticamente influenciada
pelos meios de “repro-produção de linguagens”. Há uma profunda e radical
transformação cultural devido ao domínio dos sistemas eletrônicos que
transformam “as formas de criação, geração, transmissão, conservação e
percepção de informação” (2003, p. 206). Segundo este autor, “no contexto
multimídia da produção cultural, as artes artesanais (do único), as artes
industriais (do reprodutível) e as artes eletrônicas (do disponível) se
interpenetram (intermídia), se justapõem (multimídia) e se traduzem (Tradução
intersemiótica)” (2003, p. 207). Tais constatações exigem por parte de todos os
envolvidos no processo criativo uma nova postura uma vez que as formas
estéticas e artísticas contemporâneas, dentre elas o cinema, são influenciadas
por esta “imensa inflação babélica de linguagens, códigos e hibridização dos
meios tecnológicos” que caracterizam este “tempo de mistura” (2003, p. 206).
Segundo Patrice Pavis, “o confronto cotidiano com as mídias [...] influencia a
nossa maneira de perceber e conceitualizar a realidade [uma vez que] nossos
hábitos de percepção mudaram” (2003, p. 41).
Patrice Pavis (1992, p. 138-39), ao formular a série de concretizações
visando esquematizar o processo de apropriação do texto e cultura fonte por
parte do texto e cultura alvo está oportunizando uma perspectiva de estudo
da passagem do texto dramático para o texto da performance que, logicamente,
prevê o diálogo de diferentes sistemas semióticos. Sabe-se que a proposta de
Pavis descreve as mudanças que um texto sofre a partir do momento em que
é concebido e formulado pelo autor [T0] até chegar à concretização receptiva
[T4] ou enunciação que ocorre quando o texto-fonte [T0] atinge o seu destino
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
159
final, o espectador. Durante essa trajetória todos os leitores (em seu sentido
mais amplo) estão envolvidos no processo criativo. As transformações que
um texto sofre, desde a sua concepção até a sua mise-en-scène e a recepção pela
audiência, podem ser visualizadas na figura abaixo:
Texto e Cultura
fonte
T0
Texto e Cultura
alvo
T1
T2
T3
T4
Concretização Concretização Concretização
textual
dramatúrgica
cênica
(Figura 2)
Dentro desse contexto, pode-se afirmar que há um entrecruzamento
das situações de enunciação, em que o texto traduzido [T1], denominado por
Pavis como “concretização textual”, torna-se parte tanto do texto e cultura
fonte como do texto e cultura alvo. É necessário que se proceda uma adaptação
tanto linguística quanto cultural. Segundo Pavis (1992, p.139-40), a tradução
para o palco torna-se um processo mais complexo para o tradutor, uma vez
que ele terá que lidar com aspectos que ainda lhe são desconhecidos. A tradução
para o teatro consiste em um ato hermenêutico: após uma ampla compreensão
do significado do texto-fonte, é necessário descobrir a sua significação a partir
da situação final de recepção, do ponto de vista da língua e cultura alvo. Ou
seja, qual é o seu significado no contexto cultural alvo? Sob esse viés, a tradução
pode ser definida como um processo interpretativo e criativo, “envolvendo
uma gama de atividades complexas e não estanques: leitura, releitura, pesquisa,
criação, experimentação, adaptação, escritura, revisão e re-escritura” (O’SHEA,
2000, p. 45).
Na fase da “concretização dramatúrgica” do texto, designada por
Pavis como T2, o tradutor, diretor e atores interagem objetivando testar as
decisões dramatúrgicas na medida em que a “situação de enunciação” tornase real. José Roberto O´Shea menciona que a “concretização dramatúrgica”
poderia corresponder ao que Delabastita e D’Hulst denominam “versão para
o palco”. Durante este processo, “a atenção ao encenável e ‘falável’ passa ao
160
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
primeiro plano, a linguagem sendo testada, ajustada, através da experimentação
e da incorporação de indicações de tempo e espaço encontradas no texto”
(2000, p. 47). Toda tradução – acima de tudo a tradução para o teatro – deve
ser clara e compreendida imediatamente pela audiência, além de ser adaptada
para a nossa situação presente. O processo de adaptação é contínuo – nós
adequamos as obras do passado às nossas necessidades e intenções no presente.
Assim procedendo, nós, parcialmente, apagamos a intenção original e a
substituímos pela nossa (PAVIS, 1992, p. 141).
A “concretização cênica” que é denominada por Pavis (1992, p. 14142) como sendo o T3, consiste num teste do T1 e T2 no palco. A situação da
enunciação – na qual a audiência da cultura-alvo confirma imediatamente se
o texto da performance é aceitável ou não – é, finalmente, realizada. É neste
momento que as relações entre os signos textuais e os dramáticos são
estabelecidas.
O último estágio proposto por Pavis (1992, p. 142) é o T4 que é
definido por ele como sendo a “concretização através da recepção”, ou seja,
trata-se da recepção pela platéia da “concretização cênica” [T3]. Essa etapa
caracteriza o momento da chegada do texto-fonte ao seu destino final. O
espectador se apropria do texto na última fase do processo de concretizações,
após uma sucessão de traduções intermediárias que reduzem ou ampliam o
texto-fonte tendo em vista a cultura-alvo. A partir deste momento, este mesmo
texto pode ser novamente redescoberto e reconstituído numa trajetória
interminável de apropriações re-criativas.
Na presente pesquisa, o processo que descreve as sucessivas
textualizações na passagem de um texto para o palco, foi adaptado para o
estudo da transformação de um texto literário para o cinema, o que caracteriza
uma tradução intersemiótica. Pretende-se aplicar as conceituações de Patrice
Pavis para a análise da produção fílmica realizada por Akira Kurosawa em
Trono manchado de sangue. Tendo este intuito em vista, foi necessário adaptar
não apenas a terminologia para uma produção fílmica como acrescentar um
item aos já estabelecidos pelo autor. A justificativa para isso é que o cinema
compreende uma etapa adicional entre a concretização da filmagem [T3] e a
sua recepção pelo espectador [T5], que consiste da concretização da edição
[T4]. Esta proposta pode ser visualizada na figura abaixo:
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
161
Pré-produção
T0
T1
Produção
T2
Pós-produção
T3
Concretização Concretização
do roteiro
do roteiro
literário
técnico
T4
Concretização
da filmagem
Texto e Cultura
Fonte
T5
Concretização
da edição
Texto e Cultura
Alvo
(Figura 3)
Tal como pode ser observado na Figura 3, uma realização fílmica
engloba três fases de atividades distintas e subsequentes: a pré-produção, a
produção e a pós-produção. O cinema, por se constituir em uma atividade
essencialmente coletiva, dispõe de diversas equipes de trabalho que atuam em
cada uma dessas fases. O roteiro literário que é elaborado no início da préprodução consiste em uma das poucas atividades que pode ser realizada
individualmente. De maneira geral, as equipes atuam nas áreas de direção
(composta pelo diretor e um ou dois assistentes de direção), direção de arte
(composta pelo diretor de arte, cenógrafo, figurinista e maquiador), de produção
(composta pelo diretor de produção e por profissionais responsáveis pela
alimentação, transporte, materiais, captação de recursos e divulgação), de
fotografia (composta pelo diretor de fotografia, operador de câmera, foquista
e maquinista) e de som (composta pelo técnico de captação de som direto e
pela equipe de edição de som). Todas essas equipes devem estar afinadas e
conhecer perfeitamente o roteiro literário, sendo que todos os profissionais
envolvidos no processo de produção de um filme são, primeiramente, leitores
e, posteriormente, re-criadores, cada um segundo sua função.
Na série de concretizações que compõem as diferentes fases na
produção de um filme, o T0 corresponde, igualmente, ao texto-fonte que
inclui as escolhas, formulações e conceituações do autor do texto que originou
o início do processo da realização fílmica. No caso do presente estudo, o T0
é a tragédia shakespeariana Macbeth. Obviamente, a escolha do texto-fonte
pelo diretor teatral ou pelo cineasta é realizada a partir de intenções já em
processo de formulação tendo em vista a proposta que está sendo delineada.
Sobre a elaboração de um projeto cinematográfico que envolve opções e
162
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
decisões em função do resultado final, a visão do próprio diretor do filme
Trono manchado de sangue, Akira Kurosawa, é muito esclarecedora:
Para escrever roteiros, deve-se antes estudar os grandes romances e as grandes
peças teatrais que o mundo produziu. Deve-se procurar saber por que são
grandes. De onde vem a emoção que se sente ao ler? Que grau de paixão o
autor teve de perseguir, que nível de meticulosidade teve de impor para
modelar os personagens e os fatos da maneira que fez? Deve-se ler
inteiramente, a ponto de se compreender todas estas coisas. Deve-se também
assistir aos grandes filmes. Deve-se ler os grandes roteiros e estudar as
teorias cinematográficas dos grandes diretores. Se seu objetivo é tornar-se
um diretor, você deve dominar a escrita dos filmes. (1990, p. 277)
Quando começo a considerar um projeto cinematográfico, sempre tenho
em mente uma porção de idéias sobre o que gostaria de filmar. De todas
elas, há sempre uma que repentinamente germina e começa a se expandir;
essa será a idéia que irei agarrar e desenvolver. Nunca levei adiante um
projeto a mim oferecido por um produtor ou a uma companhia produtora.
Meus filmes emergem de meu próprio desejo de dizer algo em particular,
numa época particular. A raiz de qualquer projeto cinematográfico situa-se,
para mim, no desejo interior de expressar algo. O que nutre essa raiz e a faz
prolongar-se em uma árvore é o roteiro. O que faz a árvore produzir flores
e frutos é a direção. (1990, p. 275)
A concretização do T1 corresponde ao roteiro literário que, com
grande frequência, é adaptado de textos literários originais ou traduzidos (T0).
Em Trono manchado de sangue, além da tradução interlingual, foi realizada uma
tradução intercultural tendo em vista a futura audiência. Essa fase prevê, tal
como já foi mencionado anteriormente, um estudo aprofundado do textofonte objetivando exaurir o seu potencial de significados: tendo-se em vista a
compreensão do significado do texto-fonte, é necessário crivá-lo de perguntas
e questões a partir do texto e cultura alvo, ou seja, a partir da situação final da
recepção – o que o texto-fonte significa para mim ou para nós? O roteiro
literário, segundo Syd Field, “é uma história contada em imagens, diálogos e
descrições, localizada no contexto da estrutura dramática” (2001, p. 2). Akira
Kurosawa, em mais de uma ocasião, reiterou sobre a importância de um bom
roteiro (T1) tendo em vista a realização de um projeto cinematográfico de
qualidade:
Com um bom roteiro, um bom diretor pode produzir uma obra-prima;
com o mesmo roteiro, um diretor medíocre pode fazer um filme passável.
Mas com um roteiro ruim, mesmo um bom diretor não tem possibilidade
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
163
de fazer um bom filme. Para obter a expressão cinematográfica verdadeira,
a câmera e o microfone devem ser capazes de atravessar água e fogo. Um
filme verdadeiro nasce assim. O roteiro deve ser algo com o poder de realizar
isso. (1990, p. 276)
Esse texto denominado roteiro literário (conhecido simplesmente como
roteiro) tem por finalidade a orientação de toda a equipe envolvida na realização
fílmica. Para Field, o roteiro é “um ‘sistema’; um número de partes
individualmente relacionadas arranjadas para formar uma unidade, ou todo”
(2001, p. 79). Dentro deste todo, os principais componentes estruturais de um
roteiro são a “sequência” e a “cena”. Sobre a definição de cada uma delas,
Field postula que:
a sequência é o elemento mais importante do roteiro. Ela é o esqueleto, ou
espinha dorsal, de seu roteiro; ela mantém tudo unificado [...] Uma sequência
é uma série de cenas ligadas, conectadas, por uma única idéia. [...] É uma
unidade, ou bloco, de ação dramática unificada por uma única idéia [...] A
sequência é o esqueleto do roteiro porque ela segura tudo no lugar; você
pode literalmente ‘enfileirar’, ou ‘pendurar’, uma série de cenas para criar
volumes de ação dramática [...] Toda sequência tem início, meio e final
definidos. É um microcosmo do roteiro [...] A sequência é um todo, uma
unidade, um bloco de ação dramática, completa em si mesma. (2001, p. 8081)
A cena é o elemento isolado mais importante de seu roteiro. É onde algo
acontece – onde algo específico acontece. É uma unidade específica de ação
– e o lugar em que você conta sua história. Boas cenas fazem bons filmes.
Quando você pensa num bom filme, recorda cenas e não o filme inteiro [...]
A maneira como você apresenta suas cenas na página afinal afetam o roteiro
inteiro [porque ele] é uma experiência de leitura [cujo] propósito é mover a
história adiante [...] Uma cena é tão longa ou tão curta quanto você queira.
Pode ser uma cena de três páginas de diálogo ou tão curta quanto um
simples plano – um carro numa rodovia. A cena é o que você quer que seja.
[...] A história determina quão longa ou quão curta é sua cena. Há somente
uma regra a seguir; confie na sua história [...] Toda cena tem duas coisas:
LUGAR e TEMPO. (2001, p. 112-113)
É possível ilustrar essas definições de sequência e cena através da
breve exposição de uma sequência específica do roteiro de Ran: percebe-se
que a própria narrativa cria séries de cenas unidas por uma única ideia – tais
como a sequência da emboscada preparada para Hidetora – entre as cenas 38
e 116 (KUROSAWA, OGUNI, IDE, 1986, p. 42-52). Há dois ambientes
164
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
principais que se intercalam nesse conjunto, o castelo (exterior e interior) e a
campina. As cenas são curtas, em sua maioria, cada nova informação gera
uma nova cena, como por exemplo, o estouro no estábulo que acontece na
cena 71 e é descrito como “cavalos correndo loucamente dos estábulos que
foram destruídos na explosão” (KUROSAWA, OGUNI, IDE, 1986, p. 47).
Até mesmo a frequente indicação do escurecimento da tela – fade out, ou
simplesmente OUT no texto – é identificada como uma nova cena. Uma das
raras cenas de maior duração é a de número 55, que retrata a volta de Tango
(Kent) para junto de Hidetora (Rei Lear) e também a sugestão mal intencionada
de ocupação do Castelo III feita por seu conselheiro Ikoma (Gloucester) que
o leva a mais um erro de julgamento. Devido à dinâmica interna desta sequência,
percebe-se que cada cena tem, como na definição de Syd Field, a duração
determinada pela história (2001, p. 112).
Quanto à função que desempenha, o roteiro literário não é
propriamente uma obra de arte, mas um texto técnico e objetivo que, apesar
de englobar primordialmente uma narrativa (sequências, cenas, ambientação,
diálogos e descrição de personagens, dentre outras informações), também
inclui alguns aspectos visuais relevantes para a composição de uma narrativa
fílmica, como por exemplo, um close nos olhos de um personagem durante um
momento dramático. A elaboração do roteiro9 é um processo dinâmico que
prevê a possibilidade de modificações constantes. Cada versão do roteiro é
chamada de ‘tratamento’ e é numerada. A numeração vai sendo alterada na
medida em que surgirem quaisquer mudanças no texto do roteiro. Essa
numeração começa em 1 e segue até o tratamento final, que consiste na
versão correspondente ao filme. No caso de ser encontrado algum problema
técnico na elaboração do roteiro, este também pode ser corrigido durante a
filmagem (T3), alterando-se, nesse caso, igualmente, a sua numeração. Esse
processo interno de mudança do roteiro não é acessível ao espectador em sua
totalidade, mas pode ser recuperado, em parte, quando se confrontam duas
versões diferentes de um mesmo roteiro.
A pré-produção de um filme é finalizada com a concretização do
roteiro técnico (T2), fase na qual o detalhamento do roteiro literário (T1) é
realizado, segundo decisões técnicas sobre a melhor maneira de contar “a
história em imagens”. O roteiro técnico segue a ordem estabelecida pelo roteiro
literário. Esta fase incorpora atividades de todas as equipes de trabalho
objetivando a preparação dos cenários, a escolha de locações (o encaminhamento
de pedidos de interdição de ruas, por exemplo), a escolha do figurino de cada
um dos personagens, a elaboração dos planos de filmagem do diretor e também
das equipes de fotografia e de som além de outros detalhes anteriores que
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
165
precisam estar definidos para o momento da filmagem. O calendário dos dias
de filmagem e os prazos para iniciar a pós-produção devem ser estabelecidos
já nesta fase. Alguns meses antes da filmagem propriamente dita iniciam-se
também os ensaios com os atores. No decorrer dessa fase, são realizadas
reuniões periódicas entre os responsáveis de cada área, juntamente com o
diretor, objetivando a coesão e unidade de esforços e de pensamento. Em
relação ao trabalho de direção de Akira Kurosawa, sabe-se que, como ele era
um realizador que exigia perfeição em todos os aspectos, cada uma das equipes
devia se reportar a ele sobre o andamento de suas propostas. O esmero do
diretor com todos os detalhes da produção fílmica pode ser constatado nas
suas próprias palavras que estão transcritas abaixo:
O papel de um diretor envolve o treino dos atores, a técnica cinematográfica,
a edição, a dublagem e a mixagem do som. Embora essas possam ser
pensadas como ocupações separadas, eu não as vejo como independentes
entre si. Eu as vejo juntas, mesclando-se sob o comando de uma direção.
(1990, p. 275)
Um diretor de filmes tem de convencer um grande número de pessoas a
segui-lo e a trabalhar com ele. Costumo dizer, embora certamente não seja
um militarista, que, se comparar uma unidade de produção a uma
organização do Exército, o roteiro será a bandeira de batalha e o diretor, o
comandante da linha de frente. Do momento em que a produção começa
ao momento em que termina, não há como dizer o que acontecerá. O
diretor deve ser capaz de responder a qualquer situação e deve ter a habilidade
de liderança para fazer todo o grupo seguir com responsabilidade. (1990, p.
275-276)
Essa capacidade de orquestrar um grande número de pessoas
envolvidas nas várias ocupações que estão interligadas à realização fílmica
como um todo foi, desde cedo, uma aptidão demonstrada por Kurosawa,
antes mesmo de ele se tornar um diretor propriamente dito. Segundo
depoimento do diretor e mentor Kajirô Yamamoto, de quem Kurosawa foi,
inicialmente, o diretor-assistente no estúdio Tôho: “Ele era capaz de se
relacionar bem com as pessoas, mas também sabia ser firme com elas” (Citado
em RICHIE, 1998, p. 12).
No decorrer dessa fase (T2), alguns cineastas e/ou roteiristas elaboram
um storyboard (composto de desenhos detalhados do filme, cena a cena, com
cenário, atores, posicionamento de câmera e outros detalhes úteis durante as
filmagens). Apesar de o storyboard assemelhar-se, visualmente, a uma história
em quadrinhos, ele é, na realidade, um estudo visual das decisões imagéticas
166
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
tomadas durante o roteiro técnico, acrescidas da ação e dos diálogos, que são
indicados através de legendas. Para Akira Kurosawa, o T2 está,
primordialmente, relacionado com a elaboração de um storyboard. Ele prescindia,
a princípio, da figura do roteirista porque ele próprio escrevia seus roteiros10 e
os transformava, a seguir, em storyboards de beleza e detalhamento singulares.
Por ter tido uma formação sólida em pintura11 antes de ingressar no mundo
do cinema, os resultados desses trabalhos pictóricos consistem em verdadeiras
obras de arte. Na realidade, Kurosawa entrou para o cinema quase por acaso,
quando estava em uma encruzilhada profissional no campo da pintura, sem
saber ao certo que rumo seguir em sua carreira. O que impressiona é que
existe uma grande proximidade entre as pinturas elaboradas para o storyboard
e a imagem filmada, uma vez que seus desenhos são muito detalhados, tanto
em ambientação quanto no posicionamento e enquadramento de câmera.
Em pelo menos dois momentos da carreira de Kurosawa, os
storyboards se constituíram em uma forma de concretização fílmica pictórica
para ele. Devido ao fato de não ter conseguido a verba necessária para as
filmagens de seus projetos na indústria cinematográfica japonesa, o diretor se
dirigia, nessas duas ocasiões, diariamente à sede do estúdio Tôho, onde tinha
seu escritório, e trabalhava incessantemente no desenho dos storyboards dos
filmes. Sobre esses intervalos em sua filmografia, há dois registros que merecem
destaque. O primeiro é de Donald Richie, que presenciou um desses momentos
que antecedeu ao filme Kagemusha – A Sombra do Samurai (1980). O segundo
é do próprio Kurosawa:
O trabalho consistia em desenhar e pintar. [...] Para fixar na memória o
próximo filme que queria rodar, ele o estava fazendo à mão. Uma imagem
após a outra de samurais, batalhas, cavalos. Suas grandes mãos de artesão
estavam pintando uma cena após a outra, com movimentos rápidos e
seguros. Ele sempre soube exatamente o que queria fazer. O filme inteiro
estava em sua cabeça e emergia através de seus dedos. Como não tinha
dinheiro, faria o filme no papel. Que outro diretor – perguntava-me – faria
isso, teria tal cuidado e estaria imune ao desespero? (RICHIE: 2000, p. 74)
Por um tempo, parecia que este trabalho [Kagemusha] nunca iria ver a luz do
dia. Exasperado, porque eu queria que o público de todo o mundo
entendesse as idéias que eu tinha para esse filme, eu comecei a pintar quase
diariamente, transformando essas imagens em pinturas estáticas. Eu
preparei centenas de imagens naquela época. A mesma coisa aconteceu com
Ran. Um longo tempo se passou antes que a produção fosse iniciada.
(KUROSAWA, 1986, p. 5)
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
167
Dentro da fase de produção, o T3 corresponde à concretização do
processo de gravação do filme, em imagens captadas no set de filmagem, a
partir dos roteiros literário [T1] e técnico [T2]. As cenas são gravadas não
apenas de acordo com um cronograma previamente estabelecido, mas também
de acordo com a própria dinâmica do set de filmagem que, geralmente, exige
a gravação de várias versões. O registro da listagem de cenas captadas é
realizado durante as gravações, através de anotação em uma ficha de filmagem
(única para todas as cenas e contendo, aproximadamente, cinco páginas para
um curta-metragem), com observações concisas (cena bem sucedida,
vazamento de som, falha no diálogo, dentre outros aspectos) sobre cada uma
das versões de uma mesma cena. O registro na ficha de filmagem visa auxiliar
o processo de montagem do filme que corresponde à edição de imagem [T4].
Durante a filmagem [T3] também é realizada a captação do som direto,12 que
será parcialmente utilizada na edição do som. Tanto a ficha de filmagem
quanto o som direto gravado durante o T3, serão utilizados na pós-produção
[T4] do produto final: o filme.
No set de filmagem, todos os aspectos decididos na pré-produção
[T1] e [T2] devem estar finalizados objetivando a captura das imagens.
Entretanto, os imprevistos fazem parte do processo. Dentro desse contexto,
Richie ilustra, muito apropriadamente, o motivo do atraso nas filmagens de
Trono manchado de sangue: “Kurosawa se recusava a usar um cenário já pronto
porque tinha sido construído com pregos, e as lentes de foco profundo que
estava usando poderiam revelar as anacrônicas cabeças de prego” (2000, p.
72). O diretor não poderia ceder nesse ponto, porque uma de suas preocupações
se relacionava com a falta de veracidade histórica do gênero jidaigeki. E, nesse
caso, os pregos indicariam uma falha nessa questão, porque a arquitetura da
época feudal previa apenas o uso de encaixes perfeitos entre as vigas. Além
disso, o diretor afirmava que “a qualidade do cenário influi na performance dos
atores” (KUROSAWA, 1990, p. 281).
Este cuidado com todos os detalhes do filme era uma das
características de Kurosawa que o distinguia da maioria dos diretores japoneses.
Essa particularidade o impelia, por exemplo, a repetir uma cena, até a obtenção
do resultado almejado, fato que pode ser constatado no episódio que está
descrito a seguir:
No fim do verão de 1958, eu estava num dos sets abertos de A fortaleza
escondida, perto do monte Fuji. Mifune13 estava no banho, após um longo
dia de filmagens. Eu o estava acompanhando. Fora um dia difícil, em que se
rodara uma mesma cena inúmeras vezes. [...] Reparei que, durante aquela
cena, a caneta esferográfica de Kurosawa parara de escrever. Em vez de jogá168
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
la fora e arrumar outra, ele passara a tarde inteira, entre as tomadas, tentando
fazer aquela mesma caneta funcionar. [...] Mifune estava submerso até o
pescoço na água quente. Estivera na cena exasperante. Mencionei a
esferográfica. “Sim”, disse ele, “sei o que você quer dizer. Senti-me exatamente
como aquela caneta... Mas você percebeu? Ele, finalmente, conseguiu fazêla funcionar.” (RICHIE, 2000, p. 73)
Um diferencial de Kurosawa, dentro do contexto cinematográfico
japonês de sua época, é que, durante as filmagens [T3], ele captava as imagens
das cenas mais importantes com três câmeras. Essa idéia surgiu durante o
filme Os sete samurais (1954) uma vez que o posicionamento das câmeras
possibilitaria registrar uma gama maior de detalhes e ângulos das imagens. O
diretor ressalta, todavia, que existem poucos diretores no Japão que se utilizam
dessa técnica porque é extremamente difícil determinar como movimentar as
câmeras. Ele exemplifica esse procedimento da seguinte forma:
Por exemplo, se uma cena conta com a presença de três atores, todos os três
estarão falando e se movimentando livre e naturalmente. Para mostrar como
as câmeras A, B e C se deslocam para cobrir a ação, mesmo uma descrição
completa de continuidade em cena é insuficiente. O operador mediano
também não entenderia um diagrama com movimentos de câmera. Creio
que, no Japão, os únicos capazes de compreendê-la são Asakazu Nakai e
Takao Saitô. As três posições de câmera mostram-se diferentes do início ao
fim de cada tomada, e passam por várias transformações nesse período.
Como um esquema geral, coloco a câmera A nas posições mais ortodoxas,
uso a B para tomadas rápidas e decisivas e a câmera C funciona como uma
espécie de unidade de guerrilha”. (1990, p. 280)
Nos filmes Trono manchado de sangue e Ran, esse recurso das três câmeras
é utilizado nas longas sequências externas de batalha uma vez que muitos
atores, figurantes e cavalos estão envolvidos na filmagem, além do exército de
pessoas participando nos bastidores. Todos devem desempenhar a sua função
organicamente durante a gravação de uma sequência desse tipo como se
fizessem parte das engrenagens de uma máquina. Esse processo é descrito no
documentário A.K. por Chris Marker (Documentário-vídeo, 1985), que registra
no making-of de Ran a movimentação que antecede a gravação14 da sequência
da emboscada a Hidetora, ambientada no Castelo III. Esta sequência, que
está parcialmente descrita no documentário, inclui cenas desde a desocupação
do Castelo III e a subsequente ocupação da edificação por Hidetora (Rei
Lear) até a batalha e a invasão deste mesmo Castelo pelas tropas dos dois
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
169
filhos mais velhos do protagonista. A ação, como um todo, culmina na loucura
de Hidetora.
Essa sequência de batalha é apresentada em suas três etapas que são
o que Syd Field (2001, p. 81) denomina como “começo, meio e fim” deste
“microcosmo do roteiro”. Na primeira, figurantes da tropa de infantaria e
oficiais da cavalaria, todos portando estandartes15 amarelos (Tarô), devem
retomar o castelo das tropas de estandartes azuis (Saburô), entretanto, sem
ocupá-lo porque este é o ardil para servir de emboscada para Hidetora. Em
um segundo momento, o senhor feudal Hidetora, suas tropas, munidas de
estandartes com listras alternadas de amarelo e preto devem entrar no castelo.
Na terceira fase, a batalha se inicia com Hidetora ouvindo os ruídos do cerco
ao castelo pelas tropas de ocupação, comandadas pelos dois filhos mais velhos,
Tarô e Jirô. Toda essa movimentação de figurantes das tropas e de atores
representando os comandantes devem se deslocar como ondas que se
aproximam do castelo. As figurantes femininas e as atrizes que representam
as esposas, concubinas e servas do senhor feudal destituído se desesperam ao
perceber o cerco ao castelo. As instruções para todo esse conjunto de pessoas
são transmitidas de duas maneiras: enquanto os figurantes são instruídos pelo
diretor-assistente sobre a sua movimentação, os atores, colocados em pontos
estratégicos, são dirigidos individualmente por Kurosawa. O diretor também
dá indicações, através de um esquema gráfico, sobre a dinâmica de
movimentação de cada cena à equipe nos bastidores como, por exemplo, os
operadores de câmera.
A fase de pós-produção, denominada concretização da edição [T4],
corresponde às edições de imagem (ou montagem) e de som,16 à finalização,
propriamente dita, do filme. Somente na fase da montagem é que um filme
deixa de ser um conjunto de fragmentos para ganhar uma conformidade de
todo. Logo após a montagem das imagens do filme, é realizada a pós-produção
de som (edição de som), que define a atmosfera final do filme17. Kurosawa
era um diretor que se preocupava pessoalmente com este aspecto.
O diretor cinematográfico e montador Eduardo Escorel (2006, p.
20) discorre, de maneira esclarecedora, sobre a fase de edição: “montar ou
editar consiste em escolher e justapor. Apenas isso. É uma operação simples,
comum a toda linguagem. No cinema não é diferente. Quem se exprime por
meio da linguagem cinematográfica seleciona e combina imagens e sons”.
Entretanto, ele enfatiza que esta fase não é a responsável única pela identidade
fílmica:
170
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
sendo, em sentido restrito, a última etapa de um processo, a montagem
está, por conseqüência lógica, subordinada às etapas que a precedem. Ela
não tem, portanto, autonomia completa. Embora seja o momento em
que é dada a forma final, o roteiro e a filmagem definem antecipadamente
alguns dos parâmetros básicos do resultado a que o filme poderá chegar.
(2006, p. 20)
Esse autor ainda apresenta a opinião do diretor russo Andrei Tarkovsky (19321986) para reforçar o seu pensamento sobre essa questão: o diretor russo
também era contrário aos que “pretendem que a montagem é o elemento
determinante de um filme. Dito de outra forma, que o filme seja criado na
mesa de montagem” (citado em ESCOREL, 2006, p. 20). Resta salientar que
esse posicionamento não desmerece a importância da edição, mas polemiza o
caráter onipotente e salvador que lhe foi imputado por alguns diretores e
teóricos. Um deles, Orson Welles, afirmava que
a única mise-en-scène de real importância é feita durante a montagem. [...] A
montagem não é um aspecto, é o aspecto. Encenar é uma invenção de pessoas
como vocês: não é uma arte [...] O essencial é a duração de cada imagem, o
que segue cada imagem: é toda a eloquência do cinema que se fabrica na sala
de montagem. (citado em ESCOREL, 2006, p. 20).
Entretanto, Escorel (2006, p. 20) considera que essa afirmação deve
ter sido mencionada, antes de tudo, como uma provocação para os
entrevistadores da revista Cahiers du Cinema. A tentativa de restabelecer os
parâmetros em relação ao grau de importância da montagem é de suma
importância, particularmente no Brasil, uma vez que essa fase é tida por
alguns profissionais, de maneira um tanto irresponsável, como o momento
em que se dá a resolução dos problemas surgidos nas fases precedentes.
Torna-se importante enfatizar que na edição de imagem, além do
ordenamento e escolha da versão mais adequada de cada cena, pode ocorrer
a exclusão de versões bem realizadas. Um exemplo bastante significativo que
ocorreu na edição de Trono manchado de sangue foi testemunhado por Richie:
O cenário atual representava o palácio provinciano do senhor Washizu18, o
personagem de Macbeth, e estava-se filmando a chegada de Duncan:
soldados, estandartes, cavalos, um javali empalhado preso em hastes –
uma procissão inteira. Quando um assistente deu o sinal, ela começou a
avançar sob o sol do outono tardio. [...] Acima de nós, numa plataforma,
estava Kurosawa e seu câmera. Tínhamos conversado com o diretor
anteriormente, e ele nos explicara seus planos para aquela cena. Agora, o
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
171
observávamos em ação. Gastou-se a tarde inteira com as partidas e paradas
daquela procissão distante. Partes da cena estavam sendo filmadas com
lentes de foco profundo, depois eram refilmadas várias vezes. [...] Meio ano
mais tarde, quando vimos o filme pronto na sala de projeção, não
encontramos nenhuma daquelas tomadas. Perguntei a Kurosawa o por
quê. As cenas ficaram boas, disse ele, mas não eram realmente necessárias.
Ademais, quebravam o fluxo do filme. Joe e eu ficamos estarrecidos (2000,
p. 73).
Kurosawa esclarece no primeiro trecho abaixo, oriundo de seu Relato
Autobiográfico (1990), o que poderia ser considerada uma resposta à manifestação
de surpresa deste autor e, em seguida, complementa com o seu parecer sobre
o trabalho de edição:
O requisito mais importante para a edição é a objetividade. Não importa
quanta dificuldade você encontre para obter determinada tomada, o
espectador jamais entenderá isso. Se não for interessante, simplesmente
não será interessante. Você pode ter-se tomado de grande entusiasmo ao
filmar determinada tomada, mas se esse entusiasmo não é transmitido na
tela, você deve ser pragmático o suficiente para cortá-la. (1990, p. 282)
Editar é um trabalho realmente interessante. Quando os copiões19 chegam,
raramente os mostro à minha equipe exatamente como estão. Em lugar
disso, vou para a sala de edição no fim do dia de filmagem e, com o montador,
gasto três horas editando os copiões. Só depois disso mostro os resultados
à equipe. É necessário mostrar esse resultado editado com o objetivo de
despertar o interesse. Algumas vezes eles não entendem o que está sendo
filmado ou por que têm de gastar dez dias numa tomada. Quando eles
vêem a película editada e a confrontam com seu trabalho, tornam-se
entusiasmados novamente. E editando da forma como edito, só tenho a
montagem de detalhe a completar, depois de terminar a filmagem. (1990, p.
282)
A edição de som [T4] é o momento em que decisões quanto à
qualidade, regravação ou reforço das vozes dos atores, à sonoplastia e à trilha
sonora (algumas vezes, determinadas desde o roteiro literário [T1]), são
incorporadas ao filme após a edição de imagem. A totalidade do som do
filme, ou seja, diálogos, sonoplastia, efeitos sonoros, trilha incidental, músicas
da trilha sonora, etc. constitui-se no ‘desenho ou design de som’. Esse termo
designa a evolução da sonorização cinematográfica, herdeira da sonoplastia
oriunda das novelas radiofônicas para uma nova realidade. O conceito foi
172
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desenvolvido a partir de um momento específico da história do cinema que
Francisco Leal chamou de “o ponto de viragem na história do som em cinema”,
momento este que foi determinado pelo surgimento dos filmes Guerra nas
Estrelas e Apocalypse Now20. Estes dois filmes revolucionaram a noção de
sonoridade no cinema. A definição atual do termo design de som, segundo esse
estudioso, é:
Processo técnico e criativo [que utiliza] um sistema de sonorização, [...] para
a exploração do envolvimento sonoro de um espetáculo, criando diferentes
planos e perspectivas de difusão de som num auditório ou ao ar livre, seja
de registros sonoros (música e efeitos sonoros) ou através da amplificação,
efetuar o reforço sonoro das vozes dos atores, de forma a manter-se a
imagem sonora coerente com a imagem do palco, manipular a captação da
voz dos atores ou outros elementos sonoros, processando-a através de
efeitos digitais, recriando espaços acústicos, ou efeitos que acentuam o sentido
dramático de frases ou palavras, ou o caráter de um personagem, criando
imagens sonoras através de um som “vivo” e não intrusivo, mantendo a
teatralidade do espetáculo, contribuindo assim com mais um elemento
dramatúrgico adequado ao espetáculo. (citado em LEAL, 2006, p. 10)
Kurosawa reitera a importância das decisões que são tomadas nessa
etapa:
Desde o momento em que me tornei um diretor de cinema, penso não
somente na música, mas nos efeitos sonoros que colocarei nos filmes.
Mesmo antes da câmera rodar, juntamente a todos os outros itens que
considero, decido que tipo de som eu quero. Em alguns de meus filmes,
como Os sete samurais e Yôjimbo, uso diferentes temas musicais para cada
personagem principal, ou para grupos diferentes de personagens.
(KUROSAWA, 1990, p. 281)
Em Trono manchado de sangue, há duas decisões a serem destacadas em
relação ao som do filme. A primeira refere-se à trilha sonora propriamente
dita: uma flauta, típica do teatro Nô, entoa uma melodia lúgubre, antecipando
o clima do filme. Essa melodia é inserida no momento em que os créditos
iniciais aparecem na tela. Esse recurso estabelece uma ligação deste filme com
as duas outras adaptações shakespearianas do diretor, Homem mau dorme bem e
Ran, porque estas também apresentam a sonoridade da flauta Nô nos créditos,
com algumas diferenças. Em O homem mau dorme bem, há a inclusão mais
acentuada dos tambores japoneses dialogando com esta sonoridade; em Ran,
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
173
além da presença desta flauta nos créditos, ela também é tocada por uma das
personagens no decorrer do filme, reforçando esta ligação.
A segunda decisão em relação à edição do som de Trono manchado de sangue
refere-se ao prólogo que enfatiza o tom dramático da cena inicial do filme,
logo após os créditos, no momento em que a primeira imagem aparece
através da neblina. Os versos da “canção off ”, entoados por um coro21
masculino22 (teatro Nô), além de anteciparem “o caminho da perdição”,
fazem uma alusão à força da voz feminina que é capaz de induzir o
protagonista Washizu a cometer a falha trágica ao levá-lo a ambicionar o
poder pela traição. A mesma canção é repetida também nos créditos finais:
Olhe este lugar desolado / onde existiu um majestoso castelo / cujo destino
caiu na rede / da luxúria, do poder / [Ali] vivia um guerreiro forte na luta /
mas fraco diante de sua mulher / que o induziu a chegar ao trono / com
traição e derramamento de sangue. / O caminho do mal é o caminho da
perdição / e seu rumo nunca muda.23 (KUROSAWA, [Filme-vídeo], 1957)
Tal como ocorre no debate das relações entre o texto dramático e o
texto da performance proposto por Patrice Pavis que estabelece a “concretização
através da recepção” como a última fase no processo de transformação de
um texto, uma produção fílmica também estabelece como seu foco de chegada
o momento da recepção do filme pelo espectador e pela crítica [T5], realizada
a partir de sua estréia nas salas de cinema. Antes do momento que representa
o objetivo final de uma realização fílmica, muitas decisões estéticas e técnicas
foram tomadas em todas as etapas na série de concretizações textuais que
foram sendo explicitadas ao longo desta pesquisa. Apesar de que nos dias
atuais um filme, até por uma exigência de mercado, necessite contar com a
audiência complementar em DVD (locadoras) e da televisão, o objetivo final
e prioritário de uma adaptação fílmica é a exibição na grande tela onde acontece
a recepção coletiva do filme pelo público. A exibição de grande parte da
filmografia realizada por Kurosawa foi pensada exclusivamente para a sala de
exibição. Apenas filmes mais recentes, como Sonhos, Rapsódia de Agosto e
Mâdadayo, tiveram que prever outras formas de exibição como suplementares
às dos cinemas.24 O planejamento da divulgação, da distribuição do filme e o
agendamento de salas para a estreia começam na pré-produção e/ou no
decorrer da filmagem.
Como já foi mencionado anteriormente, muitos críticos de cinema
consideram Trono Manchado de Sangue uma das maiores realizações do diretor
Akira Kurosawa, além do filme também ser considerado por muitos como
174
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sendo uma das melhores adaptações de peças shakespearianas. Dentre estes
críticos, Harold Bloom (1999, p. 519) é um dos grandes entusiastas dessa
versão realizada por Kurosawa. Quando nos referimos ao contexto da recepção,
torna-se interessante mencionar que, em grande parte de sua carreira, Kurosawa
foi muito mais valorizado no Ocidente do que no próprio Japão. Zhang Yimou,
diretor dos filmes Red Sorghum e Raise the Red Lantern, escreveu que Kurosawa
foi acusado de fazer filmes apenas para o consumo externo. De acordo com
esse cineasta, em 1950, com o lançamento de Rashômon, primeiro filme japonês
amplamente distribuído no Ocidente, Kurosawa foi criticado por expor a
ignorância e atraso do Japão para o mundo externo – uma acusação
completamente absurda. Yimou (citado em Buffalo Film Seminars VIII, 2000)
ainda menciona que quando ele próprio precisa enfrentar na China algum
tipo de reprimenda, ele usa Kurosawa como um escudo. Uma outra acusação
que pairava sobre Kurosawa é a de que ele produzia filmes ocidentalizados,
opinião reforçada pela revista Cahiers du Cinema, particularmente pelos jovens
críticos Eric Rohmer, Jacques Rivette e Jean-Luc Godard, futuros cineastas
da Nouvelle Vague. O principal motivo para este repúdio, embora eles fossem
grandes entusiastas do cinema japonês, aconteceu, segundo Rogério Ferraraz
(citado em FERRARAZ, 2002), exatamente por causa das adaptações de obras
do Ocidente, dentre elas as de Shakespeare. Isso se caracterizava, na opinião
destes críticos, como uma forma de ocidentalização do diretor. Entretanto,
vale salientar que esse parecer não encontra nenhum respaldo no contexto
crítico-teórico atual que, contrariamente, exalta a importância das abordagens
intersemióticas e interculturais.
Notas
1
Os termos que envolvem o uso dos conceitos de aproximação e distanciamento não
se referem à tentativa de estabelecer uma comparação entre as obras a partir de um
critério de fidelidade. Sabe-se que uma tradução intersemiótica assegura um amplo
grau de liberdade e de criatividade para aqueles que estão envolvidos no processo
tradutório. Os conceitos que dizem respeito ao estabelecimento de equivalências entre
os sistemas semióticos estão sendo aplicados no presente estudo conforme a proposta
discutida por Thaïs F. N. Diniz (2003, p. 27-42).
2
O homem mau dorme bem foi listado em terceiro lugar, apesar de ser anterior a Ran, por
estar inserido na conjuntura do século XX ao invés de estabelecer uma relação com a
época feudal japonesa, como ocorre nas outras duas versões. A tradução literal do seu
título para o português é “quanto pior o homem, melhor ele dorme”, o que evidencia
com mais precisão as sutilezas do enredo.
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175
3
Foram utilizadas duas edições desse livro, a de 1984, traduzida para o português e a
terceira edição, expandida em 1998, escrita em inglês. Todas as traduções das citações
retiradas de livros em inglês foram realizadas pelas autoras do presente estudo.
4
A indústria cinematográfica hollywoodiana apresenta, muitas vezes, uma dicotomia
estúdio X diretores autorais, segundo a qual existem duas conformações possíveis de
hierarquia na realização fílmica. A primeira, nos filmes realizados por grandes estúdios,
prevê que a coordenação dos projetos esteja a cargo de um produtor. Na segunda, em
realizações tidas como autorais, o profissional que detém o poder hierárquico é o
próprio diretor. Alguns diretores, mediante contrato, adquirem a autonomia sobre
seus filmes, mesmo trabalhando para os grandes estúdios hollywoodianos. No Japão,
a situação é um pouco diferente. Há uma maior incidência de diretores autorais
trabalhando dentro de estúdios renomados. Um exemplo extremo desta situação foi
Akira Kurosawa, que realizou a maioria de seus filmes sob a chancela do estúdio
Tôho, com curtas passagens por alguns outros estúdios japoneses. Apesar de seu
vínculo com estúdios de renome, Kurosawa não permitia quase nenhuma alteração
na concepção de seus filmes. Ele acabou ficando famoso como sendo um diretor
difícil de trabalhar, ou seja, que estourava orçamentos e prazos e que se contrapunha
às “recomendações, ordens de produtores e empresas produtoras – tudo para criar o
filme perfeito, sem concessões” (RICHIE, 2000, p. 74).
5
O bushidô (O Caminho do Guerreiro) engloba o conjunto de preceitos que devem
ser seguidos por um samurai objetivando viver uma vida honrada e de valor. A
desonra deve ser lavada com sangue entre estes guerreiros, através do suicídio ritual,
seppuku, realizado através da técnica de desventramento, o harakiri. Este tópico está
bastante desenvolvido no livro Samurai – o lendário mundo dos guerreiros (2006), por
Stephen Turnbull.
6
O significado do sufixo ‘geki’ é ‘encenação’, enquanto o termo define-se por seu
prefixo ‘jidai’, que significa época. Esse termo, portanto, contrapõe-se diretamente
com o significado de ‘gendaimono’, que está vinculado aos filmes ambientados na
atualidade. Esta se constitui na mais importante distinção de gêneros dentro do
cinema japonês. Os demais gêneros inserem-se nessa grande categoria de diferenciação
entre filmes de época ou de atualidade.
7
Em Trono manchado de sangue um único espírito maligno – mononoke – corresponde
às três bruxas existentes na tragédia shakespeariana Macbeth. A transformação dessas
personagens em um espírito maligno se deve à transposição da tragédia para o contexto
cultural japonês: ocorre na versão fílmica de Kurosawa uma aproximação da personagem
com elementos tradicionais deste país, como o teatro Nô e o gênero literário conto de
terror japonês ou kaidan. “A idéia de um fantasma vingativo é bastante comum,
como nos inúmeros filmes kaidan. Aliás, não existem fantasmas sem propósito
como no Ocidente. Mas a idéia de um trio de bruxas malévolas está bem longe da
imaginação japonesa. [...] a maldade gratuita das bruxas de Shakespeare é inconcebível.”
(RICHIE, 1984, p. 118)
8
Nastasya Filippovna é a protagonista do conto “O idiota” de Fiódor Dostoievski
(1821-1881) que corresponde à personagem Taeko Nasu da adaptação fílmica O idiota
– Hakuchi (1951), de Akira Kurosawa.
176
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9
O roteiro literário contém características textuais específicas: os verbos devem estar
no presente do indicativo, metáforas e elipses devem ser evitadas e os acontecimentos
devem ser registrados na ordem em que aparecem no filme e os detalhes técnicos,
como a inserção de imagens, devem ser indicados em caixa alta seguidos de dois
pontos e alinhados à direita.
10
Entretanto, esse processo criativo caracterizou a produção do diretor apenas até
1940, uma vez que, posteriormente, ele defende a importância de trabalhar com mais
uma pessoa na elaboração de um roteiro para não incorrer em dois erros primordiais:
“interpretar outro ser humano de forma unilateral” e optar pela “condução do herói
e do enredo de forma a tornar mais fácil a direção” (KUROSAWA, 1990, p. 278).
11
A formação inicial deste diretor em pintura transparece não apenas na beleza dos
storyboards, mas também no uso diferenciado do contraste e, posteriormente, da cor,
em seus filmes. As locações e os cenários dos filmes do cineasta são trabalhados de
forma a compor imagens muito próximas às da pintura.
12
O técnico de captação de som direto escolhe a melhor maneira de registrar o som
durante o momento da filmagem. Uma opção é um microfone chamado boom, que
fica preso a uma haste longa que permite que o microfonista esteja perto da cena sem
aparecer na imagem gravada. Outra opção possível é a utilização de microfones
embutidos no vestuário dos atores, os chamados microfones “lapelas”.
13
Toshirô Mifune foi o protagonista de muitos filmes de Akira Kurosawa, entre eles,
Trono manchado de sangue e Ran, até se desentender com o diretor durante as filmagens
de O Barba Ruiva (1965).
14
Essa é uma sequência (externa e interna) filmada no Monte Fuji. O mesmo local foi
utilizado para a construção do castelo do filme Trono manchado de sangue.
15
Os exércitos são identificados em Ran pelas cores dos estandartes: estandartes com
listras alternadas de amarelo e preto, para a facção de Hidetora (Rei Lear); amarelos
para os seguidores de Tarô (correspondente à Goneril); vermelhos para as tropas de
Jirô (correspondente à Regan) e azuis para os partidários de Saburô, (correspondente
à Cordélia).
