LIVROS E LEITURAS EM GOIÁS NO SÉCULO XIX: APONTAMENTOS
INICIAIS
Lívia Telles Costa 1,3 ; Maria Erilânde Ferreira de Souza 2,3 ; Maria Fernanda Vanoni
Reghim 1,3; Valdeniza Maria Lopes da Barra 4 .
Resumo
Este trabalho pretende apontar os resultados iniciais do projeto de pesquisa
intitulado: Circulação de livros em Goiás no século XIX. Tal projeto se insere no Núcleo
Temático: Cultura Material Escolar e encontra-se vinculado ao projeto “guarda-chuva”:
Banco de Dados: subsídios para estudos de história da educação em Goiás no século XIX.
O objetivo principal deste projeto de pesquisa é inventariar os possíveis livros que teriam
circulado na província goiana do século XIX, tanto como destacar aspectos relacionados
aos seus suportes materiais e às práticas de leitura suscitadas pelos mesmos. Até o
momento foram trabalhados os relatórios dos presidentes da província, os relatórios do
Gabinete Literário e o Estatuto da Tipografia Provincial de Goiás. A partir das leituras
destes documentos é possível esboçar algumas questões centrais de um suposto projeto
educacional da sociedade goiana do século XIX, em andamento. Entre estas questões,
estão: a biblioteca pública; a menção de obras de literatura política, filosófica (entre outras)
de circuito internacional; a repetição reiterada do discurso que reclama a escassez de livros
para a educação escolarizada; além de alguns dos dispositivos que engendram o processo
de publicação de impressos.
Palavras-chave: livro, leitura, Goiás, século XIX.
Introdução
Quais teriam sido os livros que circularam em Goiás no curso do século XIX é a
questão deste projeto de pesquisa. Perguntar-se pelos livros que teriam sido
comercializados ou difundidos em Goiás (XIX) é uma maneira de se propor a uma
investigação científica que pretende elucidar um dispositivo material importante para o
período que se caracteriza pela produção do Estado Nacional, a formação das primeiras
instituições públicas, entre as quais, a escola como uma agência promotora por excelência
dos atos de ler e escrever. A circulação deste impresso (o livro) em Goiás no curso do
século XIX constitui amostra de uma prática cultural que, embora possua alguns registros,
carece de investimentos de pesquisa.
No Brasil, o grande impulso inicial para a produção de impressos se dá a partir de
1808, com a vinda da família real. O inglês Lawrence Well finalizou, no ano de 1975, a
tese de doutorado sob o título O livro no Brasil: “São 816 páginas de histórias detalhadas
de editores e publicações, além de estatísticas que ajudam a compreender a formação e o
desenvolvimento da cultura do livro no país.”(Vaz: 2006, p. 1). Para este autor é no século
XIX que esta história começa. Tendo em vista que, em 1808, teria sido instituída a Imprensa
Régia que, até o ano de 1821, deteve a exclusividade da impressão na Corte (Rio de Janeiro). O
monopólio da impressão acabou mediante o decreto de 2 de março de 1821, quando então, se
instalaram as primeiras tipografias particulares no Rio de Janeiro.
Em França, na metade da década de 20 do século XIX, já existiam 480 livrarias e
850 tipografias (Marcelo Vaz, 2005) quando no Brasil, à mesma época existiam
aproximadamente sete tipografias. Ainda no século XVIII, os atos de ler e escrever
constituem sinais de ascensão social ou emprego: “Uma fuente interesante em el siglo
XVIII son los avisos de periódicos donde la gente solicita algún servidor o servidora que
sepa leer o escribir para ayudar los patrones em las tareas cotidianas.” (Chartier, 1999:101).
De tal maneira que até o século XVIII, havia uma demanda funcional de ler e
escrever, ora para atender a uma mensagem religiosa, ora para uma utilidade da vida
cotidiana. Já entre os séculos XIX e XX, o acesso à leitura representará o acesso à cultura,
portanto às obras que devem permear a mente e a ética. Para esta nova demanda da leitura,
a escola ocupara um lugar importante.
Em Goiás, o discurso mais freqüente entre aqueles encontrados nos documentos,
é o da escassez de livros no século XIX. Entretanto, tal constatação não invalida a proposta
de tentar inventariar os espaços de circulação do livro, as possíveis formas de consumo ou
apropriações deste suportes materiais, bem como o registro quanto aos títulos, bibliotecas,
tipografias, comércio livreiro, etc. Enfim, a proposta deste núcleo temático de pesquisa é a
de rastrear a circulação do livro em Goiás no século XIX, tendo em vista a composição e
sistematização de dados que possibilitem uma leitura analítica sobre a produção da escola,
como uma via para se pensar a posição cultural de Goiás na sociedade brasileira do século
XIX.
