Revista Interdisciplinar de Humanidades Pontos de Convergência entre Fotografia e Cinema no Século XIX Paulo Maia Para citar este artigo: MAIA, Paulo. 2012. Pontos de Convergência entre Fotografia e Cinema no Século XIX. estrema: revista interdisciplinar de humanidades 1, www.estrema-cec.com. Um projecto do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Para informação adicional http://www.estrema-cec.com Pontos de Convergência entre Fotografia e Cinema no Século XIX1 Paulo Maia2 Resumo: O presente ensaio identifica os principais momentos da história e da evolução cultural da fotografia, ao longo do século XIX, que se revelaram determinantes para a invenção do cinema e que justificam uma análise comparada entre ambos. O contexto artístico, científico, industrial e a nova ordem económica, estabeleceram as regras de funcionamento mecânico e químico de todo o aparato fotográfico, e determinaram as condições iniciais para que a fotografia e o cinema se desenvolvessem como culturas e linguagens distintas. Niépce, Daguerre, Nadar, Baudelaire, Muybridge, Eastman, Edison e os irmãos Lumière são algumas das personalidades mais importantes neste processo evolutivo. Palavras-chave: fotografia, cinema, cultura, indústria, história Abstract: The current essay identifies the key moments of history and cultural evolution of photography over the nineteenth century, which proved instrumental in the invention of cinema and justify a comparative analysis between both of them. The artistic, scientific and industrial context, as well as the new economic order, established the mechanical and chemical operating rules of the photographic and cinematographic apparatus. It also determined the starting conditions for photography and cinema to develop themselves as distinct cultures and languages. Niépce, Daguerre, Nadar, Baudelaire, Muybridge, Eastman, Edison and the Lumière brothers, are some of the most important personalities involved in this evolutionary process. Keywords: photography, cinema, culture, industry, history 1 MAIA, Paulo. 2012. Pontos de Convergência entre Fotografia e Cinema no Século XIX. estrema: Revista Interdisciplinar de Humanidades 1, www.estrema-cec.com. 2 Programa em Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 1 A imagem fotográfica mais antiga que se conhece foi obtida por Niépce, em 1826, através de um processo químico designado por heliográfico. Sabe-se também que o mesmo cientista conseguiu obter imagens negativas por volta de 1817, mas estas sobreviveram à luz solar apenas durante algumas horas. Se recuarmos no tempo, vamos encontrando na literatura, nas artes e na ciência, indícios de um desejo humano de reprodução do mundo real num plano bidimensional. A impossibilidade de estabelecer datas exactas para a invenção da fotografia e do cinema, obriga a situar os limites temporais para esta reflexão nos momentos em que ambos entraram no domínio do conhecimento público, conquistando deste modo a possibilidade de se transformarem em actividades culturais: entre o registo da patente da fotografia, em Agosto de 1839, por Daguerre, e a primeira projecção pública de imagens cinematográficas no Grand Café de Paris, em Dezembro de 1895, pelos irmãos Lumière. Se Niépce produziu as primeiras imagens fotográficas porque surge tantas vezes Daguerre como o pai da fotografia? A resposta a esta questão deverá fundamentar-se para além da falta de rigor histórico de algumas fontes do saber popular. O trabalho científico de Niépce foi desenvolvido de forma praticamente anónima e sem o conhecimento do público. Após um longo processo negocial, e pressionado por uma situação financeira delicada, assinou um contrato com Daguerre, em Dezembro de 1829, no qual renunciava, em parte, aos direitos do invento. Só em Agosto de 1839, já depois da morte de Niépce, em 1833, a fotografia foi patenteada e tornada pública pela Academia das Ciências e Belas-Artes de França (Amar 2001, 21). Este é o momentochave para o início da história da cultura fotográfica. Walter Benjamin caracteriza-o na sua Pequena História da Fotografia da seguinte forma: Estavam assim criadas as condições para um desenvolvimento acelerado e duradouro, que, por um longo período, impediu qualquer investigação retrospectiva. Assim se explica que as questões históricas ou, se quisermos, filosóficas que rodeiam a ascensão e decadência da fotografia tenham sido ignoradas décadas a fio. (Benjamin 1992, 115) No ano de publicação deste ensaio de Benjamin, em 1931, o conhecimento histórico dos momentos anteriores à divulgação oficial da fotografia era bastante mais enevoado do que hoje. Por essa razão o autor parece dar mais importância aos factos que surgem a partir de 1839, contudo não deixa de revelar uma consciência de que este era, realmente, o momento em que a fotografia reunia todas as condições para se tornar numa actividade cultural. 