16
Akira Kurosawa ilustra com um fato peculiar à edição de som, mais especificamente,
dos efeitos sonoros, sons criados artificialmente para o filme. Ele inicia um dos
capítulos do seu Relato autobiográfico narrando incidentes relacionados à sua impaciência.
Ele próprio fala sobre uma dessas ocorrências cujo resultado acabou sendo bemsucedido: “Uma outra vez, eu gravava o som correspondente a uma batida na cabeça
de alguém. Tentávamos usar várias coisas, mas o resultado não nos convencia.
Finalmente, eu perdi a paciência e esmurrei o microfone. A luz azul sinalizando “ok”
acendeu-se” (1990, p. 167).
17
Um evento recente de pirataria que se constituiu na veiculação ilegal e antecipada do
filme Tropa de Elite, antes da estreia nos cinemas, está diretamente relacionado com as
etapas de montagem e da edição de som no que se refere à sua primeira recepção. A
montagem final do filme exibida nos cinemas exclui uma cena que caracterizaria,
possivelmente, os policiais como nazistas. Está sendo cogitado que a exclusão dessa
cena ocorreu devido a essa percepção negativa pela plateia ‘pirata’. Embora os
espectadores ‘piratas’ tenham tido acesso à integralidade do filme, eles saíram
prejudicados quanto à edição de som. Essa versão contava apenas com o resultado da
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177
captação direta de som, uma vez que a edição de som estava para ser realizada numa
fase posterior.
18
O “palácio” descrito por Richie refere-se à Mansão do Norte.
19
Na época do cinema analógico, copiões eram as cópias brutas das imagens registradas
em película durante as filmagens. Elas formavam a base para a edição linear (edição
realizada diretamente na película, cortando e montando os pedaços um a um). Hoje,
com as câmeras digitais, o filme é registrado em DVD ou no disco rígido da câmera,
e depois montado no computador, o que é chamado de edição não-linear.
20
Surge, com esses dois filmes, uma nova conceituação em relação à captação e produção
sonora: é introduzido, nesses filmes, o logotipo “Dolby Stereo” que anuncia uma
evolução no processo de reprodução analógica, que se compunha, pela primeira vez,
de quatro canais e era munido de uma tecnologia de redução de ruído. Além desse
fator, também aparece na lista de créditos um título profissional inédito até então, o
“sound designer”, o que atesta a preocupação crescente com a qualidade sonora dos
filmes.
21
O coro foi utilizado por Kurosawa pela primeira vez em O anjo embriagado (1948),
na forma “de um coro comentarista” (RICHIE, 1998, p. 52), que apresenta aspectos
da personalidade de um dos personagens principais, o gângster. Esse recurso é
retomado em O homem mau dorme bem, através dos jornalistas e das manchetes dos
jornais. Os primeiros atuam como comentaristas do escândalo de corrupção atual,
entre uma construtora e uma estatal da área de fomento de terras devolutas. Eles
também se reportam a um escândalo anterior ocorrido em outra estatal cinco anos
antes e que culminou no suicídio induzido do pai do protagonista. Esse coro atua,
principalmente, durante a sequência inicial que retrata um casamento. Quanto às
notícias, elas aparecem diretamente na tela, mostrando os desdobramentos do
escândalo em curso ao longo do filme.
22
Essa gravação deve ter sido realizada em estúdio por cantores contratados durante
esta etapa.
23
Copiado da legenda em português do DVD.
24
Havia uma defasagem de alguns anos entre o lançamento nos cinemas e a versão
em VHS ou DVD mesmo nos filmes mais recentes. O prazo extremamente curto,
com diferença de poucos meses, entre o lançamento de um filme nas salas de exibição
e sua veiculação nas locadoras e lojas de DVDs é um fenômeno que se iniciou na
última década, portanto, após a morte de Akira Kurosawa.
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Filme/Greenwich Film Production, 1985. 01 DVD, 162 minutos, son., color.
Legendado. Port.
Artigo recebido em 05 de fevereiro de 2009.
Artigo aceito em 12 de agosto de 2009.
Célia Arns de Miranda
Pós-doutoranda na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sob os auspícios
do CNPQ no período de setembro de 2008 e fevereiro de 2009.
Doutora em Literaturas Inglesa e Norte-Americana pela Universidade de São Paulo
(USP).
Professora de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal do
Paraná (UFPR);
Professora do Curso de Letras (graduação) do Departamento de Letras Estrangeiras
Modernas (UFPR);
Membro do Centro de Estudos Shakespearianos (CESh).
Membro da International Shakespeare Association (ISA).
Líder do Grupo de Pesquisa “Literatura e outras artes” (CNPQ).
Suzana Tamae Inokuchi
Aluna do Curso de Letras Português-Inglês em 2009.
Participante do Programa de Iniciação Científica na Universidade Federal do Paraná,
sob a orientação da Profa. Dra. Célia Arns de Miranda.
Membro do Grupo de Pesquisa ‘Literatura e outras artes’ (CNPQ).
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Letras (Estudos Literários) da
Universidade Federal do Paraná UFPR).
180
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
“CRUEL ARE THE TIMES”:
AN ANALYSIS OF SCENE 2, ACT 4
IN THREE PRODUCTIONS OF MACBETH1
Dolores Aronovich Aguero
[email protected]
RESUMO: Provavelmente o momento
mais chocante em Macbeth de Shakespeare
ocorre quando a família de Macduff é
massacrada, na cena 2, Ato 4 da peça.
Ainda que Macbeth não esteja presente
nesse banho de sangue, é ele que manda
executá-lo, e nesse instante ele se torna
um assassino em série. Na peça, a maior
parte da violência acontece no palco. A
maneira como essa cena é montada varia
de acordo com as intenções de cada
produção. Este artigo analisa a cena
mencionada em três produções: Macbeth,
o filme feito para a TV em 1979, baseado
na aclamada montagem de Trevor Nunn,
com Judi Dench e Ian McKellen, o filme
de 1971, Macbeth, dirigido por Roman
Polanski, e Homens de Respeito (1991), de
William Reilly.
ABSTRACT: Probably the most
shocking moment in Shakespeare’s
Macbeth occurs when Macduff ’s family is
slain, in scene 2, Act 4 of the playtext.
Though Macbeth is not present in this
bloodbath, it is he who orders it, and at
this instant he becomes a serial killer. In
the playtext, much of the violence
happens onstage. How this scene is
staged and shot varies according to the
production and its intentions. This paper
analyzes this scene by looking at three
very different productions: Macbeth, the
1979 TV movie based on Trevor Nunn’s
acclaimed stage production with Judi
Dench and Ian McKellen, the 1971 film
Macbeth directed by Roman Polanski, and
Men of Respect, a 1991 film by William
Reilly.
PALAVRAS-CHAVE: Violência. Shakespeare. Macbeth. Adaptação fílmica. Análise
da performance.
KEYWORDS: Violence. Shakespeare. Macbeth. Film adaptation. Performance analysis.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
181
Macbeth, Shakespeare’s bloodiest tragedy, has a plot of murder after
murder. The killing of Macduff ’s whole family is the most shocking episode.
This is the moment in which Macbeth definitely becomes a serial killer, ordering
the murder of innocent women and children. Before, when he hires men to
kill Banquo and his son, Fleance, also a child, it could be argued that he is
trying to defend his permanence on the throne. But Macduff ’s family poses
no threat to him. And what is even worse, he knows that Macduff has fled to
England and that his wife and children are alone and helpless. In the playtext,
this terrible massacre occurs throughout scene 2 in act 4 and basically happens
onstage: Lady Macduff discusses with Rosse why her husband abandoned
her; Rosse leaves; the Lady exchanges some bitter banter with her son about
his father; a messenger comes to warn her and flees; murderers appear at her
castle and stab Macduff ’s son; and the last stage direction in the scene reads
“Exit Lady Macduff crying ‘Murder!’ and pursued by the Murderers.”
I propose to analyze how this barbarous scene is acted out in three
productions. First, the made-for-TV film of 1979, which closely follows Trevor
Nunn’s acclaimed stage production of 1976, with Ian McKellen and Judi
Dench in the main roles. Second, Roman Polanski’s 1971 film, Macbeth, certainly
one of the most graphically gory adaptations of a Shakespearean play ever
brought to the screen. Finally, William Reilly’s Men of Respect, which updates
the story to the U.S. in 1991, trades kings and thanes for mobsters and thugs,
and uses the kind of English these tough people would use today.
I feel I must justify my choice, for Men of Respect is not considered
“real” Shakespeare, since it does not use his language. Akira Kurosawa’s Throne
of Blood, loosely based on Macbeth, faced the same predicament when it was
released in 1957. Peter Brook, for one, though praising the film, did not
consider it a Shakespearean production, because it did not make use of the
bard’s text. Some decades later, however, it has become “a part of our thinking
about Shakespeare’s Macbeth” (DAVIES, 1994, p. 154). Few scholars refuse to
see it (and Ran as well) as filmed Shakespeare. Men of Respect does not share
this privilege. The message seems to be: it is acceptable to update Shakespeare’s
English—as long as this is done in another language, like Japanese, and
preferably by a canonic director, like Kurosawa. To cite an example of this
prejudice, Stephen M. Buhler dedicates a whole book to the subject of screen
adaptations, Shakespeare in the Cinema: Ocular Proof, but not a single word to Men
of Respect. It is not even in the index. I want to analyze this film because, if,
ultimately, the aim in performance analysis is to liberate the performance
from the text, little could be as liberating as this 1991 production.
Having said that, I want to stress that in this paper I am dealing with
182
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a TV film and two movies for the screen, not with any stage production. Not
even Nunn’s made-for-TV movie can be regarded as a faithful embodiment
of his successful 1976 production for the Royal Shakespeare Company, since
the movie uses a different language, adequate for its medium, although for
Bernice Kliman “television, that hybrid medium, can leap more towards its
stage side, less towards its film side” (1995, p. 101). In any case, we must be
careful not so see films as the definitive performance text (which means a text
that includes not only verbal language, but also music, light, costumes etc).
James C. Bulman cites Lanier to warn us of the tendency of replacing “the
old textuality with a new form of performance textuality” (1996, p. 2-3). This
is an essentialistic and totalitarian bias that must be overcome. A theater
performance, after all, is ephemeral, but a movie stays fixed, “frozen in time,”
and can be viewed over and over again (HALIO, 2000, p. 19). But just because
we appreciate, say, what Polanski does with the scene of the massacre of
Macduff ’s family does not mean we should expect every invasion of the
castle to be treated the same way.
In Trevor Nunn’s TV movie, both Lady Macduff and her son wear
white. She wears a crucifix, and the sound of bells can be heard, so we get the
impression that she might be in a convent, not in her castle. The black robe of
Rosse contrasts with the white clothes of Lady Macbeth and her son. As this
production, like its stage predecessor, only cut ten percent of the lines in the
playtext, the scene remains quite wordy. The dialogue between Rosse and the
Lady in the beginning of the scene, for one, is intact. While the boy cleans a
sword, perhaps unknowingly getting ready to fight, the two adults talk about
Macduff ’s leaving Scotland. Rosse seems concerned, whereas the Lady looks
conformed, albeit sad. He starts the speech “But cruel are the times when we
are traitors / And do not know ourselves” (18-21) almost as an aside, with
great feeling, and the Lady touches his arm in a sympathetic move as he
finishes.
When Rosse says that, if he stays, “It would be my disgrace and your
discomfort” (28), the Riverside edition of the playtext explains that it means
“I should weep”. This is not the way I read it, and it is not how it is played in
Nunn’s production. I understand Rosse’s line as an indication that Lady Macduff
may say more awful things about her husband, and later on she might regret
having said them. Ian McDiarmid’s acting favors this interpretation, for he
looks ashamed, rather than about to weep, after the Lady tells him her boy is
fatherless. McDiarmid opens his arms when he says “I am so much a fool,
should I stay longer,” and then leaves abruptly. John Barton observes that a
short line like “I take my leave at once” (29) usually represents a pause, and
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the actor needs to choose between pausing before or after delivering it (1984,
p. 31). McDiarmid chooses to break it in the middle, after “I take my leave,”
giving it a larger sense of urgency.
Rosse, as interpreted by Ian McDiarmid, indeed does not know
himself. We could see him less as a traitor than as a typical politician, who
changes sides according to the tide. Ian McKellen comments in an interview
included in the DVD of Macbeth that when the prime minister of Britain,
Ryan Wilson, saw a performance in 1976, he said that the most familiar
character in it was Rosse, who takes advantage of political situations. Rosse is
a character that, even more than others, will have to be shaped by the actor.
A. C. Bradley points out that all the characters in the play except Macbeth and
his Lady are sketches, not individualized, and interchangeable (1989, p. 326).
For Harold Bloom “[t]he drunken porter, Macduff ’s little son, and Lady
Macduff are more vivid in their brief appearances than are all the secondary
males in the play, who are wrapped in a common grayness” (1998, p. 517).
Harry Berger Jr. admits that Rosse, “in spite of his predominance, remains
essentially a choric figure, the voice of the thanes” (1997, p. 87). It is important
to note that the thanes in this production do not look fit to fight. They are
politicians rather than warriors, polite rather than practical men of action, as
emphasized by Kliman (1995, p. 106). Thus, in Nunn’s production both Rosse
and later in the scene another thane, Angus, are decorous enough to be worried
about Lady Macduff ’s fate, but, of course, not brave enough to hang around
to defend her as danger approaches (McDiarmid even grimaces when he
pronounces the word fear on line 5).
In Polanski’s film, on the other hand, Scotland is such a corrupt
society that the thanes seem more than physically strong and war-like—they
are murderers themselves. Rosse is the best example. In this movie in which
forty percent of Shakespeare’s lines are cut (ROTHWELL, 1983, p. 50), after
all the alterations Rosse becomes the most abominable of characters, even
more abominable, perhaps, than Macbeth himself. Here Rosse helps to defeat
Cawdor, supports Macbeth, not only supervises but takes part in Banquo’s
murder (he becomes the mysterious third murderer), disposes of the two
murderers, bribes a servant to open the gates to Macduff ’s castle, then betrays
Macbeth because the king prefers Seyton, informs Macduff, pretending to be
upset about something he himself has caused, and finally removes the crown
from Macbeth’s severed head and gives it to Malcolm. As Rothwell puts it,
John Stride’s Rosse “is the quintessence of the smirking sociopath” (1983, p.
52), an “embodiment of evil” as significant as Iago, Edmund, and Aaron, the
Moor (p. 54). Kliman, however, does not see Rosse as a Iago because the
184
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
thane is ticked by ambition, not by mere evil (1995, p. 127).
In the 1971 film, scene 2 in Act 4 starts with children playing in the
courtyard of Macduff ’s castle. Rosse and the Lady, with her arms crossed,
have a quick conversation. When the Lady mentions that even “the poor
wren” would defend her offspring against the owl (lines 9-11), she points with
her head to the kids playing off-camera, referring to them as “her young
ones.” Rosse looks in that direction and smiles. Little does the Lady know that
the owl stands right in front of her. The saddest point is that she trusts Rosse:
he is her cousin, and when he lists Macduff ’s qualities (15-17) she nods,
agreeing with him. Naturally, lines 18-21, which mention treason and knowing
traitors, are omitted, for this Rosse knows himself very well, and does not
necessarily see the times as cruel. A cynical traitor, he hugs and kisses the
Lady and her son, and mounts his horse preparing to leave. While Lady and
son are seen holding hands entering the castle, we follow Rosse gesturing to
the gatekeeper to leave the gate open. The murderers arrive just as he turns
his back, but it is certain that he sees them coming up the trail and vice-versa.
In Reilly’s Men of Respect, there are no Rosse or messengers. In fact,
this might be the scene in the film which departs most vividly from the play’s
plot, for Macduff is still in his castle, so to speak. That is, Macbeth is not so
cruel and merciless as to order the killing of women and children; his objective
is to kill Macduff, and the murder of the rest of the family is a mere side
effect. Besides, the means he employs, as we shall see later, sound less savage
than the invasion Macbeth promotes in Shakespeare’s playtext (and much less
savage than how this invasion is portrayed in the two other films). In Men of
Respect a little boy plays with cards in front of his house. Two suspiciouslooking men appear, asking him where his dad is. At this point we still do not
know who those men are or what their intentions are. They may well be
looking for Macduff (in the film called Duffy) in order to kill him. The boy
goes inside and tells his father, who is shaving, about the men. Duffy asks
them to wait in the kitchen, and the boy inquires whether it is necessary for
them to go to the zoo with two bodyguards. Duffy tries to fool him into
thinking that the men are coming along just for fun, but the boy outsmarts
him, as we can see in his line “You expect me to believe that?”, which is as
spunky as the lines Macduff ’s boy says. Duffy looks at him in admiration
while Mrs. Duffy comes down and does not seem very happy, as her body
language shows (she puts her hands in her pocket) when she becomes aware
that their zoo visit would not be private.
In the playtext, the second part of scene 2 starts when Rosse leaves,
and it involves a conversation between Lady Macduff and her son, in which
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
185
she tells him his father is dead, and he negates it. The boy’s lines provide a bit
of comic relief in a moment filled with horror, because we know what is
going to happen, since we have heard Macbeth’s command to invade the
castle and “give to th’edge of th’sword / [Macduff ’s] wife, his babes, and all
the unfortunate souls / That trace him in his line” (4.1.151-3). For Bradley,
the boy “is perhaps the only person in the tragedy who provokes a smile”
(1989, p. 333). He is witty—maybe too witty for his age—as he beats his
mother at every turn. All she can do is call him “poor bird” and “poor monkey.”
In Nunn’s film there is no laughter between mother and son during
this chat, only sad, shy smiles. The Lady tries to embrace her child as she tells
him about his father, but he disentangles himself, for he does not want to hear
his mother foretelling Macduff ’s death or calling him a traitor. About twelve
lines are cut here, but the scene is still long, interrupted only by the arrival of
a nervous messenger, who is none other than a thane, Angus. As soon as he
appears, the Lady immediately stands up and hides the boy behind her, proving
that she, unlike Macduff, has “the natural touch” of what it means to be a
mother (9). Meanwhile, the little boy gets his sword, in an instinctive act of
protection. The Lady is scared, but the boy acts “like a man,” one of the
themes in Macbeth, and remains brave and fearless. Since the messenger is a
thane whom Lady Macduff probably knows well, his first lines, “I am not to
you known” (65-6), are cut out. After the thane delivers the line “Which is too
nigh your person” (72), the three of them hear a noise. The thane-acting-asmessenger’s reaction is to flee on the spot. The frightened Lady asks “Whither
should I fly?” looking in his direction, but he is already gone. Holding her son,
she becomes resolute when she says, “But I remember now” (74). The rest of
her lines, until the murderers appear, are said almost as an aside, since the boy
shows no reaction at all. This might work on stage, but on TV it seems a bit
strange for mother and son to be so calm and passive knowing that the
murderers are already inside the castle. Or maybe the actor playing the boy is
unconvincing, but something does ring false in this part of the scene.
In Polanki’s film seventeen lines of the dialogue between mother and
son are cut, and the whole messenger role and Lady Macduff ’s subsequent
speech are left out. However, somehow the messenger is present, for we can
observe in the background two hoodwinged falcons that act as messenger
birds. In any case, the Lady and child remain unwarned of the danger. But we
do not: not only do we have the feeling that we have watched Macbeth’s
order, Rosse’s bribe, and the murderers coming in, but now we start hearing
off-screen screaming as early as the boy asks “What is a traitor?” The terrified
screams continue throughout, though it takes a while for the characters to
186
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
hear them. When they hear the shouting, they stop talking, so the Lady’s last
line to her son, here, is “God help thee, poor monkey.” Polanski’s and Kenneth
Tynan’s (the famous critic, and scriptwriter of the film) decision to heavily
edit the lines makes sense: after all, who would pay any attention to them with
all the yelling in the background?
While this shouting is going on, however, and while mother and son
talk, Lady Macduff is very active. She never stops: she collects some clothes
lying on the floor, hangs them up, pours water for her son’s bath, makes the
bed etc. The boy is taking a bath, nude, obviously, standing erect inside a
wooden tub. Now, too much has been made of Polanski’s film being a Playboy
production. Purist critics obsess with Lady Macbeth’s nakedness in her
sleepwalking scene, and very sexist critics call the naked witches an image so
horrifying as the blood in the playtext (PEARLMAN, 1994, p. 254). Even the
naked boy being bathed by his mother is considered a gift for pederast voyeurs
(ROTHWELL, 1983, p. 50). The real question is not whether these scenes
would be present if it were not a Playboy production, but whether scholars
would obsess over them if the Playboy label did not appear in the film, for
these scenes are far from sexy. I prefer Bruna Gushurst’s explanation that
nudity in this movie is used to make the characters more vulnerable (qtd. in
KLIMAN, 1995, p. 139), rather than a gift for voyeurs. I mean, one has to be
a very sick voyeur to gain sexual gratification out of a bloody production like
Polanski’s Macbeth.
Though we might be too absorbed by the off-screen shouting and by
the onscreen nudity to notice it, telling stage business happens during this
scene. For instance, the boy has a green ball with him while taking his bath,
and he throws it on the floor after his mother tells him his father is a traitor.
For Halio, stage business can illuminate “an aspect of the play that might
otherwise remain hidden or obscured” (2000, p. 65). We can see this when the
Lady answers the boy about how she will do without a husband with the
notorious line, “Why, I can buy me twenty at any market” (line 40), while she
pours water from a vessel. This, I think, is an attempt to balance the boy’s wit
by giving the mother some wit of her own. We can also see this in the sardonic
gesture she makes with her hand when she mentions that traitors must be
hanged, imitating hanging with her hands. Indeed, Polanski’s society is so full
of violence that even mothers play with their children about hanging men.
In Men of Respect, the context is different: the boy does not care to
find out if his father is a traitor, but if he is a wise man. His mother, Mrs.
Duffy, is much more supportive of her husband than any of the Lady
Macduffs in the two other films, probably because he is still at home, shaving,
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
187
and not off to England. She answers that “He’s your father and he loves you,
and that’s all you need to know.” The witty boy, smiling, replies that “It doesn’t
answer my question.” And she, straightening his shirt and telling him to behave,
shows that she, too, can be witty by making a pun, “You’re the only wise guy I
know.” This is as far as the conversation between mother and child goes, for
the camera reveals Duffy answering an unwanted phone call, and insisting to
“George,” the caller, that he is “out of it.”
The third and last part of scene ii only runs five lines (80-5) in the
playtext, but it is the most shocking part, visually speaking, for it is here that
the murderers come face to face with their victims. Lady Macduff expresses
her ultimate loyalty to her husband as she refuses to tell the murderers where
he is located, and answers instead, “I hope, in no place so unsanctified /
Where such as thou mayst find him” (81-2). When a murderer calls him a
traitor, the boy reacts in some way not specified by stage directions, only
accusing the murderer of being a liar and a villain. The murderer says, “What,
you egg!” and stabs him. According to the directions, the little boy dies on
stage, not before urging his mother to run away.
I have to admit that, whenever I read the play, I see the stage direction
related to young Macduff ’s death the same way I see the one regarding Iras in
Act 5, scene 2 in Antony and Cleopatra: with some suspicion. How do they die
so fast? Not that I have seen many people die in front of me to know how
long it takes, but in films, where all my forensics knowledge comes from, it
usually takes a while. Thus, I consider these deaths a crux that directors staging
performances have to deal with. But some scholars, like David Worster in his
fascinating article “Performance Options and Pedagogy: Macbeth,” reason that
we should read stage directions in Shakespeare’s plays as mere editorial choices,
without making the mistake of seeing them as “‘intended’ or ‘natural’ or
‘obvious’ or even just the ‘best’” (2002, p. 368). So, does the boy die onstage?
If so, what happens to the body? Is it left onstage? Does Lady Macduff run
away carrying it with her? E. A. J. Honigmann argues that the child’s actual
dying happens offstage, and that Shakespeare does so in order to prevent our
hatred of Macbeth too soon. According to him, the first death onstage only
occurs in 5.7.11 (1976, p. 137-8), Siward’s murder. Of course, we have to
ponder whether it makes a difference if young Macduff is simply slain, and
then crawls off to die offstage, or if he immediately dies onstage because he
is mortally wounded. Is the first option less violent. Is the first option any less
violent than the second? How the three films deal with this crucial moment of
the playtext provides an interesting analysis.
In Nunn’s movie, two of the murderers appear with stocking masks
188
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
covering their faces, creating a terrifying effect. The camera shows Lady
Macduff moving back a few steps, protecting her son, trying to escape the
first murderer, only to notice that there is another murderer behind them
(Kliman points out that he is played by the same actor who plays Macduff in
the film, Bob Peck, implying that he is guilty for having left his family. But we
cannot really see his face because of the mask). When she tries to move away,
a third assassin appears: this time it is Seyton, without any disguise. He also
accuses Macduff of treason. The boy says, “Thou liest, thou shag-ear’d villain!”,
which causes the first murderer to hold him in his lap and shake him up and
down with his dagger. This scene, albeit abhorrent, does not work very well
because, frankly, the boy appears to be dead even before he is actually killed.
His way of saying “He has kill’d me, mother: / Run away, I pray you!”, very
slowly and broken, before falling onto the floor, can hardly be considered
good acting. Lady Macduff kneels down, touches the bloody boy, and cries
“Murder!” four times. We do not see who holds her arms, who covers her
mouth, or who cuts her throat, for the camera is focused on her. When they
take hold of her, she stretches out both her arms, suggesting a crucifix, and
her throat is cut onscreen, while men deny her even the right to scream.
All the three films use the cinematic technique of dissolving to cut
this scene and go on to the next one. That is, one image is gradually juxtaposed
by another, and the two frames simultaneously appear onscreen for a couple
of seconds. But each film shows an altogether different character and has
diverse purposes in their dissolves, as we shall soon see. In Nunn’s dissolve,
for instance, while we watch Lady Macduff dying, the next scene already
shows Macduff in a full shot, looking very concerned.
Polanski has affirmed that the violence inflicted on the Macduff
castle mimics the Nazi invasion his own house suffered during World War II
(PEARLMAN, 1994, p. 253), but echoes of his wife Sharon Tate’s murder by
Charles Manson are also present, especially in the third part of scene ii, when
Lady Macduff leaves her room as she finally hears the shouting. She sees a
smiling man coming up the stairs and goes back to the room, trying to protect
her child. The man goes in too, followed by another murderer. The first man
picks up with his sword the vessel she used for preparing the bath of her
child, and smashes it on the floor. He slowly moves to the other side of the
room, stopping to look at the messenger birds, and then analyzing the objects
on the mantle over the fireplace. Rothwell believes “[t]he film offers no more
chilling shot than the spectacle of Ian Hogg […] as First Thane contemptuously
sweeping the ornaments off the terrified Lady Macduff ’s mantle” (1983, p.
54). This whole part has no dialogue. The thane finally breaks the silence with
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
189
the question “Where is your husband?” Lady Macduff is still proud and fearless
as she answers him. The second murderer, who has not moved over to the
other side of the room, stands by the door, so now the Lady and her son are
trapped. The second murderer laughs at the Lady’s response, and it is he who
accuses Macduff of treason. The camera cuts quickly from the man at the
fireplace throwing everything on the floor to the boy’s reaction, moving over
to the second murderer to kick and hit him. Now Lady Macduff is scared:
she does not even know where to look. The second murderer stabs the boy
on the back, at the same time saying “Young fry of treachery!” The boy then
goes slowly to his mother and informs her of his death, but does not tell her
to run away. When Lady Macduff sees the man’s dagger, she hugs the boy
and tries to scream. Then she observes the blood on her hands. As the first
man sits down on the bed that she had straightened, the second murderer
struggles with her, taking the boy from her grasp, throwing him on the floor
and grabbing her. All the gestures here indicate she will be raped—the first
man laughs and apparently waits for his turn on the bed, the second murderer
tries to subdue her. She somehow manages to hurt his eye, open the door, and
run out. In the corridor she sees, and so do we, two soldiers holding a screaming
woman to the floor, while another rapes her. The Lady goes to the first door,
unnoticed by the soldiers, and sees two corpses of children covered in blood.
The camera moves to a nearby room which is burning, tragic music begins,
and in the midst of the flames we glimpse a cross before the fire consumes
everything.
The dissolve in this film involves a doctor, watching through a
diamond-shaped window. We are back to Macbeth’s castle, as if it were possible
to spy on Macduff ’s castle from there, as if the doctor were watching what
happened to Lady Macduff. Now the sleepwalking scene starts. By changing
the order of the scenes (what comes after the family massacre in the playtext
is the long and unanimously panned scene between Macduff and Malcolm),
Polanski reinforces the bond between the two ladies. This bond has already
been established in the framing of the castles’ gates, when in the beginning of
the film Lady Macbeth receives a letter from her husband. The two ladies,
after all, have something in common: both will suffer horrible deaths.
In Reilly’s film, Mrs. Duffy’s and her son’s deaths are much more
impersonal, almost accidental. When Duffy’s conversation over the phone
starts taking too long, the movie cuts to his wife and child waiting impatiently
in the car. As the boy, sitting on the driver’s seat, plays by the window, she
complains, “Your father doesn’t know how to take a day off.” Finally, Mrs.
Duffy sighs and instructs her son to move over. They exchange seats, she
190
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
turns on the engine, and the camera cuts to the house, where we see Duffy
saying, “I’m hanging up.” A huge explosion happens within the house and the
men fall onto the floor. Duffy is the first to stand up, and he cries “Oh Jesus,
no!” as he rushes out. While we hear indistinct cries of Duffy from the outside
and the noise of a phone off the hook, the camera pans over the debris on
the floor, until it stops at a shattered family picture. It is unnecessary to spell
out what has happened to Duffy’s wife and son because the camera has already
done so for us. But the dissolve in this film is the cleverest: as the image of
the family portrait begins to fade, the image of Macbeth/Battaglia staring
upfront starts to appear. The camera thus literally frames him! This is a relevant
touch because we have not seen Battaglia’s ordering the murder, only the
witches/fortunetellers advising him to be aware of Duffy.
Even though the idea of a wife starting a car that explodes and being
killed instead of her husband is a bit too reminiscent of the patron of all
gangster movies, The Godfather (not to mention that Battaglia and Don Corleone
share the same first name, Michael, or that one of Duffy’s bodyguards uses a
beret, which is what everyone seems to wear in Corleone’s Sicily), the film still
presents smart links to other sections of this production. For instance, Duffy’s
child plays with cards, and now Battaglia and his henchmen do the same thing.
In the following scene, when Lady Macbeth/Ruthie will appear to be obsessed
over dirty linen, Battaglia asks her, “Is this necessary?”, which is an echo of
the boy’s question to Duffy. The repetition of this line makes us think of the
futility of the death of Macduff ’s family. Are their deaths truly necessary to
Macbeth? There is no point to them: they only seem to make Macduff, who
was “out of it,” want to seek vengeance against Macbeth.
We can see how three different films deal with the cruxes in this
bloodbath that is Act 4, scene 2, in three different ways, showing that there is
no “correct” or “appropriate” manner to shoot (or stage) a Shakespearean
play. Even the three interruptions of the same scene, all using the cinematic
technique of the dissolve, are completely distinct: one privileges a victim,
Macduff. Another dissolve privileges a doctor who is at Macbeth’s castle,
implying that in Polanski’s warrior society everyone is guilty. Yet another dissolve
privileges the literal framing of Macbeth as the only guilty subject. In a playtext
that has little or no stage directions, each director, screenwriter and actor is
free to stage the action the way they find fit. And even if the playtext were full
of directions, thinking that we can be able to predict exactly what Shakespeare
had “intended” is naïve at best. After all, Shakespeare died almost four centuries
ago. If his plays still live, and Macbeth is very much alive, it is because of the
people who translate and adapt them to the stage and screen.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
191
Nota
1
O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil.
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192
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Artigo recebido em 03 de fevereiro de 2009.
Artigo aceito em 23 de junho de 2009.
Dolores Aronovich Aguero
Doutora e mestre em Letras / Inglês e Literatura Correspondente pela Universidade
Federal de Santa Catarina.
Professora Adjunta da Universidade Federal do Ceará.
Membro do Centro de Estudos Shakespearianos (CESh).
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
BLOODY HEATH AND BLOODY CHAMBERS
IN MACBETH, BY ROMAN POLANSKI
Brunilda T. Reichmann
[email protected]
ABSTRACT: This reading of the film
Macbeth, by Roman Polanski, is focused
on interpolations introduced by the film
director in his adapted version of the
homonymous play by Shakespeare. We
have selected three scenes in Polanski’
film that extrapolate the dramatic text:
the prologue, or incipit, in which the
witches perform their charms; the
showing of King Duncan’s assassination
which is only reported in Shakespeare;
and the visit to the witches’ den by
Donalbain, the younger brother of
Malcolm – the legitimate heir to the
throne and king of Scotland at the end
of the play and of the film. The conclusion
reached is that the interpolation of the three
scenes intensifies the dramaticity of the
film, amplifies the questioning about
human nature and destiny, and updates
the rich subtext that the playwright
inscribes in his text when he adapts
historical sources to criticize the violence
of his time.
RESUMO: Esta leitura do filme Macbeth,
de Roman Polanski, concentra-se em
interpolações introduzidas pelo cineasta
em sua adaptação da peça homônima de
Shakespeare. Escolhemos três momentos
do filme de Polanski que extrapolam o
texto dramático: o prólogo ou incipit, no
qual as bruxas realizam seus encantos; a
visualização do assassinato do Rei
Duncan, um episódio que é apenas
narrado em Shakespeare; e a visita à
caverna das bruxas por Donalbain, irmão
mais novo de Malcolm – herdeiro
legítimo do trono e rei da Escócia no final
da peça e do filme. Chega-se à conclusão
que a interpolação das três cenas
intensifica a dramaticidade do filme,
amplia o questionamento sobre a
natureza e o destino humanos e atualiza
o rico subtexto que o dramaturgo
inscreve em seu texto ao adaptar as fontes
históricas para fazer uma crítica à violência
de seu tempo.
KEY WORDS: Adaptation. Drama. Cinema. Macbeth. Shakespeare. Polanski.
PALAVRAS-CHAVE: Adaptação. Drama. Cinema. Macbeth. Shakespeare. Polanski.
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Introduction
Many of Shakespeare’s plays are marked by an unusual beginning;
two of the most memorable are the tragedies Hamlet, with the apparition of
the ghost of the murdered king, and Macbeth, with the scene of the witches on
the heath. With the objective of capturing and maintaining the attention of
the spectators, the playwright is aware of the impact of these scenes – once
captured by the unusual the battle for the audience is won. The same happens
with the spectators of the film Macbeth by Roman Polanski, an adaptation of
one of the bloodiest of Shakespeare’s plays, whose attention is caught by an
impressive sky and earth bathed in bloody red, preparing the scene for the
entry of the witches.
In Macbeth, by Shakespeare, there are three scenes related to the
activities and predictions of the witches. In the opening scene (I.1), they plan
to meet Macbeth on the heath. In the third scene of the same act, they
prophesy about the destiny of Macbeth and Banquo, generals in the army of
King Duncan, of Scotland. And, in the first scene of the fourth act, Macbeth
seeks answers to his questions after being crowned King of Scotland, the title
given to him after the murder of King Duncan and the escape of the latter’s
sons, Malcolm and Donalbain (IV.1).
In the second apparition, the witches make predictions about the
future of Macbeth without anyone having asked them anything. On announcing
that Macbeth will be king, they resurface a former desire of the general,
which becomes apparent when he himself confesses his hubris1, in his first
soliloquy, i.e., the idea of the murder that was already troubling his spirit.
Banquo, in turn, on questioning about his future, receives the news that he will
not be king, but he will be the father of a powerful dynasty, a prognostic
which later poses a threat to Macbeth, who has no heirs. For this reason, in the
third apparition, fearful of the prophecy about the descendants of Banquo,
Macbeth questions the witches to obtain more information about his
government and the threats to his permanence in power. After this third
scene, the witches, having fulfilled their role as prophetesses whose voices
also carry in them the ambiguity of a nemesis2, do not appear again. In the film,
a fourth participation of the witches is suggested at the end.
The murder of Duncan, the inciting incident of the action of
Shakespeare’s tragedy, creates an atmosphere of intense tension and becomes
one of the moments of great impact in the play. However, the readers of
Shakespeare’s play only feel the hesitation and pain associated with the feelings
expressed by Macbeth, allied to the ambition of the protagonist and of Lady
196
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Macbeth, because the murder happens off-scene. The spectators fear for the
life of the king before the murder is committed and are sorry to hear that the
act was in fact consumed. However, despite the rich subtext that reveals the
crime of Macbeth, the contemporary spectator, accustomed to the esthetics
of violence and the visual discourse, may even feel pleasure in seeing the
villainy and brutality with which such acts are perpetrated. Roman Polanski
shows us the murder, so we are aware, not only of the immorality of the act,
but of the bloody and violent nature of Macbeth’s action. The third
interpolation once again involves the scene of the witches, when Donalbain,
at the end of the film, under the impact of a storm, enters the cave of the
“weird sisters”.
Polanski’s interpolations
The process of adaptation of plays and romances to the screen has
been addressed by various theorists of literature and cinema. The question of
being faithful to the source text, which constituted a pattern for studies on
adaptation, is no longer relevant and has given way to the issue of intertextuality
which is established between the source and target texts, on a double exchange
basis, in this case the Shakespearean text conducts Polanski’s adaptation and
the film interferes in the reading of the playwright’s play. Robert Stam in Film
Theory: An Introduction (Introdução à teoria do cinema, 2003) affirms that the
most recent discussions about cinematographic adaptations of novels have
moved from a moralist discourse about fidelity or betrayal to a less appraising
discourse on intertextuality. He adds that adaptations are fulfilled in the midst
of a continuous whirlpool of intertextual transformation, of texts generating
other texts in an infinite process of recycling, transformation, and
transmutation.
Furthermore, the awareness of the critical reading of the film requires
a language or an appropriate lexicon reinforcing the idea that cinema is not a
secondary art, but is only second to the chronology of creation, this is when
films are the adaptation of literary or non-literary texts. Shakespeare’s readers
will not forget, in the eyes of memory, scenes from the film Macbeth (1971),
by Polanski, on opening the pages of Shakespeare’s play. And, some of these
scenes will take top priority in retrospect: the scenes of the witches, through
the appeal to elements that cause estrangement and discomfort in the spectator;
the murder of king Duncan, through the outright violence seen by the spectator
and by suggesting that nothing changes in human nature and its inclination
towards evil when in the last scene of the film, Donalbain enters the witches’ cave.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
197
The interpolations created by Polanski present distinct characteristics,
in their execution, in relation to Shakespeare’s play. In the first, the scene of
the witches in the moorland, the film director uses, in general lines, the
indications of the source text and includes information of imagery not contained
in the play, eliminating the dependence on the reader’s imagination that is
paramount in Shakespeare’s play, allowing the spectator to visualize the scene.
In the second, the murder of King Duncan, Polanski uses information only
reported or suggested in the playtext, transforming several hints into action
to let the spectator experience the horror of the scene viscerally. In the third,
the film director creates a scene that is not present in the play and, in doing so,
inserts even more incisive “comments” about the propensity of evil in human
nature, an issue that is foregrounded in the tragedies of the English playwright.
In Shakespeare, the introductory scene of the witches on the heath
(I.1.1-13) has thirteen lines. The enigmatic words of the last two lines, uttered
in unison by the hags, convey the main theme of inversion of values in
Macbeth: “Fair is foul and foul is fair / Hover through the fog and filthy air”.3
In Polanski, the scene begins with a bloody sky, reflected by the humidity in
the moorland. The red shades gradually give way to grey shades and spectators
see the crooked tip of a branch, coming on screen from the left hand side.
The branch is being used as a walking stick by one of the three witches. The
crooked branch can be interpreted as a crooked phallus, suggesting the idea
that a valuable general and subject to the king – Macbeth – could become an
insensitive criminal. With the tip, the witch draws a circle in the moist earth
and all three of them crouch down and start digging a hole in the ground with
their hands. Line 12 of Act I, scene 1, in Shakespeare’s play is the first speech
of the witch carrying the walking stick, apparently the eldest, the most flimsy
and leader of the group: “Fair is foul, foul is fair” (translated strangely in the
subtitles as “The sound of trumpets”), recontextualizing the tragic emphasis
of the playtext. After digging the hole, while the other words of Act I, scene
1, are being pronounced, the witches put into it first a hangman’s noose, then
they unwrap a hand, with a part of the forearm (possibly of the strangled
duke of Cawdor, the traitor whose place Macbeth occupies, literal and
metaphorically) and place it onto the noose with the palm turned upwards,
they arrange a dagger between the index finger and the palm of the hand.
They throw upon these “elements” some small objects and soon after they
cover them with earth. After burying the hangman’s noose, the hand and the
dagger, they cover the hole and pour blood on the earth. All the objects
buried in the moist soil relate to violence and death; both these issues, that
pervade Shakespeare’s tragedy throughout, are enhanced in the film. Polanski
198
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
includes a few more deaths than those occurring in Shakespeare’s play: the
murderers of Banquo are also murdered, forming part of the sequence of
deaths, establishing a narrative where you can read the following message:
deaths call for other deaths in an unending continuum. On covering up the hole
where the objects of their charms have been placed, they seem to restore
normality for a short period of time, until blood is poured out on the earth
which covers them, possibly suggesting the alternation of good and evil in the
history of humanity. In terms of time, we could say that violence and death
antecede the experience that is being presented at that time and result from it,
once again emphasizing the idea that they – violence and death – are part of
the giant wheel of existence.
The first interpolation opens the film as a prologue or incipit of the
film. The notion of the incipit is synthesized by João Manuel dos Santos Cunha,
in the article “Da palavra-imagem à imagem-palavra” (2007, p. 98 – “From
the image-word to word-image”), in which he addresses the concept of literary
prologue – or incipit – to the notion of paratext by Gerard Genette. He says:
In the framework of this theoretical articulation, initial sequences of a film
– even when information is given on “technical specifications” under the
form of “opening credits” – the first diegetic information is presented. The
opening of films, thus, can be read in the same way as a literary incipit, or
related to what Genette (1982, p. 150) calls a paratext: “[...] every type of
preliminal or postliminal convention, constituting itself as a discourse
producing the purpose of the text that follows or precedes the text itself ”
(my translation).4
According to André Gaudreault and Philippe Marion, in their article
“Transécriture and Narrative Mediatics: The Stakes of Intermediality”, when
the actor expresses himself, either in the case of creation or adaptation, he is
confronted with a resistance proceeding from the chosen media. According to
the authors “there is no verb that becomes flesh without conflict in the process
of incarnation itself ” (2004, p. 58). These critical concepts will be applied to
Shakespeare’s Macbeth, having as the source text the report of kings Macbeth
and Duncan included in the Holinshed Chronicles (1587), Shakespeare would be
the first writer to come to terms with the resistance or conflict in the process
of creation or materialization, to use the expression of the French authors, in
transposing a historical report to literature. The geniality of the playwright,
however, does not seem to reveal any trace of this resistance which the literary
text would suffer in dealing with the historical report. It is important not to
forget that, despite the peculiar characteristics of the historical report and of
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
199
the literary creation, both of them materialize through language, not needing,
therefore, a transposition from one media to another. The historical report is
elaborately and densely recontextualized in Shakespeare’s play.
With Polanski’s film adaptation, we are speaking of a recreation that
could find resistance offered by the materiality of the means of expression
selected. The fictional germination, another expression of the French theorists,
seems, however, to have found fertile ground also in the mind of Polanski
that, on confronting with the Shakespearean playtext, is not intimidated by it.
In the interpolations idealized by the film director, the means, i.e., the cinema,
offers the film director the possibilities of reading that the theatre, for example,
could inhibit. In the first interpolation, the immensity of the moorland, the
weight of the bloody sky, and human frailty, are not examples of deformation
arising from the transposition to another medium, but elements that aggregate
tragic density to the Shakespearean text, as well as the action of the witches in
burying objects related to death. Macbeth, by Polanski, seems to demonstrate
the strength of attraction that certain media have in relation to a certain
subject explored previously by another medium: the Shakespearean text flows
into the cinematic medium, without major losses, incorporating peculiar readings
and creations of the film director.
The second interpolation of Polanski does not differ in spirit from
the first one: the murder of King Duncan, shown in visual images softens
and/or thrills the heart of the most insensitive spectator, because besides
seeing what they only tried to imagine when reading Shakespeare’s play, and
have possibly never seen, the spectator cannot miss out on sharing with Macbeth
the great indecision that still troubles him, and the desire he has of returning
to his wife without having committed the act. However, it seems that, on
waking Macbeth and observing the dagger in his hand, Duncan seals his fate.
The close up scene, with the high-angle camera, of the king’s eyes, defines the
status of vulnerability of the man who is political and hierarchically above
Macbeth. Besides being king, Duncan is Macbeth’s cousin and guest. Next,
the monarch is stabbed several times in his chest and blood invades the screen
until the final blow, the insertion of the dagger into one of the king’s carotid
arteries, which makes blood spurt out everywhere. As it were the film Macbeth,
filmed in England, the country where Polanski became a refugee after the
violent murder of Sharon Tate, his wife, seven months pregnant, was the first
production of the film director. Just as the bloody murder of his wife invaded
his existence and had taken his still unborn child, Polanski puts on screen a
film in which he seems to reproduce scenes that have had a great impact on
his mind. The images of the rape and murder of the wife and sons of Macduff,
as well as the servants, can be read as the murder of his wife and child.
200
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Despite being the greatest encourager in the murder of the king and taking
care of the king’s guards’ daggers by “smearing them” with blood (“If he
[Duncan] do bleed I will gild the faces of the grooms withal; For it must seem
their guilt.” (II.2.56-58)), Lady Macbeth is not used to seeing a bloody scene
like this one, and the image of blood will remain with her for the rest of her
life. In an anthological scene, years later, while sleepwalking in a daze through
the castle and rubbing her hands together, she says:
Lady Macbeth: Out, damned spot! Out, I say! One: two: why, then ‘tis time
to do ‘t. Hell is murky. Fie my lord, fie! A soldier, and afeard? What
need we fear who knows it, when none can call our pow’r to accompt?
Yet who would have thought the old man to have had so much
blood in him? […] What, will these hands ne’er be clean? […] Here’s
the smell of the blood still. All the perfumes of Arabia will no
sweeten this little hand. Oh, oh, oh! (V.1.38-43, 46, 53-55, my
emphasis)
Concluding this idea of a sanguinary character in the play and film,
but not in the bloody images of the film, suggesting the bloody reign of
Macbeth, it is important to remember that the crown is placed on Malcolm’s
head, as soon as Macbeth is beheaded, still stained with the blood of the
murderous monarch. The words of Caroline Spurgeon, in her book Shakespeare’s
Imagery (1961, p. 334), offer a comment on the bloody imagery of the film:
The feeling of fear, horror and pain is increased by the constant and the
recurrent images of blood; these are very marked, and have been noticed by
others, especially by Bradley, the most terrible being Macbeth´s description
of himself wading in a river of blood, while the most stirring to the
imagination, perhaps in the whole Shakespeare, is the picture of him gazing,
rigid with horror, at his own blood-stained hand and watching it dye the
whole green ocean red.
The third interpolation of Polanski validates Shakespeare’s vision of
human nature, expressed by Hamlet in dialogue with Rosencrantz and
Guildenstern: “What a piece of work is man – how noble in reason; how
infinite in faculties, in form and moving; how express and admirable in action;
how kike an angel in apprehension; how like a god; the beauty of the world;
the paragon of animals. And yet to me what is this quintessence of dust?”
(II.2.259-274). The final scene of Donalbain entering the witches’ cave,
however, does not catch us by surprise. There are two warnings in the film
about the nature of Donalbain’s second son. The first establishes the association
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
201
of imagery with the crooked walking stick used by one of the witches.