Material e métodos
•
•
Relatórios dos presidentes da Província de Goiás (1835-1900).
Jornal Província de Goiás, 1869-1873; 1885-1892).
Arquivo Histórico Estadual de Goiás – AHE/GO.
• Relatórios do Gabinete Literário 1881, 1882, 1884.
• Estatuto da Tipographia Provincial (1886).
Os materiais relacionados são previamente lidos e, segundo critérios de pertinência à
discussão do Núcleo de Cultura Material Escolar ou a natureza do documento em questão,
serão transcritos parcial ou totalmente.
Resultados e discussão
Os resultados a seguir não pretendem esgotar as possibilidades de pensar os
documentos que compõem os trabalhos em andamento. Tão somente objetivam demonstrar
o modo como a equipe envolvida no núcleo tateia as possibilidades exploratórias dos dados
em questão.
•
Sobre o livro de uso escolar
Em Goiás, na metade do século XIX, o acesso ao livro de uso escolar, seja da parte de
professores, seja da parte de alunos, é bastante dificultoso, conforme relata o presidente Dr.
Eduardo Olimpio Machado:
A necessidade de livros, que sejão consultados não só pelos alumnos, como mesmo pelos
Professores, é de primeira intuição. Sabeis quanto deve custar a acquisição de livros nesta
Província, onde é tão caro o transporte de qualquer gênero de commercio; talvez não estejão
habilital-os para compral-os nem os Professores, nem os alumnos. Isto posto, convem que
decreteis uma pequena quota para compra de livros; renovando-se ella nos futuros
orçamentos, póde o Lyceo, dentro em breve e sem grande sacrifício, estar possuidor de uma
soffrivel bibliotheca, que poderá então ser franqueada aos habitantes desta Cidade.
(relatório do Presidente da Província de Goiás, Dr. Eduardo Olimpio Machado, 1º. de maio
de 1850, Col. Memórias Goianas, vol. 5, p. 53). 1
1
Dado extraído do Núcleo: Cultura material da escola goiana do século XIX, vinculado ao
Projeto Banco de dados: subsídios para estudos da história da educação em Goiás (XIX).
A escassez de livros de uso escolar na província de Goiás no século XIX não se
explicava apenas por uma restrição econômica, conforme informa Bretas, 1991:
“(...) quando o professor sugeria ao Presidente a adoção de livros que ele, professor,
considerava melhores que o compêndio oficialmente adotado, não raro recebia em resposta
um veto formal e desconcertante. Havia na época, resquícios dos tempos coloniais e dos
regimes monárquicos intolerantes, muito preconceito relativamente a certos princípios
liberalizantes da Revolução Francesa, idéias republicanas, ateísmo e dissidência religiosa.
Livros que contivessem alguma passagem, que parecesse revelar, ou deixasse suspeitar, de
leve que fosse, uma sutil conotação com esses princípios eram sumariamente proibidos nas
escolas.” (Bretas, 1991:219).
O trecho destacado, embora não descreva nenhum título de livro, permite afirmar
que, os professores do Liceu de Goiás nos anos 50 do século XIX, tinham conhecimento da
publicação e circulação de um determinado repertório de livros de suas áreas de interesse e
atuação. De igual modo, o governo da província também. Enquanto os professores
demonstram tal conhecimento na indicação ao governo dos livros que gostariam de obter, o
presidente da província de Goiás, ao seu modo, também revela algum grau de
conhecimento sobre o teor dos mesmos livros quando os veta, indiciando desacordo
ideológico quanto ao conteúdo veiculado pelos mesmos.
•
Sobre a Biblioteca Pública
Livros, leituras, leitores tanto estarão nos discursos que pleiteiam a instituição da
escola como estarão em iniciativas extra-escolares. É o caso do projeto de criação de uma
biblioteca pública.
A criação da biblioteca pública pelo Presidente Eduardo Olimpio Machado, sucessor de
Pádua Fleury, junto ao Liceu, teria sido muito útil se tivesse ido avante. Entretanto, no ano
seguinte (1851), informa seu sucessor, Presidente Antonio Joaquim da Silva Gomes, que
nenhum livro foi adquirido para a mesma, por falta de recursos. Nos dois anos seguintes
não há referencia alguma sobre ela, nas mensagens presidenciais, mas no ano de 1854, uma
resolução da Assembléia, entre outras medidas, dispõe que o rendimento da taxa de
matricula no Liceu fosse entregue ao diretor, para a compra de livros que a congregação
aconselhasse.(Bretas, 1991:219).