2 Em 1839, para além da condução do processo burocrático que levou ao registo da fotografia, Daguerre afirmou-se como pai do invento, uma vez que terá sido o primeiro fotógrafo da história – da sua câmara escura surgiu a primeira intenção discursiva da fotografia. Embora não tivesse produzido mais de cerca de meia centena de imagens, deu início aos processos de industrialização e de comercialização do daguerreótipo, ainda que de forma bastante rudimentar e dispendiosa, mas suficiente para que, cerca de uma década depois, a actividade fotográfica se encontrasse um pouco por todo o mundo industrializado. Os daguerreótipos, objectos únicos e irreprodutiveis mecanicamente, eram dotados de um carácter de singularidade reforçado pela sua apresentação em pequenas caixas forradas a veludo, semelhantes a relicários – o objecto parecia valer mais do que a imagem, “[o] aqui e agora do original constitui o conceito da sua autenticidade” (Benjamin 1992, 77). Durante as primeiras décadas da sua comercialização, os custos de produção fotográfica eram muito elevados e tanto os fotógrafos como os seus principais encomendadores surgiam nas famílias mais abastadas, sendo muito raro encontrar-se retratos de pessoas de classes sociais e económicas inferiores desta época. Neste aspecto só se verificaram alterações significativas com a evolução dos processos industriais a partir da década de oitenta do século XIX, que permitiram a democratização e massificação da fotografia. Na verdade, sem esses processos evolutivos o surgimento do cinema não teria sido possível, pelo menos na forma em que o conhecemos. A história da fotografia não pode ser compreendida sem um olhar sobre o trabalho científico de William Henry Fox-Talbot, cujo contributo transformou definitivamente a configuração da técnica e da cultura fotográfica. Em 1847 Talbot inventou a imagem negativa em placa de vidro, a partir da qual poderiam ser reproduzidas quantas cópias fossem necessárias. Neste processo a fotografia começa a perder a aura de objecto único e a sua autenticidade é posta em causa. Se, por um lado, esta possibilidade de reprodução infinita permite a multiplicação de uma imagem em inúmeros cartões-devisita, em postais ou em tablóides, por outro lado, assiste-se a um processo de vulgarização do suporte físico e da consequente desmaterialização da fotografia – estava aberto o caminho para uma valorização da imagem fotográfica como meio de expressão artística, no entanto este processo não foi pacífico. O realismo da fotografia invadia o espaço de uma imagética colectiva que então pertencia à literatura e, especialmente, à 3 pintura. Na literatura parece ter havido uma aceitação da entrada da fotografia na vida quotidiana. Em Madame Bovary, Gustave Flaubert dedica-lhe palavras elogiosas: Carlos, depois de fechar a porta, pediu-lhe que fosse pessoalmente a Ruão a fim de saber quais podiam ser os preços dum bom daguerreótipo; era uma surpresa sentimental que reservava à mulher, uma atenção fina, o seu retrato, de casaca. (1971, 91) A literatura nunca foi ameaçada pela fotografia, não há indícios de que tal tenha acontecido, mas o mesmo não se pode dizer em relação à pintura. O conflito entre as questões da representação artística na fotografia e na pintura estendeu-se ao longo de várias décadas, até aos anos trinta do século XX. Mas o conflito não era apenas estético: A verdadeira vítima da fotografia não foi a pintura de paisagens mas sim as miniaturas de retratos. As coisas evoluíram tão rapidamente que já em 1840 a maioria dos inúmeros pintores de miniaturas se tornou fotógrafo profissional, a começo como actividade paralela, mas em pouco tempo, em exclusividade. (Benjamin 1992, 122) Os novos retratistas, com todo o seu fulgor industrial, conquistavam clientes à pintura. Mais do que um problema de atenção das modas populares, esta rivalidade desenvolve-se por razões de mercado e só mais tarde, no final do século XIX, entra no campo da estética e da teoria da arte para dar origem ao primeiro movimento artístico da fotografia – o pictorialismo. Uma das vozes mais activas do cepticismo em relação ao potencial artístico e representativo da imagem fotográfica partiu de Charles Baudelaire, que demonizou a fotografia pelo seu excessivo realismo e classificou o público parisiense, que então aplaudia a fotografia no Salão de 1859, como “incapaz de sentir a felicidade da fantasia” (Baudelaire 2006, 155), acrescentando ainda: Nestes dias lamentáveis, criou-se uma indústria nova, que não pouco contribuiu para confirmar a estupidez na sua fé e para arruinar o que podia restar de divino no espírito francês. [...] Em matéria de pintura e de estatutária, o Credo actual da sociedade, sobretudo em França [...] é o seguinte: [...] Creio que a arte é e não pode deixar de ser a reprodução exacta da natureza [...]