Donalbain, King Duncan’s second son, is portrayed with a disability in one of
his legs, a defect that could lead the spectator into expecting a failure of
character in the king’s youngest son. The second occurs in the scene at the
beginning of the film, when the king announces that Malcolm is the Prince of
Cumberland, thus, announcing that the eldest son is his heir. Macbeth is not
the only one who looks disturbed. The camera closes in on Donalbain’s face
and his deeply jealous sideward glance at his brother leaves no doubt as to the
future of the dynasty. Malcolm will not have his brother as an ally, but as a
foe, maybe not as bold and courageous as Macbeth, Duncan’s general, had
been, but with similar inclinations.
On including this final scene, Polanski builds his film inside a circular
structure, closing the first circle – of the witches at the beginning and the
witches at the end – when Macduff ends the story of the horrible reign of
Macbeth having killed the Scottish sovereign. However, another circle begins
with Donalbain’s visit to the witches and reminds the spectators of the idea
that the presence of evil is recurrent and that his reign – the evil reign –, the
current one, will never end. Despite closing the circle another way, Shakespeare’s
play also suggests the closing of a circular structure on seeing Malcolm, as
soon as he is proclaimed king, compensating for the “love” of Macduff, just like
his father, at the beginning of the play, compensates for the “love” of Macbeth:
Macduff. [...] Hail , King of Scotland!
All.
Hail, King of Scotland!
Flourish
Malcolm. We shall not spend a large expense of time
Before we reckon with your several loves.
And make us even with you. My thanes and kinsmen,
Henceforth be earls, the first that ever Scotland
In such an horror named. What’s more to do.
Which would be planted newly with the time –
As calling home our exiled friends abroad
That fled the snares of watchful tyranny,
Producing forth the cruel ministers
Of this dead butcher and his fiendlike queen,
Who as ‘tis thought, by self and violent hands
Took off her life – this, and what needful else
That calls upon us, by the grace of Grace
We will perform in measure, time, and place:
202
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So thanks to all at once and to each one,
Whom we invited to see us crowned at Scone.
Flourish. Exeunt Omnes. (V.8.60-75)
Final considerations
The scene of Donalbain entering the witches’ cave can be read as an
epilogue in Polanski’s film, but the diegesis concludes before this, because the
battle for the legitimate heir of Duncan to take what is rightfully his, thus
reestablishing the prosperity and “health” of the state, has already happened
and has thus concluded a cycle in the history of the kingdoms of Scotland.
However, I would like to raise a question concerning the adaptation
technique that could become a future theme for discussion. The cardinal
functions in Shakespeare’s play (McFARLANE, 1996) are maintained in
Polanski’s film, among which are the ambiguity of the witches’ prophecies, the
murder of Duncan, the coronation of Macbeth, the murder of Banquo, the
second visit to the witches, the murder of Macbeth, the proclamation of
Malcolm as king of Scotland. The recognition of these cardinal functions
bring a certain pleasure to the spectator who is also a reader of Shakespeare.
The pleasure of recognition might give the impression of favoring the discourse
of fidelity which is currently rejected, instead of privileging the adaptation
process. Maybe we should seek a mixture of fidelity and creativity in the
media’s reincarnation of literary pieces, steering well away from notions, such
as receptivity, conflict and resistance, laws of attraction or of gravity, and
becoming silent in face of the creative energy that exceeds any attempt of
theorization.
Notes
1
Hubris: In Greek tragedy, the pride, the arrogance of the hero, responsible for his/her
downfall.
2
Nemesis: The wrath of the gods provoked by hubris.
3
All the references and citations of Macbeth are from The Signet Classic Shakespeare,
included in the bibliography.
4
Original in Portuguese: “No quadro dessa articulação teórica, sequências iniciais de
um filme – mesmo enquanto são passadas as informações sobre a ‘ficha técnica’ sob
a forma de ‘apresentação de créditos’ – apresentam já as primeiras informações diegéticas.
A abertura de filmes, assim, pode ser lida nos mesmos termos de um incipit literário,
ou ao que Genette (1982, p. 150) denomina paratexto: ‘[...]toda espécie de pré ou
pós-liminar, constituindo-se como um discurso produzido a propósito do texto
que segue ou que precede o texto propriamente dito’.”
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203
REFERENCES
CUNHA, João Manuel dos Santos, “Da palavra-imagem à imagem-palavra: análise
do incipit fílmico de Lavoura arcaica”. Revista Brasileira de Literatura Comparada, N. 10,
2007, p. 95-125.
GAUDREAULT, André & MARION, Philippe. “Transéscriture and Narrativa
Mediatics: The Stakes of Intermidiality”. In STAM, Robert & RAENGO, Alessandra.
A Companion to Literature and Film. London: Blackwell, 2004.
MCFARLANE, Brian. Novel do Film: An Introduction to the Theory of Adaptation.
New York: Oxford, 1996.
POLANSKI, Roman. Macbeth. Columbia Pictures, 1971.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad. Anna Amélia de Queiroz Carneiro de
Mendonça. Rio de Janeiro: Lacerda, 2004.
________. The Tragedy of Macbeth. The Signet Classic Shakespeare. New York:New
American Library, 1963.
________. Hamlet. Eds. Ann Thompson and Neil Taylor. The Arden Shakespeare.
London: Thomson Learning, 2006.
SPURGEON, Caroline. Shakespeare´s Imagery and What it Tells us. London: Cambridge
University Press, 1961.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003.
Artigo recebido em 15 de abril de 2009.
Artigo aceito em 11 de agosto de 2009.
Brunilda T. Reichmann
PhD em Literaturas de Língua Inglesa pela Nebraska University em Lincoln.
Professora Titular de Literatura Inglesa e Norte-Americana do Curso de Letras da
Uniandrade.
Editora da revista Scripta Uniandrade.
Professora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.
Professora Titular de Literaturas de Língua Inglesa da UFPR (aposentada).
204
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
MULHERES SEM PECADO:
DISCURSO MISÓGINO E A TRAGÉDIA
DO FEMININO EM OTELO, DE WILLIAM
SHAKESPEARE
Ana Claudia de Lemos Monteiro
[email protected]
Fernanda Teixeira de Medeiros
[email protected]
RESUMO. O objetivo do ensaio é discutir
a influência do discurso misógino no
destino trágico dos personagens
femininos em Otelo, de William
Shakespeare, como também propor que
a misoginia favorece o estabelecimento do
que decidimos chamar de “tragédia do
feminino”, isto é, um sacrifício da
feminilidade que não garante a sanidade
do mundo dos homens. A análise do
discurso misógino dentro da trama será
centrada no comportamento dos casais
Cássio e Bianca, Iago e Emília e, sobretudo,
Otelo e Desdêmona. Exploraremos a
representação feminina em Desdêmona,
Emília e Bianca, bem como seu impacto
no imaginário masculino, para
construirmos nosso argumento sobre
como e porque a misoginia viabiliza a
extirpação do feminino nesta trama
shakespeariana.
ABSTRACT. This essay intends to discuss
the influence of misogynist discourse in
the tragic fate of the female characters in
William Shakespeare’s Othello, as well as
suggest that misogyny favors what we
have decided to call “feminine tragedy”,
that is, a sacrifice of femininity that does
not guarantee sanity in the world of men.
The analysis of misogynist discourse will
be centered in the behavior of the main
couples in the play: Cassio and Bianca,
Iago and Emília and, above all, Othello
and Desdemona. We will explore
feminine representation in Desdemona,
Emilia and Bianca and their impact on
masculine imagination, so as to construct
our views about how and why misogyny
causes the destruction of femininity in
this Shakespearean story.
PALAVRAS-CHAVE: Misoginia. Sacrifício. Tragédia. Feminino.
KEY WORDS: Misogyny. Sacrifice. Tragedy. Feminine.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
205
Uma das visões mais impactantes da tragédia amorosa Otelo, de William
Shakespeare, é a cena em que o general Otelo, já transtornado pelo ciúme,
sufoca a esposa Desdêmona com um travesseiro, sobre a cama forrada com
os lençóis de núpcias do casal. A morte da principal personagem feminina da
trama denota simultaneamente a morte da inocência, virtude, sensibilidade,
tolerância e amor – qualidades que, segundo Carol Thomas Neely, seriam
atribuídas, no contexto da obra shakespeariana (principalmente nas comédias),
ao mundo das mulheres. No lugar dessas qualidades, edifica-se “um mundo
de homens”, competitivo, hostil, impenetrável ao poder feminino (1983, p.
215). A asfixia literal sofrida por Desdêmona nos parece o clímax de um
processo de sufocamento dos personagens femininos que se identifica desde
o início da trama, com as incursões misóginas no discurso do alferes Iago,
mentor intelectual do assassinato de Desdêmona ao convencer Otelo de sua
infidelidade. A degradação moral a que Desdêmona é submetida representa
uma visão da mulher típica da ideologia patriarcal, segundo a qual a morte da
traidora teria a função de punir os vícios inevitáveis da natureza feminina. No
entanto, o crime contra Desdêmona acelera a degeneração do comportamento
masculino – representado no declínio de Otelo e Iago – e a peça termina com
um “mundo dos homens” profundamente capenga e mergulhado em desgraça.
A imagem de Otelo sufocando Desdêmona pode se solidificar como a imagem
do triunfo do mundo masculino sobre o feminino; mas, ao mesmo tempo, é
um triunfo sem redenção.
O entendimento a que nos proporemos neste ensaio é que, no âmbito
da tragédia Otelo, o “mundo dos homens”, sustentado pelo discurso da misoginia,
desenvolve o que pretendemos chamar de “tragédia do feminino”, que é o
constrangimento sofrido pelos personagens femininos em função de um
estereótipo cultural criado para a mulher, causando seu desaparecimento, mas
não o fim do sofrimento. Em Otelo, o assassínio de Desdêmona contribui para
destruir a respeitabilidade de Otelo perante seus subordinados e os
representantes do Estado veneziano. A verdade sobre sua inocência termina
de desmoralizar o mouro que, atormentado, suicida-se. As “verdades” misóginas
do mundo masculino, no contexto deste drama, promovem o sufocamento da
feminilidade, mas, simultaneamente, constroem para a masculinidade uma
vitória frágil que antecipa uma auto-aniquilação. De maneira que, mais do que
homens e mulheres, são os preconceitos criados em sociedade que forjam
seus próprios monstros.
Em seu ensaio “Women and Men in Othello” (1983), Neely afirma
que existem neste drama shakespeariano formas extremas de idealização e
degradação do amor e da sexualidade, que levam a uma desintegração da
206
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
autoridade masculina, como também à perda do poder feminino sobre os
homens. O argumento de Neely é que, embora o discurso patriarcal priorize
a manutenção do poder masculino, a supressão total de um olhar feminino
desequilibra profundamente o modo de agir dos homens, tornando-os
suscetíveis ao exagero e, por conseguinte, ao desastre. De acordo com o ensaio,
o contexto trágico em Otelo se desenha a partir do conflito entre homens e
mulheres, que se apresenta na configuração de situações limite, ou seja, a
completa eliminação do poder feminino como regulador do comportamento
masculino, como consequência de uma completa idealização da mulher e de
sua contínua degradação na medida em que não corresponde ao idealizado. A
aproximação entre a desintegração da autoridade masculina e a perda do
poder feminino é, portanto, crucial para visualizarmos o processo de sufocamento
que as personagens femininas sofrem nesta tragédia shakespeariana.
Retornemos, então, à cena que consideramos a expressão da extirpação
do feminino em Otelo. Quando decide matar Desdêmona, Otelo oscila entre o
sentimento pela mulher e o que considera seu dever de macho:
É a causa, sim: a causa, minh’alma;
Não a nomeio entre as castas estrelas:
É a causa; mas sangue não derramo,
Nem mancho sua pele, alva de neve
E lisa como a glória do alabastro;
Porém tem de morrer, senão trai outros.
Apago a luz e, então, apago a luz:
Se eu a ti sufocar, oh flama ardente,
posso de novo restaurar-te a luz,
se me arrependo. Mas se a você apago,
Molde sagaz da natureza excelsa,
Desconheço calor de Prometeu
que a reacendesse; já colhida,
Não posso dar à rosa força viva;
Tem de secar; vou cheirá-la no galho (Beija-a).
Hálito quente assim quase convence
A justiça a trair-se uma vez mais:
Se ficar assim morta, vou matá-la,
E amá-la depois: mais uma, a última,
É o doce mais fatal; agora choro,
Mas é pranto cruel, dor celestial
Que golpeia o que ama; [...] (V, 2)1
Nessa passagem, Shakespeare constrói um entrelaçamento de conceitos
que demonstram a idealização complexa que o herói concebe para o feminino.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
207
O instrumento de redenção do amor, no contexto dessa tragédia, é a morte –
Otelo considera que seu amor por Desdêmona só pode sobreviver se ele
matá-la, porque a traição transforma a vida da esposa em pecado e, portanto,
degradante para si mesma e para os homens que ela vier a trair. Ao considerar
a traição um padrão de comportamento de sua mulher, Otelo entende que é
seu “dever” eliminar a perversidade, disfarçada numa beleza que também o
arrebata. A atmosfera é menos de ódio que de suplício: Otelo beija a esposa
enquanto planeja sua morte. Neely afirma que a personalidade de Desdêmona
intriga Otelo desde o casamento, sobretudo no tocante às suas expectativas
sexuais, pois Desdêmona demonstra um furor erótico que parece fora do
lugar na idealização petrarquiana que Otelo faz da esposa. A “inspiração”
shakespeariana na construção de Desdêmona, de acordo com Neely, são as
heroínas das comédias; mas, no contexto trágico, a iniciativa feminina é
forçosamente deturpada na imaginação masculina, provocando degradação e
conflito:
Talvez ela [Desdêmona], como Rosalinda ou Viola ou as mulheres de Love’s
Labour’s Lost, pudesse ter equilibrado o idealismo de Otelo. Em vez disso,
o equilíbrio é transformado por Iago no seu oposto – desdém às mulheres,
desprezo pela sexualidade, pavor de ser traído, preferência pela morte literal
em vez da morte metafórica [isto é, o orgasmo]. A aceitação do adultério e
da sexualidade encontrada nas comédias [...] é impossível para Otelo. Ao
invés disso, ele usa as imagens petrarquianas contra Desdêmona – [...] –
louvando-a e amaldiçoando-a simultaneamente. Seus conflitos são
resolvidos, sua necessidade de idealizá-la e degradá-la momentaneamente
reconciliada apenas quando ele a mata, realizando um sacrifício que também
é um assassinato. (1983, p. 217)2
De fato, o cenário shakespeariano é providencial a uma cerimônia
de “sacrifício”: Otelo se aproxima da cama onde Desdêmona dorme sobre os
lençóis de núpcias do casal, carregando uma tocha acesa. A luz da tocha é
associada rapidamente com a vida de Desdêmona: “Apago a luz e, então,
apago a luz”. É interessante notar que Shakespeare confere ao discurso de
Otelo uma dubiedade proposital, exatamente para expor o sofrimento do
personagem: a conotação geralmente positiva da palavra luz se confunde com
a certeza do mouro de que Desdêmona é a luz que precisa ser apagada; é
também a rosa cuja “força viva” precisa ser extinta. A “força viva” de
Desdêmona pode ser seu entusiasmo, sua paixão, sua “flama ardente”, como
o próprio marido definia e que lhe causava “tanto contentamento quanto
espanto” (II, 2). Em contrapartida, Otelo enxerga Desdêmona como a musa
208
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
de um poema, uma “rosa” com uma pele “alva de neve”, que não merece ser
manchada de sangue.
Em suma, Desdêmona é idealizada por Otelo como um paradigma
de feminilidade: sedutora, suave, bela e sensível – como também, indigna de
crédito, perversa, pecadora. Um ser cuja aparência e essência se contradizem
naturalmente. E ainda amando-a, Otelo pondera que somente a morte da
esposa poderá apaziguar seu tormento: “É a causa sim, a causa, minh’alma”.
É preciso recordar aqui que, na concepção religiosa, o matrimônio realiza um
“compromisso de almas” que só deverá ser quebrado com a morte (DUBY,
1989). É significativo que Otelo, um mouro convertido ao cristianismo, invoque
sua alma como a causa de seu ato criminoso: porque naquele momento em
que se encontra casado com Desdêmona, sua alma e de sua mulher estão
“compromissadas”, isto é, unidas. Na doutrina cristã, marido e mulher formam
um único ser – portanto, os pecados de um degradam inevitavelmente o
outro. É para salvar sua alma da degeneração que Otelo “golpeia o que ama”
– porque considera que deixar-se levar pelo amor será nocivo a ele, como
homem.
A demonização do feminino, segundo Neely, é comum a todos os
personagens masculinos em Otelo. As personagens femininas são frequentemente
mal-interpretadas e, por conta disso, rechaçadas. Além de Desdêmona, Emília,
esposa de Iago e Bianca, amante de Cássio, são objeto de uma visão deturpada
e negativa de suas condutas. Iago afirma que Bianca é “uma rapariga que
vende seus desejos pra comprar pão e roupa” (IV, 1), mas na concepção
preconceituosa do alferes (como na de todos os personagens masculinos) a
prostituição de Bianca é uma falha moral e não uma necessidade; nem a
adoração que Bianca rende à Cássio a livra do rótulo de “rameira” – sustentado
inclusive pela esclarecida Emília, cuja objetividade e esperteza servem de
pretexto para constantes humilhações do próprio marido. O conflito apontado
por Neely como sendo central à tragédia de Otelo, isto é, masculino contra
feminino, encontra um lócus específico nos relacionamentos amorosos
(des)construídos ao longo da trama, real ou fantasiosamente: no ambiente
marital, sobretudo, observam-se os ápices deste conflito. A visão patriarcal da
mulher prevalece como parâmetro de idealização do feminino em todos os
personagens masculinos neste drama shakespeariano – e o “mundo dos
homens” de Otelo trabalha recorrentemente para impor essa visão às mulheres.
A representação da recorrência neste processo de sufocamento está, exatamente,
na profusão de conflitos relacionais entre homens e mulheres no
desenvolvimento da trama. Shakespeare reproduz nos casais o conflito
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
209
masculino-feminino: Otelo desconfia de Desdêmona; Iago despreza Emília;
Cássio desmoraliza Bianca.
O discurso da misoginia, portanto, surge como uma das formas de
internalização de ideologias patriarcais sobre a mulher e como principal veículo
da asfixia dos personagens femininos da trama de Shakespeare. Esse discurso
é encarnado mais explicitamente na fala sarcástica de Iago, que confia numa
espécie de consenso entre os homens sobre a natureza feminina para elaborar
suas intrigas contra Desdêmona e Otelo. Para Stephen Greenblatt, o poder de
Iago como construtor de verdades se baseia exatamente em sua capacidade
de “lidar mais com impossibilidades prováveis do que com possibilidades
improváveis” (1984, p. 234) – ou seja, Iago se utiliza de uma idéia geral dos
homens sobre o comportamento e o desejo femininos, para tornar plausível o
personagem lascivo engendrado para a esposa de Otelo. Por mais que o caso
de amor entre Otelo e Desdêmona não constitua um padrão de relacionamento
– já que fugiram para casar –, acaba sucumbindo ao padrão de pensamento
social por meio das insinuações de Iago, que funciona como porta-voz das
ideologias patriarcais acerca da mulher.
Desdêmona nos parece a vítima potencial, através da qual o
ressentimento contra o feminino é expiado. Iago a escolhe desde o início,
porque por meio dela alcança diretamente seu maior alvo, Otelo – e
indiretamente, os outros personagens femininos. Pelo olhar misógino de Iago,
Desdêmona se materializa primeiro como a filha desobediente e depois como
a esposa adúltera. Emília, dama de companhia de Desdêmona, sofre duplamente
com os efeitos da misoginia dentro do casamento: por um lado, Iago a acusa
insistentemente de tê-lo traído com Otelo e Cássio; por outro, assiste Otelo
acusar e maltratar sua amada por uma suspeita de infidelidade. A ingenuidade
e a absoluta retidão de Desdêmona contrastam simetricamente com a eloquência
agressiva e a visão realista de mundo da esposa de Iago – o que nos leva a
considerar que Shakespeare construiu em Emília o que, em termos estéticos,
chamaríamos de foil em inglês, um oposto exato para Desdêmona. A amizade
de Desdêmona e Emília se constrói a partir dessa oposição – as duas se
complementam, se admiram e, por isso mesmo, se unem de maneira que a
agressão sofrida por Desdêmona atinge Emília violentamente – ocasionando
sua defesa do desejo e do adultério femininos (IV, 1). Por outro lado, a invenção
de Iago sobre Desdêmona resvala também em Bianca, apaixonada por aquele
que seria o “amante”, Cássio – e que “substitui” a esposa de Otelo na conversa
em que Iago induz Cássio a relatar suas aventuras sexuais para o mouro ouvir
(IV.1). Cássio se refere à Bianca, mas Otelo pensa que ele está falando de
Desdêmona, tomando suas palavras por uma confissão de adultério.
210
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Desdêmona, Emília e Bianca, portanto, se revezam em personificar o pecado
feminino diante dos personagens masculinos. No imbricamento dramático de
Otelo, as personagens femininas se sobrepõem de tal forma no ideário dos
homens que maltratar uma delas afeta invariavelmente todas as demais.
Desdêmona é um personagem cuja natureza, com uma pequena
mudança de perspectiva, pode personificar a idéia masculina para o pecado
feminino. Sua honestidade, inocência e iniciativa a colocam numa posição de
extrema vulnerabilidade, porque justamente essas qualidades a afastam do
que Greenblatt denominou “o sonho masculino de passividade feminina” (1984,
p. 239). O que acontece com Desdêmona é que ela é profundamente fiel aos
próprios sentimentos, revelando uma espécie de pureza ao mesmo tempo
admirável e incômoda. Por causa disso, seu comportamento provoca reações
diversas em todos os personagens masculinos da trama: para Brabâncio, é a
filha ingrata; para Rodrigo, a musa inatingível; para Cássio, a dama perfeita.
Ao justificar sua fuga com Otelo, Desdêmona é simples e direta: “Que amava
o mouro pra viver com ele/ A minha violência e desafio gritam ao mundo” (I.
3). Sua asserção demonstra um desejo pessoal e um total comprometimento
com esse desejo. O relato de Otelo sobre seu namoro com Desdêmona (I.3),
embora ratifique o talento do mouro para o que Greenblatt chama de “narrativa
da construção de si”, deixa claro também que Desdêmona encoraja a retórica
inflamada de Otelo ao se mostrar penalizada e impressionada com sua história
de vida. E ainda, encoraja sua própria corte, quando diz ao mouro que desejava
que os céus fizessem para ela um homem como ele. O interesse de Desdêmona
se concentra única e exclusivamente em Otelo, mas a “violência” com que
assume esse desejo assusta o mouro, que considera que Desdêmona devora
seu discurso. Apesar de assumir sua retórica como um recurso para seduzir
Desdêmona, Otelo se confessa seduzido por ela na mesma proporção.
A atitude sincera de Desdêmona, assim, pode se encaixar no que o
ideário masculino classificaria de volubilidade. As palavras de Brabâncio a
Otelo traduzem o ponto de vista masculino sobre a conduta de Desdêmona e
ajudarão, mais adiante, a corroborar sua culpa: “Se tem olhos pra ver, cuidea, sim/ Pode enganá-lo, se enganou a mim” (I, 3). Ou seja, a “violência e
desafio” que em dado momento serviram como prova de amor, podem
significar uma propensão à desobediência e, por conseguinte, à traição. O que
Brabâncio afirma implicitamente é que Desdêmona não é fiel a Otelo, mas a
si mesma. No nosso entender, entretanto, seu alegado egoísmo confunde-se
com uma capacidade de auto-afirmação que, no contexto trágico desenhado
para a peça, é incompatível com o estereótipo feminino defendido pelo discurso
patriarcal que norteia o pensamento dos personagens masculinos. Desdêmona,
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
211
mesmo dócil e ingênua, é a representação de um poder feminino latente, um
poder capaz de seduzir pela inocência, de equilibrar pelo amor e de inspirar
pela honestidade e beleza.
É interessante notar que o único momento em toda trama em que
Bianca confronta Cássio é por conta do lenço de Desdêmona, que chega às
mãos do tenente por obra do ardiloso Iago. Bianca, mesmo sem saber sobre a
dona do lenço, identifica-o instintivamente como sendo de uma rival: rival na
admiração e respeito que Cássio dispensa à esposa de Otelo e que Bianca
deixa claro desejar para si. Se o lenço pode ser a metáfora do poder feminino
sobre os homens (cf. Neely, 1983), será importante constatar que todos os
personagens femininos da trama o têm nas mãos em diferentes momentos,
por pouco tempo, para passá-lo em seguida às mãos dos personagens masculinos:
Emília o encontra, mas o entrega a Iago; Bianca o recebe de presente, mas o
devolve para Cássio. Analogamente, o posicionamento de Bianca na briga
com Cássio não dura muito; ela se deixa manipular pelo amado e o perdoa.
Emília, depois de “alimentar a fantasia” de Iago dando-lhe o lenço, continua
sendo desdenhada pelo marido. Mesmo opinando contra a misoginia e o
machismo, pregando que as mulheres devem retribuir o tratamento que
recebem dos homens, Emília confessa que nunca traiu Iago. Outra importante
constatação é que tanto Emília quanto Bianca apropriam-se temporariamente
de um poder que, originalmente, pertence à Desdêmona, já que o lenço lhe
foi presenteado por Otelo. Esta também o desperdiça, com consequências
trágicas, ao perder o lenço e assim, permitir que Iago articule uma “prova” de
sua “infidelidade”. Mesmo assim, podemos enxergar através da movimentação
do lenço dentro da trama e do enredamento dramático construído em torno
do seu desaparecimento, que o destino do poder feminino era ser dominado
pelos homens e perdido pelas mulheres. O fato de Desdêmona ser a dona do
lenço pressupõe uma visão da personagem como o paradigma desse poder,
portanto, um mal que precisa ser cortado pela raiz. Transforma-se, então,
num prato cheio para o arguto Iago, cujas “impossibilidades prováveis”
engendram a Desdêmona que se enquadra no senso comum masculino e vem
responder, de forma negativa, à inquietação de Otelo com o comportamento
de sua esposa.
É a partir de Desdêmona, portanto, que se delineia o que chamamos
de “tragédia do feminino” – isto é, quando o poder civilizador da mulher é
finalmente constrangido e a representação feminina é aniquilada, sem que
com isso o conflito seja resolvido. Há um sacrifício da feminilidade para se
salvaguardar um mundo que, na verdade, não tem como sobreviver sem ela.
O poder feminino em Otelo jamais é exercitado de fato, como o fazem as heroínas
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
das comédias shakespearianas. Ao contrário, é um poder constantemente combatido,
suprimido pelos personagens masculinos e tragicamente desperdiçado pelos
personagens femininos. Desdêmona é a personagem sobre a qual o mal-julgo
é praticado ilustrativa e deliberadamente por um personagem masculino (Iago).
O discurso misógino funciona como o reconstrutor da conduta de Desdêmona,
precipitando a destruição de sua união com Otelo. Amar Desdêmona, na
concepção do protagonista, torna-se um pecado diante da suposta
promiscuidade da mulher. A antecipação de um castigo exemplar representa a
necessidade do poder masculino de se fazer prevalecer na trama.
O sacrifício de Desdêmona se faz necessário para a reafirmação do
discurso misógino como codificador da personalidade feminina e,
consequentemente, do poder do macho como mantenedor da ordem social.
Porém, a tragédia de Desdêmona macula de maneira irreversível a superioridade
do julgamento masculino, uma vez que se descobre, logo após sua morte, que
Desdêmona era inocente. Nesse sentido, é sugestivo que o estratagema de
Iago seja exposto por sua esposa, Emília: psicologicamente, podemos dizer
que a morte injusta de Desdêmona força um último suspiro do poder feminino,
assumido pela esposa de Iago. Mesmo ciente de seu destino (Se os céus, os
homens e os diabos/ todos gritam minha vergonha, ainda falo” – V, 2), Emília
decide por uma saída honrosa ao confessar que entregou o lenço de Desdêmona
à Iago. Contrariando as próprias palavras, é Emília quem grita a vergonha
masculina, ao provocar com sua denúncia a consciência de que homens
influenciados por um poder masculino “não-domesticado” (Neely, 1983, p.
239) podem julgar, condenar e executar precipitadamente. Entretanto, a mais
dolorosa constatação do poder masculino neste caso seria a ameaça da inversão
de papéis, isto é, o fato de que um homem pode usar de perversidade tanto
quanto uma mulher, manipulando princípios masculinos como lealdade e honra
em seu próprio benefício.
A exemplo do que acontece durante toda a trama, a influência do
poder feminino no final de Otelo é bruscamente sufocada: Emília, depois de
desmascarar Iago, morre apunhalada pelo marido. Não obstante, a tragédia
do feminino deixa uma marca que se mantém mesmo com a tentativa de
reconstrução da ordem promovida pelo representante do Estado veneziano,
Ludovico:
Cão danado,
Pior que a angústia, do que a fome ou o mar,
Olha a tragédia que essa cama abraça:
Tua obra é veneno para os olhos;
Que a ocultem. Graziano, guarde a casa
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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E a fortuna do Mouro assuma agora,
Já que é o herdeiro: em si, governador,
Recai a punição deste demônio,
Com hora e forma de tortura; cumpra-se!
Eu mesmo pra Veneza vou zarpar
A fim de esta desgraça relatar. (V, 2 – grifos nossos)
O primeiro passo de Ludovico tinha sido estabelecer quem governaria
Chipre na ausência de Otelo: Cássio é o escolhido – exatamente um erudito,
habituado à corte e à política, sem o costume da guerra, portanto de espírito
conciliador. No momento caótico que sucede à tragédia do feminino, é
importante fornecer imediatamente um norte, uma nova cadeia de comando.
O segundo passo, explicitado na passagem acima, é óbvio: tentar minimizar a
situação de desmoralização que se abateu sobre o poder masculino,
individualizando as responsabilidades, isto é, culpando exclusivamente a Iago
pelo acontecido a Desdêmona. Otelo se martiriza com o suicídio e se livra da
completa degradação sob a imagem do “infeliz”, do “precipitado”, mas de
“um grande coração” (V, 2). Iago, ao contrário, torna-se o “demônio”, o “cão
danado”, um caso isolado cuja perversidade desonra o gênero a que pertence.
É interessante perceber que a perpetuação da supremacia masculina no contexto
da peça depende de se “vender” a idéia de que a tragédia de Desdêmona (e do
poder feminino) aconteceu por obra de um sujeito em particular, degenerado
e cujas ações não representariam de nenhuma maneira o senso comum vigente.
Somente com essa “correção ideológica” é possível passar às determinações
práticas, como quem herdará o espólio de Otelo e punirá o criminoso Iago.
Na ação reparadora de Ludovico reside a profunda ironia da peça: o
poder masculino se reergue precariamente tentando recriar a atmosfera de
conciliação perdida, o equilíbrio que seria proporcionado pelo poder feminino,
cujo sufocamento foi o objetivo dos personagens masculinos durante a trama.
A vitória do poder masculino vem acompanhada de um enorme vazio,
requerendo um esforço ainda maior para seu preenchimento. O fim de Otelo
é literal: é uma “destruição sem catarse, uma liberação sem solução” (Neely,
1983, p. 235). “Desgraça” é o último substantivo na fala de Ludovico que
fecha a peça e, não coincidentemente, resume toda a ação. A misoginia e a
ideologia patriarcal alimentam o seu “demônio”, para depois devolvê-lo como
algoz da mesma sociedade, transformando seus porta-vozes em bodes
expiatórios. E assim, a tragédia do feminino em Otelo é o sacrificar-se
inutilmente, sem conseguir evitar o mal que já está feito.
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Notas
1
A tradução utilizada para referência foi a de Barbara Heliodora.
2
Todas as traduções de textos críticos são de minha autoria.
REFERÊNCIAS
DUBY, Georges. Idade Média, Idade dos Homens. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
GREENBLATT, Stephen. “The Improvisation of Power”. In: ________. Renaissance
self-fashioning; From More to Shakespeare. London: The University of Chicago Press,
1984, p. 222-257.
NEELY, Carol T. “Women and Men in Othello”. In: LENZ, Carolyn T.S, GAYLE
Greene & NEELY, Carol T. The Woman’s part: Feminist criticism of Shakespeare. Urbana:
University of Illinois Press, 1983, p. 211 – 239.
SHAKESPEARE, William. Otelo, o mouro de Veneza. Trad. Barbara Heliodora. Rio de
Janeiro: Editora Lacerda, 1999.
Artigo recebido em 09 de maio de 2009.
Artigo aceito em 26 de agosto de 2009.
Ana Claudia de Lemos Monteiro
Mestre em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro - UERJ/RJ.
Fernanda Teixeira de Medeiros
Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense.
Professora Titular de Literatura Inglesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
- UERJ/RJ.
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
O ENTRE-LUGAR DE SHAKESPEARE
NA TELEVISÃO BRASILEIRA:
UMA ANÁLISE DA MINISSÉRIE
OTELO DE OLIVEIRA
Cristiane Busato Smith
[email protected]
… é o “inter” – o fio cortante da tradução e da
negociação, o entre-lugar – que carrega o fardo
do significado da cultura.
Homi Bhabha
RESUMO: A partir do enfoque dos
estudos culturais, este trabalho se propõe
a analisar alguns aspectos da transposição
da tragédia Otelo, o mouro de Veneza (1603)
para a minissérie da TV Globo, Otelo de
Oliveira (1983) de Aguinaldo Silva.
Adaptando Shakespeare para o universo
da favela, da corrupção e do carnaval dos
anos oitenta no Brasil, o diretor Paulo
Afonso Grisoli recria com engenho a
célebre tragédia de amor e ciúmes de Otelo
e Desdêmona. Ainda que o enredo se
concentre na tragédia doméstica, o pano
de fundo de Otelo de Oliveira deixa antever
as inquietações de uma época que, após
duros anos do silêncio forçado da
ditadura, podem agora ser politizados em
pleno horário nobre da televisão brasileira.
ABSTRACT: Situated within the cultural
studies debate, this paper looks at a
“Shakespeare from the margins”, an
adaptation of Othello, the Moor of Venice
(1603), the Globo TV miniseries Otelo de
Oliveira (1983). Relocating Shakespeare to
the conflicting universe of the Brazilian
favelas in the eighties, during the
preparation for carnival in a samba school,
director Paulo Afonso Grisoli ingeniously
retextualizes Othello and Desdemona’s
celebrated tragedy of love and jealousy.
While the plot centers on the domestic
tragedy, the ideological backdrop of Otelo
de Oliveira underscores the anxieties of a
post-dictatorship Brazil in an arena of
contrasts where questions of gender, class
and race can only now begin to be politicized
in Brazilian prime time television.
PALAVRAS-CHAVE: Adaptação cultural. Shakespeare no Brasil. Otelo
KEYWORDS: Cultural adaptation. Shakespeare in Brazil. Othello
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Este estudo responde ao debate crítico em torno das adaptações
consideradas como processos de inovação e renovação dos textos-fonte,
exemplos de hibridismo conjugando a tradição e a tradução. Nesse sentido, as
adaptações são reinterpretações críticas que, ao mesmo tempo em que prestam
homenagem, contra-escrevem1 e revisitam criticamente textos canônicos.
No bojo dos estudos culturais nascem perguntas que se inspiram não
apenas em reflexões estéticas, mas também em indagações que procuram
estudar questões relativas à cultura, tais como as ideologias que perpassam as
representações de raça, classe e gênero. As adaptações podem ser fontes de
pesquisa interessantes porque possibilitam um olhar dialético que procure
pontos de interseção e tensão, que apure em que momentos a tradição entra
em crise com a tradução. Neste sentido, o conceito de tradução cultural é uma
ferramenta que ilumina este ensaio:
Não é simplesmente apropriação ou adaptação; é um processo através do
qual se demanda das culturas uma revisão de seus próprios sistemas de
referência, normas e valores, pelo distanciamento de suas regras habituais
ou ‘inerentes’ de transformação. Ambivalência e antagonismo acompanham
cada ato de tradução cultural, pois o negociar com a “diferença do outro”
revela uma insuficiência radical de nossos próprios sistemas de significado e
significação. (BHABHA citado em HALL, 2006, p. 71-72)
Negociação, transfor mação, diferenças – um jogo tenso de
dependências e independências em relação ao texto-fonte: como fazer um
Shakespeare “verdadeiro”? Como fazer um Shakespeare “brasileiro”? Estamos,
pois, diante de nosso objeto de estudo: a minissérie da TV Globo, Otelo de
Oliveira (1983)2, adaptação brasileira de Otelo, o mouro de Veneza3 (1603-4), de
William Shakespeare. Exemplo paradigmático de tradução cultural, logo na
abertura se anuncia como “recriação de Otelo, o mouro de Veneza de William
Shakespeare”.
É bem verdade que a história da recepção dos textos shakespearianos
mapeia a história da apropriação e de práticas diversas de re-escrita ao longo
dos séculos e fornece um material extremamente rico para os estudos culturais.
Julie Sanders (2006) assinala uma peculiaridade própria de muitos textos que
são frequentemente alvos de adaptações: eles originalmente também foram
adaptações. No caso de Otelo, o mouro de Veneza, Shakespeare se inspirou em
uma novela da coletânea Hecatomithi do escritor Giovanni Battista Giraldi
(Cinthio). Ainda que Shakespeare tenha seguido o enredo com certa fidelidade,
o texto de Cinthio se resume a uma narrativa de intriga enfadonha e de muita
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violência, com Iago querendo vingar-se de Otelo por ter sido rejeitado como
amante de “Didemona” (HELIODORA, 1999, p. 6).
Não é nada surpreendente que Otelo seja um dos três textos mais
adaptados do cânone shakespeariano (SANDERS, 2006): seu enredo tem um
apelo impressionante. A plasticidade da narrativa, que conjuga amor, intriga,
ciúmes, arbitrariedades e conflitos de ordem social e cultural, torna a tragédia
de Shakespeare particularmente apta para adaptações que procuram examinar
as tensões das sociedades multiculturais no mundo contemporâneo.
De um ponto de vista estrutural, Otelo de Oliveira se encaixa
perfeitamente na definição de adaptação4. Além de haver a transposição de
gênero, do teatro para a televisão, o roteirista Aguinaldo Silva optou por reescrever o texto shakespeariano, lançando mão tanto de cortes quanto de
adições livremente, muito embora tenha respeitado a estrutura do enredo do
texto-fonte. Se, por um lado, perde-se a beleza da poesia de Shakespeare com
a introdução da linguagem informal usada na favela do Rio de Janeiro na
adaptação brasileira, por outro, um comentário crítico é adicionado que politiza
algumas questões que estavam sendo elaboradas na sociedade brasileira da
década de oitenta.
Devemos reconhecer o mérito de Otelo de Oliveira e identificar o lado
inovador da minissérie, sem perder de vista que ela foi ao ar na faixa de
programação conhecida como “quarta nobre”, alcançando grande visibilidade.
Cabe lembrar que nessa época, o Brasil estava apenas saindo da opressão da
ditadura militar e questões como a desigualdade social e a opressão da mulher5
começavam a emergir no debate crítico do brasileiro.
O trágico enredo do texto-fonte é transplantado para a favela carioca.
Otelo (Roberto Bonfim), definido como cigano por uns – inclusive ele próprio
– e como “negro” por outros, é diretor da ala da harmonia da escola de
samba “Paraíso do Tuiuti”. Apaixonado por Denise (Julia Lemmertz), uma
colegial filha de um bicheiro rico, o “Doutor Barbosa” (Oswaldo Loureiro),
que financia a escola onde ele trabalha, Otelo não enxerga outra maneira de
casar com sua amada que não seja às escondidas 6. Começa, assim, o conflito
que envolve questões de alteridade, desigualdades de classe, raça e gênero.
Em plena preparação para o carnaval, a trama se alterna entre a casa
de Otelo, onde o conflito doméstico terá lugar; o clube da escola de samba,
onde Otelo passa o maior tempo a resolver questões relativas à sua função; e
o terreiro de macumba e seus batuques rítmicos, que explora o sincretismo
presente no Brasil, além de conferir um aspecto místico para o trágico destino
do casal. A escolha do espaço foi essencial, pois foi assim que o diretor
conseguiu situar geografica e politicamente a peça shakespeariana no Brasil:
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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há, com efeito, um convite implícito para pensarmos sobre esses universos
conflituosos e aparentemente irreconciliáveis que dramatizam os principais
problemas do Brasil dos anos oitenta, quais sejam: as desigualdades econômicas
e raciais. Além disso, o espaço claustrofóbico da casa de Otelo, ao qual Denise
se acha confinada, serve também para enfatizar a falta de liberdade e de
escolha que tolhiam as vidas das mulheres da época. A opressão da mulher é,
por conseguinte, outra reflexão a que devemos prestar atenção.
1 “Eu não entendo essa tua linguagem”: a questão da mulher
A representação de Denise, ou Dé, como vários personagens a chamam,
sublinha o apagamento da mulher na sociedade brasileira dos anos oitenta.
Tendo aberto mão de sua vidinha confortável de classe média e de sua educação
para fugir de casa e ficar ao lado de seu amado, Dé se priva de qualquer
possibilidade de agenciamento público como indivíduo. O privado é seu único
domínio – ela somente pode ter a felicidade que seu lar lhe permite. Enquanto
os homens na minissérie brigam, tramam, trabalham, decidem e, de uma forma
ou de outra, fazem a diferença, Dé tão-somente espera. A função de Dé,
portanto, se resume a de uma frágil bonequinha de luxo: atendida por sua ama
Emília (Léa Garcia), protegida por Cássio (Eduardo Conde), nomeado por
Otelo como seu guarda-costas, e sem nenhuma ocupação, a vida de Denise se
torna entediante. Sua felicidade está totalmente atrelada à presença de seu marido.
A casa de Denise figura como metáfora de sua opressão: primeiramente,
a casa é bem pequena, fazendo um contraste significativo com a ampla casa
de seu pai. As grades das janelas, típicas de muitas casas brasileiras, lembram
uma prisão e a sensação claustrofóbica se intensifica visto que os cômodos
são diminutos e as portas estão sempre fechadas. A câmera focaliza Denise
principalmente deitada, dormindo ou em seu toucador preparando-se para a
chegada de Otelo, passando batom e perfume francês. Em sua única saída
para encontrar o marido, Denise verbaliza o seu descontentamento, porém é
firmemente lembrada de seu lugar como esposa:
Denise: Eu quase vim por minha conta, sem esperar que você me
chamasse.
Otelo: Eu ia ficar zangado
Denise: Por quê?
Otelo: Eu sou marido das antigas, não é? A primeira coisa que eu quero
da minha mulher é obediência.
Denise: Mas… se eu resolver fazer alguma coisa?
Otelo: Antes tem que me consultar.
220
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Denise: Eu não entendo essa tua linguagem.
Otelo: É a única que eu sei falar.
Denise: Sou como uma escrava. Ou ainda pior: uma odalisca presa no
serralho esperando que o sultão apareça de vez em quando.
Otelo: Eu vou ficar o tempo todo junto de você depois do carnaval.
Denise: Até lá…
Otelo: Tenha paciência comigo, Dé. A minha vida inteira eu só tive uma
coisa inteiramente minha: meu nome. Essas coisas de amor são
complicadas para mim.
Denise: Tudo bem, eu faço o que você quiser.7
Ainda que Denise reclame de sua situação para Otelo, ela sempre
cede aos seus pedidos e, paciente, procura atender a todos os seus desejos,
nos moldes da mentalidade da época. Não podemos esquecer, no entanto, a
natureza transgressora da nossa Desdêmona brasileira, que, tal qual a
shakespeariana, foge para se casar e enfrenta a fúria de seu pai. O casamento,
no entanto, lhe dá menos escolhas que sua vida como moça solteira, visto que
ela vive para esperar o marido. Naturalmente, o tédio faz com que ela reflita
sobre a sua situação e perceba que, mesmo com todas as imperfeições, sua
vida de solteira era melhor:
Denise: Cada vez que Otelo entra aqui é como um furacão. [...] Só por
algumas horas. Ele vem me visitar. Na nossa casa. Paciência. Depois do
carnaval quem sabe. Ah, até lá eu posso morrer. Sabe que a minha vida era
melhor. Eu, pelo menos, saia, ia ao colégio e agora...
Emília: Quem mandou parar de estudar. Só porque casou?
Denise: Eu vou morrer assim.
Além da aflição que transparece também nas pausas e hesitações de
suas falas, outro aspecto que chama a atenção é que Denise menciona a
morte duas vezes: um presságio para o que irá acontecer com ela no final. O
presságio aparece novamente na cena anterior à de sua morte, na qual Denise
pede que, quando ela morrer, Emília envolva seu corpo em um lençol cheiroso.
No texto-fonte, Desdêmona pede para Emília arrumar sua cama com os
lençóis que foram usados na sua noite de núpcias. O presságio também aparece
na cena do banho (IV.iii), uma espécie de ritual de purificação, na qual a
trágica heroína shakespeariana canta a melancólica canção do chorão, a mesma
que sua mãe cantou antes de morrer. Os presságios e pressentimentos
estabelecem o tom certo para o espectador, em ambos os casos, tanto no
texto original como na adaptação brasileira, decididamente dramático e repleto
de pathos. É assim, afinal, que se chega à catarse, a função imprescindível para
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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a tragédia, como já advogava Aristóteles. Trata-se da morte de uma mulher
inocente, vítima de um sistema penal precário que ainda aceitava a figura da
legítima defesa da honra, um fato vergonhoso para a história deste país, que
demonstra como o patriarcado opera de maneiras extremamente nefastas.
Muitos maridos lavaram com o sangue de suas esposas a “honra ultrajada” e
se eximiam, assim, de qualquer punição. Essa situação apenas mudou em
2002, com a Lei no. 10.406, atualizada em 20068.
Outro momento que evidencia a questão da vitimização foi o cuidado
do diretor em dissipar qualquer dúvida do espectador em relação à conduta
de Denise para que a sua pureza permaneça intacta e sua morte, pelas mãos
de seu marido, tenha um grande impacto dramático. Isso foi conseguido, em
ambos os casos, por meio de um diálogo entre a personagem feminina e
Emília. No caso da minissérie da TV Globo, Emília incita Denise a conversar
com o “atraente Cássio”, lembrando-lhe que as “mulheres casadas não estão
mortas” (guardando-se as devidas ironias). A seguir, Denise pergunta:
Denise: Emília, você teria coragem de trair o seu marido
[Emília não responde]
Emília: E você?
Denise: Nem que me dessem o mundo inteiro
Emília: O mundo inteiro é grande demais, Dé. Seria um preço muito grande
para um pecado pequeno.
Denise: Pequeno? Não, você está brincando.
A pureza de Denise é também evidenciada pelo figurino,
principalmente com o recatado e alvíssimo vestido de casamento, bem como
nas suas camisolas de cor branca ou rosa claro. A ratificação da lealdade a
toda prova de Dé, considerada juntamente com o seu confinamento e a sua
morte pelas mãos de seu marido, torna-a uma espécie de mártir, uma vítima
sacrificial, à luz da teoria de René Girard (1999) que liga a violência ao
sagrado. Segundo o teórico francês, a morte da vítima sacrificial serve para
purificar a violência e efetuar uma verdadeira mudança na comunidade, o
que de fato ocorre ao final do Otelo de Shakespeare. No caso de Otelo de
Oliveira há indícios que a mesma ideologia se perpetuará, não somente em
virtude do não suicídio de Otelo que impede a consolidação da justiça poética,
mas também pelas imagens finais que desvendam a alegria dos personagens
no desfile de carnaval. Nada irá mudar.
Cabe observar que o carnaval do Rio de Janeiro se torna uma metáfora
adequada para a trajetória de Otelo e Denise. Afinal, o carnaval é uma ocasião
festiva em que a transgressão e desordem predominam, na qual a inversão de
222
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
papéis e o uso de fantasias e máscaras assinalam a instabilidade da identidade.