Abaixo, optou-se pela transcrição longa de um relatório escrito em 1881, assinado
pelo presidente do Gabinete Literário, Dr. Francisco Antônio de Azevedo.
“Resolvemos a mandar comprar uma collecção de livros do Padre Brom, a 26 de Maio na
importância de 20$000rs. Na mesma data autorisou-se ao Sr. Thesoureiro a sacar uma lettra
de 261$550rs. a favor de B. L. Garnier.
Em 8 de Junho fez-se o exame dos livros vindos pelo correiro, os quaes chegarão
sem avaria.
Foi approvado o parecer da comissão sobre as ditas contas do mesmo Thesoureiro.
Em 15 de Julho elevou-se a 30$000rs. mensaes a gratificação do Bibliothecario a
contar do 1º do dito mez, a requisição do mesmo pelo accressimo do serviç o a seu cargo.
Existindo em caixa 80$000rs., por proposta minha, foi autorisado a compra de um
velocigrapho para reprodução possível dos nossos trabalhos mensaes, e fazer-se uma
encommenda de livros a credito na importancia de 197$680rs.
Em 18 de Setembro recebeu-se livros vindos pelo correio 17, os quaes chegarão
perfeitos e conforme a factura.
Resolveu-se n’esse mesmo dia remetter-se ao Archivo Pùblico por intermédio do sue
Agente nessa capital, como pedira, 11 copias autheticas das actas da installação e
restauração deste Gabinete , bem como os relatórios e discursos apresentados por mim,
como cumpri a 11 do seguinte mez.
Em 17 de Outubro foi apresentado um officio do Presidente da Província pedindo
os trabalhos que existirem sobre a historia da Província , afim de serem remettidos ao
Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, resolvendo-se também mandar-se as
respectivas copias autheticadas, como entreguei a 2 de Novembro seguinte em numero de
24, pela maior parte dos trabalhos meus.
Resolveu-se assignar o Diário Official a contar de Janeiro do corrente anno em diante.
Em 18 de Fevereiro nomeou-se uma comissão composta dos Srs. Kosciuszko e
Brito para liquidar-se a conta do Garnier, inclusive a ultima factura eo velocigrapho que
havião chegados.
Oscilando o numero de sócios entre 70 a 90, hoje contamos com 89 effectivos, alem
de muitos honorários. O movimento de livros entre os sócios, em todo o anno foi de 5.623
que sahirão e entrarão até esta data 5.298, existindo muito mais de 3.200, como consta do
respectivo catálogo e das ultimas facturas, enchendo já essa sala completamente.”
Trecho extraído do Relatório do Gabinete Literário de Goiás, Dr. Francisco Antônio
de Azevedo, maio de 1881. Ref. Caixa 3 dos Relatórios do Gabinete Literário, AHE – GO.
O trecho acima constitui uma amostra da movimentação implicada pela constituição
do Gabinete Literário, grupo de sócios que tinham a finalidade de criar uma Biblioteca
Pública em Goiás e difundir idéias de circuito internacional que iam desde, a preocupação
com idéias difundiam conceitos de nação, civilidade, instrução até higiene, tipos e
qualidade de bebidas(ex: café), entre outros. A leitura detida permite perceber nuanças da
dificuldade de se transportar os livros, quase sempre vindos do Rio de Janeiro; a
dificuldade de acomodação predial do Gabinete e de seu acervo em construção; a
preocupação em reunir impressos e produções sobre a história da Província de Goiás; a
elucidação do trabalho dos sócios; o tom de celebração quanto ao acervo em plena
expansão.
Conclusões
Embora, o conjunto dos dados ainda esteja disperso, os mesmos apontam para
férteis possibilidades de se pensar o livro, o impresso, sua circulação e penetração junto a
determinados atores da sociedade goiana do século XIX imbuídos por um suposto projeto
educacional daquela sociedade naquele período.
Referências bibliográficas
BRETAS, G. História da Instrução Pública em Goiás. 1991. Goiânia: Editora da UFG.
CHARTIER, R. (org.). Práticas de leitura. São Paulo: Cia das Letras. 2001.
MARTINS, Ana Luiza.Gabinetes de leitura do império: casas esquecidas da censura? In: ABREU,
Márcia. Leitura, história e história da leitura. Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de
Leitura do Brasil; São Paulo: Fapesp, 1999. - (Coleção Histórias de Leitura).
SILVA, Nancy. Tradição e renovação em Goiás. 1975. Goiânia: Editora da UFG.
VAZ,
Marcelo.
Sobre
a
história
do
livro
http://revistaentrelivros.uol.com.br/edicoes/3/artigo8792-1.asp, acesso 24/09/06.
no
Brasil.
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