. Assim, uma indústria que nos desse um resultado idêntico à natureza seria a arte absoluta.” Um Deus vingador satisfez os desejos dessa multidão. Daguerre foi o seu messias. E então ela pensou “Visto que a fotografia nos dá todas as garantias desejáveis de exactidão (eles acreditam nisso, insensatos são!), a arte é a fotografia.” (Baudelaire 2006, 155) Há nestas palavras uma reprovação evidente da ligeireza com que o público em geral acolhe a fotografia, mas a crítica de Baudelaire não se fundamenta apenas na percepção dos espectadores menos cultos, sustenta-se essencialmente em considerações estéticas e ideológicas. A imagem fotográfica levanta questões sobre a representação da realidade e 4 sobre a veracidade do que nos mostra um olho mecânico, implacável e imparcial. Sobre este aspecto, Baudelaire refere que a doutrina da cópia excelente da natureza é inimiga das artes. Na sua perspectiva a imaginação é a rainha de todas as faculdades humanas e o elemento fundamental que evidencia a interioridade de um artista (Baudelaire 2006, 157-158). Comparando com a pintura ou com a poesia, a rigidez das técnicas fotográficas e o seu carácter mecânico não permitiam aos fotógrafos grandes possibilidades criativas que evidenciassem o desalinhamento do sujeito poético do século XIX em relação à sua realidade exterior. Com efeito, esta realidade exterior ao sujeito poético não é mais do que o contexto industrial e progressista no qual a fotografia germinou e que Baudelaire várias vezes criticou: Existe ainda um erro que está muito na moda e de que pretendo fugir como do inferno. Refiro-me à ideia de progresso. Esse fanal obscuro, invenção do filosofismo actual, patenteado sem garantia da Natureza ou da Divindade, esse lanternim moderno lança trevas sobre todos os objectos do conhecimento; a liberdade esvai-se, o castigo desaparece. Quem quiser ver claro na história tem, antes de mais nada, de apagar esse pérfido fanal. Esta ideia grotesca que floriu no terreno apodrecido da fatuidade moderna isentou todos e cada um do seu dever, libertou todas as almas da sua responsabilidade, soltou a vontade de todos os laços que o amor do belo lhe impunha: e as raças diminuídas, se esta aflitiva loucura durar muito, dormirão sobre o travesseiro da fatalidade o sono pateta da decrepitude. Esta presunção é o diagnóstico de uma decadência que é já mais que visível. (Baudelaire 2006, 54) Neste sentido, afigura-se lógica a sua preferência pela negação da realidade estética na procura de uma beleza extravagante no interior do sujeito poético, como o próprio refere, dando voz ao artista imaginativo: Acho inútil e fastidioso representar o que existe, porque nada do que existe me satisfaz. A natureza é feia e prefiro os monstros da minha fantasia à trivialidade positiva. [...] O artista, o verdadeiro artista, o verdadeiro poeta não deve pintar senão segundo o que vê e o que sente. Deve ser realmente fiel à sua própria natureza. (Baudelaire 2006, 158) Baudelaire lançou uma discussão que está longe de se esgotar nos domínios da teoria da representação artística. Na verdade, pode dizer-se que o seu postulado constitui matéria-prima, no seu estado mais puro, de algumas das mais actuais teorias da fotografia e do cinema que rejeitam as suas potencialidades realistas e a imparcialidade do aparato. Por exemplo, Jacques Lacan, fundamentado em princípios de carácter psicanalítico, defendeu para o cinema uma linguagem simbólica que não necessita de representar ou reconstituir o mundo, mas apenas de o significar, numa atitude muito semelhante ao simbolismo poético de Baudelaire. Louis Althusser, numa postura assumidamente política, declara a construção cinematográfica como inevitavelmente 5 ideológica e parcial, na medida em que todo o sistema sobre o qual se constrói a linguagem do filme é marcadamente industrial, para ele a realidade só pode surgir no ecrã através de um processo de enunciação auto-reflexiva, ou seja, revelando ao espectador todo o aparato tecnológico diante das câmaras, desmistificando assim o processo de construção da ilusão cinematográfica (Andrew 1984). Facilmente se encontram outros pensadores da teoria do cinema que continuaram algumas da mais antigas questões filosóficas da fotografia e que, na linha de Baudelaire, negam as possibilidades de uma estética realista tal como é proposta, por Siegfried Kracauer ou André Bazin. Com efeito, a importante teoria da estética realista de Bazin, postulada em Qu’est-ce que le cinéma? (1958-62), assume a imagem fotográfica como matéria-prima do cinema e parte do princípio de semelhança do objecto real com a imagem que produz. Na