No caso da representação da mulher, o carnaval é particularmente hostil: nas
escolas de samba, o lugar da mulher é predominantemente de costureira,
doceira, cozinheira ou aderecista. Pouco ou nenhum destaque existe para a
mulher como compositora e criadora. Em contrapartida, o carnaval na Marques
de Sapucaí celebra a apoteose da objetificação feminina: a mulher brilha apenas
como um corpo, este sim, a verdadeira estrela, amplamente explorado e
exportado como marca de “brasilidade”. Muito embora Denise nunca saia de
casa, simbolicamente ela é também apenas um corpo, seu valor é aferido pelo
marido como objeto de seu desejo. Como ela própria observa: “Como uma
escrava ou como uma odalisca presa esperando que o sultão apareça de vez
em quando.”
O fim de Denise, para ter o devido impacto cênico, não poderia ser
diferente da personagem shakespeariana: ela é estrangulada por seu marido
em sua cama, com os lençóis cheirosos, como ela própria havia pressentido.
Sem sangue ou qualquer marca que possa macular o seu corpo alvo, o olhar
da câmera, nesta cena, é certamente escopofílico, pois enfatiza o belo corpo
da jovem atriz que jaz morta, com as pernas desnudas e semi-abertas. Depois
de assassinar a esposa, Otelo chora desesperadamente e acaricia seu rosto
sussurrando “tão branca, tão branca” – chamando atenção para a diferença
de cor entre os personagens.
A objetificação do corpo feminino se tornou um clichê. Não há, no
entanto, exemplo mais forte do corpo feminino como objeto do que na morte
(BRONFEN, 1999). Talvez seja por isso que a glamorização da morte esteja
tão presente hoje apesar de nossos olhos já não conseguirem percebê-la: ela
não é representável.
2 Uma questão de classe
Tal qual o texto de Shakespeare, Otelo de Oliveira explora as diferenças
entre Denise e Otelo, trazidas à tona em vários momentos da peça,
especialmente por meio das intrigas incessantes de Tiago (Milton Gonçalves),
a versão brasileira do grande vilão shakespeariano. Tiago é o porta-voz da
desgraça que se anuncia desde o início por meio de indiretas e insinuações e,
mais tarde, com referências claras como a seguinte:
Vigia tua mulher, Otelo. Não se esqueça: ela é de outra classe. O importante
para essa gente não é deixar de fazer, mas é manter as aparências. Não se
esqueça, quando ela casou com você, ela enganou o próprio pai.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
223
O exemplo acima ilustra adequadamente como a questão de classe
influenciou o conflito central de Otelo de Oliveira. Dé, afinal, não pertence à
mesma classe social de Otelo – ela vem de uma família de classe média,
morava em casa própria, tinha vários empregados e frequentava uma escola
particular. Otelo, em contrapartida, é um sambista que mora no morro e,
ainda que ele seja diretor da harmonia, seu poder e autoridade limitam-se aos
muros do barracão de sua escola de samba e sua glória se restringe ao dia do
desfile do carnaval. Tiago arquiteta seu plano de vingança a partir das diferenças
significativas entre as vidas do par amoroso. A lógica que o Otelo brasileiro
termina por aceitar e adotar revela o quanto ele foi influenciado pelas marcas
das desigualdades de classe e de gênero. Não custa lembrar que a estrutura de
classes no Brasil é extremamente rígida e que as chances de mobilidade para
as classes mais privilegiadas não são, nem de longe, distribuídas igualmente
para indivíduos com origem nas diversas classes sociais.
Pouco a pouco, o protagonista passa a acreditar que Denise opera
com códigos e valores radicalmente distintos dos seus. A principal idéia que
Tiago quer transmitir para Otelo é a de que as mulheres de classes sociais
mais altas tendem a viver uma vida de aparências e falsidade e que Dé não
fugiria à regra. A outra insinuação, igualmente presente no texto de Shakespeare,
é de ordem psicológica uma vez que sugere que um padrão de comportamento
tende a se repetir na mesma pessoa e, portanto, a filha que enganou o pai irá
enganar o marido. Aparentemente, não se considera a possibilidade de que
fugir de casa (o que significa, consequentemente, ignorar a voz paterna) talvez
fosse a única maneira para que moças em situações semelhantes às de
Desdêmona e Dé pudessem casar com seus amados.
Uma vez que o conflito principal já estava instaurado e que Otelo de
Oliveira realmente desconfia da fidelidade de sua esposa, Tiago, assim como
o Iago do texto shakespeariano, trata de partir para o ataque. Agora não se
tratam mais de insinuações e sim de acusações. A estratégia de Tiago é
sedimentar a insinuação e lançar novos ataques. Desta vez ele acusa Cássio
diretamente: “Não te parece estranho que ela tenha escolhido você que é tão
diferente dela? Um gosto de coisa diferente… Cássio não. Cássio é branco.
Cássio é bem educado. É classe média”.
A cor da pele torna-se um dado importante na medida em que marca
a diferença étnica entre Otelo e Denise aos olhos insanamente ciumentos e
possessivos de Otelo, e aproxima Dé de Cássio, já que os dois são brancos e,
presumidamente, “iguais”. Como foi dito no início, o Otelo brasileiro se define
orgulhosamente como cigano e rejeita ser chamado de negro, uma alternativa
que novamente tem ressonância com o texto-fonte, no qual o protagonista é
224
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
mouro. Cabe lembrar que tanto a figura do mouro quanto a do cigano são
invenções discursivas que per mearam o imaginário popular e foram
amplamente mitologizadas na literatura ocidental. O mouro, na época de
Shakespeare, representava aspectos exóticos, sensuais; ele era considerado
excêntrico, selvagem e perigoso. De forma análoga, o cigano é culturalmente
representado no Brasil como um indivíduo amoral, infiel, violento e exótico.
Tidos como vagabundos avessos ao trabalho, exploradores da boa-fé, afeitos
a bruxarias, o cigano é decididamente uma figura marginal. Como se vê, a
demonização do cigano faz par com a do mouro.
Outra figura que incorpora um lugar de ambivalência e marginalidade
é o malandro carioca. Personagem bem conhecido na cultura brasileira, o
malandro é ambivalente, pois é considerado sedutor, tem lábia e desfruta de
popularidade com as mulheres. Ainda que possamos encontrar traços do
malandro na maioria dos personagens masculinos da minissérie, brancos e
negros, talvez o malandro carioca mais evidente seja o “Doutor” Barbosa, pai
de Denise. Barbosa é um bicheiro grosseiro que enriqueceu ilicitamente por
meio do jogo de bicho e que financia a escola de samba. Um sujeito bemdisposto, cercado por guarda-costas, sempre tenta levar vantagem em todas
as situações. O título de doutor lhe é dado por força de sua posição econômica
que lhe confere autoridade e poder aos olhos das classes inferiores. Otelo de
Oliveira também incorpora os aspectos expostos acima sobre o malandro
carioca: ele é sedutor, “boa-praça” e extremamente popular na favela, “tem
um nome a respeitar”, como ele próprio observa, além de, sempre, “dar um
jeitinho” para conseguir o que quer das pessoas.
É significativo que as únicas pessoas que não moram na favela em
Otelo de Oliveira são o bicheiro “Doutor Barbosa”, Cássio e Rodrigo (comparsa
das tramas Tiago), os três brancos e de classe média. Em contrapartida, o
morro aparece como domínio dos negros e mulatos. Trata-se de um universo
aparte, com códigos próprios, incompreensível ao homem branco. A dicotomia
morro x asfalto, que isola negros de brancos, classes baixas de classes médias,
aparece de forma inquestionável na cena na qual Otelo mata Desdêmona.
Não há casamento possível entre duas pessoas tão irremediavelmente diferentes.
Como vimos, questões de classe, raça e de gênero permeiam Otelo de Oliveira
e, ao mesmo tempo em que se aproximam do texto fonte, ressignificam um
contexto brasileiro todo próprio.
Cada vez que Otelo, O mouro de Veneza é adaptado, o texto é reinscrito
em um universo diferente de valores e ideologias. A plasticidade do texto de
Shakespeare permitiu que Aguinaldo Silva recriasse Otelo e o transportasse
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
225
para uma escola de samba no Rio de Janeiro, uma arena de conflitos em que
questões de gênero, classe e raça são dramatizadas. O sotaque de Otelo de
Oliveira é inconfundivelmente brasileiro – salvaguardadas as devidas inflexões
de Shakespeare.
Notas
1
Contra-escrever, ou write back, na língua original, é uma noção que tem origem com
os estudos póscoloniais. Ver ASHCROFT, Bill; GRIFFITHS, Gareth; TIFFIN, Helen
(1998).
2
O escritor Aguinaldo Silva transpôs a tragédia shakespeariana, Otelo, o mouro de
Veneza, para o formato da minissérie televisiva. A produção e direção ficaram a cargo
de Paulo Afonso Grisoli. A minissérie teve uma hora e meia de duração e uma boa
recepção no Brasil e no estrangeiro, tendo sido exibida em emissoras de TV de 64
países, entre elas a BBC de Londres.
3
A primeira adaptação de Otelo, o mouro de Veneza no Brasil foi teatral. Trata-se da peça
de Gonçalves Dias, Leonor de Mendonça (1846-7), como informa Barbara Heliodora
em “Shakespeare no Brasil” (2008, p. 326).
4
Para Sanders, a “adaptação pode ser uma prática de transposição, de transpor um
gênero específico para outro, como em um ato de revisão por si só. A adaptação pode
se assemelhar à prática editorial em alguns aspectos, cedendo ao exercício de “desbastes”
e “podas”. No entanto, pode também ser um procedimento de amplificação que se
engaja com a adição, expansão e interpolação (…). A adaptação frequentemente se
associa ao comentário crítico do texto-fonte, o que pode ser realizado, geralmente,
por meio da proposta de um ponto de vista revisado do texto “original”, adicionando
hipóteses ou ainda dando voz aos personagens sem voz e aos marginalizados. Ao
mesmo tempo, a adaptação pode constituir uma tentativa de tornar textos relevantes
ou facilmente compreensíveis para plateias ou leitores novos, por meio do processo
de aproximação e atualização” (2006, p. 19, minha tradução)
5
Não devemos esquecer de mencionar a minissérie de Rede Globo Malu Mulher
(1979), que tratava dos conflitos e sucessos da vida de uma mulher separada (Regina
Duarte). Malu Mulher fez grande sucesso, ainda que tenha tido problemas com a
censura por apresentar temas ousados para a época, como o aborto, a pílula
anticoncepcional, o orgasmo feminino e a virgindade.
6
Aguinaldo Silva pode ter se inspirado também no filme francês Orfeu negro (1959),
dirigido por Marcel Camus. O enredo é baseado na conhecida história da mitologia
grega de Orfeu e Eurídice e na peça teatral de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, Orfeu
da Conceição. O filme é ambientado no Rio de Janeiro durante a época do
carnaval e narra a história de um amor impossível entre duas pessoas de universos
radicalmente diferentes. O conto de Anibal Machado, “A morte da porta-estandarte”
(1925), também se inclui nesta tradição narrativa uma vez que tematiza o ciúme
masculino, a objetificação da mulher e conflitos raciais, com o carnaval como pano de
fundo.
226
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7
Todas as citações da minissérie Otelo de Oliveira foram transcritas por mim e não serão
referenciadas uma vez que não tive acesso ao roteiro.
8
Para uma compreensão mais aprofundada do assunto, ler o excelente artigo de
Solange Ribeiro Oliveira “A contemporaneidade de Shakespeare: a violência contra a
mulher no poema narrativo O estupro de Lucrécia” ( 2008, p. 227-239).
REFERÊNCIAS
ASHCROFT, Bill, GRIFFITHS, Gareth, TIFFIN, Helen. Post-colonial Studies. The
key concepts, London: Routledge, 1998.
BABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.
BRONFEN, Elisabeth. Over Her Dead Body: Death, Femininity and the Aesthetic.
Manchester: Manchester University Press, 1996.
GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Ed. Universidade Estadual Paulista,
1990.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. Adelaine La Guardia
Resende et al. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
HELIODORA, Barbara. Shakespeare no Brasil. In: LEÃO, Liana de Camargo;
SANTOS, Marlene Soares dos (orgs.). Shakespeare, sua época e sua obra. Curitiba:
Beatrice, 2008, p. 321-334.
OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. A contemporaneidade de Shakespeare: a violência
contra a mulher no poema narrativo O estupro de Lucrecia. In: LEÃO, Liana de Camargo;
SANTOS, Marlene Soares dos. Shakespeare. Sua época e sua obra. Curitiba: Beatrice,
2008, p. 227-239.
SANDERS, Julie. Adaptation and Appropriation. London: Routledge, 2006.
Artigo recebido em 05 de março de 2009.
Artigo aceito em 07 de julho de 2009.
Cristiane Busato Smith
Doutora em Estudos Literários pela UFPR.
Mestre em Literaturas de Língua Inglesa pela UFPR.
Professora Adjunta de Língua e Literaturas de Língua em Inglesa da UTP.
Professora Adjunta do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE.
Editora da Revista Scripta Alumni.
Membro do Centro de Estudos Shakespearianos (CESh).
Membro do ISA (International Shakespeare Association).
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A DRAMATURGIA DA MISTURADA:
A HISTÓRIA DO AMOR DE ROMEU E JULIETA,
DE ARIANO SUASSUNA
Paulo Roberto Pellissari
[email protected]
RESUMO: Este artigo discute a criação
artística A história do amor de Romeu e Julieta:
imitação brasileira de Matteo Bandello,
de Ariano Suassuna, mostrando como a
narrativa do casal de amantes ganha nova
feição no processo de transculturação no
nordeste brasileiro. A recriação dramática
de Suassuna de um folheto de cordel
assume importantes funções sociais no
contexto da cultura-alvo, dentre elas o
estabelecimento de uma arte erudita
brasileira a partir das raízes das
manifestações artísticas populares, um
empreendimento que constitui o projeto
de vida do criador do Movimento
Armorial.
ABSTRACT: This study discusses The
love-story of Romeo and Juliet: a Brazilian
version based on Matteo Bandello, an
artistic creation by Ariano Suassuna,
showing how the story of the lovers
acquires new contours in the process of
transculturation into Northeast of
Brazil. The dramatic recreation of a
chapbook by Suassuna assumes
important social functions in the context
of the target-culture, among them the
establishment of a Brazilian high culture
derived from the roots of popular artistic
manifestations, an enterprise which
constitutes the life project of the creator
of the Armorial Movement.
PALAVRAS-CHAVE: Ariano Suassuna. A narrativa de Romeu e Julieta.
Transtextualidade. Transculturação. Adaptação.
KEY WORDS: Ariano Suassuna. The Romeo and Juliet narrative. Transtextuality.
Transculturation. Adaptation.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
229
Literatura para mim é minha festa: é ali que eu toco e danço.
Ariano Suassuna
Diversas produções ao longo dos séculos exploram diferentes ângulos
das peças de William Shakespeare (1554-1616), adaptando os textos-fonte ao
contexto do público-alvo, com o intuito de que atenda às especificidades desse
contexto de recepção. Muitos enredos, entre eles, a narrativa de Romeu e
Julieta, têm sido reduzidos, ampliados, modificados, adaptados para atender
diferentes plateias e contextos sócio-históricos específicos.
Nesta ótica, este estudo se propõe a analisar, a partir de pressupostos
teóricos sobre a teoria da adaptação/apropriação, a recriação dramática de
Ariano Suassuna (1927-) A história do amor de Romeu e Julieta: imitação brasileira
de Matteo Bandello. Essa peça, além de ser uma adaptação, é uma tradução
transcultural, na terminologia de Linda Hutcheon (2006, p. 145), uma vez
que é a recriação da tragédia shakespeariana, ambientada em Verona, transposta
para o contexto do sertão nordestino brasileiro. A recriação de Suassuna tem
como um dos textos-fonte o poema narrativo em cordel Romance de Romeu e
Juliêta [sic], cuja autoria é atribuída ao poeta paraibano João Martins de Athayde
(1880?-1959). Pretende-se, com este estudo, além do resgate da memória,
história e importância da história de Romeu e Julieta, destacar a inserção da
narrativa em solo brasileiro, mostrando como se deu o abrasileiramento e a
adaptação ao contexto nordestino. Objetiva-se, ainda, prestar uma homenagem
a Suassuna, contador de “causos” e histórias que, segundo Barbara Heliodora,
é “essa coisa rara que é o homem que não se afastou de suas raízes com o
aperfeiçoamento de sua cultura; ao contrário, soube fazer com que essa cultura
lhe servisse para um conhecimento e uma compreensão crescentes das coisas
e das gentes de sua terra” (HELIODORA, 2007, p. 353-54).
Quarenta anos após escrever o romance folhetinesco A história de
amor de Fernando e Isaura1, em que desloca a paixão proibida das personagens
da lenda e da famosa ópera de Richard Wagner, Tristão e Isolda, para o sertão
nordestino, Suassuna, em 1996, aborda novamente o tema dos amantes infelizes
com a narrativa de Romeu e Julieta. Apesar de existir uma versão de A
história do amor de Romeu e Julieta:: imitação brasileira de Matteo Bandello
publicada no suplemento Mais! do jornal Folha de São Paulo, de 19 de janeiro de
1997, ressalta-se que essa recriação suassuniana ainda continua inédita, ou
seja, ainda não foi publicada em livro.
Embora Shakespeare seja considerado ponto de partida e retorno
para todas as reescrituras modernas de Romeu e Julieta, a origem dessa história
remonta à tradição oral; vamos encontrar as primeiras narrativas do destino
trágico dos amantes nas novelles italianas dos séculos XV e XVI escritas por
230
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Masuccio Salernitano (1410?-1480?), considerado o maior novelista do século
XV, Luigi Da Porto (1485-1529) e Matteo Bandello (1485-1561), cujos relatos,
por sua vez, foram transformados pela tradução francesa de Pierre Boaistuau
(1500-1566). Chegando essa tradução até a Inglaterra via França, Arthur Brooke
(1544?-1563), com base na versão francesa, se apropria da história do casal de
amantes e reescreve-a em forma de um poema narrativo considerado a fonte
primária de Shakespeare. William Painter (1540?-1594) escreve uma outra versão
em prosa sobre os amantes infelizes em uma coletânea de traduções para o inglês
intitulada Palace of Pleasure, de Boccaccio e Bandello, entre outros autores.
A obra de Shakespeare, considerada a primeira recriação dramática
da narrativa de Romeu e Julieta, até hoje continua a fascinar o imaginário
ocidental e mesmo o oriental: reescrituras e transposições intermidiáticas e
culturais da história do casal de amantes multiplicam-se nos quatro cantos do
globo, passando por várias adaptações ao longo do tempo e dos lugares. É
também uma história cujo teor político mudou com as diferentes nuanças de
contexto. Relida, recriada e parodiada não somente pela literatura, mas também
pelo cinema e televisão, os meios de comunicação de massa não se cansam de
se apropriar e adaptar a história para os mais diversos fins.
Os estudos de apropriação/adaptação mobilizam uma grande
variedade de termos, como versão, variação, transformação, imitação, pastiche,
paródia, transposição, revisão, reescrita, entre outros. E, ao que tudo indica,
tais denominações não se esgotam por aqui, conforme ressalta Hutcheon
(2006, p. 15) ao declarar que “os estudiosos continuam a cunhar novas palavras
para substituir a simplicidade da palavra adaptação”. Diante da infinitude de
termos, prefere-se adotar neste artigo a terminologia “adaptação” e
“apropriação”, em um sentido amplo.
A adaptação, como estratégia de construtividade textual não é um
procedimento novo, visto que remonta ao período clássico quando os gregos
iniciaram a prática de releitura dos mitos. Ao elaborarem seus temas, tomando
como base o material mítico difuso e complexo, os poetas gregos tinham
liberdade para modificá-lo ou introduzir inovações. Como observa Donaldo
Schüler (SÓFOCLES, 2004, p. 7) na introdução de sua tradução de Édipo Rei, “o
público que lotava as arquibancadas saía de casa para ver algo novo que os fizesse
refletir, e não para rever o que já sabiam”. Salienta que “Sófocles inventa: muda
o nome da mãe de Édipo, introduz a enigmática esfinge, a peste, o processo em
que o juiz é réu, a autopunição voluntária, o exílio [...] Inventando e valendo-se
de invenções alheias, Sófocles produziu uma peça de indiscutível originalidade”.
Ao ser adaptado, um texto sofre transformações devido às exigências
do novo meio em que será veiculado, uma vez que a adaptação é um processo
dialógico complexo, multidirecional, que inclui os conceitos de intertextualidade,
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231
tradução intersemiótica e cultural e hipertextualidade. Segundo Pavis (2005,
p. 10), o termo adaptação pode ter vários sentidos, como o de “transposição
ou transformação de uma obra, de um gênero em outro [...]”. Ainda citando
Pavis, o teórico afirma que a adaptação (ou dramatização) tem por objeto os
conteúdos narrativos “que são mantidos (mais ou menos fielmente, com
diferenças às vezes consideráveis), enquanto a estrutura discursiva conhece
uma transformação radical”. Nesse sentido, o produto textual resultante desse
processo é chamado de reescritura.
Pavis aponta diversas manobras que podem ser utilizadas por um
dramaturgo nas reescrituras.
Cortes, reorganização da narrativa, ‘abrandamentos’ estilísticos, redução do
número de personagens ou dos lugares, concentração dramática em alguns
momentos fortes, acréscimos e textos externos, montagem e colagem de
elementos alheios, modificação da conclusão, modificação da fábula em
função do discurso da encenação. A adaptação [...] goza de grande liberdade:
ela não receia modificar o sentido da obra original, de fazê-la dizer o contrário
[...]. Adaptar é recriar inteiramente o texto considerado como simples matéria
[...]. (PAVIS, 2005, p. 10-11)
Pavis também reflete sobre a apropriação e adaptação dos clássicos na
contemporaneidade. Para o professor de estudos teatrais, novas questões devem
ser abordadas em cada época:
Trata-se então de uma tradução que adapta o texto de partida ao novo
contexto de sua recepção com as supressões e acréscimos julgados necessários
à sua reavaliação. A releitura dos clássicos “ concentração, nova tradução,
acréscimos de textos externos, novas interpretações “ é também uma
adaptação, assim como a operação que consiste em traduzir um texto
estrangeiro, adaptando-o ao contexto cultural e lingüístico de sua chegada.
É notável que a maioria das traduções se intitule, hoje, adaptações, o que
leva a tender a reconhecer o fato de que toda intervenção, desde a tradução
até o trabalho de reescritura dramática, é uma recriação, que a transferência
das formas de um gênero para outro nunca é inocente, e sim que ela implica
a produção do sentido. (PAVIS, 2005, p. 11)
Quanto à adaptação de clássicos, Anne Ubersfeld assevera que clássico
“é tudo aquilo que, não tendo sido escrito para nós, mas para outros, reclama
uma ‘adaptação’ [...]; nesse sentido, não apenas Shakespeare, mas Vigny ou
Musset ou Tchékhov ou Ibsen [...] são para nós clássicos [...] Ler hoje é des-
232
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ler o que foi lido ontem – não que esta leitura tenha se tornado ‘falsa’ mas é
que não é mais para nós” (UBERSFELD, 2002, p. 9-13).
Para outro crítico, Jean Marsden, apropriação de um texto, ou seja,
tornar próprio o que é de outro, significa sempre desenvolver a partir dele
uma leitura que o isola de seu contexto imediato para dele extrair um significado
diferente que interessa ao leitor ou espectador em seu momento histórico
presente. A apropriação textual é um processo necessário e inevitável: uma
obra literária estará exercendo influência se as pessoas não deixarem de
manifestar uma reação diante dela, ou seja, se houver leitores que, novamente,
apropriem-se da obra do passado, ou autores que desejam imitá-la, excedê-la
ou refutá-la (MARSDEN, 1991, p.1).
No trânsito intertextual através do tempo e espaço, a narrativa de
Romeu e Julieta passou por inúmeras mutações e (re)negociações críticas e
ideológicas em função das mudanças do Zeitgeist e do imaginário cultural. A
cada época, ela renasce, assim como a Fênix, símbolo da imortalidade, que
ressurge das cinzas. A cada recriação permanecem marcas dos textos anteriores,
ou seja, dos hipotextos. Segundo Gérard Genette, no estudo Palimpsestos: a literatura
de segunda mão (2005), todo texto é um palimpsesto. O crítico francês propôs
um conceito mais inclusivo de intertextualidade, a transtextualidade ou
transcendência textual, ou seja, assim definido: “[...] tudo que o texto coloca em
relação manifesta ou secreta com outros textos” (GENETTE, 2005, p. 9) e
apresenta cinco tipos de relações transtextuais, dentre elas, a hipertextualidade
que trata da relação entre um texto e outro, ou seja, “toda relação que une um
texto B (que doravante denominarei de hipertexto) a um texto anterior A
(que, naturalmente, chamarei de hipotexto) do qual ele brota, de uma forma
que não é a do comentário” (GENETTE, 2005, p. 14). Em suma, o hipotexto,
nesse sentido, é o texto-fonte, o texto de partida; e o hipertertexto, o de chegada
ou o texto-alvo. Desse modo, o hipertexto transforma, modifica, elabora ou
estende o hipotexto.
Adaptações transculturais, muitas vezes, também pressupõem mudanças
de gênero, visto que os adaptadores depurgam elementos do texto de partida,
para que exista maior e melhor compreensão à nova recepção do texto de
chegada. Na adaptação transcultural, “quase sempre há mudança política do
texto adaptado para o texto transculturalizado” (HUTCHEON, 2006, p. 145).
Parece lógico que as mudanças no tempo e de lugar devam trazer alterações
nas associações culturais, como aconteceu com a comédia shakespeariana A
megera domada (The Taming of the Shrew, 1590?) que, ao longo dos anos, foi
adaptada constantemente para atender às exigências do Zeitgeist, desde a luta
pelo sufrágio feminino da década de 1920 até as revoluções feministas da
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década de 1960. Tais transformações políticas podem também tomar rumos
imprevisíveis, como o uso arbitrário da adaptação de O Mercador de Veneza
(The Merchant of Venice, 1596?), de Shakespeare. Essa obra serviu de referência
a um grande número de representações anti-semitas que proliferaram no
período entreguerras e que sempre tendiam a cortar parte do discurso de
Shylock que trata da questão da retaliação, da violência que gera violência
(CAMATI, 2006, p. 16).
Para a transculturação de Romeu e Julieta em terras nordestinas,
Suassuna, assim como Shakespeare, apropria-se de fontes diversas, não só da
tradição oral como também da cultura erudita. Dessa forma, a estética de
Suassuna aproxima-se do que afirma T. S. Eliot (1989, p. 37-48), em “Tradição
e o talento individual”, quando menciona que o poeta contemporâneo, para
produzir uma nova obra significativa, deve manter um diálogo com os poetas
mortos, ou seja, com a tradição. O mesmo processo ocorre na renovação da
história de Romeu e Julieta por Suassuna quando o dramaturgo retoma estéticas
anteriores, mantendo assim uma relação dialógica com a tradição. Conforme
afirma Maria Aparecida Lopes Nogueira:
Ariano consolida sua linhagem literária dialogando com autores do passado
ou do presente, estabelecendo “formas particulares de intertextualidade”
[...]. Foram Homero, Shakespeare, Moliére, Cervantes, Lope de Vega,
Gregório de Matos, García Lorca, Gogol, Tolstoi e Dostoiévski, aqueles que
recorreram aos mitos nacionais e populares como matéria-prima a ser recriada
para, num segundo momento, retornarem ao povo por numa relação vital
de carne e sangue. (2002, p. 109)
Suassuna busca os seus personagens, as suas idéias, histórias, falas, e,
abastecido de todo esse vasto material, o dramaturgo faz empréstimos, recorta
o que não interessa, recria e adapta as histórias. Para Braulio Tavares (2007, p.
120), Suassuna faz “algo que seja a soma de tudo que foi feito antes” e
transforma em “algo que seja novo”.
Para sua estética, Suassuna cunhou o termo “dramaturgia da
misturada” e com ele designa sua obra artística, uma vez que utiliza textos de
diferentes origens, naturezas e autorias. Sua criatividade e habilidade de integrar
diversos textos em um mosaico literário elevam o escritor, dramaturgo e artista
plástico à consagração como um dos maiores escritores da literatura brasileira.
Segundo Silviano Santiago (2007, p. 22), “Suassuna se destaca de imediato
dentro do panorama do teatro brasileiro contemporâneo, pois é ele o único
dramaturgo que tem levado às últimas consequências o compromisso do artista
234
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
brasileiro com as fontes populares de nossa cultura”. Ainda sobre a estética
suassuniana, Tavares afirma:
Suassuna adota a mesma atitude apropriativa dos artistas medievais ou
nordestinos. A Tradição é um imenso caldeirão de idéias, histórias, imagens,
falas, temas e motivos. Todos bebem desse caldo, todos recorrem a ele.
Todos trazem a contribuição de seu talento individual, mas cada um vê a si
próprio como apenas um a mais na linhagem de pessoas que contam e
recontam as mesmas histórias, pintam e repintam as mesmas cenas, cantam
e recantam os mesmos versos. Histórias, cenas e versos são sempre os
mesmos, por força da Tradição, mas são sempre outros, por força da visão
de cada artista. (TAVARES, 2007, p. 193)
Para a criação poética A história do amor de Romeu e Julieta: imitação
brasileira de Matteo Bandello, Suassuna utilizou-se do folheto de cordel Romance
de Romeu e Juliêta [sic], de João Martins de Athayde, como fonte primária.
Nesse folheto, Romeu e Julieta ganham novas identidades no sertão nordestino
e, nesse novo ambiente, surge a figura do cantador-poeta, que narra a tragédia
do casal de amantes. Athayde retrata a rivalidade entre os feudos Montéquio
e Capuleto para denunciar e chamar a atenção da população a respeito das
lutas pelo poder entre as famílias poderosas do sertão nordestino, comuns
naquele local na primeira metade do século XX, época do lançamento do
folheto. O poeta descreve a família Capuleto como “aquela raça tirana/ que
odiava a Montequio/ família honesta e humana” (ATHAYDE, 1957, p. 1).
Segundo Candace Slater (1983, p. 37), “a típica história de cordel retrata o
julgamento entre o bem e o mal, onde o bem é recompensado; e o mal,
punido.”
Vítima da traição de Capuleto, Montéquio é aprisionado, amarrado
e destituído de seus direitos políticos. Athayde insere uma motivação forte e
concreta em sua narrativa ao relatar o assassinato da esposa de Montéquio
por Capuleto, sendo esta a vítima de sua vingança, quando Romeu estava
com dois anos. Somente quando o jovem atinge a maioridade, Montéquio
revela ao filho as circunstâncias do assassinato de sua mãe. O jovem Romeu
parte em busca do algoz de sua família para executar a vingança prometida a
Montéquio, mas apaixona-se por Julieta, filha de seu inimigo Capuleto. A partir
desse momento, os eventos se aproximam da versão shakespeariana. É
impossível determinar o(s) texto(s)-fonte de Athayde, mas as evidências indicam
que o hipotexto do Romance de Romeu e Juliêta [sic], seja a peça de Shakespeare
em tradução. Outra hipótese viável seria alguma adaptação cênica ou fílmica
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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da peça, uma vez que aparecem no folheto referências diluídas do texto do
bardo e inexistentes nas versões anteriores da narrativa de Romeu e Julieta.
Athayde amplia o tempo da ação de seis dias da versão de Shakespeare
para aproximadamente 16 anos e alguns meses. Compacta a tragédia de cinco
atos em um único folheto de 32 páginas, com 156 sextilhas e 936 versos. A
composição poética do folheto segue, portanto, a estética do cordel tradicional
com metrificação em sextilhas, conforme os padrões exigidos em adaptações
de narrativas. Segundo Gonçalo Ferreira da Silva (2005, p. 22), “esta modalidade
[sextilhas] passou a ser mais indicada para os longos poemas romanceados
[...]. É a modalidade mais rica, obrigatória no início de qualquer combate
poético, nas longas narrativas e nos folhetos de época”. Essa modalidade requer
que os versos pares sejam rimados entre si, ou seja, o segundo com o quarto
e com o sexto (ABCBDB), enquanto o primeiro, o terceiro e o quinto são livres.
Athayde imprimiu valores medievais na adaptação da narrativa de
Romeu e Julieta, considerando-se que tais valores morais ainda permaneciam
enraizados naquela região do país. Para Ligia Maria P. Vassalo:
A cultura popular no Nordeste é herdeira do modelo português da época
do descobrimento, que emigrou para o Novo Mundo com todas as suas
práticas e características, tal como outros de seus aspectos. A oralidade
predominante naquele período sobrevive na literatura popular nordestina
[...] Ela se fixa em especial nessa região, depositária do acervo cultural e social
da Europa Medieval, onde permanece devido a múltiplas razões: por ser a
mais antiga zona de colonização que prosperou, pelo isolamento prolongado
em que a região permaneceu, pelo encontro e cruzamento contínuo de raças
e culturas, pela estabilidade e longa duração de uma organização social
semifeudal de latifúndio e patriarcalismo, perpetuadora das tradições
herdadas. (VASSALO, 1988, p. 50)
Na literatura de cordel, a honra e a vingança aparecem como valores
supremos, sobretudo a vingança por ofensa familiar, superiores até mesmo
ao amor. E esses valores, enraizados na cultura da população, devem ser
encarnados, sobretudo pelo herói, que é, ao mesmo tempo, expressão de um
ideal e modelo de conduta (VASSALO, 1988, p. 64). De acordo com essa
visão, Romeu deveria vingar-se do inimigo da família, conforme prometido
ao seu pai, mas não cumpre a promessa. Segundo os códigos de honra, o fato
de Romeu não ter vingado a morte de sua mãe foi considerado covardia. Por
isso, nessa ótica, Romeu não passa de um covarde que não cumpriu o que
havia prometido ao seu pai, tendo um merecido castigo.
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Suassuna manteve praticamente a mesma forma e estrutura narrativa
ao mudar o gênero do folheto para a recriação dramática: os versos são
estruturados em sextilhas; mas, diferentemente do folheto, cujo cantador é a
presença principal, Suassuna distribui a narrativa entre as diversas personagens,
o que altera o ponto de vista. Obviamente, por se tratar de recriação dramática,
a mudança de gênero impõe a transposição do monólogo dramático para uma
versão dialogada. Ainda em se tratando do gênero, Suassuna faz dessa adaptação
um texto híbrido, uma vez que se utiliza de elementos do melodrama e da
tragédia que apresenta traços épicos, e faz a integração do mamulengo. O
autor fez inovações ao fazer uso de vários hipotextos com referências medievais
e renascentistas da cultura popular. Além de atender aos próprios propósitos
do dramaturgo, as fontes foram modificadas para se acomodarem às
convenções poéticas dos folhetos, uma vez que Suassuna construiu a sua
peça nos moldes da literatura de cordel, e também à teatralização.
Suassuna, portanto, adapta o folheto de cordel aos seus propósitos e
cria uma dramaturgia, cuja tônica também é o poder e a rivalidade entre as
famílias poderosas do nordeste brasileiro. O dramaturgo eleva as duas famílias
inimigas a uma mesma igualdade social: atribui os títulos de duque a Capuleto
e de conde a Montéquio, apontando, com isso, para a discussão de disputa
entre duas famílias rivais, ou grupos rivais, que pertencem à elite política da
cidade, pois se trata de dois representantes da nobreza. Isso evidencia que o
dramaturgo distancia o leitor/espectador do fato imediato e aborda a disputa
entre senhores de terra no nordeste agrário.
Destaca-se, nessa recriação, o binarismo maniqueísta na descrição
das duas famílias: os Capuleto, representantes de uma “raça tirana”, e os
Montéquio, uma família “honesta e humana”, o que denota a manutenção de
traços das moralidades medievais, visto que a moral do sertão ainda é
fundamentada nesses binarismos. Vale observar que Shakespeare apresenta
as famílias em igualdade de condição, com responsabilidades iguais no
desencadeamento da tragédia. Como argumenta Santiago (2007, p. 76), a
“divisão clara entre o Bem e o Mal serve para salientar o aspecto maniqueísta
do teatro de Suassuna (e do teatro popular em geral)”. Suassuna repete o
motivo do assassinato da mãe de Romeu, provocado pela briga entre as duas
famílias sertanejas inimigas, e faz a transposição geográfica, esclarecendo que
“a ação decorre em Verona e Mântua, ou seja, Recife e Olinda”.
Suassuna reafirma a sua escrita com a originalidade regional, com a
renovação dos modelos formais por meio de uma temática nova e com a
passagem do poema narrativo em cordel para a forma dramática. Com
criatividade, o dramaturgo insere elementos da cultura popular, como o
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237
mamulengo, e interpola antigas cantigas do romanceiro popular, como A Rosa
Roseira, Romance de Minervina, Romance da Bela Infanta e o Romance de Bernal
Francês, a única dessas cantigas cuja letra adaptada é transcrita na peça,
juntamente com o poema La casada infiel, de Frederico García Lorca (18981936), um dos poetas e dramaturgos espanhóis mais representativos do início
do século XX, e que também se dedica à preservação do acervo popularerudito de sua terra. Além do prenúncio da situação trágica do casal, essas
fontes, que se inter-relacionam na construção da cena dramática, intensificam
a dimensão erótica presente na consumação do matrimônio entre Romeu e
Julieta. Dessa maneira, Suassuna repete a sua vertente literária e vai ao encontro
de tradições ibéricas medievais que ainda reverberam na cultura nordestina.
La casada infiel, poema inspirado nos cancioneiros do século XV,
publicado em 1928 em uma coletânea de dezoito poemas sob o título de
Romancero Gitano, é um dos momentos de destaque na peça pela intensidade
do romantismo e sensualidade de seus versos. Suassuna suprime algumas
estrofes do poema de Federico Garcia Lorca e alterna as vozes masculina e
feminina de Romeu e Julieta. Na versão de Lorca, os versos são enunciados
apenas na voz masculina (CARDOSO, 2005, p. 109). Suassuna insere essa
interpolação após a narração de Quaderna, personagem-coro da peça, sobre
o casamento de Romeu e Julieta:
Romeu:
“Eu tirei minha Gravata,
ela tirou o Vestido.
Eu o cinto, com Revólver,
ela, seus quatro Corpinhos.
As anáguas engomadas
soavam nos meus ouvidos
como um tecido de seda
por vinte facas rompido.
Eu toquei seus belos peitos
que estavam adormecidos,
e eles se ergueram, de súbito,
como ramos de jacinto.
Naquela noite eu passei
Pelo melhor dos caminhos,
montado em Potrinha branca,
mas sem Sela e sem estribos.
Suas coxas me escapavam,
como Peixes surpreendidos,
metade cheias de fogo,
metade cheias de frio”.
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Julieta:
“Ele tirou a Gravata,
Eu tirei o meu Vestido.
Ele, o cinto, com Revólver,
e eu, meus quatro Corpinhos
As anáguas engomadas
soavam nos meus ouvidos
como um tecido de seda
por vinte facas rompido.
Ele tocou nos meus Seios,
que estavam adormecidos,
e eles se ergueram de súbito,
como ramos de jacinto.
Naquela noite, corri
pelo melhor dos caminhos,
montada por um Ginete,
mas sem Sela e sem estribos.
Minhas coxas lhe escapavam,
como Peixes surpreendidos,
metade cheias de fogo,
metade cheias de frio”.
(SUASSUNA, 1997, p. 6)
Mais uma vez, percebe-se a contribuição de Suassuna nessa adaptação
que, por meio do jogo de pronomes entre Romeu e Julieta “ que ora expressam
o “eu”, ora narram o “ele(a)”, reforça a relação de amor entre o jovem casal
do sertão nordestino e aproxima-os dos grandes personagens apaixonados da
literatura mundial, como Tristão e Isolda, Abelardo e Heloísa, Dante e Beatriz,
Páris e Helena, entre outros. Em Suassuna, não apenas Romeu, mas Julieta
também expressa o que sente quando ambos descrevem, em uma sequência
de vinte versos, “o ato de se despir e a troca de carícias voluptuosas” (O’SHEA,
2006, p. 156), durante a consumação do matrimônio.
Verifica-se que o exercício de reelaboração de fontes tradicionais e
populares por Suassuna não é apenas uma transposição mecânica de conteúdos
e formas. O dramaturgo recria e transforma tais elementos, sem que eles
percam sua identificação com o ambiente que os gerou. Por meio de sua
imaginação criadora, distancia-se dos textos-fonte que utiliza; no entanto,
mantém os laços que integram o novo produto no espaço universal em que
circula o texto popular.
Quanto à seleção das personagens, Suassuna insere narradores,
figurantes, músicos, bailarinos e bailarinas, por se tratar de uma recriação
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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para o teatro, diferentemente de Athayde que precisava reduzir o número das
personagens para adequar a sua versão às convenções da literatura de cordel.
Em se tratando do efeito de distanciamento na adaptação de Suassuna,
pode se perceber que:
Na passagem da forma narrativa para a dramática, o autor [Suassuna] mantém
por vezes resquícios da forma narrativa, como, por exemplo, na presença de
personagens narradores [...] a presença de tais personagens que ora narram,
ora interferem na trama que está sendo contada, chegando até mesmo a
contracenar com os demais personagens, impõe à peça uma organização
espacial e temporal causadora de um distanciamento que propicia a
instauração de “efeitos de comicidade”, decorrentes da forte presença de
instâncias narrativas, como [...] na análise da peça A História de Amor de
Romeu e Julieta, tendo sempre em mente as fontes textuais não dramáticas
que dão origem a peça. (CARDOSO, 2005, p. 111)
Inúmeros traços épicos estão presentes na recriação dramática de
Suassuna, como o uso do prólogo e epílogo, de monólogos e apartes. Tal
caráter épico na sua dramaturgia caracteriza-se pelas categorias genéricas da
dramaturgia épico-religiosa medieval.
A medievalidade se faz notar ainda nesse autor através da técnica do teatro
épico cristão, com suas modalidades específicas e seus personagens
estereotipados, porque a Idade Média é o espaço em que floresceu uma
dramaturgia que assovia o religioso e o popular através das oposições
litúrgico/ profano e sério/jocoso. E, sobretudo porque, sendo a cultura
popular nordestina marcadamente medievalizante, aquela marca atua como
uma espécie de fonte para o próprio romanceiro, onde o aspecto religioso se
reforça não só por causa da religiosidade popular do Nordeste como também
pela opção pessoal de crença do autor. Por isso as peças de Suassuna se
revestem de traços ideológicos próprios da Idade Média, como o
maniqueísmo e o tom moralizante. Nelas há também personagens alegóricos
associados à visão de mundo cristã medieval e aspectos próprios da cultura
popular européia da época dos descobrimentos, indispensáveis visto que o
teatro é, então, uma arte dirigida ao povo. (VASSALO, 1988, p. 103-04)
Dentre as várias inovações de Suassuna nesta peça, destaca-se o teatro
dentro do teatro. Assim como Shakespeare, Thomas Kyd, Corneille, Pirandello,
Brecht, entre outros dramaturgos, Suassuna, por meio desse recurso, posiciona
as personagens como espectadores dentro do próprio teatro, o que configura
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
a metateatralidade. Tal recurso pode ser uma alusão ao palco elisabetano, ou
ainda mais precisamente à tragédia Hamlet (1600-01) ou à comédia Sonho de
uma noite de verão (1595-96), entre outras peças de Shakespeare. Conforme
afirma Pavis (2005, p. 386), “o emprego desta forma [teatro dentro do teatro]
corresponde às mais diversas necessidades, mas sempre implica uma reflexão
e uma manipulação da ilusão”, visto que a ilusão teatral baseia-se “no
reconhecimento psicológico de fenômenos já familiares ao espectador” (PAVIS,
2005, p. 202). Suassuna posiciona seu leitor/espectador de modo que se
identifique com a cena. Sabe-se que o recurso do teatro dentro do teatro é
mais marcante para a recepção do espetáculo cênico e, embora este estudo
detenha-se no texto dramático e não na encenação, é relevante esclarecer que
a leitura de um texto dramático não é determinada ditatorialmente pela
encenação, pois quando se lê uma peça, pressupõe-se um espectador em potencial.
Suassuna sugere em rubrica algumas indicações que explicitam o
caráter e a forma de teatralidade presentes no texto, como a informação de
que deve ser instalado um pequeno palco dentro do maior. Nesse palco maior,
orienta o dramaturgo, devem surgir bonecos, os mamulengos, representando
a mesma cena do assassinato que Romeu viu quando criança. Para o pequeno
palco, Suassuna menciona que ele também servirá para a noite de núpcias de
Romeu e Julieta. A cena da noite de núpcias é introduzida pela seguinte rubrica:
“Abre-se a cortina do palco menor, onde se vê uma cama. Fala Julieta, enquanto
se encaminha para lá, com Romeu [...] os dois entram e fecham a cortina”
(SUASSUNA, 1997, p. 6). Quaderna retoma a narração e menciona: “O que
se passou ali / digo ao público-auditor / é impossível descrever, / tal foi a
cena-de-amor / Imagine quem já tenha / vivido um igual ardor” (SUASSUNA,
1997, p. 6). O restante da cena fica por conta da imaginação do leitor/espectador.
Suassuna leva o leitor/espectador a uma modificação de percepção,
pois afasta o público do páthos; esse gesto pode ser considerado um efeito de
distanciamento uma vez que Romeu e Julieta representam e narram ao mesmo
tempo. Conforme afirma Theotonio de Paiva Botelho (2002, p. 282), Suassuna
“coloca as cenas de maior impacto narradas, deixando que elas aconteçam,
parte à vista do público, parte como um jogo estabelecido através do verbo,
enquanto este projeta para longe a emoção vivida no momento presente”.
A comicidade de situações, de gestos, de frases, do linguajar das
personagens é uma constante na dramaturgia suassuniana. A adaptação de
Romeu e Julieta de Suassuna possibilita ao leitor/espectador uma pluralidade
de percepções no seu imaginário, à medida que os personagens adquirem
movimentos mais livres, mais exagerados, mais amaneirados, podendo se
aproximar dos espetáculos de mamulengo. Suassuna se utiliza de efeitos de
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
241
comicidade nessa adaptação, como no momento em que Teobaldo está prestes
a morrer vitimado pela briga entre ele e Romeu, quando então Julieta exclama:
“Meu Deus! Romeu e Teobaldo / cruzam já as suas Espadas! / Já sinto que
vou cair / sobre o solo desmaiada!”. Sob a orientação do dramaturgo, Julieta
deve cair e recobrar os sentidos rapidamente. Em poucos segundos, Julieta
indaga: “Meu Deus, o que se passou?” (SUASSUNA, 1997, p. 6).
Suassuna, engajado em prol da cultura brasileira, alimenta sua recriação
de Romeu e Julieta com manifestações de cunho regional, como o mamulengo
e, em especial, a literatura de cordel, uma vez que fundamenta seu projeto
como poeta, dramaturgo e artista plástico com base em uma arte erudita
brasileira a partir de raízes populares da própria cultura brasileira. Suassuna,
portanto, apreciador e conhecedor das várias manifestações artísticas da cultura
popular, ao inserir com inventividade e talento o mamulengo na peça, recria,
resgata as formas, técnicas e expressão artística dos mestres artesãos
tradicionais, insere essa forma de teatro na sua recriação dramática e, mais
uma vez, contribui com a cultura popular. Dessa maneira, Suassuna revela, de
modo muito próprio e singular, a rica expressividade do dia-a-dia do povo,
visto que reconhece que, por meio dos bonecos, o povo se identifica com as
alegrias, as tristezas, os temores, a fé, os tipos matreiros, o esmagamento dos
direitos e a ânsia de liberdade expressos pelas personagens durante as
apresentações de mamulengo. Ao fazer uso do mamulengo, Suassuna devolve
ao povo, de uma maneira singular, os elementos da mítica do Nordeste. O
poeta paraibano amalgama diversas culturas, diversos gritos sufocados, diversos
medos e anseios, e junta “a matéria do homem à matéria do boneco para uma
transfiguração. A alma do homem dá ao boneco também uma alma. E nesta
pureza, realizam um ato poético” (citação de Hermilo Borba Filho na parede
do Museu do Mamulengo, Espaço Tirida, em Olinda - PE).