segunda metade do século XIX o número de fotógrafos crescia consideravelmente e muitos viviam acomodados à sombra de um negócio cada vez mais florescente. Para a grande maioria dos fotógrafos Baudelaire até podia ter razão ao afirmar que fotografia não era arte, desde que as encomendas continuassem a surgir. Esta atitude puramente mercantil define, em grande parte, a génese das imagens fotográficas do século XIX: retratos formais, encomendados por ilustres aristocratas, políticos e industriais de sucesso que, diante da câmara, envergam os seus melhores trajes em poses de ostentação; paisagens e monumentos, em postais impressos por museus ou organismos de Estado. Muitas destas imagens são de autor desconhecido, não pela perda da informação da sua autoria, mas porque essa não era uma questão relevante para o negócio – a autoria insere-se nos domínios da arte. Sabe-se hoje, por exemplo, que Charles Thruston Thompson produziu grande parte das fotografias publicadas em livros e postais do museu de South Kensington, no século XIX, no entanto, todas as imagens estão identificadas com o nome do museu e não com o nome do fotógrafo (Fontanella 1996). Muitos destes fotógrafos, talvez uma grande maioria, eram simples executantes e funcionavam como operários das linhas de montagem industrial que então surgiam na vida laboral das civilizações ocidentais. O processo fotográfico repete-se quase cegamente, em busca do lucro e numa rigidez imposta pelos limites tecnológicos da própria fotografia. Até à invenção das emulsões mais rápidas, na década de oitenta, do século XIX, a fotografia caracterizava-se pelo seu carácter estático 6 – em determinadas circunstâncias de iluminação, o retratado podia ter que sujeitar-se a longos períodos de pose. Dos fotógrafos de práticas industriais e automáticas, que constituíam a regra da grande maioria dos estúdios fotográficos europeus, poucos sobreviveram na nossa memória histórica e cultural. Uma das excepções é a de Gaspard-Félix Tournachon, conhecido simplesmente por Nadar, e considerado por muitos historiadores como um dos primeiros fotógrafos a incluir a fotografia nos domínios da produção artística. A pertinência da inclusão de Nadar neste ensaio não se prende apenas com a sua capacidade inovadora, mas, também, com o facto de alguns dos seus projectos e processos criativos revelarem importantes pontos de convergência entre a fotografia e o cinema, ainda assim, a título especulativo, pode atribuir-se a este seu espírito criativo a aproximação que fez a um ideal cinematográfico. Não é minha intenção defender que Nadar foi um dos pioneiros do cinema, nem afirmar que o seu iminente desejo de completar a fotografia com movimento, som e encenação veio a definir os caminhos que levaram a ciência e a indústria até ao cinematógrafo dos Lumière. Por outro lado, a existência destes pontos de convergência, facilmente identificáveis no seu trabalho muito antes das primeiras projecções públicas no Grand Café de Paris, são um indício de que a invenção do cinema surge de um desejo e de uma necessidade. É certo que muitos outros factores e acasos contribuíram para definir a configuração com que o cinema surge no final do século XIX, mas também é certo que grande parte desses indícios se encontram dentro da cultura fotográfica. Assim, pode dizer-se, com alguma segurança, que a fotografia foi um ponto de passagem obrigatório no percurso da invenção do cinema – na fotografia germinou uma nova cultura de imagem em movimento. Antes de iniciar a sua actividade fotográfica Nadar tinha abandonado os estudos de medicina para se dedicar ao jornalismo, como crítico de teatro, e ao desenho caricaturista. Rapidamente se tornou numa figura carismática da vida literária e artística da boémia parisiense. No seu circuito próximo de amigos figuravam ilustres como Eugène Delacroix, Hector Berlioz, Gérard de Nerval, Théophile Gautier e Charles Baudelaire. Quando abriu o seu primeiro estúdio fotográfico, em 1854, reunia todas as condições para alcançar o sucesso; o lucro era apenas uma condição necessária à sobrevivência artística e não uma finalidade, ainda assim a fama chegou quase 7 imediatamente. A sala de recepção do seu estúdio tornou-se num ponto de passagem obrigatório da alta cultura parisiense, para onde atraía os seus amigos mais influentes e onde tinham lugar descontraídas tertúlias. Nadar acabava por convencê-los a figurar nos seus retratos – apesar da sua relutância em aceitar a fotografia, Baudelaire posa frequentemente para a sua objectiva. Um olhar atento ao seu trabalho retratístico revela mais do que um desfile de celebridades da vida cultural francesa daquela época; há algo de diferente nas suas imagens que o distingue dos fotógrafos industriais e que as suas palavras revelam: The theory of photography can be learned in an hour and the elements of practicing it in a day... What cannot be learned is the sense of light, an artistic feeling for the effects of varying luminosity and combinations of it, the application of this or that effect to the features which confront the artist in you. What can be learned even less is the moral grasp of the subject – that instant understanding which puts you in touch with the model, helps you to sum him up, guides you to his habits, his ideas and his character and enables you to produce, not an indifferent reproduction, a matter of routine or accident such as any laboratory assistant could achieve, but a really convincing and sympathetic likeness, and intimate portrait. (apud Rubin 2001, 3) Nestas palavras, Nadar defende a importância do olhar do fotógrafo e liberta a fotografia do seu peso mecânico e repetitivo. O acto fotográfico é pessoal e subjectivo. O fotógrafo, escondido atrás da câmara no momento do disparo, evidencia-se na arte das suas imagens pelas opções que toma: escolhe o enquadramento, controla a luz, interpreta e orienta o modelo e, no fim, assume o momento do disparo – não há mecanismo nem câmara fotográfica que tome estas decisões pelo fotógrafo. Ao colocarse no centro de todo o processo criativo, produzindo imagens de grande expressão emotiva e de forte carácter social, Nadar representa o herói do Romantismo em transição para um Realismo que então se vivia nas correntes artísticas e literárias. É com esta postura marcadamente subjectiva que se funda a arte através dos meios de reprodução mecânica, tais como a fotografia e o cinema. O fotógrafo e o cineasta definem-se nas opções que tomam no controlo dos recursos técnicos de que dispõem, para que a objectiva capte o assunto segundo as suas intenções – o sucesso de ambos mede-se pela capacidade de concretização destas intenções. Os meios técnicos obrigam a que o cineasta seja também um fotógrafo, embora a lógica inversa não se imponha, contudo, é perfeitamente identificável nos métodos de trabalho de Nadar uma componente cénica muito semelhante ao modo de actuar de um cineasta. O cinema sempre foi uma actividade de grupo, independentemente da forma como se organiza – 8 basta tomar alguma atenção à ficha técnica de um filme para se perceber a complexidade de uma produção cinematográfica. Ao contrário do cinema, a fotografia pode ser uma actividade solitária: um retratista industrial pode assumir o comando de todo o processo, desde a pré-produção até à prova final; foi esta tendência que Nadar inverteu. Nas suas sessões de retrato impunha a pose e a roupa com que o modelo iria figurar na fotografia: casacos escuros de tom pouco contrastante com o fundo, também escuro; a pele da cara bem iluminada emerge da penumbra; os braços muitas vezes cruzados numa atitude tensa ou num estranho movimento em que a mão entra dentro do casaco junto ao peito; Berlioz, por exemplo, é retratado dentro de um enorme casaco com as mãos escondidas dentro das mangas. O efeito perturbador da normalidade, na encenação da pose, é uma das suas marcas artísticas. O interesse de Nadar pelo teatro e pelo acto performativo na fotografia foi levado mais longe, quase ao nível de uma produção cinematográfica, quando fotografou o mimo Jean-Charles Deburau trajado de arlequim da comnedia dell’ arte, numa sequência de imagens que pretendia transmitir um movimento e uma expressividade corporal que a fotografia estática, de pose contida, não transmitia. Uma vez mais, com a ajuda de vários assistentes, cumpre o trabalho de iluminação, cenografia, adereços, fotografia, direcção do actor e processamento químico final. Conforme observa Maria Morris Hambourg, curadora, ensaísta e crítica de fotografia, o próprio Nadar acabava por adquirir uma postura performativa no desempenho do seu trabalho: “Nadar’s gregarious personality turned the entire process of posing, shooting, developing and printing into a performance, with the artist as the actor” (apud Rubin 2001, 11). Ao assumir a função performativa e participativa em todo o processo, embora sem figurar nestas imagens, Nadar atenua o impacto do seu papel de observador e fotógrafo estabelecendo uma relação de semelhança com o retratado e com os seus assistentes, revelando assim uma técnica eficaz na gestão de uma equipa de trabalho que se evidencia nas suas imagens. No seu modo de actuar verifica-se uma grande conformidade com os processos criativos de muitos cineastas contemporâneos, por outro lado, existem outras formas de trabalho antagónicas a esta e com resultados igualmente interessantes – há realizadores e fotógrafos que preferem a distância e um certo isolamento em relação a toda a equipa de trabalho. Apesar das diferenças e incompatibilidades, a análise