A seca, a poeira, a aridez do sertão nordestino transparece nos versos
de Suassuna ao representar a imagem do flagelo da seca, como também no
amor de Romeu e Julieta ao ser comparado com a água que sacia a sede. Na
adaptação de Suassuna, “o Amor é água pura / que em nossas almas cai, / e
o desejo de vingança / na sede do Amor se esvai” (SUASSUNA, 1997, p. 5).
O amor para o poeta é mais intenso, pois é representado como a água pura
que sacia a sede, que purifica. Somente o amor perdoa, inclusive perdoaria a
vingança que Romeu jurou um dia fazer acontecer. O sertão devastado pela
poeira e seca é uma imagem recorrente na adaptação de Suassuna.
A religiosidade do povo nordestino é aludida na peça quando o
dramaturgo traz expressões e elementos que remetem à religião católica e que
estão presentes no dia-a-dia da população daquela região do país, como “confie
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em Nosso Senhor!” ou quando Romeu despede-se de Julieta e menciona: “Se
algum dia tu souberes / que eu, longe de ti, morri, / murmura a Deus uma
prece”; o uso do terço pela mãe de Romeu ou quando Romeu declara à
Julieta que se inebriou com tanta beleza da jovem: “sinto meu peito chagado!
/ Por teus olhos verde-azuis, / eu fiquei enfeitiçado [..]” (SUASSUNA,1997,
p. 6). A imagem da chaga pode ser considerada uma das mais significativas no
contexto da recepção, pois Romeu expressa seu amor por meio de uma imagem
dolorosa, uma imagem reproduzida nos altares de igrejas e residências, nas
procissões religiosas e nos oratórios.
A chaga nos remete igualmente ao sofrimento das chagas de Cristo. O
Cristo que venceu a morte e resgatou o homem de seu pecado original, o
homem destituído de sua imortalidade primordial [...] Aqui predomina a
fé e a religiosidade do sertanejo: a representação que ele faz de sua morte é
inseparável daquela da morte de Cristo [...] Este homem do sertão sabe
com uma consciência precisa que ele não comunga com Cristo senão no
sofrimento e na morte. Ele vive a morte em toda acepção da palavra, antes
que ela lhe chegue, porque ele vive constantemente cercado pela morte.
(MACHADO, 2005, p. 189-90)
A proposta de Suassuna é trazer o teatro para o povo; as matrizes
populares brasileiras e lusas se encontram enraizadas no subsolo do medievo
nordestino. Essa arte, inspirada na terra, traz à tona o espírito do nordestino.
A narrativa de Romeu e Julieta na adaptação de Suassuna é um complexo
hipertexto que dialoga com todos os outros hipotextos que a antecederam,
formando uma rede intertextual de múltiplas identidades. Os desvios e as
descontinuidades entre hipotexto e hipertexto são salutares e desejáveis, uma
vez que o universo cultural está em constante mutação. As metamorfoses das
especificidades estéticas, conceituais, temáticas e ideológicas constituem um
movimento incessante que nunca atinge forma definitiva, visto que, cada vez
que uma narrativa é (re)apropriada, ela adquire novos contornos e nuanças
em função da progressão temporal, do deslocamento espacial e do imaginário
cultural.
Suassuna, por meio da recriação de Romeu e Julieta em solo brasileiro,
denuncia a medievalidade em que se fundamentam os valores calcados nos
códigos de honra e vingança do sertão; ao mesmo tempo, o dramaturgo desvela
uma região com múltiplas manifestações da arte literária e teatral, onde se
propaga um verdadeiro inventário da cultura sertaneja com os espetáculos
populares.
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243
Nota
1
A história de amor de Fernando e Isaura, escrita por Suassuna em 1956, permaneceu
inédita até 1994, quando foi publicada no Recife pela Editora Bagaço. Somente em
2006 foi reeditada pela Editora José Olympio, ganhando projeção nacional.
REFERÊNCIAS
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Juazeiro do Norte: Tipografia São Francisco, 1957.
BORBA, Filho Hermilo. Espetáculos populares do Nordeste. 2. ed. Recife: Fundação
Joaquim Nabuco: Massangana, 2007.
BOTELHO, Theotonio de Paiva. O teatro épico de Ariano Suassuna: a construção de
uma narrativa erudita e popular. Rio de Janeiro, 2002. 342 p. Dissertação (Mestrado
em Teoria Literária) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
BULLOUGH, Geoffrey. Narrative and Dramatic Sources of Shakespeare. London:
Routledge and Kegan Paul, v. 1, 1957.
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v. 10, 2000.
CAMATI, Anna S. Critique of violence: The Shakespearean intertext in Polanski’s
The Pianist. In: Claritas. São Paulo. n. 12(2), nov. 2006, p. 9-23.
CARDOSO, Inês. Quaderna: um personagem entre narração e atuação. In: RABETTI,
Beti (Org.) Teatro e comicidades: estudos sobre Ariano Suassuna e outros ensaios. Rio
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________. A história do amor de Romeu e Julieta, de Ariano Suassuna: a peça e a
reelaboração de fontes matriciais. In: RABETTI, Beti (Org.). Teatro e comicidades: estudos
sobre Ariano Suassuna e outros ensaios. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 109-19.
CASO, Adolph. Romeo and Juliet: original text of Masuccio Salernitano, Luigi Da
Porto, Matteo Bandello, William Shakespeare. Boston: Dante University of America
Foundation, 1992.
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São Paulo: Art Editora, 1989, p. 37-48.
GIBBONS, Brian. Introduction. In: SHAKESPEARE, William. Romeo and Juliet. 3.
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GENETTE, Gerard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad. L Guimarães; M
Coutinho. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.
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Artigo recebido em 19 de junho de 2009.
Artigo aceito em 11 de setembro de 2009
Paulo Roberto Pellissari
Mestre em Teoria Literária pela UNIANDRADE.
Professor da FACEL e Universidade Positivo.
Membro do Centro de Estudos Shakespeareanos (CESh).
246
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
AS CONTRADIÇÕES DE FREI LOURENÇO
NOS FILMES DE WISE, ZEFFIRELLI E LUHRMANN
Luciana Ribeiro Guerra
[email protected]
Anna Stegh Camati
[email protected]
RESUMO: Na peça Romeu e Julieta, escrita
por Shakespeare, Frei Lourenço se destaca
pela ambiguidade presente não somente
em seu discurso, mas também em suas
ações. As adaptações fílmicas de Robert
Wise (1961), Franco Zeffirelli (1968) e Baz
Luhrmann (1996) lançam nova luz sobre
o caráter prismático do frei, mostrandonos como a dualidade vício/ virtude
permeia sua essência. Em West Side Story,
Doc, embora parcialmente inspirado em
Frei Lourenço, é a personagem que mais
aparece modificada ao ter suas funções
religiosas suprimidas devido à mudança
do Zeitgeist, revelando, dessa forma,
como a juventude americana da década
de 1950 se mostrava distante da religião.
No filme Romeu e Julieta, de Zeffirelli, a
redução de falas e a reconfiguração da
caracterização do frei por meio de imagens
e da mise-en-scène sublinham a
ambiguidade da personagem. Em
William Shakespeare’s Romeo+Juliet,
Luhrmann cria um religioso mais
intrigante do que nunca: além de ser
alcoólatra, seu figurino, shorts e camisetas
floridas deixando o peito à mostra,
juntamente com sua composição física,
com tatuagens, já nos oferecem indícios
de suas inúmeras contradições.
ABSTRACT: Shakespeare’s play Romeo
and Juliet highlights Friar Lawrence who
exhibits ambiguities not only in his
speech, but in his actions as well. The
film adaptations of Robert Wise (1961),
Franco Zeffirelli (1968), and Baz
Luhrmann (1996) shed additional light
on the prismatic character of the friar,
showing us how the duality vice/ virtue
permeates his essence. In West Side Story
there is Doc who, although partially
modeled on the friar, appears most
modified with the religious function
removed by the demands of the Zeitgeist,
conveying how the American youth of
the 1950s was skeptic about and distant
from faith issues. In Zeffirelli’s Romeo and
Juliet, the condensation of lines and the
reconfiguration of character development
achieved by the interplay of images and
mise-en-scène reinforce the ambiguity of the
friar’s persona. In William Shakespeare’s
Romeo +Juliet, Luhrmann creates a religious
man more scheming than ever: besides
being an alcoholic, his costume, shorts
and unbuttoned flowered t-shirts, as
well as his physical appearance, with
tattoos over his body, call attention to
the contradictions that move him.
PALAVRAS-CHAVE: Romeu e Julieta. Frei Lourenço. Adaptações fílmicas. Tradução
cultural.
KEYWORDS: Romeo and Juliet. Friar Lawrence. Film adaptations. Cultural translation.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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Introdução
As adaptações de romances ou textos canônicos para o meio fílmico
se tornaram muito populares. No entanto, foi somente após o surgimento das
teorias pós-estruturalistas que a hierarquia entre romance e filme começa ser
abolida. Robert Stam (2006, p. 21-2) comenta que, a partir desse período, a
adaptação começa a ser vista como uma forma de crítica ou leitura do romance,
que não está necessariamente subordinada a ele ou atuando como parasita de
sua fonte. Ou seja, as diversas textualidades estão em relação de complementaridade.
Anne Ubersfeld (2002, p. 11) em seu artigo “A representação dos clássicos:
reescritura ou museu?” problematiza o conceito de ‘clássico’ e assevera que
“poderíamos, de modo geral, considerar clássico tudo aquilo que, não tendo
sido escrito para nós, mas para outros, reclama uma ‘adaptação’.” Linda
Hutcheon (2006, p. 9) afirma que “uma adaptação é uma derivação que não
é derivativa – uma obra que é segunda sem ser secundária. É seu próprio
palimpsesto.” Com o avanço das ciências humanas, a obra clássica não é mais
tida como “um objeto sagrado, depositário de sentido oculto, como o ídolo no
interior do templo, mas, antes de tudo, a mensagem de um processo de
comunicação” (UBERSFELD, 2002, p. 12).
A partir desses postulados teóricos tornam-se cada vez mais frequentes
as releituras de obras clássicas e suas transposições para o cinema. Os inúmeros
filmes idealizados a partir de releituras das peças do Bardo contribuem para a
imortalização tanto da figura de William Shakespeare quanto de suas obras.
Shakespeare ganha então um novo status – o de ícone da cultura de massa –
com a popularização de suas histórias exibidas nas salas de projeção. São
inúmeras as razões que levam diretores a escolherem peças do dramaturgo
para serem transpostas para a grande tela. Produzir e ser bem sucedido em
uma adaptação de Shakespeare é sempre um desafio a ser vencido. O fato
das obras de Shakespeare se encontrarem em domínio público também
impulsiona muitos diretores a produzir adaptações de suas peças. Outra razão
é que as adaptações conseguem atrair multidões para as salas de exibição,
gerando um ótimo retorno financeiro.
Dentre as inúmeras adaptações de Romeu e Julieta feitas para o cinema
no século XX, West Side Story (MGM Studios, 1961), Romeo and Juliet
(Paramount Pictures, 1968) e William Shakespeare’s Romeo + Juliet (Twentieth
Century Fox, 1996) merecem atenção especial. As três películas tiveram, além
do apelo jovem e do imenso retorno financeiro, grande repercussão junto à
crítica por descortinarem a contemporaneidade das décadas de 1950, 1960 e
1990. A personagem Frei Lourenço é apresentada de maneira distinta nessas
versões, assumindo contornos completamente diversos.
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
É importante salientar que o filme é um produto completo e acabado,
isto é, ele é uma gravação de uma performance. Ele é mostrado às audiências de
cinema, vídeo e DVD, que se encontram longe em tempo e espaço da
performance original. Como resultado, o filme não pode ser afetado pela audiência,
o que necessariamente ocorre no teatro, onde a performance é contínua e ao
vivo. Obviamente, o tipo de interação entre o palco e a platéia será muito
diferente daquele entre o filme e a audiência, conforme observa Maurice
Hindle (2007, p. 5). O teatro é um meio de comunicação baseado na convenção,
enquanto o cinema é um meio representacional, que produz uma impressão
da realidade, comenta Michèle Willems (1994, p. 70-1). As duas dimensões da
imagem na tela criam o efeito de uma ilusão em três dimensões que estimula
o público a entrar passivamente em um mundo que eles percebem como real.
Em um primeiro momento, teatro e cinema, para se comunicarem com seus
públicos, contam com signos: signos auditivos como as palavras ditas pelos
atores, música e outros sons; signos visuais como o figurino, cenário, iluminação
e, algumas vezes, efeitos especiais. No entanto, a similaridade entre os meios
teatral e fílmico encerra-se aí. A crítica ainda aponta que, no palco, todos os
signos são subordinados ao discurso. Ou seja, no teatro prevalece a palavra e
sua função primária é a de invocar todo o universo do drama. E, se no teatro
as palavras exercem papel primordial, no cinema, elas são secundárias: a função
do diálogo é seguir a imagem. A respeito do teatro de Shakespeare, Willems
afirma:
Mas, na maior parte do tempo a linguagem de Shakespeare acusa camadas
de significação; ela não apenas carrega a energia dramática, como também
está repleta de símbolos e redes de metáforas. A tela, ao contrário, dirige seu
público através de imagens que usualmente substituem palavras, tanto que
as palavras parecem fora de lugar e muitos discursos podem ser prejudiciais
ao efeito do filme. (WILLEMS, 1994, p. 70)
Sarah Hatchuel (2005, p.33) explica que os estudos sobre filmes
chegaram à conclusão que o cinema une os atos de mostrar e narrar, além de
introduzir a figura de um narrador exterior. Segundo ela, um filme é
normalmente feito em três fases. A primeira fase pode ser comparada à direção
teatral e organiza o que ocorre em frente às câmeras (atuação, mise-en-scène,
cenário). A segunda fase se concentra no trabalho de câmera durante a
filmagem. Então, na terceira e última fase, as imagens são colocadas juntas,
em um processo de montagem e edição. Tal processo compreende a figura de
um narrador virtual que dirige o olhar do espectador.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
249
1 A personagem Doc no filme West Side Story, de Robert Wise
O filme de Wise reflete o mundo jovem, realçando principalmente a
característica adolescente de resolver os problemas e situações entre eles
mesmos. Partindo da premissa que nenhum adulto os entenderá, os jovens do
filme se mostram desconfiados em relação a qualquer interferência das únicas
pessoas maiores de idade mostradas na tela – e eles têm inúmeras razões para
isso: o Tenente Schrank e o Oficial Krupke são obrigados a conter a violência
no bairro, porém a única coisa que conseguem realizar de fato é intensificar
ainda mais o preconceito racial que separa os Jets dos Sharks. Doc, nosso
objeto de estudo, apesar de bem-intencionado, nada consegue fazer
efetivamente para evitar a tragédia. Ele não percebe que, em se lidando com
jovens, não basta apenas querer entendê-los: é preciso fazer alguma coisa. O
Tenente Schrank alude à isso quando diz: “Bem, tente manter esses delinquentes
na linha e veja o que isso faz com você”.
Doc aparece em cena pela primeira vez à noite, na porta de sua loja,
onde os Jets se reuniam. Riff, o líder dos Jets, comunica que a loja não será
fechada naquele momento e o comerciante não se opõe, provavelmente porque
não deveria recusar qualquer tipo de clientela. No entanto, é interessante
observar sua atitude irônica quando fica sabendo que o conselho de guerra
seria realizado em seu estabelecimento, mas o inocente Baby John não se dá
conta do sarcasmo:
Riff: Escute, nós temos um conselho de guerra aqui.
Doc: O quê?
Baby John: Para determinar as armas. Nós vamos nos encontrar com os
porto-riquenhos.
Doc: Armas? Vocês não poderiam jogar basquete?
Doc tenta mostrar aos Jets que o objeto de sua rixa com os Sharks – um
pedaço da rua – não tem importância. Ele chega a ser enfático a esse respeito,
ao afirmar que tal coisa interessa apenas a marginais, mas logo volta ao seu
tom de voz característico, mostrando sua apatia e descrença. O comerciante
tenta ainda dar conselhos e procura relatar como as coisas eram quando tinha
a idade dos Jets, mas é interrompido por Action. O jovem, em uma atitude
típica de adolescente, replica que ninguém sabe como é ter a sua idade. Doc
perde a paciência com Action e é duro com ele, fazendo uso do duplo
significado da palavra dig. Action a usa no sentido de entender profundamente, ou
como é melhor expressado, na forma da gíria ‘sacar’. O comerciante aproveitará
250
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
a oportunidade para alertá-los do perigo mortal engendrado pelo uso da violência.
Dessa forma, as palavras de Doc prefiguram acontecimentos futuros:
Action: Quanto mais cedo vocês se derem conta disso, mais cedo vão sacar a
gente!
Doc: Eu vou enterrá-lo em uma cova rasa, é isso o que eu vou sacar.
A loja de Doc reflete sua ambiguidade. O estabelecimento é dividido
em dois ambientes: a parte da frente é clássica e sofisticada, sendo toda revestida
em madeira. Nela encontramos armários com prateleiras, bancada e banquetas,
caracterizando uma típica loja de conveniências. A parte dos fundos se mostra
mais desleixada, com um ar de obra inacabada. Suas paredes, com o reboco a
mostra, contêm rabiscos e pichações, com os nomes de membros dos Jets.
Encontramos mesas com cadeiras e mobiliário próprio para o entretenimento
juvenil: jukebox, alvo para dardos e uma mesa de pinball. É nesse ambiente que
Jets e Sharks se reúnem para o conselho de guerra.
Com a chegada do Tenente Schrank na loja, todos simulam um
ambiente de confraternização. No entanto, o comentário do comerciante
contrasta com o que é apresentado: “Boa noite, tenente. Tony e eu já estávamos
fechando”. Schrank também usa a ironia para se aproximar dos jovens, dizendo
que está emocionado em ver o quão rapidamente eles seguiram seu conselho
(a respeito de fazerem as pazes). A impotência de Doc frente à situação de
violência instaurada no bairro chega ao seu ápice quando o tenente, sem
nenhuma intenção de pagar, pega um chocolate e pergunta ao comerciante se
ele se importa (“Do you mind?”). Mais uma vez Doc usa o jogo de palavras,
dessa vez mind significando pensamento, para revelar seu estado de espírito:
“Eu não penso. Eu sou o idiota do bairro”.
A personagem só aparecerá novamente depois que a briga entre os
rivais tiver feito de Riff e Bernardo vítimas. Sabemos, através dos Jets que
Tony está escondido nos fundos da loja e que Doc está juntando todo o
dinheiro que possui para tornar possível a fuga de Tony – assassino de
Bernardo. Anita aparece na loja para dar o recado de Maria à Tony, mas é
impedida pelos Jets que desconfiam dela. Depois de insistir em falar com o
protagonista, ela é quase estuprada. O comerciante chega a tempo de salvar a
moça que, furiosa, decide entregar uma mensagem falsa: ela inventa que Chino
descobriu o relacionamento entre Tony e Maria e a matou. Indignado com o
ato dos Jets, ele exclama antes de expulsá-los dali: “Quando vocês irão parar?
Vocês tornam esse mundo péssimo”. Doc se dirige a Tony, munido não
apenas com o dinheiro reunido, mas também com a notícia sobre a morte de
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
251
Maria. O jovem, desconhecendo o (falso) destino de sua amada, compartilha
seus planos com o chefe que, desesperado com o destino violento e inesperado
de seu funcionário, o esbofeteia – assim como Frei Lourenço, do filme de
Zeffirelli, fará quase oito anos mais tarde – para que ele seja realista. Sua
indignação ainda se faz presente através da expressão gestual – punhos cerrados
– e dos diálogos que se seguem, ainda incompreensíveis para Tony, pois este
nada sabia a respeito da pretensa ‘morte’ de Maria:
Doc: Acorde! Essa é a única maneira para me comunicar com vocês? Fazer o
que todos vocês fazem? Estourar como um cano de água quente?
Tony: O que deu em você?
Doc: Por que vocês vivem como se estivessem em guerra? Por que vocês
matam?
Doc demora e reluta em dar a notícia do assassinato de Maria por Chino a
Tony. Desesperado, o jovem sai de seu esconderijo a procura do assassino de
sua amada. Doc e Tony não voltarão a se encontrar. A última participação do
comerciante se dá na cena final, em que todos – Jets, Sharks, Tenente Schrank,
Oficial Krupke e Doc – rodeiam o corpo de Tony e da sofrida Maria que
chora convulsivamente e lamenta a perda de seu amado, mas não se mata.
O diretor de West Side Story retira da personagem Doc quase todas as funções
narrativas atribuídas à Frei Lourenço: realizar o casamento secreto, elaborar o
plano da falsa morte de Julieta (resgatada pela personagem Anita), preparar o
sonífero, enviar carta à Romeu (através de Frei João), explicando seu plano,
liderar o cortejo fúnebre de Julieta e aguardar o despertar da jovem na tumba
dos Capuletos. A única função da personagem Frei Lourenço preservada em
Doc por Wise é a de confidente de Tony (Romeu). Além dessa função ele
acumula a de Baltazar, visto que informa Romeu/ Tony sobre a morte de
Julieta/ Maria. O resultado é uma modificação estrutural da personagem. Na
peça shakespeariana, o papel do religioso é central, suas ações estão intrinsecamente
ligadas ao desenrolar da tragédia. No filme de Wise, porém, ao transformar o
frei em confidente, suas ações são levadas para a margem da história: ele
tenta, sem sucesso, dar conselhos aos jovens e fornece dinheiro para que
Tony fuja com Maria. Doc é, então, constituído como uma personagem
secundária, embora também apresente uma série de contradições. É importante
notar, ainda, que a exclusão de qualquer simbologia religiosa na personagem
serve apenas para ressaltar a inexistência da fé entre a juventude americana
da época.
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
2 Frei Lourenço em Romeo and Juliet, de Franco Zeffirelli
A performance de Milo O’Shea como Frei Lourenço é marcante no
filme, pois explicita, muitas vezes de modo não-verbal, a contradição inerente
à personagem. Michael Anderegg observa a seu respeito:
O frei de Milo O’Shea exibe explicitamente o modo contraditório com que
Shakespeare concebeu sua personagem. Frei Lourenço é um trapalhão bemintencionado ou um manipulador sinistro? Ele é movido por considerações
de religião, vaidade ou por mera conveniência? Shakespeare dá ao frei um
discurso explicativo longo, cortado em todas as versões fílmicas em parte
por causa de sua extensão e posicionamento aparentemente anti-climático,
mas também por seu efeito duplo de chamar a atenção para suas
maquinações ao mesmo tempo em que ele se desculpa pelas consequências
(“eu próprio por mim condenado e absolvido” V.3.227). Inconsistente em
um mundo de ação, o frei, na performance de O’Shea, é alternadamente
solidário e sinistro. No final, a figura mais compreensiva com os jovens
acaba desacreditada. (ANDEREGG, 2004, p. 70)
A primeira participação do frei no filme, assim como na peça, ocorre
na madrugada do baile, quando Romeu pede sua ajuda para celebrar seu
casamento com Julieta. Zeffirelli mantém 42,6% das linhas proferidas nessa
cena. O religioso é leniente com o comportamento de Romeu que havia
passado a noite em claro. O tom de voz e a expressão corporal do frei mostram
agressividade ao ser solicitado para celebrar a união dos jovens, deixando
claro dessa forma que não aprova tal situação. É com a contemplação da
imagem de Jesus crucificado que o religioso vê oportunidade para pacificar as
famílias inimigas.
Sua segunda cena – a do casamento de Romeu e Julieta – é a mais
respeitada: 78,9% das falas do religioso se mantêm no filme. E, embora o alto
índice de permanência do texto de Shakespeare possa sugerir que Zeffirelli
tenha retido muito do texto teatral, profundas e significativas alterações
ocorrem: o casamento é realizado dentro da igreja, diante do altar; o encontro
de Romeu e Julieta se dá com beijos intensos e demorados, e é com dificuldade
que o religioso os aparta.
Zeffirelli mantém 42% das falas do religioso em sua terceira aparição.
O diretor retira a função do frei de informar o banimento de Romeu para
Mântua, vemos somente o protagonista em prantos prostrado no chão
enquanto o religioso o observa de perto. Com a tentativa de suicídio de Romeu,
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
253
o comportamento do frei se modifica mais uma vez. Ele se mostra ríspido e
enérgico com o jovem, repreendendo-o severamente. Depois de jogar para o
lado a faca com a qual Romeu queria se matar, Frei Lourenço puxa o jovem
com força, fazendo-o se levantar, ao mesmo tempo em que diz “ponha-se de
pé” (III.3.134). Quando este se coloca de pé, o frei o agride e o coloca,
literalmente, contra a parede. Romeu, então, acuado, escuta o religioso lhe
falar sobre a sorte que tem. Ainda de maneira ríspida o frei o aconselha a
procurar Julieta. O semblante do religioso só se modifica quando este, ao falar do
futuro, imagina Romeu obtendo o perdão do Príncipe para retornar à Verona.
Em sua quarta aparição, aproximadamente 53,6% das linhas de
Shakespeare são preservadas e a cena também se dá nas dependências da
Igreja. O religioso é mostrado ao lado de Paris com a mão no queixo, em sinal
de preocupação ao receber a notícia de que seu casamento com Julieta já fora
marcado. Suas mãos revelam agitação e nervosismo: ele as esfrega
constantemente, além de passá-las sobre a sua barriga. Seu semblante se torna
mais sério ainda quando Julieta interrompe sua conversa com Paris e seu
olhar temeroso se alterna entre a jovem e seu pretendente. Com a saída do
jovem as mãos do frei se colocam como em oração e seus olhos fixam-se em
um ponto: o cesto de flores. Ele pega com delicadeza uma flor de dentro do
cesto, acende uma vela e revela, de maneira lenta e calma, o seu plano. O
sonífero é preparado na frente de Julieta, porém ele se mostra reticente ao
entregar o frasco à jovem. Quando se encontra sozinho seu rosto se mostra
aterrorizado e seus punhos e olhos aparecem cerrados, provavelmente em
sinal de medo e apreensão. O contraste entre claro e escuro é enfatizado: com
seu plano prestes a ser concretizado, ele apaga a vela que se encontra na
bancada de seu laboratório. A fumaça e a escuridão produzidas acarretam
uma modificação em seu semblante, em uma clara prefiguração da tragédia,
tão presente nas falas da personagem na peça de Shakespeare. Hindle (2007,
p.174) também comenta essa cena quando diz: “uma ação que até ele mesmo
percebe como sendo perigosamente simbólica”. Outra observação importante
a respeito dessa cena diz respeito ao uso da flor. Na peça, o religioso usa a flor
de alecrim como um elemento ambíguo, representando o casamento e a morte,
realçando dessa maneira seu caráter multifacetado. Zeffirelli resgata a função
da flor, assim como sua relação intrínseca com a personagem, fazendo com
que seja usada como matéria-prima para o sonífero, siblinhando dessa forma
a importância de sua simbologia.
O diretor italiano cria uma cena envolvendo a personagem do frei a
fim de substituir a cena V.2 em que Frei João (em Shakespeare) narra como
não obteve sucesso em entregar a mensagem para Romeu. O religioso entrega
a carta a outro frei, pertencente à mesma ordem religiosa e que se encontra
de partida. Frei Lourenço diz “Entregue esta carta nas mãos de Romeu, em
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Mântua”, coloca a carta dentro da sela e o frei que não recebe nome no filme
lhe beija a mão. Zeffirelli ainda irá nos mostrar, apenas através de imagens,
todo o percurso que tal frei faz para entregar a mensagem a Romeu e como
os dois se desencontram.
O diretor também elimina a presença do frei na casa dos Capuletos
no momento em que Julieta é descoberta morta (IV.5), fazendo-o participar
apenas da procissão de enterro da jovem. O frei segue a frente do cortejo,
segurando uma cruz. Ao colocarem o corpo de Julieta em frente à tumba dos
Capuletos, o religioso, ao ver o rosto sereno da jovem, sorri, mas imediatamente
se recorda do seu plano e volta a apresentar um semblante sério. Russell
Jackson (2007, p. 200) também faz menção a esse episódio ao comentar:
“Frei Lourenço [...] tem que lembrar a si mesmo de parecer apropriadamente
solene”. Ao sugerir que o religioso colocará o ‘corpo’ da jovem na tumba dos
Capuletos, Zeffirelli evoca a versão de Bandello.
A última participação do frei no filme preserva apenas 18,7% das
falas do religioso. Ele vê o corpo de Romeu, próximo ao de sua amada e está
presente no despertar de Julieta. Seu rosto se ilumina ao ver que a jovem está
viva e em boas condições. Porém, ele não responde suas perguntas insistentes
acerca de seu marido. Frei Lourenço tenta persuadi-la a sair o mais rápido
possível dali, mas ela se recusa. Ele se apavora com a aproximação do barulho
que vem de fora e, repetindo a mesma fala quatro vezes, cada vez em voz
mais alta e mais tensa, encerra a sua participação no filme dizendo: “Eu não
me atrevo a ficar aqui mais tempo” (V.3.159).
A coexistência do bem e do mal na personagem, tão marcada em
Shakespeare, é suavizada por Zeffirelli. A fala que melhor traduz a natureza
do frei é cortada, embora esteja presente em todas as suas atitudes. Ele faz
aquilo que julga ser correto em sua mente e seu coração, porém as
consequências de seus atos nem sempre se revelam boas. Objetivando
sedimentar a pureza de coração do frei, o diretor procura retirar cenas e
diálogos que revelam a essência obscura do religioso, como, por exemplo, o
episódio em ele vai até a casa dos Capuletos para consolar a família pela
‘morte’ de Julieta (IV.5). Os diversos acontecimentos da história suscitam
emoções no frei que só podem ser explicadas pela sua relação quase paternal
com Romeu. E, se por um momento sua agressividade com o protagonista
(quando este é banido) assusta o espectador desavisado, ela é facilmente
compreendida por aqueles que percebem a angústia e o desespero de um pai
ao ver o sofrimento de seu filho. Ele age principalmente por amor. No entanto,
seus impulsos são contrabalançados pelo medo. Não sabemos ao certo se ele
teme o rigor das leis de Verona, a fúria das famílias inimigas, o Clero, ou até
mesmo o castigo de Deus. Ao mesmo tempo em que segue seu coração e
participa cada vez mais da história de amor de Romeu e Julieta, ele se apresenta
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aterrorizado com as possíveis consequências e reviravoltas do amor clandestino
e sua última participação no filme é um bom exemplo disso.
3 Frei Lourenço em William Shakespeare’s Romeo + Juliet, de Baz
Luhrmann
O traço mais marcante de Frei Lourenço no filme é o alcoolismo
que move as ações da personagem. Seu comportamento também pode ser
explicado pelo binarismo vício (da bebida) e virtude (suas boas intenções de
acabar com a inimizade entre as famílias). Todos os ambientes de Frei Lourenço
contam com garrafas de bebidas alcoólicas. A câmera captura uma garrafa de
tequila na estufa, em cima do balcão do laboratório; uma garrafa de whisky ao
lado de alguns livros, na sacristia; e outra garrafa de tequila em seu quarto, ao
lado de alguns remédios.
Os contrastes entre os conselhos e as ações da personagem também
são enfatizadas na versão de Luhrmann. O religioso repreende Romeu por
estar acordado tão cedo (II.3.29-30) e diz que isso revela um problema de
saúde do jovem. Porém, ao mesmo tempo em que afirma tal coisa, o frei
toma uma dose de tequila. Ou seja, ele oferece conselhos sobre como cuidar
bem da saúde, mas não os segue, visto que seu problema com o alcoolismo
não é tratado. A bebida revela mais do que uma propensão ao vício. Frei
Lourenço faz uso dela um pouco antes de realizar duas coisas importantes:
celebrar a missa matinal, o que indica uma possível falta de vocação para a
vida religiosa; e antes de concordar em realizar o casamento secreto de Romeu
e Julieta. E, embora ele vislumbre a paz entre as famílias, não podemos precisar
quem é o vencedor dessa batalha interna – o vício ou a virtude. Hindle (2007,
p.180) parece acreditar na fé que ele tem em poder acabar com a inimizade,
entretanto, ressalva sua condição de viciado em bebida. Luhrmann fornece
uma sequência de imagens que ilustram a visão do religioso a respeito do fim
da rixa que inclui, entre outros, cartazes retratando as brigas entre as famílias:
sendo consumidos pelo fogo, manchetes com fotos de Montéquio e Capuleto
fazendo as pazes, e uma pomba entrando no Sagrado Coração de Jesus.
A presença do destino e da morte eminente que atrapalham os planos
de Frei Lourenço é revelada através dos cortes realizados pelo diretor. Vemos,
na missa, as mãos estendidas do frei em sinal de acolhimento e recepção –
gesto repetido por um jovem cuja caracterização remete à gangue dos
Montéquios, numa clara alusão ao modo com que os planos do religioso são
arruinados. Em seguida, uma mulher escondida que a tudo observa é mostrada,
simbolizando a morte que se encontra à espreita, aguardando o momento
certo para entrar em cena. O barulho de tiro que a acompanha deixa claro à
qual antecipação ela se refere: a morte de Teobaldo Capuleto.
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O casamento de Romeu e Julieta é realizado, tendo como testemunhas
Baltazar, a Ama e o motorista da família Capuleto. Embora se encontre
paramentado, o frei não dá indicações de seguir a liturgia matrimonial. Porém,
demonstra preocupação e pede cautela ao casal – e não somente a Romeu,
como ocorre na peça – quando profere as linhas II.6.9-12 e 14. A última fala
do frei durante o casamento parece estar fora de lugar, principalmente quando
a comparamos com a versão de Zeffirelli. No entanto, tal frase ganha outro
significado, que é o de atribuir responsabilidade aos jovens pelo fim da discórdia
entre suas famílias.
Luhrmann retém um pouco mais de 25% das falas do frei encontradas
em III.3 – porcentagem bem menor do que a de Zeffirelli, que perfaz 42%.
Isso ocorre, principalmente, porque o diretor australiano propõe alterações
significativas no enredo. Romeu, por exemplo, não tenta se matar, o que não
gera a necessidade de um discurso de reprovação por parte do frei usando a
famosa frase: “Contém tua mão desesperada. És homem ou não?”. O fato de
não se arrepender por ter matado Teobaldo e só se preocupar com o fato de
ficar longe de sua amada, faz com que Romeu se apresente mais sereno, o
que, por sua vez, diminui a tarefa de Frei Lourenço em acalmá-lo.
O caráter multifacetado do frei também é mostrado através do choque
entre o santo e o profano que ele carrega em si mesmo, que transparece não
somente pelas motivações dúbias do religioso, mas também por meio de sua
caracterização física. A camisa usada por ele, por exemplo, evoca as máscaras
de Janus: ao olhá-la de frente temos uma camisa social branca clássica; de costas
a transgressão aparece sob a transparência, na forma da sua tatuagem à mostra.
É interessante observar que além da função de ordenar que o corpo
da protagonista seja levado para a igreja (IV.5.80-1), o religioso atesta o falso
óbito de Julieta, embora o quarto da jovem esteja cercado de paramédicos.
Luhrmann também preserva na personagem a função de coordenar o funeral,
que como muitos críticos já apontaram é caracterizado pelo excesso de flores
e símbolos religiosos, tais como cruzes em neon. A função de informar Romeu
sobre a morte de Julieta é desempenhada por Baltazar, assim como na peça.
O religioso chega a avistar este último na igreja, mas ele foge, reforçando a
ideia de que o destino trágico dos amantes já havia sido traçado.
A cena V.1 em que Romeu é informado sobre a morte de Julieta e
procura um boticário para comprar veneno, é intercalada por trechos de V.2,
em que o religioso fica sabendo que Romeu não havia recebido sua carta. O
diretor substitui a personagem Frei João, incumbida de entregar a carta ao
jovem, por dois agentes dos correios que vão, sem sucesso, até seu trailer e
não o acham em casa. A percepção da personagem de que o tempo é escasso
é mostrada através do constante barulho ‘tic tac’ que aparece como fundo. O
religioso acorda assustado em sua estufa, com o barulho de helicópteros
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sobrevoando o centro da cidade e se dá conta da hora adiantada, antecipando
a fala V.3.135-6 para esse momento. Luhrmann também mantém parte do
diálogo em que Frei João devolve a carta dizendo que não foi capaz de entregála, mas a transforma em uma conversa entre o frei e uma funcionária dos
correios. O religioso se dá conta do que a falta da carta pode acarretar e diz:
“Romeu não está a par desses acidentes. Eu escreverei novamente para Mântua”.
É ainda na agência Post Haste que ocorrem as últimas falas – e consequente
participação – de Frei Lourenço: “Dentro de uma hora a bela Julieta despertará”
e “Ela se mexe. A dama se mexe”.
Na versão de Luhrmann, Frei Lourenço se mostra incompetente ao
lidar com situações adversas, como a morte de Teobaldo e o problema da
entrega da carta, entregando-se, como já de costume, à bebida. Diferentemente
da peça de Shakespeare e da adaptação de Zeffirelli, o religioso não vai ao
encontro de Julieta ao saber que a jovem acordaria sozinha sem a companhia
de seu amado, acentuando dessa forma a covardia do frei.
Conclusão
Ao estabelecermos Shakespeare como ponto de partida para nossa
análise de Frei Lourenço nas diferentes versões fílmicas de Romeu e Julieta,
verificamos que o Bardo também se torna ponto de chegada. Notamos que
os processos de adaptação realizados contribuem, em maior ou menor grau,
para um melhor entendimento da própria personagem shakespeariana. Os
cortes, as inserções, transformações, entre outros, ocorridos nessas adaptações
lançam luz sobre a engenhosidade com que Shakespeare constrói Frei
Lourenço.
Em Amor Sublime Amor, de Robert Wise, a personagem Doc sofre
grande transformação: sua função religiosa é suprimida e ele permanece apenas
como confidente do protagonista, resultando em um ‘apagamento’ da
personagem, que não participa efetivamente de nenhuma das ações principais
da trama. Em Romeu e Julieta de Franco Zeffirelli, a personagem Frei Lourenço
sofre cortes extensos, principalmente no que se refere aos seus pensamentos
filosóficos em favor da inserção constante de sentimentos passionais, resultando
em uma maior ambiguidade da personagem. Frei Lourenço, em William
Shakespeare’s Romeo+Juliet, de Baz Luhrmann, sofre processo semelhante: Luhrmann
realiza inúmeros cortes nas falas da personagem, principalmente as mais reflexivas,
a fim de priorizar o ritmo frenético da ação, produzindo resultados semelhantes
ao do diretor italiano.
É significativo o fato que a personagem Frei Lourenço, embora tenha
passado por diversos processos de adaptações que incluem os infindáveis
cortes, transformações e inserções, continue a “resistir” bravamente. Seu status
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“humano” com suas contradições e paradoxos ainda caracterizam a personagem
em todas as adaptações estudadas. Shakespeare, ao construir a personagem, imprime
em Frei Lourenço uma energia inesgotável e indestrutível. Talvez seja essa a
verdadeira natureza acerca dos estudos das adaptações shakespearianas: a idéia
paradoxal de que quanto mais procuramos nos afastar do texto de Shakespeare,
mais voltamos a ele. E, a trajetória percorrida pela personagem Frei Lourenço,
comprova isso.
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Artigo recebido em 23 de abril de 2009.
Artigo aceito em 27 de julho de 2009.
Luciana Ribeiro Guerra
Mestre em Teoria Literária pela UNIANDRADE.
Membro do Centro de Estudos Shakespeareanos (CESh).
Anna Stegh Camati
Pós-doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Doutora em Língua Inglesa e Literaturas Inglesa e Norte-Americana pela Universidade
de São Paulo (USP).
Professora Titular de Literatura Inglesa e Norte-Americana da UNIANDRADE.
Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE.
Editora da revista Scripta Uniandrade.
Membro do Centro de Estudos Shakespeareanos (CESh).
Membro da International Shakespeare Association (ISA).
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REESCREVENDO A TEMPESTADE :
PERSONAGENS SHAKESPEARIANAS EM INDIGO,
DE MARINA WARNER*
Maria Clara Versiani Galery
[email protected]
RESUMO: O artigo discute A tempestade,
de Shakespeare, como um texto que
resiste às classificações mais convencionais
e que tem sido lido, interpretado e
reescrito de forma radical por leitores e
críticos de diversos países. Considera A
Tempestade como uma obra que tem
fomentado discursos ideológicos
diversos, sobretudo na segunda metade
do século XX. Privilegiando abordagens
pós-coloniais e feministas, o artigo
procura traçar a trajetória de personagens
shakespearianas na reescrita da peça,
dando ênfase a Miranda e Calibán. Assim,
o ensaio busca refletir como as reescritas
da Tempestade, particularmente o romance
Indigo, Or Mapping the Waters, de Marina
Warner, oferecem uma alternativa ao
contexto patriarcal da Tempestade,
resgatando vozes silenciadas na peça de
Shakespeare.
ABSTRACT: This essay discusses
Shakespeare’s The Tempest as a text that
resists conventional classification; a play
that has been read, interpreted and
rewritten in a radical manner by readers
and critics worldwide. It considers The
Tempest as a work which has promoted
ideological discussion, especially in the
latter half of the twentieth century. The
essay also calls attention to postcolonial
and feminist readings of the play,
emphasizing the roles of Miranda and
Caliban. In this manner, it reflects on
how rewritings of The Tempest,
particularly Marina Warner’s novel Indigo,
Or Mapping the Waters, offer an alternative
to the patriarchal context of The Tempest,
recovering voices unheard in
Shakespeare’s play.
PALAVRAS-CHAVE: Estudos culturais. Feminismo. Pós-colonialismo. Revisão do
cânone. Apropriação.
KEY WORDS: Cultural studies. Feminism. Postcolonial criticism. Revision of the
canon. Appropriation.
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A Tempestade, peça do período final da produção teatral de Shakespeare
e encenada pela primeira vez em 1611, é um texto que resiste às classificações
mais convencionais. É, possivelmente, a obra do poeta lida e interpretada de
forma mais radical por leitores, escritores e artistas do mundo inteiro: embora
tenha sido classificada dentro de gêneros dramáticos diferentes, transcende às
classificações que buscam enquadrá-la como comédia, romance ou masque. A
ilha fictícia em que o enredo se desenvolve também já foi transposta para
diversas regiões do mundo. Na esfera da crítica, influência e significados da
peça cruzam múltiplas fronteiras, suscitando a mais ampla gama de leituras.
Dentre essas, é no âmbito dos estudos culturais que A Tempestade tem
fomentado discursos ideológicos diversos desde a segunda metade do século
XX, por meio de um enfoque interdisciplinar. Como afirma Chantal Zabus,
em seu livro sobre a peça de Shakespeare: “Writers of diverse ideological,
cultural, racial, and sexual persuasions have undertaken to rewrite The Tempest
after Shakespeare. Its particular resonance results from the unprecedented
conflation of postcoloniality, postpatriarchy, and postmodernism” (ZABUS,
2002, p. 7).
Foi na década de 80 que a crítica shakespeariana viveu um de seus
momentos mais profícuos, passando por várias mudanças e chegando mesmo
a impactar o estudo de outras literaturas de expressão inglesa. Nessa época,
leituras feministas das obras do poeta passaram a investigar o modus operandi
das relações de gênero nas peças. Abordagens alinhadas com o marxismo, tais
como o new historicism e cultural materialism, situaram as obras no contexto social
e político em que foram produzidas. O enfoque nas relações de gênero,
sustentado pela crítica feminista e pela queer theory, assim como a crítica póscolonialista, produziram novas interpretações dos textos. Recentemente, a
editora Routledge iniciou a publicação de uma coletânea de ensaios críticos
sobre cada uma das peças, com a finalidade de organizar uma antologia com
ensaios de scholars renomados. Na introdução do volume sobre A Tempestade,
o organizador Patrick M. Murphy comenta: “The Tempest has a complex history
of performances, editions, adaptations, parodies, rewritings, allusions and
critical interpretations”. Ainda afirma que “the relations among the dramatic
work, its sources, performances, reviews, printed editions, and criticism continue
to perplex the priorities and values of Tempest interpretations” (Citado em
FORTIER, 2002, p. 1039).
Além da série organizada pela Routledge, outras coletâneas importantes
sobre A Tempestade foram organizadas desde o início desta década, dentre as
quais se destaca, pela diversidade dos ensaios, o livro organizado por Peter
Hulme e William H. Sherman, The Tempest and Its Travels, publicado em 2001;
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e o estudo de Chantal Zabus sobre reescritas da peça desde o início do século
XX, Tempests after Shakespeare, de 2002.
Considerando este leque de abordagens em que questões políticas e
de gênero, além de interesses ideológicos, estão em evidência, alguns teóricos
demonstram preocupação com os riscos que as “leituras dissidentes”, que
ampliam os elementos potencialmente subversivos no texto, apresentam. É
importante não perder o texto dramático/literário de vista. Assim, pensando
o personagem shakespeariano como uma das principais formações discursivas
na obra de Shakespeare, scholars tais como Harry Berger, Michael Bristol e
Alan Sinfield estão entre os que reivindicam a necessidade de reavaliar o
papel dos personagens shakespearianos1. Não como um retorno ao estudo de
personagens (character criticism) alinhado com o essencialismo humanista, que
teve início no século XVIII e se consolidou com Bradley nas primeiras décadas
do século XX, mas a partir da mediação entre subjetividade e personagem,
crítica tradicional e pós-estruturalista.
Este ensaio procura traçar a reescrita de dois personagens shakespearianos:
Calibán e Miranda. Durante várias décadas do século XX, por meio de um
enfoque crítico pós-colonialista, estabeleceu-se uma oposição binária entre
Próspero e Calibán, onde as relações entre colonizador e sujeito colonizado
eram metaforizadas. Mais recentemente, em leituras e abordagens feministas,
o olhar crítico voltou-se para Miranda, o único personagem feminino da peça.
Este ensaio busca refletir como as reescritas da Tempestade, particularmente o
romance Indigo, Or Mapping the Waters, de Marina Warner, oferecem uma
alternativa ao contexto patriarcal da peça, resgatando vozes silenciadas no
texto de Shakespeare.
“This isle is full of noises”
Os ruídos que circundam a ilha dominada por Próspero encobertam
um silêncio caracterizado, sobretudo, pela ausência de vozes femininas. No
primeiro ato da peça, Próspero justifica o confinamento de Calibán, seu escravo,
acusando-o de ter tentado violar Miranda. A réplica debochada de Calibán é
que, se Próspero não o tivesse contido, ele teria povoado a ilha com suas crias:
“Would’t had been done!/ Thou didst prevent me. I had peopled else/ This isle with
Calibans” (1.2.350-52)2. Há uma disputa interessante nos próximos doze versos
que se seguem a essa fala, em que Miranda insulta Calibán, chamando o de
“abhorred slave”, “savage”, “thing most brutish”, e afirmando que ele pertencia a
uma raça vil (“vile race”). No manuscrito que serviu como fonte para a publicação
da primeira edição In-Fólio da Tempestade (1623), essas palavras são ditas por
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Miranda. Mas a partir do período da Restauração da monarquia e durante
mais de dois séculos, alguns editores passaram a atribuir os versos a Próspero,
alegando que seria inadequado a uma jovem se expressar dessa maneira3.
Durante o século XVIII, Theobald Lewis argumentou que seria “indecente”
uma moça recatada como Miranda responder a Calibán num momento em
que ele se referia a violência sexual. Outras justificativas também foram
apresentadas para justificar a atribuição dos versos a Próspero, alegando que
o estilo verbal, o tom e a escolha de palavras são mais condizentes com a
linguagem de Próspero do que com a de sua filha. Questionou-se, ainda, se
Miranda teria realmente ensinado Calibán a falar, pois os versos antológicos
que se seguem ao trecho aqui discutido tratam justamente do aprendizado de
Calibán e do uso que ele faz da linguagem que aprendeu: “You taught me
language, and my profit on’t/ Is I know how to curse” (1.1.364).