dos processos de criação artística não deixa de ser um 9 aspecto importante de comparação entre as culturas da fotografia e do cinema. Nadar não “inventou” este processo participativo nas sessões fotográficas, nem contagiou os cineastas que como ele trabalham, mas são as características dos meios da fotografia e do cinema que acabam por determinar as suas possibilidades e condições de enunciação. À parte da produção criativa que lhe dava fama, Nadar desenvolveu algum trabalho fotográfico de suporte científico, nomeadamente ligado ao ramo da medicina que era do seu interesse. Algumas correntes do pensamento científico oitocentista acreditavam que a personalidade de um indivíduo se revelava nas características das suas expressões faciais. Em 1854, Nadar executou uma série de fotografias cujo objectivo era a ilustração de um tratado, realizado pelo Dr. Guillaume Duchenne, que procurava as marcas distintivas do rosto conforme a profissão e o estatuto social do indivíduo – Mècanisme de la Physionomie Humaine, publicado em 1862. O resultado visual revela mais um método científico do que um processo criativo: são painéis de dezasseis imagens em sequência com variações mínimas entre elas, ou conjuntos de duas a quatro fotografias, dispostas lado a lado, ilustrando os diversos momentos da expressão facial de uma pessoa. Esta mudança de expressão ao longo das diferentes fotografias acaba por surgir como uma simulação de movimento que mais tarde viria a caracterizar o cinema – a noção de movimento sustenta-se na percepção de mudança dentro de um determinado espaço ao longo de um determinado tempo. Alguns anos mais tarde, ao testar um sistema de iluminação artificial e experimentando nos limites desta potencialidade, Nadar produz numa série de dezasseis auto-retratos, sentado numa cadeira rotativa e nos quais capta as imagens em torno de si próprio. Vistas sequencialmente no mesmo plano, estas imagens transmitiriam a ilusão de um movimento de rotação, porém, faltava a Nadar um aparelho para desempenhar essa tarefa. Já no final da sua carreira, em 1886, Nadar produziu a primeira entrevista fotográfica. Sentou-se à mesa e conduziu uma conversa com o químico Michel-Eugéne Chevreul, enquanto o seu filho, Paul Nadar, os fotografava continuadamente – vistas em sequência as fotografias davam a ilusão de um pequeno filme. Neste conjunto o aspecto cénico e performativo parece regressar ao seu trabalho; desta vez Nadar figura nas imagens gesticulando e Chevreul parece aderir com o mesmo espírito. A expressividade corporal de ambos confere às imagens uma leveza e um sentido de acção que os retratos 10 mais estáticos não tinham. Por esta altura as películas instantâneas já circulavam no mercado e abriam-se novas possibilidades na fotografia. Nadar nunca viu as suas imagens em movimento, mas o seu espírito criativo e experimentalista ultrapassou os limites da convencionalidade na procura de uma representação mais completa, como se a fotografia fosse insuficiente para satisfazer o desejo de reprodução da vida real num plano bidimensional. Um ano antes de realizar a entrevista fotográfica a Chevreul, Nadar deixou uma ideia muito clara do seu desejo: “[m]y dream is to see the photograph register the bodily movements and the facial expressions of a speaker while the phonograph is recording his speech” (apud Bazin 2005, 20). O caminho para a invenção do cinematógrafo estava aberto, não por um desejo exclusivo de Nadar, mas porque essa parece ser a vontade de muitos fotógrafos. _ Ao longo da segunda metade do século XIX as tentativas de criação de imagem fotográfica em movimento são inúmeras e a grande maioria não foi conclusiva nem determinante na evolução do cinematógrafo. No entanto, torna-se necessário identificar alguns acontecimentos históricos, de carácter industrial e económico, que cruzaram os caminhos da fotografia e do cinema. A importância destes acontecimentos reforça a lógica de comparação entre ambas as culturas. Tanto a fotografia como o cinema caracterizam-se necessariamente pelas suas bases científicas e tecnológicas. Os processos de produção industrial baseiam-se na repetição e a mercantilização dos produtos é estabelecida de acordo com a nova ordem económica. O ambiente industrial de comercialização massiva é o cenário contextual que impõe a lógica de funcionamento da fotografia e do cinema: da representação mecânica da realidade, da reprodutibilidade das imagens e da velocidade crescente de todos os processos fotográficos nasce a democratização da imagem fotográfica e dos seus objectos de observação. The subsequent industrialization of camera technology only carried out a promise inherent in photography from its very beginning: to democratize all experiences by translating them into images. (Sontag 