Mas, a partir do século XX, críticos e editores passaram a examinar
esse trecho a partir de outra perspectiva, re-atribuindo a Miranda a fala que
lhe havia sido confiscada. Embora não seja característico de sua personalidade
se expressar assim, as circunstâncias justificariam a raiva que tinha de Calibán.
A crítica shakespeariana atual também considera a filha de Próspero uma
personagem mais intensa, assertiva e ciente de sua sexualidade do que havia
sido pensado anteriormente.
O que há de mais interessante nessa discussão não é a tentativa de
recuperar a intenção do autor sobre qual personagem teria afrontado o escravo
de Próspero nos versos mencionados acima, mas o que a discórdia revela
sobre o contexto sócio-histórico em que crítica, leitores e editores de
Shakespeare atuam. Esse trecho da peça é também oportuno para introduzir
o tópico de reescritas ou “revisões” da Tempestade de autoria feminina. A ideia
de revisão remonta ao ensaio de Adrienne Rich, “When We Dead Awaken:
Writing as Re-Vision”, no qual a escritora americana, a partir de de uma
perspectiva feminista, define revisão como “the act of looking back, of seeing
with fresh eyes, of entering an old text from a new critical direction – [this] is
for us more than a chapter in cultural history: it is an act of survival” (RICH,
1972, p. 18).
Faz parte do debate político da crítica feminista e pós-colonialista
contestar a formação do cânone literário, além de perscrutar as relações entre
texto canônico e não canônico, entre centro e margem. Além disso, a escrita
revisionista contempla registros de subjetividades “subalternas”, situadas à
deriva da constituição hegemônica e do cânone. Como afirma Edward Said,
“the power to narrate, or block other narratives from forming and emerging,
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is very important to culture and imperialism, and constitutes one of the main
connections between them” (SAID, 1993, p. xii-xiii).
Embora Miranda seja o único nome feminino que consta da lista das
dramatis personae da Tempestade, há menção de outras personagens na peça que,
embora nunca apareçam em cena, participam da trama. Uma dessas é Sycorax,
de quem Próspero usurpou a ilha, bruxa que copulou com o demônio e deu à
luz Calibán. Marina Warner (2000), além de outros autores, aponta a relação
entre Sycorax e duas notórias feiticeiras da antiguidade: Circe e Medéia. Como
diferentes estudiosos da Tempestade já demonstraram, as palavras de Próspero,
quando ele abre mão de seus poderes mágicos no quinto ato da peça, são
paráfrase ou tradução do encantamento pronunciado por Medéia no livro
VII das Metamorfoses de Ovídio. De acordo com Stephen Orgel, a longa fala
que começa com os versos “Ye elves of hills, standing lakes and groves/ And ye that
on the sands with printless foot/ Do chase the ebbing Neptune, and do fly him/ When he
comes back […]” (5.1.34-36) é uma alusão literária, além de tradução aproximada,
das palavras da feiticeira em Ovídio:
In giving up his magic, Prospero speaks as Medea. He has incorporated
Ovid’s speech, a prototype of the wicked witch mother Sycorax, in the most
literal way – verbatim, so to speak – and his ‘most potent art’ is now
revealed as translation and impersonation. In this context, the distinction
between black and white magic, Sycorax and Prospero, has disappeared.
(ORGEL, 2002, p. 183)
Warner sugere que, além de usurpar a ilha, Próspero também herdou
os poderes de Sycorax. Apropriou-se, além disso, de uma linguagem que
remonta a uma tradição do feminino na literatura, representada por meio de
bruxas e outros personagens devassos, caracterizados por paixões, erotismo e
outras formas de comportamento desregrado e transgressivo, que remetem
ao que Warner descreve como a “categoria circeana da experiência”, ou seja,
o grotesco (WARNER, 2000, p. 113). Cabe ao mago exercer domínio sobre
essas manifestações e contê-las, por representarem uma ameaça à ordem
estabelecida. Embora A Tempestade seja caracterizada pela exclusão de vozes
femininas, Próspero apodera-se da magia relacionada à tradição literária clássica
das feiticeiras transgressoras e faz uso dos poderes que adquiriu para assegurar
a ordem do patriarcado.
É interessante como, na peça, o casamento de duas filhas assegura a
continuidade do patriarcado. A relação de Próspero com as personagens
femininas está associada a projetos de aquisição de poder e expansão territorial.
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Além de usurpar a ilha de Sycorax, o mago precisa resgatar seu ducado; por
isso trama o casamento de Miranda com Ferdinando que será o próximo rei
de Nápoles. Algo semelhante acontece com Claribel, personagem cujo nome é
mencionado algumas vezes, mas que não aparece de fato no palco. A tempestade
que inicia a trama, levando os náufragos à ilha, ocorre quando eles estão
retornando das bodas de Claribel com o rei da Tunísia. Essa união ampliará a
dinastia de seu pai, Alonso, rei de Nápoles. Assim, embora detenham papel
decisivo em relação à aquisição e continuidade de poder territorial, as
personagens femininas carecem de voz própria.
Tradicionalmente, a figura de Calibán era objeto de apropriação, posta
em oposição à de Próspero, metaforizando as relações coloniais. Um dos
precursores dessa linha de abordagem foi Octave Mannoni, em Psychologie de
la colonisation, publicado pela primeira vez em 1950. Esse livro propõe uma
análise da situação colonial em Madagascar através de uma leitura dos papeis
antagônicos de Próspero e Calibán. Na época, Mannoni elaborou a relação
colonial de uma maneira bastante peculiar e que hoje causa certo estranhamento:
para ele, o sujeito colonizado gozava de uma dependência bastante cômoda
em relação à autoridade colonizadora, que o provia de segurança, educação e
outros benefícios materiais garantidos pela situação colonial. Ou seja, o sujeito
colonizado não desejava autonomia nem liberdade. Seu complexo de
dependência, denominado por Mannoni de “complexo de Calibán”, fazia com
que ele buscasse “proteção” em seu opressor. Embora tenha sido bastante
criticado, sobretudo por intelectuais e artistas africanos e caribenhos – dentre
os quais destaco os nomes de Frantz Fanon e Aimé Césaire –, o livro de
Mannoni é uma referência importante para as apropriações subsequentes da
Tempestade que enfocam o personagem Calibán como escravo oprimido.
Na América Latina, a reinvenção da figura de Calibán remonta a
1900 quando José Henrique Rodó, escritor uruguaio, publicou seu longo ensaio
Ariel, onde propunha uma reflexão em torno dos dois caminhos que considerava
possíveis para o desenvolvimento de uma identidade latino-americana,
alegorizando os personagens de Ariel e Calibán. Para Rodó, Ariel representava
o refinamento e idealismo da cultura européia, enquanto Calibán, grosseiro e
violento, era identificado com os Estados Unidos4. Ao invés de postular o
caráter autóctone da cultura latino-americana, Rodó afirmava que os latinoamericanos tinham afinidade intelectual e espiritual com a Europa. Rodó
escreveu Ariel identificando a Europa com a espiritualidade, leveza e inteligência
desse personagem, e os Estados Unidos com Calibán que o escritor uruguaio
imaginava como símbolo de força e sensualidade bruta.
266
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O ensaio de Rodó teve bastante impacto internacional no início do
século XX. Mas foi também alvo de críticas, sobretudo a partir de 1960. Um
dos maiores opositores às idéias de Rodó foi o poeta cubano Roberto
Fernandez Retamar que acusou o escritor uruguaio de negligenciar a
contribuição das heranças negra e indígena à cultura latino-americana.
Distanciando-se de Rodó, Retamar escreveu o ensaio “Calibán”, reelaborando
o personagem de Shakespeare como símbolo da miscigenação na América
Latina e legítimo representante do hibridismo de sua cultura. Retamar, no
entanto, afirma que, apesar de Rodó ter errado ao escolher seus símbolos,
havia acertado ao identificar com clareza os Estados Unidos como o grande
inimigo.
Caracterizar Calibán como símbolo da cultura latino-americana
significava, para Retamar e escritores como Aimé Césaire, a protagonização
do oprimido. Cito Heloisa Toller Gomes, que sintetiza de forma bastante
clara essa perspectiva:
Caliban torna-se, para grande parte da intelligensia contemporânea, mais
instigante do que Ariel: as excelências deste último ocultavam, percebe-se
agora, a herança imperialista de Próspero; e Calibán pode ser visto como o
símbolo do hibridismo corporificando o mestiço, o crioulo, o colonizado
que se revolta e se expressa. [...] Entre o uruguaio Rodó e o cubano Retamar
processa-se a grande virada da literatura e da crítica americanas, às quais não
mais basta o requentamento sucessivo do banquete cultural e o
aproveitamento acrítico, ou paliativo, de seus restos. (GOMES, 2007, p. 100)
Assim, sob a perspectiva pós-colonialista, que examina o impacto da
cultura dos impérios europeus em suas antigas colônias, a peça de Shakespeare
tem sido apropriada como metáfora das relações coloniais. Mas é um equívoco
pensar Calibán como personagem subalterno. Em um dos trechos mais citados
da peça, ele é eloquente ao manifestar sua revolta contra Próspero e a situação
de opressão que vive, afirmando seu direito legítimo à ilha que lhe foi usurpada:
This island’s mine by Sycorax, my mother
Which thou tak’st from me. When thou cam’st first
Thou strok’st me and made much of me; wouldst give me
Water with berries in’t, and teach me how
To name the bigger light and how the less
That burn by day and night. (1.2.333-37)
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
267
É interessante considerar as ressonâncias que esse enfoque na ilha
teve no Caribe. Foi de lá que surgiu uma série de importantes adaptações
transgressoras da Tempestade, refletindo as principais tradições linguísticas da
região, ou seja, obras escritas em inglês, francês e espanhol. Vale destacar os
ensaios do livro de George Lamming (Barbados), The Pleasures of Exile (1959),
que fazem uma reflexão sobre A Tempestade, o processo colonizador e a condição
de exílio. Além disso, seu romance Water with Berries (1971), cujo título é tirado
dos versos acima citados, oferece uma das reescritas mais radicais da obra de
Shakespeare (HULME, 2000, p. 221). A peça Une tempête (1969), de Aimé
Césaire (Martinica), obra teatral escrita para um elenco de atores negros, dá
voz à vítima da opressão e da lógica colonialista. Além desses, há também o
ensaio de Retamar, “Calíbán” (1971). Essa ênfase no Caribe é significativa,
sobretudo por causa de uma identificação etimológica da palavra Calibán
com as ilhas do Caribe: Calibán é também considerado um anagrama de
“canibal”, termo usado originalmente para designar os habitantes das ilhas
caribenhas e do Novo Mundo em geral. Há, além disso, os que contemplam
a possibilidade do nome de Próspero ser anagrama da palavra inglesa
“oppressor” (LARA, 2007, p. 81).
Contudo, a ênfase na oposição binária entre Próspero e Calibán tende
a negligenciar outras relações e personagens. Ao contrário de Calibán que já
está consolidado como símbolo do sujeito colonial, é recente a reelaboração
de personagens como Miranda ou Sycorax para contestar as relações de
patriarcado na peça. Mas foi para elas que o olhar se voltou na reescrita da
Tempestade por diversas escritoras, tais como Margaret Laurence, Nancy Huston,
Marina Warner, Gloria Naylor, dentre outras. Pois, como indica Sofía Muñoz
Valdivieso, além de imperialista, Próspero é também um patriarca que usa sua
filha como meio para conseguir seus objetivos (VALDIVIESO, 1998, p. 301).
Vale lembrar aqui o ensaio de Lorrie Jerrel Leininger, “The Miranda Trap”,
de 1980, no qual a autora chama a atenção, pela primeira vez, para o modo
como Miranda é manipulada por seu pai. Assim como Calibán, Miranda e
Sycorax são personagens à deriva da estrutura de poder. Reconsiderar o papel
de personagens femininas como Miranda ou Sycorax representa uma ruptura
com o esquema de oposição binário que tem caracterizado leituras póscolonialistas da obra. É importante observar também, como aponta Ann
Thompson, que apesar de A Tempestade explorar a ideologia de valores como
a castidade feminina, a maternidade e a fertilidade, é, paradoxalmente, uma peça
onde a presença das mulheres é escassa (Citado em VALDIVIESO, 1998, p. 302).
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Indigo, Or Mapping the Waters
Em Novel Shakespeares: Twentieth-Century Women Novelists and Appropriation,
Julie Sanders afirma que, embora escritoras tenham adaptado Shakespeare
por meio de diversas formas - tais como poesia, teatro, conto e cinema –, o
romance tem sido escolhido por um grande número delas como gênero eleito
para a apropriação intertextual do poeta (SANDERS, 2001, p. 3). Um romance
que dialoga com A Tempestade, reescrevendo os papéis femininos da peça e
problematizando o passado colonial caribenho, é Indigo, Or Mapping the Waters,
da escritora britânica Marina Warner, publicado pela primeira vez em 1992.
Autora de diversas obras de ficção, além de livros sobre universos
simbólicos e mitológicos, incluindo um estudo minucioso sobre contos de
fadas e seus narradores, Da Fera à Loira, Marina Warner cria, em Indigo, um
texto onde história, ficção e autobiografia encontram-se emaranhados. O
contexto sócio-político em que o romance ocorre, ou seja, a colonização das
ilhas caribenhas fictícias de Liamuiga e Oualie, apresenta correspondências
com a ocupação histórica das ilhas St. Kitts e Nevis que fazem parte do
arquipélago conhecido até hoje como West Indies. Sir Thomas Warner, um
antepassado da autora, foi o primeiro homem branco a habitar St. Nevis,
iniciando a colonização britânica da região no início do século XVII. Há, além
de outros pontos em comum entre história e ficção, paralelos entre a vida de
Sir Thomas Warner e Kit Everard, personagem do romance que ocupa o
lugar de Próspero no diálogo que Índigo estabelece com A Tempestade.
A relação entre Indigo e seu intertexto shakespeariano se assemelha a
uma improvisação jazzística com variações sobre um tema e que, ao invés de
explorar escalas musicais, navega um percurso temático regido por uma
sequência de cores. É complexa a divisão interna do romance, caracterizada
por uma estrutura emaranhada de narrativas e tonalidades diversas. O primeiro
nível de segmentação pode ser definido pelas três estórias narradas por Serafine,
personagem que transita no romance do início ao fim, embora desempenhe
um papel aparentemente secundário: é apenas uma babá, não tem vida própria.
Suas estórias, aparentemente desconectadas do enredo principal, remontam à
tradição oral de contos folclóricos do Caribe, transmitidos por meio da voz
feminina às novas gerações. Serafine tem resquícios de Sycorax, que se faz
ouvir nos tempos atuais. O que seria chamado de “enredo principal” é
segmentado em seis partes, cada uma delas designadas pelo nome de uma cor
e de uma tonalidade correspondente: Lilac/Pink, Indigo/Blue, Orange/Red, Gold/
White, Green/Khaki, Maroon/Black. Essas partes são também divididas em
capítulos.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
269
O romance é igualmente complexo em sua relação com o tempo. Há
duas narrativas que são desenvolvidas em tempos cronológicos distintos: a
primeira se inicia em Londres, em 1948 vai até a década de 1980, alternandose entre Europa e Caribe; a segunda se passa nas ilhas de Liamuiga e Oualie
durante o século XVII, época da colonização inglesa na região. Mas os dois
períodos também estão sobrepostos e embaraçados: o passado parece ser
visto através das lentes do século XX que, por sua vez, é marcado pelas
cicatrizes do pós-colonialismo. Essa sobreposição temporal é espelhamento
de uma escrita palimpséstica no romance e de sua edificação intertextual,
repetindo e revisando textos anteriores.
No século XX, o foco da narrativa está voltado para a trajetória de
Miranda, de sua infância à vida adulta. Ela é neta de Sir Anthony Everard,
jogador renomado de um esporte semelhante ao críquete e descendente de
Kit Everard, que, em 1619, “descobriu” e ocupou Liamuiga em nome da
Inglaterra. Antes da chegada dos ingleses, a ilha era de Sycorax, feiticeira
conhecedora de ervas medicinais, que trabalhava no preparo da tinta cor de
anil, o índigo. Sycorax vivia em isolamento por ter transgredido os costumes
de seu povo ao desenterrar uma mulher africana e resgatar, de seu ventre,
uma criança que ainda estava com vida. A maré havia trazido a Liamuiga
corpos acorrentados de africanos que tinham sido lançados de um navio
negreiro ao mar. Antes do ritual de cremação purificador da poluição causada
pela chegada dos mortos, os ilhéus prepararam e enterraram seus corpos em
uma vala. Mas na noite anterior ao ritual de purificação, Sycorax ouviu a fala
dos mortos e, pressentindo que ainda havia vida entre eles, desenterrou o
corpo de uma mulher grávida e “pariu” um bebê africano que recebeu o nome de
Dulé. Mais tarde essa criança seria conhecida, pelos colonizadores, como Calibán.
Em seu exílio, Sycorax também adota uma índia Arawak vinda da
costa do Suriname e abandonada nas ilhas. Passa a amar essa criança, Ariel, de
forma possessiva, incondicional, criando-a em isolamento junto com Calibán
e ensinando a ela a arte de fazer tinta e de curar com as plantas. A relação
entre Sycorax e Ariel lembra o zelo com que Próspero, na Tempestade, cuida de
sua filha. Assim, por seus poderes mágicos e pelo papel que desempenha
como guardiã de Calibán e Ariel, há uma analogia entre a Sycorax de Indigo e
o Próspero shakespeariano. Este último também está presente na figura de
Kit Everard, homem que vem a governar a ilha no romance, tomando-a de
Sycorax, tal como ocorre na Tempestade.
A estrutura simétrica de correspondências e espelhamentos presente
nessa reescrita de Shakespeare, em que Marina Warner emaranha as relações
entre personagens e intertextos diversos, estabelece uma tensão entre semelhança
270
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
e diferença. Assim, a autora de Indigo recupera e altera suas fontes, exercendo
uma perspectiva crítica em relação ao passado, à narrativa e à historiografia.
Há uma ressonância irônica nas diversas camadas de textos que estão
sobrepostas. Acredita-se que Shakespeare se inspirou no ensaio de Montaigne,
Of the Caniballes, traduzido por Florio em 1603, no segundo ato da Tempestade,
quando o sábio Gonzalo idealiza na ilha de Próspero um paraíso abundante,
onde não é preciso trabalhar nem fazer guerra para conquistar outras terras,
pois a própria natureza é capaz de prover os habitantes com tudo que poderiam
necessitar. Na tradução de Florio, as palavras que Montaigne usa para descrever
os habitantes do Novo Mundo são: “They contend not for the gaining of news
landes; for this day they yet enjoy that naturall ubertie and fruitfulnesse, which without
labouring-toyle, doth in such plenteous abundance furnish them with all necessary things,
that they neede not enlarge their limites” (Citado em VAUGHAN e VAUGHAN,
1999, p. 309). No texto shakespeariano, Gonzalo diz:
All things in common nature should produce
Without sweat or endeavour; treason, felony,
Sword, pike, knife gun or need of any engine
Would I not have, but nature should bring forth
Of its own kind all foison, all abundance,
To feed my innocent people. (2.1.160-166)
Em Indigo essas palavras são parafraseadas por um dos homens de
Kit Everard: “We don´t have to live by the sweat of our brow. Others may be obliged to.
Not us. We can stand by and watch the crops ripen and grow, sweet dew by night, the soft
wind” (WARNER, 1993, p. 180). Mas os limites dessa perspectiva são expostos
no romance: a ilha “paradisíaca” que os ingleses desejavam ocupar já era
habitada; sua conquista só foi possível por meio de guerras e destruição. Isso
fica claro, sobretudo, na parte do romance que examina o legado do passado
colonialista, marcado pelo tráfico de escravos, onde, mesmo no século XX,
descendentes de caribenhos continuam a ser subjugados pelos brancos e lutam
pela independência.
Essa sobreposição de textos permeia o romance de Warner, mantendo
viva a memória da ocupação européia no Caribe, entrelaçando história e ficção.
A autora ainda recupera vozes apagadas no enredo shakespeariano quando
reescreve personagens como Sycorax e Miranda. Desse modo, Indigo contesta
a lógica patriarcal na peça shakespeariana, onde as personagens femininas
estão atreladas a projetos de aquisição de poder e colonização. Assim, a autora
cria um novo enredo para aqueles que, na Tempestade, estão situados à deriva
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
271
da estrutura de poder: personagens femininas como Miranda e Sycorax, assim
como os dois escravos de Próspero, Calibán e Ariel. Este último adquire uma
identidade feminina e seu vínculo maior passa a ser com Sycorax, sua mãe adotiva.
Na parte final da narrativa, em Londres na década de 80, Miranda
assiste a um ensaio da Tempestade. Entra justamente na cena do primeiro ato
em que Próspero justifica o encarceramento de Calibán: “I have us’d thee,/ Filth
as thou art, with human care; and lodg’d thee/ In mine own cell, till thou didst seek to
violate/ The honour of my child” (WARNER, 1993, p. 387). A atriz, que faz o
papel da filha de Próspero, vira para Calibán, cospe-o no rosto e diz: “Abhorred
slave,/ Which any print of goodness wilt not take,/ Being capable of all ill!” (WARNER,
1993, p. 387). São os versos que durante dois séculos foram usurpados de Miranda
na peça de Shakespeare. É bastante significativo que seja essa a cena que
Miranda, em Indigo, observa antes de se aproximar do ator que faz Calibán, pois
no livro de Warner permeiam ruídos e vozes que precisam ser ouvidas e restauradas.
É interessante pensar o subtítulo, Mapping the Waters, a partir da relação
que o romance estabelece com a peça, já que a narrativa de Warner mapeia
um novo enredo para personagens shakespearianos. Ao elaborar, através do
diálogo com Shakespeare, a ideia de colonização, a autora também mapeia
suas sequelas no século XX, reimaginando a trajetória de Miranda e Calibán.
Nesse sentido, Indigo desempenha uma função de suplemento para A Tempestade,
sob um olhar crítico que contesta as relações de patriarcado na peça, ao
mesmo tempo em que expande a abrangência do legado de Shakespeare.
Notas
*Este artigo foi escrito durante período de residência pós-doutoral na Universidade
Federal de Minas Gerais.
1
Em Faultlines: Cultural Materialism and the Politics of Dissident Reading, Sinfield dedica
um capítulo do livro à discussão do lugar que o personagem deve ocupar dentro dos
estudos shakespearianos, ressaltando a descontinuidade da subjetividade do
personagem dramático.
2
Todas as citações da peça são retiradas da edição Arden Shakespeare, The Tempest,
organizada por Virginia Mason Vaughan e Alden T. Vaughan. As referências, incluídas
entre parênteses, no texto, referem-se ao ato, cena e versos da peça, nessa ordem.
3
John Dryden e William Davenant estão entre os que iniciaram essa tradição
(SHAKESPEARE, 1999, p. 135).
4
É importante lembrar que Rodó escreveu esse ensaio no final do século XIX, quando
os Estados Unidos, motivados pela Doutrina Monroe, haviam aproveitado para
expandir suas fronteiras, confiscando a Califórnia, o Texas e o Novo México, anexando-
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
os ao território estadunidense, além de invadir as Filipinas, colonizar Porto Rico e
transformar Cuba num parque de diversões administrado por mafiosos.
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SHAKESPEARE, William. The Tempest. The Arden Shakespeare. VAUGHAN, Alden
T.; VAUGHAN, Virginia Mason (eds.). Walton-on-Thames, Surrey, 1999.
SINFIELD, Alan. Faultlines: Cultural Materialism and the Politics of Dissident Reading.
Berkeley: University of California Press, 1992.
Artigo recebido em 16 de fevereiro de 2009.
Artigo aceito em 30 de julho de 2009.
Maria Clara Versiani Galery
Doutora em Estudos Literários pela Universidade de Toronto.
Especialista em traduções e adaptações de Shakespeare.
Professora de Literaturas de Língua Inglesa do Curso de Letras do Instituto de
Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto.
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
SHAKESPEARE’S THE WINTER’S TALE
ADAPTED TO A MADE-FOR-TV FILM
Aline de Mello Sanfelici
[email protected]
José Roberto O’Shea
[email protected]
ABSTRACT: This study analyses the
adaptation of the play The Winter’s Tale,
by William Shakespeare, to a made-fortelevision film. This adaptation is part
of the famous series produced by BBC
between 1978 and 1985, titled BBC
Shakespeare Series. The goal of the
analysis is to demonstrate how the visual
and sound concretization of the
theatrical text is crucial in adaptation
processes, through strategies related to
gestures, costumes, characters’
positioning, amongst other elements
(absent from the theatrical text). Besides,
the study aims at showing how an
adaptation not only refuses the so-called
fidelity to the text, as it also provides new
interpretations to a previous work.
RESUMO: O presente estudo analisa a
adaptação da peça The Winter’s Tale, de
William Shakespeare, para filme feito para
televisão. Essa adaptação faz parte da
famosa série realizada pela BBC entre
1978 e 1985, chamada BBC Shakespeare
Series. O objetivo da análise é demonstrar
como a concretização visual e sonora do
texto teatral é crucial nos processos de
adaptação, através de estratégias relacionadas
a gestos, vestuário, posicionamento dos
personagens, entre outros elementos
(ausentes no texto teatral). Além disso,
o estudo objetiva mostrar como uma
adaptação não apenas opõe-se à suposta
fidelidade ao texto, como também
proporciona novas interpretações para
um trabalho anterior.
KEYWORDS: Shakespeare. The Winter’s Tale. Adaptation. Television film.
PALAVRAS-CHAVE: Shakespeare. O conto do inverno. Adaptação. Filme para televisão.
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Plays are written to be performed,
performance is embodiment,
embodiment is adaptation and interpretation.
Willis, 1991, p. 86
Introduction
In this essay I analyze the adaptation of Shakespeare’s play The Winter’s
Tale to a made-for-TV film, produced by Jonathan Miller and directed by Jane
Howell, for the BBC Shakespeare Series, a project that filmed the whole
canon of Shakespeare’s works from 1978 to 1985. To conduct my analysis I
describe three sequences of the film in light of the text of the play. The first
two sequences selected compound the tragic part of the film: the very first
scene, in which king Leontes reveals his jealousy as regards his wife Hermione
and his friend, king Polixenes; and the judgment scene of Hermione, in which
she is considered innocent by the Oracle but guilty by her husband Leontes.
The third sequence selected is part of the restorative and comic part of the
film, the sheep-shearing festival. By selecting sequences from both destructive
and restorative parts I shall demonstrate that in the adaptation process the
visual and sound concretization, through strategies like changes in the set, is
crucial to develop the story, from its conflict to its happy resolution.
Some words on adaptation theory
James Naremore laments that the majority of debates on adaptation
rely on the evaluation of a supposed fidelity and respect to the source,
precursor text. This reliance is problematic for being subjective and for assuming
the existence of an essence and therefore a single and fixed meaning in the
literary work to be found and copied in the filmic work. For Naremore, the
film cannot be a mere translation into images of the text. Robert Stam shares
Naremore’s view against the criticism that limits the adaptation process to a
mere imitation or attempt at imitating the source text in another medium, as
such criticism focuses on so-called losses in the adaptation process, ignoring
all the possible gains from the use of voice, music, gesture, costume, makeup, set and other visual and sound information. Further, Stam recalls that
since literature and cinema are semiotically distinct, “a filmic adaptation is
automatically different and original due to the change of medium” (2005, p.
17). Thus, it is impossible to debate adaptation highlighting the notion of
fidelity. What is the solution, then?
276
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
According to Thais Flores Nogueira Diniz, the current perspective on
adaptation “emphasizes filmic elements, using comparison to enrich the
evaluation of the film and not the opposite” (2006, p. 219). Thus, the playtext
and the film are to be compared in terms of a positive intertextual dialogism,
a term proposed by Naremore himself, whom Diniz quotes to explain this
dialogue as involving “conscious and unconscious quotations, conflations and
inversions” (2006, p. 221) between the written and filmic texts. Similarly, Ismail
Xavier privileges the notion of a dialogue, since the literary work and its
filmic adaptation are conceived as two poles in a process of transformation(s)
due to the time factor (the time the source text was written and the time the
film was made). Thus, as Xavier expounds, filmic adaptation can and should
update themes. In short, then, the scholars referred to here agree that the path
for adaptation theory does not rely on the fidelity discourse, but on positive,
enriching comparison, and the contextualization of meanings.
The BBC Shakespeare Series: a special case of adaptation
The so-called “Shakespearean myth” confers, even nowadays, strong
authority to the playwright’s texts when performed. One of the most important
scholars on Shakespearean studies, W. B. Worthen, defends freeing a
performance from the authority of Shakespeare’s text, saying that “[a] stage
performance is not determined by the internal ‘meanings’ of the text, but is a
site where the text is put into production, gains meaning in a different mode
of production through the labor of its agents and the regimes of performance
they use to refashion it as performance material” (2003, p. 23). Worthen talks
specifically about stage performance; yet, his words also apply to a television
film, or any film that adapts a previously written work, in the sense that the
written text has to be transformed into action and behavior, and can only gain
significance in performance. Thus, as Worthen says, “a performance of Hamlet
is not a citation of Shakespeare’s text, but a transformation of it” (2003, p.
12). Similarly, a made-for-TV film of Shakespeare’s The Winter’s Tale is a new
work of art that transforms the Bard’s written words, clothing them with
faces, gestures, sound, light, and other visual elements.
Specifically, the BBC Shakespeare Series needs to be looked at as a
special case of adaptation, not simply for involving texts written for the stage,
i.e. playtexts (and not novels) which were adapted to films made for television
(and not cinema). The Winter’s Tale, as all television films of the BBC series, is
inscribed in a peculiar project that Susan Willis has referred to as “a massive
cultural and educational phenomenon” (1991, p. 5), with a stated goal “to
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
277
make solid, basic televised versions of Shakespeare’s plays to reach a wide
television audience and to enhance the teaching of Shakespeare” (1991, p.
10-11). In this sense, the BBC Shakespeare Series was less concerned with
interpretive and aesthetic issues, than with financial aspects and, of course,
with the popularization of Shakespeare. Thus, it contradicts the claim that
adaptations should contextualize meanings and not rely on fidelity1 issues:
Michèle Willems exposes the initial decision by the BBC Series to “take no
liberties” with Shakespeare’s text, i.e., “to cut and alter the text as little as
possible” (1994, p. 72).2 Indeed, the BBC Shakespeare Series is a special case
of adaptation due to its purpose and outlook.
Moreover, television films in themselves are a special case of
adaptation due to the specificities of the medium. Following Willems, the
common close shot in television, with its emphasis on facial expression and
reaction, is not achieved to the same extent in theatre. Such emphasis, though,
can be related to theatre in the sense put forth by Neil Taylor, who says,
specifically of the director of The Winter’s Tale, “Howell discovered in television’s
immediacy and intimacy an equivalent to the stage actor’s direct relationship
with the audience” (1994, p. 96). On the specificities of the medium, Willis
also recalls Robert Lindsay’s claim that it is difficult to project on stage the
subtleties and the subtexts, and television in turn facilitates such projection,
being this specificity an advantage. Further, Willis adds that the camera allows
films on television to “[let] actors and directors explore aspects of Shakespeare
that theatre cannot, providing insights that can enhance understanding” (1991,
p. 221).
It is due to all these specificities of made-for-television film, as well
as to aspects concerned with the goals and beliefs of the BBC producers,
stated before, that I argue that the BBC Shakespeare Series (and consequently
the filmed version of The Winter’s Tale, focus of this study) is a special case of
adaptation. I shall conduct the proposed analysis considering, as much as
possible, both the debate on adaptation theory and the particular case of the
BBC Series.
Critical reviews on Jane Howell’s The Winter’s Tale
Willis describes Howell as the “most receptive to and most creative
with stark settings” (1991, p. 165) in the whole group of directors of the BBC
Series, and as “serious and symbolic in approach” (1991, p. 25). She adds that
Howell’s sets, especially in The Winter’s Tale (considered her most abstract film)
are stylized to suggest instead of reproduce a real environment. This is related
278
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to Howell’s belief that “a production must give the audience a chance to
contribute with their minds, their imaginations” (1991, p. 165). Indeed, Willis
later points out that the abstract and geometric set in The Winter’s Tale “does
leave a great deal to the audience’s imagination” (1991, p. 169), and such
abstraction allows “a universal quality” (1991, p. 209). In addition, Willis
comments on Howell’s use of the camera as an eye, sometimes confidant to
private information, other times testimony of a character’s reaction. Willis
then shows Howell’s belief that “the power of Shakespeare’s work is in the
words” (1991, p. 169), and for this reason she uses the aforementioned camera
eye, the clear communication on behalf of the actors, and the focus on the
actors and their performances (in The Winter’s Tale as well as in her other
films), to use TV’s visual capability to “show what the stage can’t” (1991, p.
182).
Neil Taylor, in turn, describes Howell’s permanent set as a “semiabstract and semicircular structure, surrounding an open acting space,” and,
like Willis, considers her set in The Winter’s Tale, specifically, as the “most
abstract” of all her productions (1994, p. 90). Further, he summarizes that
“[t]he actors’ movements were theatrical, the camera’s movements were
cinematic, but the constant impulse to change the composition or the shot was
televisual” (1994, p. 92), implying that Howell could successfully combine
specificities of different media in a television film. As for Willems, this scholar
praises the set of The Winter’s Tale for exemplifying how stylized sets, though
having no concern with authenticity, are important to “support the interpretation
of the text” (1994, p. 81). Willems says that the tree in the centre of the set is
“revealing,” and “provides a visual support to […] the play; it reveals the
sterility and sickness of Sicilia at the beginning, and suggests the advent of
spring and fertility with Perdita in Bohemia” (1994, p. 81), followed by her
conclusion that “the reversal of tragedy into comedy is made more
understandable, supported also by changes in the colours of the costumes, of
the setting, and in the lighting” (1994, p. 81).
James Bulman and Herbert Coursen collect some of the reviews
published by specialized critics on Howell’s The Winter’s Tale right after its
broadcast in 1981. Joseph McLellan compliments Howell, by saying that “[t]he
essential unreality of the play has been warmly embraced. [The] scanty, semiabstract scenery [is] appropriate for a story whose true location is never-never
land” (McLELLAN quoted in BULMAN AND COURSEN, 1988, p. 276).
The review by John J. O’Connor praises the film by stating that “[o]nce again
[…] a less-known work proves to be the most successful [on] television”
(O’CONNOR quoted in BULMAN AND COURSEN, 1988, p. 276). Donald
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Hedrick, in turn, argues that “in general the actors… have too little to do”
(HEDRICK quoted in BULMAN AND COURSEN, 1988, p. 276), implying
a reliance on the words and few innovations and not much audacity as regards
the visual text. Still, Hedrick says that in general the film is elegant and clear.
The review by Kenneth Rothwell is favorable to the location of the story
“anywhere except in the ‘climate’ of human heart” (ROTHWELL quoted in
BULMAN AND COURSEN, 1988, p. 277) and praises the use of colors to
contrast destruction and restoration. Stanley Wells’ review describes some of
the actors’ performances, praises Howell’s direction as “sensible and fluent”
(WELLS quoted in BULMAN AND COURSEN, 1988, p. 277), but concludes
saying that “the play seems smaller, flatter than in the theatre. There is less
sense of interaction among the characters, and so less comedy, less drama…
The approach is intelligent and honest, the acting accomplished, but the medium
has reduced the message” (WELLS quoted in BULMAN AND COURSEN,
1988, p. 277). I would like to point out that not all of these critiques summarized
here match the results of my own analysis, as will be clear in what follows.
Analysis of Shakespeare’s The Winter’s Tale adapted to a made-forTV film
The first sequence that I propose to analyze corresponds to the first
ten minutes of the film, in which king Leontes fails to convince his friend,
king Polixenes, to extend the time of his visit, followed by Leontes’ wife,
Hermione, succeeding in convincing the visitor to stay longer. The sequence
also includes the first moments in which Leontes reveals his suspicions of a
case of adultery between his wife and his friend.
In this sequence, there is a white set that helps to suggest the season
of the year as being winter. The heavy costumes worn by the characters and
an apparently dead, dry tree, white-colored, confirm the season. The set also
includes two white cones in wedge shape that work as a corridor for the
entrance and exit of the characters. Observing through a broad perspective
the set in the film, one realizes that the space is open, and there is no indication
of its end. Indeed, there is no ceiling, which leads one to think the sequence
takes place outdoors, but at the same time there is a ceramics floor, which
thus contributes to mystify the place as no-where in particular. Further, there
are few details in the set, which means there are few distractions for the
spectator in such a way that the focus places itself on the actors and their
interactions. Given all these characteristics, it is possible to classify this set as
280
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stylized, for it is not nor does it duplicate a real environment, rather, it suggests
the environment.
In this regard, I would like to recall Willems, who discusses stylized
films (as well as the other two modes of filming Shakespeare for television
that were used by the BBC, namely, the naturalistic and the pictorial ones). In
stylized films like Howell’s The Winter’s Tale, the sets “do not attempt to represent
or describe any given location. In fact they often proclaim that they are mere
settings, in the first sense of the word: settings for the characters to come to
life in, for the words to bounce back on” (1994, p. 80-81). Still, sets do have
significance as regards meanings, as Willems explains later that stylized films
often use set to enhance interpretation of the text. This is the case in The
Winter’s Tale, since one cannot recognize any given location; the characters
have space to come to life in with possibly all the focus on them; and yet the
set efficiently helps to develop meanings, especially considering the changes
that occur in the set when comparing the three sequences under analysis (this
is a point I will develop later, when addressing the second and especially the
third sequences).
Having offered a description of the set in the first sequence, I now
proceed analyzing the characters’ movements and interactions in light of the
uses of camera. In general, in this first sequence, it is observable that there
are a lot of close-ups in speech moments (notice that the close-ups are on the
actor who speaks, and not on the character who is reacting to the speech).
Also, when characters enter or exit through the wedge corridor, medium or
wide shot is usually employed. This use of wide shot indicates the persistence
of Howell’s theatrical style in films. As Taylor puts it, “[Howell’s] adherence to
attitudes and techniques drawn from the theatre was both a commitment to a
‘committed’ theatre and an attempt to make television communal in the way
that all theatre inevitably is” (1994, p. 92). At the same time that the director
felt that the spectators “need to see them all,” “them” meaning all the characters,
as Howell herself says (quoted in TAYLOR, 1994, p. 91), she also placed a
noticeable emphasis on actors’ facial and verbal expressions, by means of the
close-ups as crucial lines are being said.
Further, the camera in the first sequence is consciously positioned
and moved, as it allows two actions at the same time. There are several examples
in the first sequence of characters entering through the corridor, in the
background, within the space of other characters’ heads that are in the
foreground. In this way, the camera shows the dialogue of the characters who
are near, and the movement of entrance of the characters who are more
distant. Tânia Pellegrini argues that the camera is not neutral, since there is
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always someone manipulating it and in charge of selecting and combining
what is going to be shown, and how. This is true of Howell’s film, since her
uses of the camera, which exposes more than one action at the same time,
consciously show what is interesting to be shown as regards meanings desired
to be conveyed. For example, the consciously positioned camera shows
Hermione and Polixenes together, having intimate conversation, in the
foreground, and Leontes is placed in the background, observing their interaction
from a distance, with Camillo. In this case, specifically, the spectator can notice
clearly Leontes’ suspiciousness and jealousy.
It is remarkable, in this initial sequence, how Howell strategically places
the camera to allow the spectator the point of view of both Leontes and
Polixenes, alternately. That is, after offering the point of view of Leontes
watching Hermione and Polixenes, the camera offers the point of view of
Polixenes watching Hermione and Leontes and their son (through the position
of the camera, the spectator visualizes that the visitor king is facing a family
scene of which he does not take part in, for he is an outsider, who merely
watches). Probably, such strategy is applied in order to give the spectator two
visions, two perspectives, and consequently leaves it up to the spectator to
decide on his/her opinion of the story and of the characters. The alternate
points of view of Leontes observing a possible case of adultery (that is not
confirmed by the Oracle, later), and of Polixenes observing a family together,
offers the possibility to construct visions and take a positioning as regards the
story.
Moreover, the use of camera is particularly interesting in this sequence
as regards the several “direct addressings” to the camera that Howell makes
use of. Usually, such direct addressing generates or attempts to generate
complicity between character and spectator. Following David Barker, camera
proximity, which is “the location of the camera in relation to the performer”
(1994, p. 90), can cause discomfort on the viewer or change the narrative’s
meaning or focus. At the moment in which Leontes directly addresses the
camera to get his feeling of jealousy off his chest, and try to gain the spectator’s
complicity, there is a close-up that changes the narrative’s focus from the
interaction and friendly relationship between Hermione and Polixenes, and
focuses on Leontes’ speech, so as to narrate emphatically his suspicions.
Still on the first sequence analyzed, I would like to point out that the
costumes worn by the characters are helpful to convey the positioning of
each person involved in the plot: Leontes and his servants wear black and
heavy costumes, whereas Polixenes, Hermione and Hermione’s ladies wear
lighter and white costumes. This specific visual element signed by Howell may
282
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suggest that there is a villain in the story, Leontes, denounced as such through
his clothing, at the same time that there are victims of this villain (that is,
victims of Leontes’ jealousy), and these are revealed also through clothing. In
short, there are indications that Howell created a visual counterpart of heavy
versus light, black versus white, to help signal to the spectator the different
motivations of the characters in interaction throughout the story. A final aspect
to call attention to during the initial moments of the film is that all the time
there seems to be a physical distance between the characters; that is, even
dialogues take place with a noticeable space between those who are speaking.
This point is important when compared to the proximity of characters in the
last sequence to be analyzed.
Next, as regards the second sequence under debate, the famous
judgment of Hermione, it is relevant to observe that the set continues being
the same previous open space, with the two white wedges working as a corridor,
without the notion of a ceiling or an end, and with the stylized ceramics floor.
However, Howell included special details and objects that transform the set
into a new place. There is a red carpet, and a platform with red fabric in the
background and a king’s throne on it. Besides, a fence surrounding the carpet
area works to limit the acting space, and given the facts that take place during
the trial, this same fence seems to entangle the characters, as no one can
escape the horror that befalls Leontes’ kingdom (such as the death of Prince
Mamillius).
The positioning of the characters is very significant in the judgment
scene. Leontes and his allies are placed in front of a red background (from
the platform I mentioned before), and on this note it should be recalled that
the red color is often associated with royalty, but also with anger, passion, and
jealousy. At the same time, Hermione is placed against a white background,
and still wearing a white costume; that is, she is seen through the perspective
of a color usually associated with peace and innocence. Further into the
positioning of the characters, it is crucial to observe that Leontes is physically
above Hermione, for he is on the platform, sitting in his royal chair, whereas
Hermione is standing on the floor. This visual placement of the characters
signals how one acts superior, precisely for judging and deciding the future of
the other one, who is placed in a submissive and passive position, being judged
and humiliated.
Other visual features interesting to be observed in the judgment scene
are the actors’ bodies and gestures. Leontes seems to own the place and the
judgment, for he is the only one to have movement in the acting space. He
makes big and expansive gestures, gesticulating with all his body. Also, he
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283
moves his royal robe, while walking towards Hermione, and then he turns his
back on her and sits again. Hermione, in turn, does not walk in the acting
space; she stands still and has few and small gestures, which are contained in
her own body, such as extending her arm or placing her hand on her chest. In
this way, Hermione’s gestures and (the absence of) body movement seem to
convey the idea that she is already arrested, sentenced guilty.
In this sequence, it is remarkable that Hermione makes use of the
direct addressing to the camera. This could be a strategy to gain the spectator’s
sympathy, since she looks at the camera when she talks about “the flatness of
my misery” (her words). She addresses the spectator, directly, as if reaching
or trying to reach and convince him/her that she is a victim. Indeed, the
Oracle testifies her innocence, subsequently. What should be pointed out, in
addition, is that previously, as I have argued, the director makes the spectator
see the scene (the first scene) through the points of view of both Leontes and
Polixenes through the camera’s perspective. And in the sequence being analyzed
now, the judgment scene, after the direct addressing mentioned, there is a
moment in which Hermione’s point of view is conveyed through the positioning
of the camera. In this way, Howell allows the spectator to see different
moments of the story through the eyes of each one of the participants in the
tragic love entanglement.
Finally, moving to the analysis of the third sequence, let us remember
that this latter one is the only sequence that belongs to the restorative and
comic part of the play and of the film. The easily noticeable changes in the
set for this sequence help to indicate the shift from tragedy to comedy, from
destruction to restoration. The previous white tree in the middle of the acting
space, which looked completely dead, with no leaves on it, is presented very
differently in the restorative part. In this third sequence, one can realize that
restoration begins because this same tree has many greenish leaves on it and a
brown trunk, an aspect that suggests or symbolizes the blossoming of nature.
Besides, the floor is no longer of white ceramics; now it is green, too. In
addition, the former white wedges now become yellow, and there are some
bushes on the floor, around the tree and the wedges. All these elements indicate
that winter (and its difficult times) is gone, and clearly symbolize that now it is
spring time.
Having noticed the changes in set for the restorative sequence analyzed,
it is useful to observe the changes in costumes. Previously, it was argued that
all characters wore either heavy and black or light and white costumes. As
regards the third sequence, all the characters wear costumes in green and
pastel tones. Besides, they have flowers and adornments included in their
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visual composition. Both colors and elements added to the costumes seem to
suggest, once more, that it is spring, a time of rebirth and replenishment, just
as the characters’ destinies shall be restored shortly.
During the sheep-shearing festival, in the third sequence, it is
remarkable how the characters are close to each other, a lot closer than in the
previous sequences. Maybe because this is a party, a celebration, the number
of characters in the acting space is larger than ever in the film, and they are all
happy and interacting with one another. It seems that there are more witnesses
for the good things of life than for the bad ones, because the previous
sequences analyzed contained fewer characters, who were spatially distanced,
and this conveyed the idea of each one as an isolated individual. In the sheepshearing festival, on the other hand, the characters, in larger number and
really close to one another, convey the idea of union, the idea of a people
(and not of separate individuals) in celebration and communion.
An interesting moment in the third sequence is when Perdita and
Florizel share an intimate conversation during the festival, in which their
affection and love for each other is made clear to the spectator. The characters
are crouched in the middle of the crowd, and the moment is entirely theirs,
for nobody else listens to their talk nor participates in it. This is important to
be contrasted to another intimate conversation, this one from the first sequence,
in which Hermione talks to Polixenes and, even though they are not in a love
relationship as Leontes believes and as Perdita and Florizel are, still, it is a
private conversation, and it has the presence of an audience. Some of the
characters, like Hermione’s ladies and Leontes’ servants, are clearly involved
and listening to the conversation between Hermione and Polixenes. The
difference between the intimate moments, from the tragic and the comic
parts of the film, shows that in the royal family intimate concerns are made
public, whereas in the ordinary life of shepherds and rural people there is
room for privacy.
There are some other important differences between the tragic
sequences analyzed before, and the comic and last sequence discussed. While
in the previous sequences there was rarely a soundtrack, usually only at
entrances of characters, during the sheep-shearing festival there is the sound
of music all the time, as well as the sound of laughs and applause. These
elements suggest happiness, and the use of dance also enhances this feeling
that everything is fine. Indeed, following Patrice Pavis, in Western mise en scène
music often functions to create, illustrate, and characterize an atmosphere.3
This is precisely the case in the sheep-shearing festival. Further, in regard to
the comparison of the sequences, another difference is that the previous
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familiar environment in the tragic part now leaves room for a popular
environment. In this third sequence, the characters are no longer in the royalty
of Leontes’ castle, but in a rural space that is open to everybody.