2008, 7) 11 Parece ser consensual que o aparecimento da fotografia transformou os imaginários colectivos e deu origem a uma nova forma de percepção da realidade congelada numa imagem estática. Mas este processo de democratização da imagem daria ainda um passo final antes de ser definitivamente reforçado pelo cinema: se o problema da representação mecânica foi ultrapassado por Niépce e Daguerre, e a reprodutibilidade conseguida pouco depois por Talbot, a velocidade e a agilização dos processos fotográficos só foi conseguida de forma satisfatória e determinante a partir de 1880. O filme instantâneo da Kodak era aperfeiçoado por George Eastman e dava origem a uma nova configuração do processamento químico da fotografia que iria permanecer ao longo de todo o século XX. Até então, o processo fotográfico mais popular era o colódio húmido, de menor sensibilidade, exposição mais lenta e aplicado numa placa de vidro – a cada placa de vidro correspondia um negativo fotográfico. Toda a produção química da fotografia era lenta, trabalhosa e dispendiosa. A película fotográfica, produzida em Nova Iorque pela Eastman Kodak Company, em certas condições de luz, conseguia captar uma imagem numa fracção de um milésimo de segundo. Com esta nova possibilidade a lógica industrial e a necessidade de agilização de todo o sistema fotográfico justificaram profundas alterações tecnológicas: em poucos anos a chapa de vidro é substituída pelo suporte em celulóide maleável, em forma de rolo, com capacidade para várias fotografias e, a partir de 1888, a produção industrial e comercialização da primeira câmara Kodak, a preço e manuseamento muito acessíveis, tornaram-se nos eventos mais decisivos no processo de democratização da actividade fotográfica. Em apenas alguns meses, todo o mundo industrializado é povoado por fotógrafos amadores e as fotografias multiplicam-se por todo o lado. A imagem estática do retrato, da paisagem e da natureza-morta é agora tomada pelo instantâneo amador: momentos de lazer entre família e amigos, expressões inesperadas, acontecimentos públicos, poses em movimento onde pessoas surgem a correr ou a saltar conferem à nova fotografia uma espontaneidade que até então não se conhecia3. A Kodak tornou-se rapidamente numa das primeiras grandes marcas de consumo globalizado, não só pela produção industrial de materiais a preços acessíveis, 3 A obra do fotógrafo Jacques Henri Lartigue (1894-1896) é uma das mais ilustrativas deste fenómeno. Lartigue começou a fotografar aos 7 anos de idade e só aos 69 anos de idade é que divulgou o seu trabalho de amador. 12 mas também porque se instalou por todo o mundo com pontos de distribuição e serviços de laboratório de apoio aos milhões de amadores e entusiastas praticantes da fotografia. A importância da Kodak na invenção do cinematógrafo foi determinante na medida em que a obtenção de imagens em movimento depende de uma produção industrial bem desenvolvida. A fotografia podia existir com processos lentos e pouco industrializados, mas tal não seria possível com o cinema, cuja ilusão de movimento se consegue com a captação de vinte e quatro imagens fotográficas por segundo. Uma hora de filme consome cerca de dois quilómetros de película fotografada – só um estado muito avançado de desenvolvimento tecnológico, industrial e comercial, como o que a Kodak ofereceu, é que permitiu, finalmente, a possibilidade de invenção do cinema, ou seja, os aspectos que definiram a configuração final do cinematógrafo e da consequente evolução do cinema, estão profundamente relacionados com as características dos produtos que a Kodak fabricava e normalizava, não pela vontade de George Eastman, mas pelas exigências que o mercado da fotografia amadora foi impondo à sobrevivência e prosperidade da empresa. Se a fotografia se sabia inventada após a obtenção da primeira imagem fotográfica, o mesmo não se pode dizer do cinema. Embora a etimologia da palavra conduza ao conceito de movimento (do grego kinema) o cinema não nasce com os primeiros resultados na obtenção dessa ilusão – sabe-se que tal foi conseguido há quase dois mil anos, na China, com a invenção de um engenho muito semelhante ao zootrópio, cuja função rotativa animava sequências de desenhos. A caracterização do cinema é bem mais complexa do que a mera obtenção de movimento, porém não poderá nunca desligar-se desta especificidade. O que caracteriza o cinema que faz com que a primeira projecção pública dos irmãos Lumière, no Grand Café de Paris, em 1895, seja o momento eleito pelos historiadores como o ponto de partida da sua invenção? Tal como fizeram os historiadores da fotografia, a data escolhida representa o momento em que o invento é tornado público. Certamente que este processo envolve a obtenção de patentes e direitos de