A final comparison that I want to highlight between the tragic and the
comic parts refers to the love entanglements. In the winter part of the film,
there is a tragic and veiled love entanglement between Hermione, Leontes
and Polixenes (later, the supposed adultery case between Hermione and Polixenes
is denied by the Oracle; still, the network of these three characters exists and
brings consequences to all). In the spring part during the sheep-shearing festival,
on the other hand, there is a comic and open love entanglement between the
shepherd’s son and two shepherdesses. In short, it seems that the two love
triangles are completely opposite to one another: veiled X public, tragic X
comic, a woman and two men X a man and two women. I would like to point
out this contrast as another factor that highlights the great differences between
the destructive and the restorative parts of the film.
Conclusion
I would like to finish this study recalling the epigraph that opened it,
in which Susan Willis says that “[p]lays are written to be performed,
performance is embodiment, embodiment is adaptation and interpretation”
(1991, p. 86). In Howell’s made-for-TV film of Shakespeare’s The Winter’s
Tale, clearly the Bard’s words gain bodies, voices, gestures, colors, movements,
all of which are developed following a conception and interpretation of the
source text. There are many gains, derived from the specificities of television,
like the direct addressing to the camera and characters positioned in the
foreground or in the background, so that I cannot agree with Wells’ belief that
the medium of television has somehow “reduced” Shakespeare. On the
contrary, this production of The Winter’s Tale on made-for-TV film definitely
adds to the play’s history and significance, at the same time that it offers
spectators and readers of Shakespeare another work of art, specifically as
television film, which is as relevant and memorable as those produced on
stage or screen.
_________________________
Notes
1
To illustrate the fact that there was a lot of respect and little interpretation (or little
innovation as regards interpretation), Taylor says of Howell’s productions that “[h]er
286
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
attitude to the printed text was the same in all six productions: a remarkable fidelity,
both to its letter and to its spirit” (TAYLOR, 1994, p. 88). This suggests the belief on
a so-called text’s essence (discussed in the second section above), and how there was
little transgression or disturbance between the film’s visual and textual elements.
2
Yet, in the period in which Miller was the producer (when The Winter’s Tale was
filmed), there was clearly less devotion to the text, as put forth by Willems. In general,
though, the texts of Shakespeare worked as the film scripts for the BBC Series, which
characterizes the series as a special case of adaptation.
3
Pavis mentions still other possible uses of music, amongst them to locate an action,
create a counterpoint effect, and make a given situation recognizable.
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Senac São Paulo e Itaú Cultural, 2003, p. 61-89.
Artigo recebido em 12 de março de 2009.
Artigo aceito em 03 de agosto de 2009.
Aline de Mello Sanfelici
Mestre em Letras/ Inglês e Literatura Correspondente pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC)
Doutoranda em Letras/ Inglês e Literatura Correspondente pela UFSC sob a
orientação do Prof. Dr. José Roberto O’Shea
Bolsista do CNPQ - Doutorado Sanduíche na University of British Columbia
(UBC) em Vancouver.
José Roberto O’Shea
Pós-Doutor em Letras e Artes pela Universidade de Exeter, Inglaterra.
Pós-Doutor em Letras e Artes pela Universidade de Birmingham, Inglaterra.
Doutor em Literatura Inglesa e Norte-Americana pela Universidade da Carolina do
Norte, EUA.
Professor Titular de Literatura Inglesa e Norte-Americana e de Tradução do Curso
de Letras da UFSC.
Professor de Pós-Graduação em Inglês e Literatura Correspondente da UFSC.
288
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
REFLEXÕES SOBRE AS LINGUAGENS CÊNICAS
DE SHAKESPEARE: O DUPLO TRAVESTIMENTO
EMO MERCADOR DE VENEZA
Anna Stegh Camati
[email protected]
RESUMO: Para evidenciar as
contradições do discurso patriarcal,
Shakespeare astuciosamente transforma
a convenção dramática do duplo disfarce
em uma arma subversiva para
problematizar as noções de gênero e a
relações de poder na vida cotidiana. Por
meio do uso criativo da estratégia do
travestimento, o bardo estabelece uma
confusão de identidades que contradiz e
subverte a visão patriarcal que inferioriza
a mulher. A representação das personagens
femininas, por atores imberbes travestidos
que depois se apropriam do disfarce
masculino para desempenhar papeis
reservados aos homens, lança uma luz
extremamente esclarecedora sobre os
mecanismos de construção dos
comportamentos sociais. Para ilustrar as
considerações críticas sobre as inovações
introduzidas na cena por Shakespeare, a
questão da subversão da identidade, em
O mercador de Veneza, foi revisitada neste
ensaio, à luz de escritos teóricos nãoliterários contemporâneos.
ABSTRACT: To expose the
contradictions of patriarchal discourse,
Shakespeare ingenuously turns the
dramatic convention of double disguise
into a subversive weapon to question
gender issues and power relations in daily
life. By means of creative use of the
crossdressing device, the bard establishes
a confusion of identities which
undermines and subverts the patriarchal
vision of women’s inferiority. The
representation of female roles by boyactors, who later appropriate the male
disguise to enact social roles denied to
the feminine sex, illuminates the
constructed nature of social behavior. To
illustrate the critical concepts concerning
the theatrical innovations introduced by
Shakespeare, the issue of identity
subversion, in The Merchant of Venice,
has been revisited in this essay, in the
light of contemporary theoretical nonliterary developments.
PALAVRAS-CHAVE: Shakespeare. O mercador de Veneza. Travestismo. Duplo disfarce.
Identidade de gênero. Relações de poder.
KEY WORDS: Shakespeare. The Merchant of Venice. Crossdressing. Double disguise.
Gender. Power relations.
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289
A máscara de cada dia nos dai hoje.
Tom Stoppard. Rosencrantz e Guildenstern estão mortos
No tempo de Shakespeare, o teatro era uma instituição política, uma
arena onde as convenções sociais e os valores estabelecidos eram questionados
e desafiados:
Por um lado, ele [o teatro] era chamado para se apresentar na corte, e como
tal poderia parecer ser uma extensão do poder da realeza; por outro lado,
constituía uma modalidade de produção cultural na qual predominavam as
forças do mercado, e como tal ele ficava exposto à influência das classes
subordinadas e emergentes. Não seria possível esperar, portanto, uma relação
ideológica livre de ambiguidades em relação às peças: ao contrário,
provavelmente os tópicos que interessavam tanto aos escritores e às plateias
eram aqueles nos quais havia ideologias opostas em tensão. (DOLLIMORE;
SINFIELD, 1985, p. 211)1
Os textos de Shakespeare, impregnados de teor ideológico, incluíam
reflexões sobre questões diversas, dentre elas problemas de gênero e as relações
de poder na vida cotidiana. No entanto, o dramaturgo tinha plena consciência
que não poderia e nem deveria expressar abertamente tudo que captava ao
seu redor, e que posicionamentos heterodoxos e anti-hegemônicos deveriam
ser apenas sugeridos. Muito antes de Freud, Shakespeare foi um dos mais
perspicazes observadores do subtexto da vida, deixando-nos entrever as
motivações veladas das personagens. Ele revelou as chaves ocultas de nosso
comportamento, o hiato que existe entre comportamento explícito e motivação
mascarada, aspectos retomados hoje não somente por escritores
contemporâneos, mas também por sociólogos, psicólogos e antropólogos.
A questão das máscaras sociais permeia toda a obra de Shakespeare.
A convicção de que a soma das máscaras é parte integrante do nosso eu tem
sido retomada por diversos dramaturgos da atualidade, dentre eles Tom
Stoppard, citado em epígrafe. Em sua reescritura de Hamlet, batizada Rosencrantz
e Guildenstern estão mortos, os dois personagens-título rezam para encontrar a
máscara certa para que, eventualmente, possam escapar da morte anunciada
no título. Robert Ezra Park nos informa que “não é provavelmente um mero
acidente histórico que a palavra ‘pessoa’, em sua acepção primeira, queira
dizer máscara” (Citado em GOFFMAN, 2003, p. 27).
290
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Nas comédias de Shakespeare, onde a confusão de identidades se faz
presente, o subtexto pode ser encontrado não somente no discurso e na ação,
mas também na transmutação de convenções dramáticas em linguagens cênicas.
Consequentemente, inúmeras possibilidades emergem das dimensões ocultas
de seu discurso que nos permitem problematizar e contestar leituras críticas
tradicionais.
A maioria dos críticos argumenta que devido ao seu extraordinário
conhecimento a respeito da natureza humana, Shakespeare conseguiu retratar
com igual maestria homens e mulheres, evidenciando a capacidade das mulheres
de superar os limites impostos a elas pelo sistema patriarcal. No entanto,
como esclarece Marlene Soares dos Santos, a atitude de Shakespeare em
relação às mulheres é complexa e requer atenção crítica:
A ambivalência de Shakespeare em relação à questão da mulher deve ser
contextualizada: sendo ele um homem ‘de seu tempo’, o que lhe era
facultado fazer – e o que ele fez – foi apontar alguns caminhos que as
mulheres encontraram para impor seus desejos e vontades dentro das
limitações ideológicas da doutrina patriarcal [...]. No início da modernidade,
existiam na Inglaterra diversas culturas competindo pela hegemonia e, por
isso, cheias de contradições, sendo que a ideologia oficial era constantemente
desafiada pelas práticas sociais atuais. Consciente acerca dos comportamentos
dissidentes e das vozes em discórdia no discurso dominante, Shakespeare
conseguiu incorporá-las na criação de suas personagens femininas,
principalmente aquelas das comédias, apesar de que, é preciso dizer, no final
elas são absorvidas pelas demandas da hegemonia social. Também é preciso
lembrar que ele escreveu para o teatro comercial e, se os seus biógrafos estão
certos, ele tinha muito talento para ganhar e investir dinheiro, o que significa
que ele também deve ter se empenhado em agradar a parte feminina de sua
platéia. (SANTOS, 2007, p. 129)
Não sabemos os motivos que levaram Shakespeare a retratar as
mulheres sob uma luz favorável. O que fica evidente em suas peças é que o
dramaturgo transforma a convenção do travestimento2 em estratégia artística
para questionar a validade da limitação de papeis femininos.
Na época de Shakespeare prevalecia o mito da identidade da mulher
como um dado fixo que sempre era invocado para não permitir que ela
assumisse papeis diferentes daqueles considerados pré-ordenados por Deus
que, segundo crenças antigas, estavam inscritos em sua própria natureza. A
condição da mulher, segundo essas mesmas crenças, não era adequada para
assumir papeis de destaque na sociedade, na política, nas artes, no mundo dos
negócios e nas relações diplomáticas. Havia toda uma série de preconceitos
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
291
em relação à mulher, como revela a criação das estruturas de pensamento
binárias, cultivada pelo poder patriarcal, sempre ávido em assegurar a hegemonia
masculina. A mulher era considerada fraca, passiva, submissa, deixando-se
guiar demasiadamente pela emoção; em contrapartida, o homem era visto como
o exato oposto: forte, ativo, dominador, independente, sincero e verdadeiro,
orientado pela razão.
Por meio do uso criativo da estratégia do travestimento, o bardo
estabelece uma confusão de identidades que contradiz e subverte a visão
patriarcal que inferioriza a mulher. A representação das personagens femininas
por atores imberbes travestidos que depois se apropriam do disfarce masculino
para desempenhar papeis reservados aos homens, lança uma luz extremamente
esclarecedora sobre os mecanismos de construção dos comportamentos sociais.
O disfarce de homem permite a elas um desenvolvimento mais efetivo e
completo como indivíduo e sujeito, liberando-as das restrições de sua condição
feminina e de objeto.
Em sua dramaturgia, Shakespeare já fornece indícios que os conceitos
de “masculinidade” e “feminilidade” são criações culturais e, como tais,
comportamentos aprendidos através do processo de socialização, que
condiciona diferentemente os sexos para cumprirem funções específicas e
diversas como se fossem parte de suas próprias naturezas. O autor deixa
implícito e, muitas vezes, explícito, que a hierarquia sexual não é uma fatalidade
biológica, porém uma construção, fruto de um processo histórico e, como tal,
passível de mudança. E, esta naturalização que inferioriza o sexo feminino é
constantemente questionada, criticada, ridicularizada e desacreditada nas
comédias de Shakespeare.
A partir dos anos 1980 e 1990, a crítica feminista deu visibilidade às
personagens femininas de Shakespeare que antes não eram valorizadas ou
textualizadas pela tradicional crítica shakespeariana, sendo consideradas
secundárias, meros estereótipos sem importância. Elaine Showalter, Catherine
Belsey, Carol Thomas Neely, Juliet Dusinberry, dentre outras, com base nas
reflexões críticas de Simone de Beauvoir (1998, p. 7-23), mostraram em suas
reflexões que as heroínas de Shakespeare são fortes, inteligentes, espirituosas
e decididas; possuem agudeza de espírito, perspicácia, determinação, audácia,
independência, versatilidade e fluência verbal. Algumas são rebeldes,
desobedientes, indomáveis e incontroláveis. São personalidades marcantes que
sabem o que querem e lutam para conseguir seu intento.
As feministas materialistas investigam a significação da subjetividade
individual feminina em Shakespeare, em contextos históricos e teóricos
específicos, rejeitando quaisquer respostas embasadas no determinismo biológico
292
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
ou em fundamentos metafísicos e essencialistas. Suas investigações mostram
que os textos do bardo possibilitam diferentes leituras: podem ser lidos como
afirmação ou negação de ideologias sexistas.
Como já foi dito anteriormente nesse ensaio, Shakespeare
problematiza as questões de gênero por meio do recurso do travestimento. O
discurso, que essa estratégia dramática implementa, constitui-se em linguagem
de subversão, indo de encontro com a teorização das feministas mais recentes
que argumentam que o corpo é uma situação (MOI, 1999, p. 117) – o corpo é
concretamente experienciado enquanto significação e situado social e
historicamente – ou seja, a mulher não é um dado fixo, mas um ser em
constante processo, fazendo e refazendo-se através de experiências vividas e
sedimentadas através do tempo e em interação com o mundo.
O discurso do travestimento também pode ser relacionado com a
teoria do psicólogo social Erving Goffman (1985, p. 25-76) que, em A
representação do eu na vida cotidiana, considera o comportamento individual na
vida diária da sociedade como uma performance do sujeito. Toma como premissa
o argumento de que todo mundo está constantemente e mais ou menos
conscientemente representando um papel e que o sujeito individual não é
tanto o autor de sua performance quanto um produto da cena social.
Em Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, Judith
Butler (2003, p. 119-201) retoma a teoria de Goffman do indivíduo que se
representa (performing self) e a leva um passo adiante. Ela se interessa por
formas responsáveis pela construção do gênero atribuído a indivíduos,
procurando identificar a operação na qual e pela qual a ideologia constitui
sujeitos. Butler também empresta idéias de Michel Foucault que, em seus
escritos, afirma a existência de um corpo anterior à sua inscrição cultural e
que formulou a tese de que os sujeitos são produzidos e controlados por
poderes regulatórios. Seus escritos constituem premissas fundamentais para a
teoria do gênero como mecanismo performativo. No capítulo quatro do livro
de Butler, intitulado “Inscrições corporais, subversões performativas”, a autora
tece os seguintes comentários:
Se a verdade interna do gênero é uma fabricação, e se o gênero
verdadeiro é uma fantasia instituída e inscrita sobre a superfície dos
corpos, então parece que os gêneros não podem ser nem verdadeiros
nem falsos, mas somente produzidos como efeitos da verdade de um
discurso sobre a identidade primária e estável. Em Mother Camp: Female
Impersonators in América, a antropóloga Esther Newton sugere que a estrutura
do travestimento revela um dos principais mecanismos de fabricação através
dos quais se dá a construção social do gênero. Eu sugeriria, igualmente, que
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
293
o travesti subverte inteiramente a distinção entre os espaços psíquicos interno
e externo, e zomba efetivamente do modelo expressivo do gênero e da idéia
de uma verdadeira identidade do gênero. (BUTLER, 2003, p.195)
A autora assevera que os comportamentos característicos atribuídos
ao gênero criam a idéia de gênero, e que na falta desses comportamentos, não
haveria gênero nenhum, pois não existe nenhuma essência que o gênero tenda
a expressar ou exteriorizar.
Tendo em vista as considerações críticas especificadas acima, minha
proposta é lançar um olhar mais aprofundado sobre a estratégia do duplo
travestimento em O mercador de Veneza, de Shakespeare. Nesta peça, três
personagens femininas representadas por atores do sexo masculino, se travestem
de rapazes para cumprirem funções diversas. Através do travestismo,
Shakespeare põe em xeque a noção de uma identidade original ou primária do
gênero, denunciando a estereotipia dos papeis sociais e sexuais pré-estabelecidos.
Em O mercador de Veneza, Pórcia, a heroína da peça, é uma rica herdeira
de Belmonte, cujo pai morto continua exigindo seu direito sobre a filha além
túmulo: a jovem comenta que não pode escolher quem lhe agrada, nem recusar
quem não lhe agrada (p. 26)3. Porém, desde o início, fica muito claro que tudo
que ela diz, entra em franca contradição com aquilo que ela faz. É mais do
que óbvio que ela manipula a escolha de Bassanio no enredo das arcas por
meio de uma canção cuja letra é extremamente sugestiva. E quando Bassânio
acerta escolhendo a arca de chumbo, Pórcia profere um discurso de submissão
e dependência, que seguramente parece afirmar os códigos da cultura do
patriarcado: ela se diz frágil, insegura, sem lustro ou experiência, disposta a
entregar seu espírito a Bassânio para este possa orientá-la.
Senhor Bassânio, aqui me vê agora
Tal como eu sou; e embora por mim mesma
Não tivesse ambição de ser melhor
Do que aquilo que sou, por sua causa
Desejaria eu ser multiplicada
Por mil no aspecto, dez mil na riqueza,
Tão só pra merecer a sua estima.
Queria em bens, belezas e virtudes
Ser muito pródiga, mas me resumo
Na resumida soma que, no todo,
É uma moça sem lustro ou experiência,
Mas que é feliz por ser ainda jovem
Para aprender; e mais feliz ainda
Por não nascer sem dotes que permitam
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Que venha a aprender; e felicíssima
Por poder entregar o seu espírito
Ao seu, para que possa orientá-la
Como seu amo, seu senhor, seu rei. (p. 88)
Logo em seguida, porém, assevera que era “senhor” da sua mansão e
não senhora, e lhe entrega um anel, que uma vez perdido, dará a ela o direito
de protesto (p. 88). Vemos que, desde o primeiro momento, ela impõe
condições. E suas atitudes subsequentes, quando substitui o juiz Belário,
travestida de Baltazar, decidida a desempenhar a função de advogado, não
para resolver a situação de Antonio, mas para salvar seu próprio casamento,
não deixam dúvidas de que ela não é frágil nem dependente, porém forte,
inteligente, voluntariosa, astuta e autoritária.
Em um ensaio intitulado “Patrimônio e patriarcado em O mercador de
Veneza”, Carol Leventen (1991, p. 72) argumenta que o discurso de submissão
de Pórcia dramatiza a força da ideologia patriarcal. Sua fala faria alguns
segmentos da plateia acreditar que ela internalizou os imperativos culturais,
identificando-se com a imagem feminina do patriarcalismo, a mulher ideal
com a qual Jéssica é contrastada como sendo a filha rebelde e desobediente.
Concordo com Leventen quando diz que Pórcia, apesar de manipular os
outros o tempo todo, não desafia abertamente o sistema como Jéssica. No
entanto, discordo dela quando afirma que heroína sujeitou-se inteiramente ao
jogo da sorte no enredo das arcas, e que ela internallizou completamente os
valores de seu pai, sendo que a maneira como ela se percebe é determinada
pela vontade de seu pai (1991, p. 67). Ao contrário, acredito que fica muito
claro na peça que Pórcia acumula as funções de dramaturga e diretora do
terceiro ato do enredo das arcas, uma peça dentro da peça, e que seu discurso
de submissão pode ser visto como uma prova do poder de dissimulação da
heroína: para tornar-se desejável, ela fala exatamente aquilo que Bassânio
gostaria de ouvir, visto que, em seguida, astutamente, prepara o terreno para
exercer poder sobre seu futuro marido, impondo mais condições como veremos
adiante.
Quando Pórcia e sua criada Nerissa se travestem de homens para
poder transgredir, ou seja, transitar em áreas proibidas às mulheres e assumir
papéis no tribunal, e quando a heroína redige a próprio punho seu
credenciamento para advogar, ela revela a capacidade de reinventar-se. Pórcia,
então, profere uma fala que representa uma mudança de discurso. Ela se
apropria do discurso masculino que comprova a teoria do fluxo, da constante
dissolução e reconstituição do “eu”. Ela assevera que a mudança de roupa e
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
295
de comportamento fará com que todos os homens do tribunal incorram em
um erro de julgamento:
[...] irão julgar que nós somos dotadas
De algo que não temos.4 E aposto já
Que quando nos vestirmos como homens,
Serei o mais bonito dos rapazes,
Usando a minha adaga com mais prosa,
Com voz meio rachada de menino
Que vira homem e, mudando o andar,
Pra dar largas passadas, vou gabar-me
De lutas e conquistas. Vou mentir
A respeito de damas que me amaram
E que morreram por que não as quis.
Depois eu me confesso arrependido,
Lamento ter causado as suas mortes,
Enfim, vou contar tanta mentira,
Que os homens que me ouvirem vão pensar
Que faz um ano que saí da escola.
Conheço mil estórias como essas,
Que os fanfarrões espalham pela vida,
E vou usá-las. (p. 100-101)
E, com efeito, assim travestida, apesar de não possuir o “falo” (adaga),
mencionado em seu discurso, ela consegue manipular a lei através de truques
e distorções e virar o julgamento de cabeça para baixo. O “falo” nesta instância
simboliza não apenas a masculinidade, mas o poder que a masculinidade confere.
O travestimento da lei, uma prerrogativa dos homens, é realizado de maneira
exemplar pela heroína, cuja identidade está oculta, trocada e disfarçada. Temos
aí uma inversão dos papeis tipicamente masculinos. No discurso transgressor
do bardo, o “outro” sexual tem vez e voz: o travestimento da heroína demonstra
que não é o sexo (condição biológica) e nem o gênero (construção social) que
faz uma mulher ser mulher ou um homem ser homem (BEAUVOIR, 1978,
p. 7-20).
É preciso esclarecer que esse processo de construção do “eu”, que
culminou com o disfarce masculino de Pórcia para assumir a identidade e o
poder de dissimulação dos homens, teve por finalidade salvaguardar seu
casamento, uma vez que há uma rivalidade entre ela e Antonio pelo amor de
Bassânio5, argumento que pode ser comprovado pela seguinte fala de Bassânio,
296
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
na cena do julgamento, quando declara estar disposto a renunciar a tudo,
inclusive ao amor de sua esposa, para preservar a vida do seu amigo,
Antonio, sou casado com uma esposa
Que me é mais cara que a própria vida;
Porém nem ela, nem vida, nem mundo,
Não me valem o mesmo que você;
Eu perderia tudo, em sacrifício
A esse demônio, para libertá-lo. (p. 120)
Se Antonio, que por amor a Bassânio, empenhara seu próprio corpo
no contrato assinado entre ele e Shylock sofresse qualquer agressão no
cumprimento da lei, os laços que prendiam Bassânio a Antônio fortalecer-seiam de tal maneira que tornariam insustentável a relação matrimonial.
Na esteira de seu sucesso no tribunal, a heroína de Shakespeare continua
a se reinventar com o truque do anel, fetiche entregue a Bassânio no dia em
que ela manipulou o jogo das arcas. Como pagamento da ação jurídica bem
sucedida, Pórcia, disfarçada de advogado, solicita o anel, o mesmo anel que a
seu pedido Bassânio havia prometido nunca tirar do dedo. Consegue seu intento,
e na volta a Belmonte recrimina Bassânio por ter quebrado sua promessa.
Este, completamente ignorante do que havia acontecido, pede clemência e
jura fidelidade eterna: “Se perdoar-me o erro cometido / Eu juro que jamais
serei perjuro” (p. 144). Antonio, que foi salvo por Pórcia, sente-se na obrigação
moral de apoiar e justificar seu amigo:
Eu empenhei meu corpo por dinheiro
E, se não fosse por quem tem o anel,
Estaria perdido. Mas agora,
Empenho a própria alma, garantindo
Que seu marido não trairá sua jura. (p. 144)
Com essa vitória sobre seu rival, Pórcia apresenta o anel a seu marido,
que ele reconhece ser o mesmo que ele havia dado ao doutor. Pórcia, por sua
vez, faz uma provocação dizendo: “Foi ele quem m’o deu: perdão Bassânio,/
Mas, pelo anel, deitei-me com o doutor” (p. 144). Anteriormente, ela já havia
feito uma ameaça ousada:
Que o doutor jamais venha à minha casa,
Pois já que usa a jóia que eu amava –
E que você jurou usar por mim –
Pode ser que eu me mostre liberal
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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E não lhe negue nada do que é meu,
Nem mesmo o corpo, ou o leito conjugal.
Eu hei de conhecê-lo, esteja certo.
Portanto, fique atento. E jamais passe
Uma só noite longe desta casa:
Se não me vigiar, se eu ficar só,
Por minha honra (que ainda é minha)
Eu dormirei bem junto ao seu doutor. (p. 142-143)
Esta fala contém uma ameaça explícita de traição no caso de quebra
de juramento. Apesar de que no final todos os equívocos são desfeitos, a
encenação desse episódio, roteirizado e dirigido por Pórcia, foi determinante
para estabelecer a prioridade de sua posição como esposa sobre Antonio em
relação à Bassânio, e este poder é fortalecido pelo medo da traição.
Presume-se que as mulheres que frequentavam os teatros se divertiam
com as heroínas rebeldes de Shakespeare, cujos comportamentos levantavam
questões de identidade e diferença. Certamente, elas se deleitavam com as
fantasias de poder às quais se entregavam durante o espetáculo antes de retornar
para a sua vida de submissão do dia a dia. Sabe-se que muitas mulheres, no
entanto, devem ter aprendido a lição e usado as estratégias aprendidas no
teatro na vida real, uma vez que o travestimento era uma prática social comum
entre as damas da sociedade elisabetana-jaimesca, quando queriam ser mais
livres e transitar em áreas proibidas. Para o olhar masculino, no entanto, mulher
vestida de homem representava uma ameaça. Ao travestir-se, havia o perigo
de que ela usurpasse não somente a autoridade masculina, porém também a
sua condição social – e os homens ficavam apavorados com a apropriação
das mulheres de suas características (DUSINBERRE, 1996, p. xix).
Shakespeare captou no ar as inquietações do período em que viveu,
e sendo dotado de uma sensibilidade apurada deu corpo e voz às novas idéias.
O bardo mostrou simpatia pelas mulheres que expressavam seu
descontentamento através do travestimento, um artifício para subverter a
autoridade constituída. Apesar de que algumas personagens das comédias
proferem discursos misóginos, percebe-se o distanciamento do autor.
Shakespeare, por meio da recriação da convenção do travestimento, de certa
maneira, solapava e enfraquecia os preconceitos contra a mulher. Ao mostrar
a teatralidade e performatividade dos comportamentos sociais, seus textos
levantam questionamentos que revelam uma estrutura de poder patriarcal
sob pressão. Mostra que muitas mulheres, longe de serem subservientes, tinham
seus próprios meios de subversão e mecanismos de poder apesar das opressões
do sistema.
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Shakespeare mostra grande sensibilidade ao dramatizar as relações
problemáticas entre os homens e as mulheres. A estratégia do duplo disfarce,
utilizado na criação de suas heroínas andróginas, elimina a diferença entre a
anatomia do performer e o gênero que está sendo representado. Como argumenta
Butler:
[...] estamos, na verdade, na presença de três dimensões contingentes da
corporeidade significante: sexo anatômico, identidade de gênero e performance
de gênero. Se a anatomia do performista já é distinta de seu gênero, e se os
dois se distinguem do gênero da performance, então a performance sugere uma
dissonância não só entre sexo e performance, mas entre sexo e gênero, e entre
gênero e performance. (2003, p. 196)
Por meio da apropriação criativa e transformação da convenção do
travestimento em linguagem cênica, Shakespeare dramatiza as idéias que
pretendeu projetar. O dramaturgo constrói um texto performativo, no qual os
elementos constitutivos, tais como convenções, elementos formais e as próprias
palavras formam vozes de um complexo argumento que lhe permitiram interrogar
as ortodoxias de sua cultura e questionar as atitudes misóginas do seu tempo.
Notas
1
Todas as traduções de citações de obras teórico-críticas em inglês são minhas.
2
Travestimento (cross-dressing em inglês) significa vestir roupas do sexo oposto com
o propósito da mulher se passar por homem e do homem se passar por mulher
(DAVIDSON & WAGNER-MARTIN, 1995, p. 223).
3
Todas as referências e citações de O mercador de Veneza inseridas no texto, assinaladas
apenas pelo número das páginas, são da tradução da obra de Shakespeare por Barbara
Heliodora, listada nas referências.
4
Os grifos são meus.
5
Coppélia Kahn (WALLER, 1991, p.129), em um ensaio intitulado “The Cuckoo’s
Note: Male Friendship and Cuckoldry in The Merchant of Venice”, afirma que
“Shakespeare estrutura o enredo dos anéis de tal maneira para mostrar o paralelismo
e contraste da rivalidade entre Antonio e Pórcia pela afeição de Bassânio, caracterizando
o conflito entre amizade masculina e casamento que aparece em quase todas as suas
peças”.
REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. vol. 1: Fatos e mitos. Trad. Sérgio Milliet.
São Paulo: Nova Fronteira, 1987.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
299
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad.
Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
DAVIDSON, Cathy N. & WAGNER-MARTIN, Linda. The Oxford Companion to
Women’s Writing in the United States. Oxford: Oxford University Press, 1995.
DOLLIMORE, Jonathan; SINFIELD, Alan. History and Ideology: the Instance of
Henry V. In: DRAKAKIS, John. Alternative Shakespeares. London and New York:
Methuen, 1985, p. 206-227.
DUSINBERRE, Juliet. Shakespeare and the Nature of Women. London: Macmillan, 1996.
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2003.
KAHN, Coppélia. The Cuckoo’s Note: Male Friendship and Cuckoldry in The Merchant
of Venice. In: WALLER, Gary (ed.). Shakespeare’s Comedies. London: Longman, 1991,
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LEVENTEN, Carol. Patrimony and Patriarchy in The Merchant of Venice. In: WAYNE,
Valerie (ed.). The Matter of Difference: Materialist Feminist Criticism of Shakespeare.
New York: Cornell University Press, 1991, p. 59-70.
MOI, Toril. What is a woman and other essays. Oxford: Oxford University Press, 1999.
SANTOS, Marlene Soares dos. Then and Now: Crossdressing in Shakespearean
Drama. Scripta UNIANDRADE, nº 5, 2007, p. 123-136.
SHAKESPEARE, William. O Mercador de Veneza. Trad. Barbara Heliodora. Rio de
Janeiro: Lacerda, 1999.
STYAN, J. L. Stagespace and Shakespeare Experience. In: THOMPSOM, Marvin & Ruth.
Shakespeare and the Sense of Performance. Newark: University of Delaware Press, 1989.
WALLER, Gary (ed.). Shakespeare’s Comedies. London: Longman, 1991.
Artigo recebido em 29 de maio de 2009.
Artigo aceito em 03 de agosto de 2009.
Anna Stegh Camati
Pós-doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Doutora em Língua Inglesa e Literaturas Inglesa e Norte-Americana pela Universidade
de São Paulo (USP).
Professora Titular de Literatura Inglesa e Norte-Americana da UNIANDRADE.
Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE.
Editora da revista Scripta Uniandrade.
Membro do Centro de Estudos Shakespeareanos (CESh).
Membro da International Shakespeare Association (ISA).
300
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
NARRATIVA GRÁFICA E METAFICÇÃO:
AS RELEITURAS DE SONHO DE UMA NOITE
DE VERÃO E A TEMPESTADE
EM SANDMAN, DE NEIL GAIMAN
Enéias Farias Tavares
[email protected]
RESUMO: Além de ser considerado
“nosso contemporâneo” ou “o inventor
do humano”, somam-se a pertinência e
a validade da obra de Shakespeare hoje.
Isso pode ser comprovado pelo grande
número de adaptações cinematográficas
e literárias que tem revisitado a obra e a
biografia do autor. Desde os anos
cinquenta, as narrativas gráficas ou
histórias em quadrinhos têm usado
Shakespeare em suas adaptações. O
objetivo desse texto é analisar como
Shakespeare e suas peças foram
apropriados nas histórias de Sandman, do
autor inglês Neil Gaiman. Tanto em
Sonho de uma noite de verão como em A
tempestade, Shakespeare não é apenas
personagem, mas também um elemento
intertextual por meio do qual Gaiman
reflete sobre o próprio ato criativo.
ABSTRACT: Besides Shakespeare
having been considered “our
contemporary” or the “inventor of the
human”, the relevance and validity of his
work today is widely acknowledged. This
can be attested by the great number of
films and literary adaptations that have
revisited his plays and his biographical
data. Since the fifties, the graphic novel
or comic books have tended to use
Shakespeare in their adaptations. The aim
of this paper is to analyze how
Shakespeare and his plays were
appropriated by the English author Neil
Gaiman in his Sandman stories. Both in
A Midsummer Night’s Dream and The
Tempest, Shakespeare is not only a fictional
character, but also an intertextual element
with which Gaiman reflects about the
creative act.
PALAVRAS-CHAVE: William Shakespeare. Crítica literária. História em quadrinhos.
KEYWORDS: William Shakespeare. Literary criticism. Comic books.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
301
Além de Shakespeare ser considerado “nosso contemporâneo”, como
argumentou Jan Kott, ou o “inventor do humano”, como afirmou Harold
Bloom, é inegável a pertinência e a validade das peças do autor em nossa
contemporaneidade. Seja em adaptações mais tradicionais de suas peças para
o cinema, como Muito barulho por nada, de Kenneth Brannagh, ou em biografias
ficcionais, como Shakespeare apaixonado, de John Madden, ou em leituras fílmicas
pós-modernas, como o filme-adaptação-documentário de Al Pacino, Looking
for Richard, o dramaturgo inglês continua sendo o autor literário mais traduzido
para a tela.
Na literatura, essa ênfase na releitura das obras e da vida de
Shakespeare também continua profícua. Autores como Anthony Burgess,
Robert Nye e John Updike, em romances como Nada como o sol (1964), O
relato íntimo de Madame Shakespeare (1998) e Gertrudes e Claudio (2000), entre
outros, tem recriado não apenas as principais peças shakespearianas como
também intensificado o interesse pelo autor. No Brasil, a série Devorando
Shakespeare, da editora Objetiva, já publicou as versões brasileiras de Jorge
Furtado, Luis Fernando Veríssimo e Adriana Falcão para as peças Trabalhos de
amor perdidos, Noite de reis e Sonho de uma noite de verão. Tratando de adaptações,
não apenas a literatura como também uma mídia que une palavra e imagem
tem apresentado releituras válidas do cânone shakespeariano visando apresentálo a novas audiências. Nesse caso, falamos da narrativa gráfica ou das histórias
em quadrinhos.
Desde a década de quarenta, editoras como Elliot Publishing, First
Comics e a Marvel Comics investiram em adaptações de obras literárias clássicas
para a mídia das histórias em quadrinhos infanto-juvenis. Pioneiro nessas
publicações, o selo Clássicos Ilustrados privilegiou a adaptação de obras de
diversos autores, Shakespeare entre eles. Atualmente, estão em fase de produção
as adaptações de Hamlet, Romeu e Julieta e A tempestade para o formato mangá
japonês, pela editora inglesa Self Made Hero. Tais adaptações, ao reinterpretar
o texto shakespeariano, reforçam a popularidade do escritor junto ao público
mais jovem.
Entretanto, outra forma de pensar o texto e a própria persona do
escritor na mídia da narrativa gráfica foi apresentada na revista do selo Vertigo
da DC Comics, Sandman. Nessa iniciativa, Neil Gaiman evidenciou que
Shakespeare poderia ser usado na mídia dos quadrinhos por abordar
diretamente as peças e a biografia do autor. Com isso, Gaiman e os ilustradores
do título também problematizaram aspectos culturais do período elisabetano,
refletiram sobre o processo criativo do dramaturgo e também ofertaram uma
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alternativa ficcional de repensar a cultura ocidental sob a ótica de sete seres
responsáveis pelos principais desejos humanos.
A série Sandman, publicada nos EUA entre 1989 e 1994, é uma das
obras gráficas mais elogiadas e reeditadas da última década, sucesso
corroborado pelas sucessivas edições dos dez volumes que compõem a saga
do mestre dos sonhos. Num universo em que uma família de seres cósmicos
(Destino, Morte, Sonho, Desespero, Desejo, Delírio e Destruição) se mistura
a psicopatas, poetas, personagens míticos e pessoas comuns, a consciência
ocidental, segundo a visão de Gaiman, se desnuda num texto repleto de
referências culturais; somada à variedade de ilustradores, destacando-se o
artista plástico responsável pelas capas da série, Dave McKean.
Fig. 1. Capas dos contos shakespearianos de Sandman 13, 19 e 75, por Dave McKean.
No primeiro volume da série, Prelúdios e noturnos, Sandman aparece
pela primeira vez como uma divindade vencida, aprisionada, humilhada e
enfraquecida. Em sua constituição psicológica, Morfeus, Sonho ou Oneiros,
nome do deus grego dos sonhos, deve mais à divindade hebraica, tendo no
Javé bíblico seu principal modelo comportamental. Silencioso e orgulhoso,
caprichoso e vingativo, o herói gaimaniano é um pesadelo de vontade, poder
e frieza que, no decorrer dos dez volumes da série, repensa suas decisões e
desejos em função dos homens.
Também vale ressaltar o elenco coadjuvante desse primeiro volume
da obra de Gaiman. Caim e Abel, as Hécates, John Constantine e a Morte são
apenas alguns dos muitos personagens que aparecem no primeiro volume,
podendo ser classificado como um conto soturno de vingança, poder, morte
e autoconsciência. Shakespeariano demais? Talvez, embora a presença ficcional
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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do bardo aconteça apenas no segundo volume, Casa de Bonecas, num diálogo
memorável com outro dramaturgo elisabetano, Christopher Marlowe.
Como fica evidente, Neil Gaiman preenche seu épico textual e gráfico
com referências comuns à cultura ocidental, às vezes flertando também com
a oriental, fazendo com que literatura, música, cinema, religião, filosofia e
ciência se entrecruzem com os temas presentes no texto. Só em Prelúdios e
noturnos, além de Shakespeare, há menção à peça Fausto de Marlowe, ao poema
Terra devastada de T. S. Eliot, à obra Alice através do espelho de Lewis Carroll, à
simbologia do Tarô, à doença do sono do início do século vinte, ao ocultista
inglês Aleister Crowley, ao músico Elvis Costello, ao lado de referências visuais
a Cristo, Elvis, Marilyn Monroe, Julio Cesar, Humphrey Bogart e John Wayne,
entre outros. Diante disso, supomos que um dos objetivos de Gaiman seja
criar um conto moderno que consiga perpassar uma cultura díspar e
fragmentada como a nossa. Daí as interpretações de Sandman como obra pósmoderna.
Fig. 02 – Gaiman, Vess, Oliff. Derpertar, p. 168.
A primeira aparição da personagem William Shakespeare em Sandman
se dá num capítulo intermediário de Casa de bonecas. No conto “Homens de
boa fortuna”, Morfeus, a consciência antropomórfica dos sonhos, conversa
com seu amigo, o imortal Hob Gadling. Um desses encontros acontece no
ano de 1589, numa taverna inglesa que tem como pano de fundo uma discussão
entre o maior dramaturgo naquele ano, Christopher Marlowe, e um aspirante
a escritor e ator iniciante, Will Shakespeare. Nessa taverna, as conversas dos
presentes tratam da composição de Fausto, a reforma religiosa de Henrique
VIII, as viagens mercantis do século dezesseis e a frustração do homem de
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Stratford diante de seu precursor. Percebendo a angústia do escritor iniciante,
Morfeus oferece a Shakespeare a realização de seu sonho: escrever histórias
que perdurem por séculos. Nitidamente, o que temos numa cena de apenas
quatro páginas é a reescrita da peça mais famosa de Marlowe, Fausto, para os
próprios objetivos de Gaiman. Em troca dessa dádiva, Will escreveria duas
peças dedicadas ao deus dos sonhos.
As duas peças em questão seriam Sonho de uma noite verão e A tempestade.
Não apenas por serem as únicas peças cujas tramas, pelo que se sabe, seriam
criadas por Shakespeare, exceto As alegres comadres de Windsor, mas também
por serem as peças prediletas de Gaiman. Soma-se a isso a temática e os
elementos mágicos e/ou oníricos de Sonho e Tempestade, que poderiam ser
organicamente usados por Gaiman na composição de sua própria mitologia
sobre Morfeus e seus irmãos. Como resultado, a presença de Shakespeare na
série Sandman seria um dos elementos que a tornariam não apenas premiada
como também respeitada por críticos culturais e teóricos acadêmicos, como
um exemplo de narrativa gráfica que poderia transcender seu gênero ao
apresentar elementos literários, históricos e artísticos em suas páginas. O objetivo
desse artigo é analisar como Neil Gaiman faz uso da persona de Shakespeare
e de suas peças em Sandman. Como veremos, tanto em Sonho de uma noite de
verão quanto em A tempestade, Shakespeare não é apenas personagem dos
respectivos contos, mas um elemento intertextual importante, usado tanto
para destacar a complexidade do protagonista do título quanto para refletir
sobre o próprio ato criativo de seu autor.
***
A peça Sonho de uma noite de verão foi levado à cena entre 1592 e 1595,
possivelmente num casamento. Tendo como cenário os preparativos para o
casamento do duque ateniense Teseu e da rainha amazona Hipólita,
acompanhamos as peripécias de um grupo de atores, liderados por Bottom,
que ensaiam a peça Píramo e Tisbe, além de dois casais, Hérmia e Lisandro,
Demétrio e Helena, e suas aventuras amorosas. Em meio às duas tramas,
temos os jogos amorosos entre o rei e a rainha das fadas, Oberon e Titânia.
Entre os dois deuses, Puck, servo de Oberon, espalha a confusão não apenas
em meio aos amantes, como também entre os atores, que assistem Bottom se
transformar num jumento para depois receber o amor de Titânia. É interessante
notar que não apenas na trama, como também em suas alusões a fadas, sátiros
e poções mágicas, a peça apresenta um tom de fantasia até então inédito na
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
305
obra de Shakespeare. Refletindo sobre esses aspectos, Leslie Danton-Downer
e Alan Riding escrevem:
Nenhuma comédia shakespeariana oferece tamanho festejo de magia, humor,
música e espetáculo quanto Sonho de uma noite de verão. O título refere-se à
chegada do verão, que os elisabetanos aguardavam com comemorações de
encantamento, feitiçaria e até loucura momentânea. A peça está inteiramente
de acordo com tais exageros e transgressões. Barreiras entre realidade e ilusão
são destruídas na floresta noturna, onde a mágica enlaça os sonhos dos
amantes e feitiços são lançados sobre os atores que ensaiam sua peça. (2004,
p. 199)
Mágica, feitiços, mistérios, festanças, espetáculo, encantamento e
loucura são alguns dos termos usados pelos autores para referirem-se à famosa
comédia. Nesse contexto, Gaiman encontrou a peça perfeita para ambientar
uma trama que trata de Morfeus, Shakespeare e da relação entre o mundo
das fadas e o mundo dos mortais. O texto de Gaiman, ao lado da arte de
Charles Vess e das cores de Steve Oliff, fez com que Sonho de uma noite de verão,
terceiro capítulo do volume Terra de Sonhos, ganhasse o prêmio World Fantasy
Award, em 1992, algo até então inédito para uma premiação exclusivamente
literária. Qual o motivo de tamanho sucesso? O que há de especial na história
de Gaiman para merecer tal menção, colocando-a ao lado de Maus, de Art
Spiegelman, única história em quadrinhos a receber um Pulitzer?
Primeiramente, a preocupação de Gaiman e Vess era de que o conto
fosse historicamente crível. Para tanto, os artistas empreenderam uma ampla
pesquisa sobre Shakespeare, sobre a peça e sobre o período elisabetano. Livros
sobre a vida dos atores no período, interpretações críticas e teóricas de Sonho,
documentos sobre a peste em Londres em 1593, informações sobre o cenário
campestre no qual a história acontece, descrições do treinamento físico e
vocal dos atores que interpretavam personagens femininas nos espetáculos
do período e diversas biografias de Shakespeare, deram aos autores o suporte
necessário para criar, de forma verossímil, a relação entre o dramaturgo e
seus atores, além de narrar a problemática relação entre o autor e seu filho,
Hamnet. O resultado é uma história que nos mostra um Shakespeare at work,
para usar a expressão de James Shapiro (2005, p. xviii), de um dramaturgo
preocupado com o cenário, com a encenação, com os figurinos e, sobretudo,
com a recepção de seu público.
Do ponto de vista estrutural, Sonho de noite de verão, de Gaiman e Vess,
apresenta a mesma configuração da peça de Shakespeare. Em ambas, temos
a visão do que acontece em cena, durante a apresentação da peça; nos
306
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
bastidores, quando a preocupação e a movimentação dos atores são nítidas;
na primeira fileira da platéia, na qual Oberon, Titânia, Morfeus e Puck discutem
a peça e o distanciamento do mundo das fadas do mundo dos homens; e na
segunda fileira, composta das personagens Bevis, Peaseblossom e Skarrow,
em que se acessa uma apreensão mais superficial do espetáculo. Esse jogo
cênico de Gaiman e Vess, nitidamente inspirado nos elementos metaficcionais
já presentes na peça de Shakespeare, possibilita uma visão panorâmica do
teatro elisabetano em que cena e bastidores são mostrados. Um jogo similar
pode ser observado no início do filme Henrique V, de Laurence Olivier, ou nas
instruções que Hamlet dá aos atores antes da “peça dentro da peça”. Além
desse jogo, também é perceptível a representação dos dois tipos de público
para os quais o dramaturgo escrevia: de um lado uma platéia educada que
poderia discutir os subtextos políticos, culturais e filosóficos das peças, e de
outro um público menos culto, em sua maioria analfabetos, que apenas
acompanhava e discutia o enredo mais óbvio do espetáculo.
Além disso, há na história de Gaiman um nítido jogo linguístico que
dialoga com o verso e a prosa de Shakespeare. Nela, personagens nobres,
como Morfeus, Oberon e Titânia, usam o pentâmetro iâmbico enquanto que
as de uma posição social inferior falam em prosa. Essa diferenciação na
construção das falas das personagens foi uma escolha de Gaiman visando
ilustrar as diferenças intelectuais entre diferentes grupos sociais, algo comum
no teatro de Shakespeare, no qual a variação linguística correspondia à própria
posição social e cultural das personagens. Em contraste, todos os outros
diálogos do conto, entre os moradores do mundo das fadas, entre os atores, e
mesmo entre Sandman e Shakespeare, são em prosa. Esse cuidado com a
forma da linguagem é também visível no modo como Gaiman monta, de
forma sutil, as falas. Essas demarcam não apenas o nível de intimidade entre
as personagens do conto, como também demonstram o trabalho de composição
artística de Gaiman na escrita de sua história.
Quando nos afastamos dos diálogos entre Morfeus e os reis das fadas,
somos levados a testemunhar a relação dos atores com o próprio Shakespeare.
Entre esses, em viagem de férias com o pai, está o filho do dramaturgo,
Hamnet, que morreria algum tempo depois, aos doze anos. No diálogo abaixo,
Gaiman inicia na história o principal tema de sua interpretação sobre o
dramaturgo: o contraste entre o mundo real e o mundo das histórias, além de
demarcar as distâncias entre as expectativas de um filho e a falta de atenção
de um pai regularmente distante.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
307
Fig. 03 – Gaiman, Vess, Oliff. Terra de Sonhos, p. 75.
A fala de Hamnet, na qual é expresso seu distanciamento do pai em
vista da obsessão do mesmo em transformar toda e qualquer vivência em
histórias, é o ponto central da história de Gaiman. Curiosamente, esse diálogo
não estava no roteiro original, tendo sido resultante da observação da editora
Karen Berger. Em sua opinião, a história carecia de um aspecto humano mais
nítido, estando muito focado em informações culturais que agradariam apenas
aos “especialistas shakespearianos” (BENDER, 1999, p. 83). Especialmente
nessa passagem, Gaiman trabalha com o tipo de desconexão entre um pai e
um filho, visível no diálogo deles, no qual um não escuta o outro. Além disso,
há também a desconexão entre as emoções de um escritor e o uso da
racionalidade deste ao verbalizar artisticamente tal sofrimento.
Em diversas biografias, a relação entre o escritor e seu filho é sempre
mencionada. Nem tanto pelos dados factuais sobre essa relação, que
praticamente inexistem, mas em contraste com a mais famosa peça do escritor,
Hamlet. Refletindo sobre o possível impacto que a morte de Hamnet teve
sobre a obra do autor, Park Honan, na biografia Shakespeare uma vida, escreve
que embora tenha continuado, entre 1556 e 1600, a escrever comédias e
peças romanas,
a morte do filho o transformou. Shakespeare parece nunca ter se recuperado
da perda. O desdobramento disso foi uma inteligente complexificação da
sua visão do sofrimento, quando então ele passou a se identificar com os
que padecem de uma dor extrema e irremediável; o sofrimento aumentou
sua introspecção, ao mesmo tempo que o fez, talvez, desdenhar de qualquer
sucesso mundano que pudesse alcançar. É inútil querer argumentar que
Shakespeare não poderia ter escrito suas tragédias intelectualmente mais
308
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
audaciosas se seu filho não tivesse morrido; ele ainda não estava escrevendo
tais peças em 1596. Mas a morte de Hamnet, essa terrível e amarga perda,
tornou mais profundo o artista e o pensador: tal perda o teria ajudado a
livrar-se dos últimos e persistentes inconvenientes de sua desenvoltura
técnica – aquele legado de sua juventude – e a reunir forças para escrever os
dramas emocionalmente mais complexos e intensos que o teatro inglês já
conheceu. (2001, p. 294)
Além de Honan, outro autor que dedicou páginas à relação entre a morte
de Hamnet e a composição da maior peça do dramaturgo foi Stephen Greenblatt
no livro Will in the World: how Shakespeare became Shakespeare. No capítulo “Um
príncipe entre as tumbas”, o autor argumenta que o inexistente ritual fúnebre
anglicano, em contraste com o suntuoso católico, deve ter aprofundado a dor de
Shakespeare que, incapaz de prantear livremente por seu filho, compôs uma peça
que trata, entre outras coisas, da morte de um pai e do sofrimento de um filho.
Baseado nesse dado biográfico, Gaiman faz com que o menino Hamnet
vislumbre a importância que seu pai dedica às histórias, às palavras e ao mundo
do teatro, em detrimento do interesse demonstrado a ele e a sua família. Num
diálogo em que o ator não escuta de fato a reclamação do menino, Hamnet surge
como um dos personagens principais da história, fazendo par futuramente com
Judith, a outra filha de Shakespeare presente na história A tempestade. Esse
afastamento familiar é visível no diálogo abaixo em que pai e filho dialogam sem
de fato escutar ou responder aos comentários um do outro.
Fig. 04 – Gaiman, Vess, Oliff. Terra de Sonhos, p. 79.
Em contraste com a famosa fala de Puck, usada anteriormente por
Gaiman no primeiro volume de Sandman, “Senhor, como são tolos esses
mortais”, percebemos essa apatia de Shakespeare no que concerne às reflexões
de seu filho. Aqui, num diálogo de bastidores montado ao lado de uma cena
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
309
da própria peça, o que temos é a ironia sobre o evidente distanciamento de
um pai por seu filho, tão absorto que está em seu mundo ficcional. Tolo,
“como todos os mortais”, o Shakespeare de Gaiman ignora a fascinação de
seu filho pelo mundo de Titânia. Sobre essa relação entre pai e filho na história
de Gaiman, Joe Sander comenta:
O próprio Shakespeare, como Gaiman nos pinta, escolheu estar encantado
por sua arte. Ele anteriormente fez seu pacto com Sandman e dará mais
atenção às histórias que conta em suas peças do que às pessoas ao redor dele.
Seu filho de oito anos, Hamnet, tristemente reconhece a verdade do gracejo
familiar: que Shakespeare reagiria à morte de seu próprio filho escrevendo
uma peça, Hamnet. (2006. p. 33)
O leitor de Gaiman sabe que a peça em questão é Hamlet. Tal revelação,
nada agradável tratando-se da visão que se poderia ter de um pai ideal, não
surpreende ao leitor. Antes, diluída como está no conto de Gaiman, nos remete
rapidamente ao espírito trágico da construção artística: da sedução produzida
pelo universo das histórias ao suplantarem a experiência real de seus criadores.
O que reforça a suposição crítica de que a perda de Hamnet em 1596 possa
ter relação com a composição de Hamlet, cinco anos mais tarde.
Outro destaque da história de Gaiman, Vess e Oliff, está em sua estrutura
e no modo como caracteres ficcionais se sobrepõem aos dados históricos e culturais
do período. Embora as quatro estruturas ficcionais do conto de Gaiman apareçam
em painéis diferentes, regularmente temos uma mescla de informações ou
cenários num mesmo painel, como vimos na figura 03. Além das palavras de
Hamnet, destaca-se um utensílio cenográfico no primeiro painel: a famosa
cabeça de burro usado pelo ator que interpreta Bottom. No mesmo painel,
temos um ator que interpreta Hérmia, fazendo alusão direta à forma física
dos atores mais jovens que interpretavam papéis femininos. No exemplo abaixo,
também nota-se essa mescla de vários elementos, onde Morfeus e Shakespeare
conversam enquanto Titânia recria, na história de Gaiman, a relação que tem
com o misterioso menino indiano do texto de Shakespeare.
310
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
Fig. 05 – Gaiman, Vess, Oliff. Terra de Sonhos, p. 78.
Nesses três quadros, ficção e realidade se entrelaçam. No primeiro
painel, enquanto Sandman revela a Shakespeare sua satisfação com a peça,
Titânia oferece ao pequeno Hamnet uma fruta da terra das fadas, possivelmente
tentando levá-lo ao seu mundo. No segundo quadro, Shakespeare menciona
não apenas o pacto que havia feito com o rei dos sonhos como também a sua
disputa com Marlowe. No último painel, observa-se o olhar impassível de
Sonho ao afirmar que Marlowe está morto, vítima de uma briga numa taverna
em Deptford. Nesse sentido, a fala de Shakespeare, “Sonho é a melhor coisa
que já escrevi”, revela a relação entre o autor e sua obra. Nesse caso, tanto a
relação de Shakespeare com sua peça quanto a de Gaiman com sua história.
Ao ler a discussão de Gaiman com Hy Bender, em The Sandman
Companion, sobre o processo criativo dessa história, percebemos a nítida intenção
do escritor britânico de relacionar os dramas de sua personagem com os seus
próprios enquanto escritor. Ao mencionar a angústia de Shakespeare em
transformar tudo em histórias, Gaiman relaciona-a com a sua própria angústia
de não conseguir diferenciar totalmente, enquanto escritor, uma emoção
vivenciada de um possível registro ficcional futuro (BENDER, 1999, p. 77).
Outro indício desse embaralhamento entre o próprio autor de Sandman
e Shakespeare, fica evidente quando comparamos as aparições do bardo em
Sandman com suas entrevistas. Apesar de sua personagem ter muitos nomes –
Sandman, Oneiros, Morfeus etc –, Gaiman sempre fala dela como “Sonho”.
Assim, quando lemos, na página 78 de Terra dos sonhos, Shakespeare dizer a
Sonho que Sonho é a melhor coisa que já escreveu, não nos surpreende a
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
311
ironia do próprio Gaiman ao mencionar que Sonho da série Sandman seria sua
criação mais apreciada.
Enquanto Shakespeare e seus atores apresentam sua peça, Gaiman
compõe o diálogo entre Sandman e os reis das fadas de modo a demonstrar
não apenas o distanciamento cada vez maior das velhas fantasias em contraste
com o mundo racional dos homens, como também articula sua principal opinião
sobre o processo criativo. Fazendo eco com a famosa fala de Teseu em Sonho
sobre o “discurso do louco, do poeta e do amante”, Gaiman escreve a fala de
Sonho refletindo sobre a capacidade da ficção de tornar reais as ilusões ou
fantasias humanas.
Fig. 06 – Gaiman, Vess, Oliff. Terra de Sonhos, p. 83.
Enquanto terminam de assistir a peça, Oberon agradece pela
apresentação do pequeno espetáculo, embora afirme que ela nada tenha de
real. Sandman discorda dele, numa fala de nítida ambiguidade ao responder
ao rei e olhar sedutoramente para Titânia, que “as grandes histórias não precisam
ter acontecido para serem verdadeiras”. Pelo contrário, muitas delas
permanecerão vivas, mesmo quando os verdadeiros fatos se perderem na
corrente do tempo. Gaiman torna ainda mais complexa essa fala não apenas
por fazer eco às palavras anteriores de Puck (GAIMAN, 2005, p. 75), mas
também por exemplificar a paixão de Titânia pelo misterioso menino indiano,
paixão mencionada em Sonho de uma noite de verão e “realizada” ficcionalmente
na história de Gaiman, quando Titânia toma para si o filho de Shakespeare.
Assim, o leitor de Sandman percebe, na própria estrutura fabular da história,
312
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
como a fantasia tanto pode ser mais marcante que a realidade quanto pode
também criar e/ou modificar essa mesma realidade.
A página finda com um diálogo cômico brilhante, diretamente tomado
da peça de Shakespeare em que, após a reflexão de Sonho sobre realidade e
fantasia, a personagem Hipólita diz que aquela era “a coisa mais estúpida que
já” ouvira. Teseu responde que as melhoras comédias são sombrias e que as
piores “se ajeitam se a imaginação as emendar”, palavras que, segundo Gaiman,
resumem o enredo de seu conto e explicitam a natureza das personagens
presentes nele (BENDER, 1999, p. 87).
No fim da história de Gaiman e Vess, os seres fantásticos retornam
ao mundo das fadas, deixando Puck para trás. Este finaliza o conto recitando
a última fala da peça de Shakespeare. “Se nós, sombras, vos ofendemos,
pensai nisto e corrigiremos. Estivestes aqui, dormindo, e as visões foram
surgindo. E este fraco e tolo enredo não passou de um sonho ledo. Senhores,
queiram perdoar... prometeremos melhorar” (GAIMAN, 2005, p. 85). Para
os leitores de Sandman, não será surpresa encontrar a personagem no penúltimo
volume da obra, Entes Queridos, quando o próprio Puck estará relacionado à
morte do senhor dos sonhos. Ironicamente, não será nesse volume que nos
despediremos definitivamente de Morfeus. Ele ainda aparecerá no último
capítulo da série quando receberá de Shakespeare sua última peça, A tempestade,
concluindo o pacto entre eles.
***
A tempestade, de Shakespeare, foi composta possivelmente em 1610,
tendo sua primeira apresentação em 1611 para o próprio rei James no palácio
de Whitehall, e apresentando como protagonista Próspero, o antigo duque de
Milão, traído e exilado numa distante ilha pelo irmão usurpador Alonso. Na
ilha, Próspero dedicou-se às artes mágicas, aprendidas nos livros que levou
consigo, livros que o ajudaram a dominar tanto o espírito do ar Ariel quanto o
monstro primitivo da ilha, Caliban. Ao lado do mágico, sua filha Miranda
também aguardava a libertação do cativeiro. A peça trata do naufrágio imposto
por Próspero ao navio de seu irmão e de sua vingança contra a traição deste.
Visto como uma resposta à maior peça de seu precursor, o Fausto de Marlowe,
por sua temática mágica, ou ainda como um relato que problematiza as viagens
de conquista pelo novo mundo, Tempestade é vista principalmente, por leitores
e críticos, como a peça em que os elementos autobiográficos do autor mais se
apresentam. Tal interpretação era a que mais interessava a Gaiman na
composição do último capítulo de Sandman.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
313
Como Joan Gordon afirma, no artigo Prospero Framed in Neil Gaiman´s
The Wake, a estrutura do último capítulo de Sandman relaciona obra, peça,
autor, personagem, artista, etc, como se cada elemento da história estivesse
organicamente conectado com o todo e vice-versa. Segundo a autora, “A
história de Próspero é moldada pela história de Shakespeare, que é moldada
pela história de Sandman, que é moldada pela narrativa do autor, que é moldada
finalmente pelos leitores” (2006, p. 80). Lendo a história percebemos que esse
entrelaçamento ficcional cria no leitor a sensação de que está lendo a própria
gestação da história de Shakespeare. Gaiman, grande fã do conto Pierre Menard,
autor de ‘Quixote’, de Jorge Luis Borges, “reescreve” a peça e a biografia de
Shakespeare de tal modo que o leitor passa a observá-las em sua conexão
com a história de Morfeus. Este desejava uma peça cujo rei protagonista
tivesse a possibilidade, diferentemente dele, de abandonar o seu reino e o seu
“livro de feitiços”. Em outra via, Shakespeare precisaria completar o pacto
feito com Morfeus, além de expressar em sua arte seus próprios conflitos,
advindos desse pacto, de seus problemas familiares e da angústia proveniente
da velhice. Nesse enredo múltiplo, o leitor testemunha tanto a visualização da
velhice de Shakespeare quanto a predição da morte do senhor dos sonhos.
A estrutura da história de Sandman 75 tem algumas similaridades
com a de Sonho de uma noite de verão, em Terra de sonhos. Há na história um nítido
interesse de Gaiman, Vess e Daniel Vozzo, responsável pela colorização do
conto, em configurar historicamente a personagem Shakespeare. Nesse sentido
o enredo da história que, genericamente, é descrita como “aquela que mostra
como Shakespeare escreveu sua última peça”, alude a acontecimentos sociais
precisos, além de pintar um cenário verossímil dos últimos anos da vida de
Shakespeare. Sobre a condição de Shakespeare em 1610, ano em que a história
de Gaiman se passa, Anthony Holden afirma:
Aos 47 anos, mais ou menos, Shakespeare estava de volta a Stratford, onde
manteve seu caneco de barro na hospedaria local, “costumando também
tomar cerveja numa determinada taverna, nos sábados à tarde”. Sua esposa
Anne estava com 54 anos; as filhas, com vinte e poucos. Susanna morava na
esquina de New Place, com o atarefado marido médico e uma filha pequena.
Judith ainda vivia com os pais – pelo jeito, sem conseguir um marido à
altura: tinha quase a mesma idade com que sua mãe, encalhada e descuidada,
engravidou de seu pai, que agora teria de aprender a ser chefe de família
depois de quase trinta anos de casado. Não era um papel que coubesse bem
a Shakespeare. (2001, p. 241)
Numa dessas súmulas que encontramos em diversas biografias do
dramaturgo, esse ator, vivendo um papel estranho ao seu contentamento e
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
hábito, parece exemplificar perfeitamente o Shakespeare descrito por Gaiman
e ilustrado por Vess. Um ator-diretor-escritor franzino, um tanto tímido, sempre
cordial, mesmo diante das indelicadezas de sua esposa ou de seu amigo Ben
Jonson, um homem angustiado com o rumo de sua vida e com a totalidade de
sua obra. Entretanto, a história de Gaiman não apresenta apenas esse retrato
apurado dos principais caracteres biográficos do autor, como também apresenta
um número considerável de alusões às condições sociais da Londres do período
Jacobino, à suposta homossexualidade de James I, à rusga ainda presente
entre anglicanos e católicos, à revolução da pólvora em 1605, à escrita dos
sonetos de Shakespeare e sua recepção no período, às dificuldades financeiras
da família do dramaturgo, ao naufrágio inglês próximo às Bermudas em 1610, à
natureza dos habitantes do novo mundo, ao sucesso dos ensaios de Montaigne na
Inglaterra e à visão comum do período sobre as pessoas de teatro, como ilustrado
na figura 7.
Fig. 7 – Gaiman, Vess, Vozzo. Despertar, p. 83.
Numa história que inicia com uma discussão marital, Gaiman faz
Shakespeare deixar a composição de sua peça para frequentar uma das tavernas
de Stratford. Lá, somos apresentados a dois outros moradores do vilarejo que
formulam em seu diálogo a opinião comum sobre os dramaturgos no período
elisabetano. Não tão renomados quanto os poetas, os dramaturgos eram
considerados homens de profissão inglória, pouco valorizada, recebendo o título
de “Corvos da praga” pelos pregadores religiosos. A razão desses insultos era que
o teatro elisabetano recebia a visita de um público eclético, tanto de universitários
e intelectuais, quanto de viajantes, açougueiros e prostitutas, entre muitos outros.
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
315
Assim, a relação entre doença, maldição, pecado e teatro, nessa ordem, não era
exceção e sim regra. Por isso o fechamento dos teatros tão logo a suspeita de
peste, resultando no fechamento “definitivo” sob o regime de Oliver Cromwell,
em 1642. Em cenas como essa, que perpassam o último capítulo de Despertar,
Gaiman amplia a visão que temos de Shakespeare e do período em que viveu ao
nos mostrar um homem comum, mal afamado, convivendo não apenas com
assuntos banais como também com suas próprias preocupações enquanto pai e marido.
Também é visível na história o contraste que percebemos entre
Shakespeare e seus contemporâneos. Ao lado de Ben Jonson, Robert Greene,
Thomas Middleton, John Webster e John Ford, o homem de Stratford era
conhecido como um dramaturgo de sucesso, nada mais. Um indício dessa não
exaltação de Shakespeare entre os seus é a crítica de um de seus amigos, Ben
Jonson, à pouca escolaridade do autor. No diálogo entre os dois, Gaiman
sublinha a pretensiosa superioridade intelectual que Jonson pode ter evidenciado
diante da aparente simplicidade do colega. Após escutar a crítica da esposa,
personagem sempre ao fundo e ressentida da carreira do esposo, Shakespeare
recebe em sua casa a visita do antigo amigo e também dramaturgo.
Fig. 8 – Gaiman, Vess, Vozzo. Despertar, p. 158.
Ben Jonson (1572-1637) era um dramaturgo mediano, homem repleto
de aventuras e experiências navais. Sobre a opinião que tinha de Shakespeare,
Honan afirma que o dramaturgo “inventou, com uma pequena ajuda dos
amigos, a imagem de um poeta de Stratford pouco culto e naturalmente
talentoso que, com o seu ‘mau latim e pior grego’, cometera erros tolos e
flagrantes” em sua obra (2001, p. 314). Mesmo sendo um dos que
homenageariam Shakespeare no Primeiro Fólio, publicado em 1623, dedicandolhe um poema e uma elegia, Jonson expressou sua opinião a respeito da
necessidade de “revisão” das peças do bardo – “ele nunca riscava uma linha já
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
escrita” –, além de seu esparso conhecimento das línguas eruditas de seu
tempo.
Além da relação do dramaturgo com Jonson, Gaiman aprofunda a
personalidade da personagem Shakespeare usando uma estrutura bipolar que,
de um lado vê sua biografia no ano de 1610 em sua relação com a composição
de seu protagonista Próspero, e que de outro, observa a relação de Shakespeare
com a filha, Judith, e com a esposa, Anne Hathaway. Na passagem abaixo, na
figura 9, observamos Shakespeare lendo uma das falas mais famosas de
Tempestade para sua esposa.
Ao lado de Próspero, Shakespeare idealiza o casamento de sua filha
Judith, na história, que futuramente casaria com o filho do taverneiro de
Stratford, Tommy Quiney, um jovem mais próximo de um Caliban do que de
um Ferdinando, do ponto de vista do Shakespeare de Gaiman. Projetando a si
mesmo como um Próspero, destruindo seu livro, ou como um dramaturgo
em fim de carreira, o Shakespeare de Gaiman sonha com uma peça que
possa expressar o máximo de suas ilusões e esperanças enquanto essas
contrastam nitidamente com a própria realidade.
Fig. 9 – Gaiman, Vess, Vozzo. Despertar, p. 173.
Biograficamente, a peça pode apresentar uma série de elementos
comparativos com a vida do dramaturgo: essa seria sua última peça – embora
ele compusesse mais duas ao lado de John Fletcher –, assim como o naufrágio
do navio de Alonso seria o último feitiço de Próspero. Como já havia aparecido
em outras comédias – Como gostais e Muito barulho por nada, entre outras – a
relação entre pai e filha ganha destaque, especialmente no caso de Shakespeare,
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
317
que havia perdido seu único filho homem e cuja filha mais velha já estava
casada. Porém, não é apenas nesses fatores familiares ou profissionais que
Tempestade pode ser comparada à biografia do autor. Refletindo sobre essa
tendência comparativo-crítica, Honan aborda outro fator que reforçaria essa
aproximação:
Mais ou menos como o dramaturgo, o mágico cria e disciplina um mundo
quase ingovernável, conduz seu grupo ao longo de certas trilhas e põe os
membros do grupo diante de situações às quais eles têm de reagir. A visão
que o mágico tem da transitoriedade de todas as coisas, por exemplo, condiz
com o ponto de vista que seu criador com freqüência expressa, como quando
Próspero pensa na dissolução do “próprio grande globo” e de nosso
“espetáculo insubstancial”, que não deixará, por fim, “nem névoa atrás de
si. Somos a matéria / de que os sonhos são feitos, e nossa vida breve /
conclui-se no sono”. (2001, p. 447)
Como um mágico, como um feiticeiro, ou como um “anti-fausto”,
para usarmos a expressão de Harold Bloom (2001, p. 803), Shakespeare e
Próspero são respectivamente senhores de seus mundos imaginários e ficcionais.
Shakespeare, ora autor ora diretor, no decorrer de sua experiência como
homem de teatro em Londres, dirigiu sua própria companhia por mais de
uma década, escrevendo, coordenando e, às vezes, também atuando. Também
como Próspero – vide o sutil corte de Gaiman e Vess ao representarem a
figuração do bardo e de seu protagonista na figura 8, entre outros –, Shakespeare
antevê o fim de sua carreira dramatúrgica e artística. Fechando seu livro,
Tempestade é a história de um mágico ou de um escritor que tem a ciência do
quanto até mesmo o mais esplendoroso espetáculo precisa fechar suas cortinas.
***
No decorrer dos dois contos gráficos de Gaiman, Sonho e A tempestade,
percebemos que o escritor inglês não apenas repensou a estrutura ficcional e
biográfica de Shakespeare como também usou a série Sandman para refletir
sobre a sua experiência artística. Além da estrutura ficcional, as histórias
apresentam uma temática metaficcional em que o processo de escrita é avaliado,
elucidado e problematizado. Como Joan Gordon afirma (2006, p. 81), há
uma nítida relação entre o próprio Gaiman e o seu Shakespeare personagem.
Se aquele diretamente projeta sua própria experiência como escritor nos
comentários desse, o que temos é a própria reflexão sobre o modo como
experiências reais e criações ficcionais se coadunam no ato mesmo de
composição de uma obra de arte. Observando essa relação em A tempestade,
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Wagner, Golden e Bissette, no livro Prince of Stories – The many worlds of Neil
Gaiman, escrevem que a história
foca a relação entre Sonho e William Shakespeare. É uma história sobre o
ato da escrita e o ato de contar histórias, sobre família, e sobre a vida que você
realmente leva em contraste com a vida que você deveria levar. Também é
uma história sobre responsabilidades e obrigações, sobre como às vezes
elas definem você, e de como às vezes elas consomem você. (2008, p. 127)
Tais elementos, tanto autorais como interpretativos, são desvelados
na passagem do romance gráfico em que Shakespeare é levado ao palácio de
Morfeus. Lá, divindade e dramaturgo, personagem e autor, autor e personagem,
dialogam sobre a origem e o objetivo dessa última peça. Questionando a si
próprio sobre o seu destino se não houvesse concluído o pacto firmado, William
supõe que suas experiências reais como homem, esposo, pai e amante, tiveram
uma importância vital sobre a sua obra. Numa alusão a Dama Sombria dos
sonetos shakespearianos, Will menciona:
Fig. 10 – Gaiman, Vess, Vozzo. Despertar, p. 180.
Essa fala aborda a relação entre a ficção e a “matéria”, ou seja, as
experiências reais que servem de base para o universo ficcional. Como escritor,
William menciona que mesmo sua “decepção, tristeza e desespero mesclavamse com um toque de prazer e contentamento por ter consciência de que
mesmo essas lágrimas poderiam ser levadas ao palco”, resultando numa obra
verdadeiramente humana. No primeiro diálogo com Ben Jonson (GAIMAN,
2007, p. 159), o colega censura Shakespeare por não ter feito grandes viagens,
conversado com grandes homens, não ter vivenciado as múltiplas experiências
de uma vida como acadêmico, soldado, viajante, etc. Censura que recebe o
pequeno adendo do dramaturgo “pensei que para entender as pessoas bastasse
ser uma pessoa. E eu tenho essa honra” (GAIMAN, 2007, p. 159). Quando
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
319
cotejamos essa fala da personagem Shakespeare com uma das entrevistas de
Gaiman em Sandman Companion, percebemos que a relação entre os dois
autores, ou melhor, entre um autor e sua personagem ficcional, é ainda mais
complexa.
Questionado por Hy Bender sobre o trabalho de pesquisa histórica
para os contos shakespearianos, Gaiman lista rapidamente alguns livros, tanto
sobre a década de 1590, período em que Sonho foi composta quanto sobre o
fim da vida do autor, já aposentado da vida teatral, em Stratford. Após a
rápida menção bibliográfica, o escritor estranhamente muda de assunto,
dedicando-se a responder o que realmente é de seu interesse, como se Bender
perguntasse “Qual a sua relação, enquanto escritor, com a sua própria visão
de Shakespeare?”:
Quanto a minha abordagem de Shakespeare, me baseei no que pessoalmente
acho assustador sobre ser um escritor ou um contador de histórias. Quando
algo terrível acontece, noventa e nove por cento de você está se sentindo
terrível também, mas um por cento está se colocando de lado [...] e dizendo,
“eu posso usar isso. Deixe-me ver, eu estou tão arrasado que estou chorando.
Mas será que os meus olhos estão mesmo chorando, ou eles estão ardendo?
Sim, eles estão ardendo, e eu posso sentir as lágrimas descendo em meu
rosto. O que eu estou sentindo? Calor? Ótimo, o que mais?” Foi esse tipo
de desconexão que eu quis explorar. (1999, p. 77)
Baseado na resposta de Gaiman para uma pergunta que não havia
sido feita, nota-se praticamente a mesma fala nos lábios de Shakespeare, sobre
o sofrimento vivenciado e transformado em histórias. Refletindo sobre o
termo usado por Gaiman, “desconexão”, pode-se afirmar que tanto o
dramaturgo na história de Sandman quanto o próprio senhor dos sonhos são
exemplos extremos dessa incapacidade de um escritor de estabelecer laços
reais com os que estão ao redor dele. Shakespeare vive em seu mundo de
palavras, conforme Anne Hathaway e a filha Judith apontam, em mundos
imaginários cujos personagens ficcionais seriam até mais reais do que seus
contemporâneos. O mesmo pode ser dito sobre Morfeus ou Sonho, o ser de
muitos nomes, de muitas faces, de muitos trajes, porém de poucos laços
definidos.
Comentando o segundo volume de Sandman, Casa de Bonecas, Gaiman
afirmou que aquele conto era sobre “as paredes que construímos para nos
separar dos outros, e sobre pôr abaixo essas paredes” (BENDER, 1999, p.
41). Em outro momento, na introdução de Noites sem fim, Gaiman escreve que
se pudesse resumir toda a série Sandman em uma frase, essa seria: “O Mestre
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
dos Sonhos aprende que uma pessoa deve mudar ou morrer, e toma sua
decisão” (GAIMAN, 2006, p. 8). Nesse caso, o último diálogo entre Shakespeare
e Sandman é sobre essa “desconexão”, sobre a não possibilidade do
estabelecimento de vínculos com as pessoas mais próximas e, ainda, sobre a
impossibilidade de uma mudança real em suas personagens. Quando questionado
sobre o porquê de uma peça sobre um mago que deixa sua ilha, Sonho
responde: “Porque nunca deixarei minha ilha” (2005, p. 182). Diante da
resposta, Shakespeare pergunta:
Fig. 11 – Gaiman, Vess, Vozzo. Despertar, p. 182.
Aludindo ao poema de John Donne, Gaiman idealiza Morfeus
definindo-se como uma ilha que não pode se conectar com outras. Diferente
dos mortais, não caberia a uma divindade mudar. Por essa razão, sua decisão
está tomada: entre mudar e morrer, sua decisão é definhar, dando lugar ao
seu filho Daniel, novo regente do mundo dos sonhos. Ainda mais, não sendo
um homem, não pode se ver refletido em sua própria história, mesmo sendo
o “príncipe das histórias”, o príncipe de todos os sonhos. Minha conclusão
sobre a última história da série Sandman é que, se de forma irônica e inteligente
Gaiman faz Shakespeare escrever A tempestade para suprir a incapacidade de
Sonho de ter sua própria história é porque o próprio Gaiman se coloca como
um futuro bardo que escreverá as histórias de um criador onírico incapaz de
ter sua própria história.
***
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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Desse modo inquietante e lírico, a conclusão de Sandman demonstra
as razões de seu sucesso literário e narrativo gráfico, não apenas aludindo à
última peça e à biografia de Shakespeare, como também, ao seu próprio
autor. Além disso, o leitor desses contos mergulha não apenas na reflexão
sobre o modo como concebe a expressão do humano, mas também no
aprofundamento das indecisões, angústias e desapontamentos envolvidos em
todo processo de criação artística. Se fôssemos ilhas, as histórias seriam as
pontes que construiríamos para nos conectar aos outros, mortos ou vivos.
Gaiman mostra em suas três histórias gráficas, Homens de boa fortuna,
Sonho de uma noite de verão e A tempestade, tanto o desenvolvimento da personagem
Shakespeare no decorrer de sua vida – a primeira relação de Marlowe, o
estabelecimento como homem de teatro e sua velhice em Stratford – como
também a variação de sua personagem onírica e talvez, de sua própria
autoreflexão enquanto escritor. Se no primeiro conto temos um jovem
Shakespeare, ansioso com seu futuro como dramaturgo, na segunda, temos
um artista maduro, completamente absorto em seu trabalho ficcional, a ponto
de ignorar as relações familiares de sua vida, naquele caso, com o seu próprio
filho. Em contrapartida, a personagem que observamos no último capítulo de
Sandman é um Shakespeare amedrontado pela morte iminente e pela vacuidade
da vida e das suas realizações. Por outro lado, se na primeira história temos
um Morfeus ciente de sua crescente relação de amizade com o imortal Hob
Gadling e na segunda um ser preocupado com o distanciamento do mundo
das fadas, na última história de Sandman, o que notamos é a incapacidade do
criador onírico de criar laços, de abandonar seu reino, de ser o que qualquer
mortal poderia: um indivíduo ciente de suas transformações psicológicas.
Quanto a Shakespeare, o dramaturgo sobrevive à releitura de Gaiman
e a de vários outros autores, cineastas e músicos, em seu caráter ficcional
múltiplo, cujas obras tem tocado o imaginário popular, acadêmico e artístico
já por séculos. Tanto no cinema quanto na literatura, na pintura e também na
mídia das histórias em quadrinhos, o bardo inglês continua sendo, em sua
impressionante capacidade imaginativa, o autor que nos ensina não apenas a
observar os outros, mas, sobretudo, a observar nossa própria inquietação
humana, sejam elas oníricas ou não.
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REFERÊNCIAS
BENDER, Hy. The Sandman Companion. New York: Vertigo, 1999.
BLOOM, Harold. Shakespeare – A invenção do humano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
GAIMAN, Neil. Casa de Bonecas. São Paulo: Conrad, 2005.
________. Despertar. São Paulo: Conrad, 2007.
________. Noites sem fim. São Paulo: Conrad, 2006.
________. Terra dos sonhos. São Paulo: Conrad, 2005.
GORDON, Joan. Prospero framed in Neil Gaiman’s The wake. In: SANDERS, Joe.
The Sandman Papers. Seattle: Fantagraphics Books, 2006.
GREENBLATT, Stephen. Will in the world – how Shakespeare became Shakespeare. New
York: Norton & Company, 2004.
HOLDEN, Anthony. Shakespeare. São Paulo: Ediouro, 2003.
HONAN, Park. Shakespeare – Uma vida. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
SANDERS, Joe. The Sandman Papers. Seattle: Fantagraphics Books, 2006.
WAGNER, Hank; GOLDEN, Christopher; BISSETTE, Stephen R. Prince of Stories
– The many worlds of Neil Gaiman. New York, St. Martin’s Press, 2008.
Artigo recebido em 03 de junho de 2009.
Artigo aceito em 29 de agosto de 2009.
Enéias Farias Tavares
Mestre em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Professor de Literatura Greco-Latina na Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM).
Crítico literário e tradutor.
Membro do Centro de Estudos Shakespeareanos (CESh).
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RESENHA
SHAKESPEARE, NOVAS VEREDAS SOB MÚLTIPLOS
OLHARES E ABORDAGENS
CAMATI, Anna Stegh; MIRANDA, Célia Arns de (orgs). Shakespeare sob
múltiplos olhares. Curitiba: Editora Solar do Rosário, 2009.
Luiz Roberto Zanotti
[email protected]
Sempre que me defronto com uma diversidade de perspectivas, como
nos é apresentada pelas organizadoras, Anna Stegh Camati e Célia Arns de
Miranda, no compêndio Shakespeare: sob múltiplos olhares, imediatamente me
vem à lembrança o romance Grande Sertão: Veredas e a sua multiplicidade de
sentidos para o sertão roseano, visto que a crítica literária encontra sempre
novas “veredas” na obra de Shakespeare. Esta afirmação pode ser constatada
no presente conjunto de artigos incluídos nesta coletânea que oferece um
amplo panorama de estudos que abarcam teoria, crítica e ensino, enfocando a
poesia e a dramaturgia do bardo sob diferentes óticas e abordagens. Mas
talvez, a principal importância do compêndio, seja o fato de ter sido um livro
escrito não só para os especialistas e apreciadores do Shakespeare, mas também
para que os leitores em geral tivessem acesso à uma obra já tão presente nas
diversas mídias contemporâneas, tais como as mídias literárias, teatrais,
históricas, cinematográficas, televisivas, cibernéticas, e a lista não se acaba.
O primeiro ensaio, escrito por Barbara Heliodora, intitulado “A
Inglaterra e o teatro elisabetano”, logo no início direciona o leitor para o que
vai ser uma discussão a respeito da importância do teatro elisabetano,
apresentando um fragmento do texto Como quiserem, de Shakespeare, onde o
dramaturgo diz que: “O mundo é um grande palco/ E os homens e as mulheres
são atores;” antecipando em muito o sociólogo Erving Goffman que em A
representação do eu na vida cotidiana (1975) vai falar sobre os papéis sociais que
são representados pelos indivíduos na sociedade em geral.
Em “Apaixonados por Shakespeare: fato e ficção nas múltiplas faces
do bardo”, Liana de Camargo Leão traz uma interessante coleção de fatos
históricos relacionados à biografia de Shakespeare. Liana trata, dentro de uma
abordagem da sucessão dos fatos, de uma série de episódios, provavelmente
fictícios, tais como: a mudança de Shakespeare para Londres após o roubo de
cervos, o trabalho de cuidar dos cavalos à porta do teatro, o seu trabalho
Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
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como advogado. No entanto, a verdade é que pouco se sabe da sua vida
pessoal, fazendo com que o elemento ficcional permaneça mesmo nos estudos
mais sérios.
Na sequência, Fabiano DaIla Bona, no artigo “À mesa do banquete
com Shakespeare: amores, vinganças e enganos”, focaliza a mesa de jantar,
em suas palavras: um simples retângulo de madeira maciça, como a
protagonista da maior revolução da época. O rito da mesa, presente nas tavernas
londrinas, onde acontece o embate entre autores simpatizantes do classicismo
contra os adeptos do eufuísmo parece ser de fundamental importância na
obra de Shakespeare que vai misturar as duas correntes para fundar o seu
estilo único e universal.
A poesia não dramática de Shakespeare está presente na análise que
Solange Ribeiro de Oliveira apresenta em “Os sonetos de Shakespeare:
recriações brasileiras” onde a autora comenta, por exemplo, a tradução do
verso “When I do count the clock tells the time” para “Quando a hora dobra
em triste e tardo torque”, elaborada por Ivo Barroso. É interessante ainda
observar as traduções que a autora oferece para comparação com outras já
efetuadas, bem como as análises de ilustrações em capas de livros; alusões e
interpretações projetadas pelos sonetos na mente de leitores pouco acadêmicos,
o que lhe possibilita a conclusão de que as traduções dos sonetos estão no
coração dos brasileiros, sejam eles cultos ou nem tanto.
No ensaio “Relações transtextuais: reconceptualizações do conceito
do blason nos sonetos CXXX de Shakespeare e XX de Neruda”, a autora
Sigrid Renaux analisa as similaridades formais, textuais e temáticas que podem
ser estabelecidas de imediato entre estes dois sonetos, usando como fio
condutor o conceito do blason que é usado para descrever versos que se
ocupam em detalhar partes do corpo de uma mulher.
Um interessante artigo “A narrativa no teatro shakespeariano: Otelo”,
de Marlene Soares dos Santos vai apontar vários episódios onde predomina a
narração, tais como: quando Otelo narra para os senadores de Veneza que
tipo de magia negra havia utilizado para seduzir Desdêmona; na narrativa que
Iago oferece como prova palpável para a traição de Desdêmona, ou ainda na
narrativa que a última faz na noite em que será assassinada, para mostrar que
a narração tem suma importância não só no desenvolvimento da trama, mas
também em varias passagens no desenvolvimento dos perfis psicológicos das
personagens
Célia Arns de Miranda busca respostas para as controvérsias geradas
pelo confronto entre culturas, raças, ideologias e gêneros na obra de
Shakespeare, discutindo como o dramaturgo explora em Otelo o discurso da
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Scripta Uniandrade, n. 07, 2009
diferença racial, qual a relação entre linguagem e poder na tragédia, de que
maneira o discurso do Otelo shakespeariano pode ser visto como um contradiscurso, quais são os indícios de que as fronteiras raciais e culturais em Otelo
são excludentes e não se inter-relacionam, por que a diáspora é uma questão
central da tragédia, e ainda de que forma as questões raciais transparecem nas
representações de Otelo no palco.
Em “Aspectos do trágico em Hamlet: desapego e sacrifício”, Lúcio
Esper parte da posição de muitos estudiosos que consideram Hamlet como a
primeira tragédia verdadeiramente madura de Shakespeare para desenvolver
toda uma comparação com a tragédia antiga. Hamlet, contrariamente às tragédias
tradicionais, onde os atos desmedidos do protagonista vão desencadear os
acontecimentos de destruição, não é quem propriamente inicia a sua derrocada,
mas sim a ambição de seu tio pelo poder. Outros aspectos da tragédia Hamlet
ainda são destacados como as alterações ou variações inseridas por Shakespeare
tais como o reconhecimento imediato do príncipe em seu dilema com o
fratricídio, em oposição ao que ocorre com Édipo que só vai ter o seu processo
de reconhecimento quase no final da peça, mostrando a perfectibilidade da
construção da peça.
A transposição do relato da morte de Ofélia para o quadro “Ophelia”
(1852) de John Everett Millais é o fio condutor para o ensaio de Cristiane
Busato Smith, em “A esteticização da morte da Ofélia de Shakespeare: um
passeio intermidíático entre a literatura e a pintura”, para mostrar a importância
que a personagem ganhou dentro do panorama cultural ao ser foco de
intermináveis revisões cênicas, fílmicas, musicais, visuais e até mesmo em
mídias eletrônicas como sites e blogs na internet.
O artigo de Margarida Rauen, “Casos de apropriação e transformação
de peças de Shakespeare”, traz uma série de elementos para a discussão do
problema da tradução dos textos de Shakespeare. Rauen lembra que o
imaginário das personagens do dramaturgo está muito distante de nossa época,
e sem claras indicações do tradutor é praticamente impossível para a maioria
dos estudantes perceber as sutilezas das metáforas e imagens. Um exemplo
está nas flores que Ofélia distribui em Hamlet, os significados que elas contém
de bajulação, ingratidão e arrependimento são bem difíceis de serem apreendidos
por não especialistas, da mesma forma que o conhecimento sobre os humores
dos séculos XVI e XVII identificados através dos quatro elementos (fogo,
água, ar e fogo).
Com relação às adaptações de Shakespeare para a mídia televisiva, o
ensaio “Shakespeare na televisão brasileira”, de Aimara da Cunha Resende,
traça um interessante paralelo sobre o que é assistir uma peça de Shakespeare
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em plena luz do sol com a obrigação de imaginar espaços e tempos e o que é
assistir a um drama (novela) na televisão com a extrema riqueza de recursos,
onde a imaginação já não é tão importante. Neste panorama, ela revela o
sentido de atualidade da novela que acaba por absorver assuntos inicialmente
não presentes na trama, ou ainda, por causa da recepção do público modificar
trama, personagens, etc. A autora desvenda a presença de Shakespeare nas
montagens brasileiras, começando com Romeu e Julieta e Otelo da Mangueira
produzidas dentro do programa Caso especial “ que apresenta uma diferença
em relação às novelas principalmente pelo seu pouco tempo de duração (cerca
de uma hora) – com direção de Paulo Grisoli. A primeira semelhança entre
estas duas adaptações está na mudança dos locais originais para localidades
brasileiras: Ouro Preto, para Romeu e Julieta, e o Rio de Janeiro, para Otelo, mas
enquanto na primeira produção, Grisoli mantém a tradução literal de algumas
falas, apesar do forte apelo regional e busca de uma identidade nacional, na
segunda o diretor conserva o tema de origem, porém com poucos momentos
de apropriação de falas.
Brunilda Tempel Reichmann reflete sobre os processos criativos em
“Macbeth, de Roman Polanski: três interpolações. vários questionamentos”.
Para ela, o texto flui para dentro do filme, sem grandes perdas e vários ganhos,
incorporando leituras e criações particulares de Polanski, bem como atualiza
em forma de imagem o rico subtexto de Shakespeare. O trajeto para chegar
a essa consideração passa por três interpolações que Polanski faz na obra de
Shakespeare, demonstrando de uma maneira muito interessante a amplitude
da obra de Shakespeare devido, principalmente, ao rico subtexto que o
dramaturgo inscreve em seu texto quando adapta as fontes históricas para
fazer uma crítica à violência de seu tempo.
Stephan Baumgärtel em “Políticas do corpo no palco shakespeariano
do séc. XX: o ator travestido como força cultural conservadora em duas
montagens de Como gostais”, faz um arrazoado histórico sobre como o contexto
socioeconômico influi na subjetividade desde a fase que ele chama de
essencialismo puritano que estabelece essa subjetividade como universal e
estável, até o surgimento de uma sociedade consumista no século XX que
traz a baila o seu “projeto de identidade individual” que permite várias formas
sociais de se investir na libido desde que se integre aos circuitos integrados da
economia.
Em “Sonho de uma noite de verão: o erudito e o circense em cena”, Anna
Stegh Camati estuda a adaptação cênica do Sonho (1991), dirigida pelo
encenador paranaense Marcelo Marchioro, na qual signos complexos de
diversos meios e gêneros se misturam e se fundem. O fato da peça de
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Shakespeare ter muita ligação com a cultura popular, além de misturar
elementos reais e fantásticos direcionou o encenador a escolher o circo como
motivo que em seus elementos se aproxima do sonho e fantasia presentes no
texto. O ensaio consegue apresentar as dificuldades que se apresentam em
qualquer processo de tradução, como na transcriação de um texto dramático
em espetáculo teatral, e principalmente na dramaturgia shakespeariana, onde
elementos díspares da alta cultura e da cultura popular se mesclam, ocasionando
um produto essencialmente híbrido.
A identidade do teatro brasileiro é discutida por Roberto Ferreira da
Rocha em “Hamlet com cara de Brasil: reverenciado, questionado, carnavalizado
e deglutido”, onde o autor efetua um interessante trabalho de pesquisa sobre
três encenações da tragédia Hamlet, identificando três momentos do processo
de encenação no Brasil.
Em “A dramaturgia shakespeariana no Brasil: por que e como ensinála”, Sirlei Dudalski após uma breve problematização sobre o ensino da literatura
na escola, passa a apresentar a importância da relação entre aula e performance
no ensino da literatura dramática e da passagem do texto ao ato, ou seja, a
experiência do teatro faz com que as aulas se tornem mais interessantes e
interativas
Dentre as características mais marcantes da obra de Shakespeare
está a sua linguagem, pela riqueza e criatividade, e é este assunto que Marcia
M. P. Martins vai focalizar no seu trabalho “A tradução dos jogos de palavras
shakespearianos: o caso de A megera domada”, mostrando as dificuldades
encontradas nas traduções elaboradas por diferentes tradutores brasileiros no
que diz respeito aos jogos de palavras introduzidos pelo escritor. As traduções
de A megera domada efetuadas por Carlos Alberto Nunes (1950-58), Millôr
Fernandes (1965), Cunha Medeiros e Oscar Mendes (1969), Newton Belleza
(1977) e Barbara Heliodora (1998) são analisadas a luz destas dificuldades,
trazendo algumas estratégias usadas pelos tradutores na procura de efeitos
adequados. Neste procedimento são apontados 188 jogos de palavras na
peça que foram resolvidos pelos tradutores através de recursos de recriação,
reprodução, substituição, compensação, explicitação, neutralização e omissão,
de uma forma que guarda uma relativa homogeneidade.
O último ensaio “William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes,
2006: duas peças traduzidas e algumas semelhanças no processo” apresenta a
reflexão de Beatriz Viégas-Faria sobre O mercador de Veneza, de William
Shakespeare (1596), e Elliot: fuga para um soldado, de Quiara Alegría Hudes
(2006) onde traça um paralelo entre estes dois títulos da dramaturgia em
língua inglesa separados entre si por 410 anos.
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Dessa forma, pudemos tomar contato com os escritos destes dezoito
pesquisadores que trouxeram novas veredas para a poesia e obra dramática
de Shakespeare através de múltiplas óticas, linguagens e abordagens que nos
auxiliam a constituir um repertório repleto de estratégias para estabelecer o
diálogo com a obra de Shakespeare: uma obra em contínuo processo de
renovação.
Luiz Roberto Zanotti
Doutorando em Literatura pela UFPR.
Dramaturgo, encenador e diretor do Espaço Cultural “Jeca Kerouac” de Campo
Largo.
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DOSSIÊS TEMÁTICOS DAS PRÓXIMAS EDIÇÕES
2010: Escritores paranaenses
2011: Intertextos / Intermídias / Interartes
2012: Escrituras femininas contemporâneas
Endereços eletrônicos para envio de trabalhos:
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Endereço para correspondência:
Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE
Cidade Universitária
Mestrado em Teoria Literária
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81220-090 Curitiba, PR
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revistas do Centro Universitário Campos de Andrade – Uniandrade – deverão
seguir os seguintes parâmetros:
Ser preferencialmente inéditos.
Ser redigidos em português, espanhol ou inglês.
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um em português e outro em língua estrangeira.
Incluir, após os resumos, palavras-chave (de três a seis) em português e na língua
estrangeira.
Ser digitados em folha A4, com espaçamento 1,5, fonte Arial, 11.
Incluir no corpo do trabalho, entre aspas, citações de até quatro linhas. Citações
com mais linhas devem ser destacadas do texto, alinhadas pela margem de
parágrafo, digitadas com espaçamento simples, fonte Arial, 10, e não conter
aspas.
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(MILLER, 2003, p. 45-47). As notas explicativas devem ser incluídas no final do
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depois da conclusão do texto.
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científica. 2. ed. São Paulo: Atlântica, 2002.
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Referências de fonte eletrônica. Disponível em: <http://www.format.com.br
> Acesso em: 21 set. 2006.
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