propriedade industrial e intelectual, contudo, no caso do cinema, a sala de projecção e o público vieram completar um circuito comunicativo que se ritualizou e condicionou grande parte da enunciação cinematográfica. Sem o público, o cinema não poderia desenvolver-se como indústria. Neste aspecto reside uma das diferenças fundamentais entre cinema e fotografia: a indústria cinematográfica está dependente da 13 existência de um público para ser rentável; um filme, por mais básico que seja na utilização de recursos, tem custos muito elevados de produção e tal não favorece o aparecimento de cineastas amadores; por fim, o carácter artístico do filme não se encontra no objecto material utilizado para a projecção, mas sim na imagem que este projecta – tudo o que o público pode fazer é registá-la na sua memória ou revisitá-la numa sala de projecção. É, por isso, na imagem fotográfica em movimento que reside toda a força do cinema. Ao longo da segunda metade do século XIX foram dados passos significativos de aperfeiçoamento que levaram a evolução tecnológica até ao cinematógrafo dos Lumière. O desejo de movimento era manifestado pelos fotógrafos, mas a invenção da câmara que o permitisse era desígnio de engenheiros, cientistas e homens fortes da indústria da fotografia, espalhados um pouco por toda a Europa industrializada e pelos Estados Unidos da América. A mais notável excepção está no exemplo de Eadweard Muybridge, que juntou os seus atributos de fotógrafo ao seu engenho inventivo, tendo conseguido obter imagens fotográficas em movimento no final da década de setenta do século XIX. Nascido em Inglaterra, mudou-se para os Estados Unidos da América com pouco mais de vinte anos de idade, onde se estabeleceu e se tornou num fotógrafo de reconhecido valor. Entre 1872 e 1879 trabalhou para Leland Stanford num estudo sobre o movimento de corrida de um cavalo. Só depois dos primeiros progressos de George Eastman na obtenção de emulsões rápidas é que Muybridge conseguiu resultados satisfatórios: instalou um conjunto de vinte e quatro câmaras fotográficas ao longo da pista, com um sistema de disparo automático accionado pela passagem do cavalo. Para ver estas imagens em movimento, num só plano, Muybridge construiu o zoopraxiscópio, um aparelho com um prato rotativo que projectava ciclicamente as imagens em movimento por um período de tempo limitado pela paciência do espectador. Apercebendo-se do que tinha alcançado, Muybridge produziu mais de cento e sessenta cenas de movimento, com outros animais e figuras humanas. Exibiu os seus trabalhos nos Estados Unidos da América e na Europa, nomeadamente em França, Alemanha e Inglaterra. O seu invento produziu imagens fotográficas em movimento e foi projectado para diversos públicos em salões e exposições, mas tinha alguns limites: a captação das imagens exigia uma produção pesada e dispendiosa, com vinte e quatro 14 câmaras estáticas; a repetição cíclica das imagens não permitia uma representação real de continuidade do tempo. Apesar destes limites ficou demonstrado que era possível animar imagens fotográficas. A partir dos limites do zoopraxiscópio a ciência e a indústria da fotografia estabeleceram as metas a atingir nos anos seguintes – havia que produzir um sistema de captação de imagens fotográficas em movimento que fosse mais fácil de manusear e que permitisse representar a continuidade da passagem do tempo. Muybridge retirou-se da corrida que procurava um sistema satisfatório, mas não deixou de dedicar alguns anos à transferência de conhecimento dando conferências que captavam a atenção dos inventores e industriais mais interessados. A sua missão neste campo estava concluída e, a partir daqui, os progressos tecnológicos desenvolveram-se num cenário de competitividade industrial. Foram muitos os participantes nesta corrida, todos eles importantes, mas nem todos determinantes naquela que viria a ser a configuração tecnológica do cinema ao longo do século XX – é de notar que esta configuração tecnológica tem uma grande influência na enunciação cinematográfica e em toda a sua linguagem. Thomas Edison inventou o cinetoscópio e o cinetógrafo. O primeiro destes aparelhos permitia o visionamento das imagens no interior de uma caixa, mas era limitado a um espectador de cada vez. Por sua vez, o cinetógrafo era o aparelho de captação de imagens que, embora muito pesado e dependente de um estúdio que o acompanhasse, introduziu um mecanismo ainda hoje utilizado na fotografia e no cinema analógicos: Edison utilizou rolos de filme fotográfico instantâneo que George Eastman produzia na Kodak e aplicou-lhes uma perfuração que permitia que o filme fosse puxado pelo sistema de rodas dentadas da sua câmara – nascia assim o filme de 35mm, ainda hoje utilizado por fotógrafos e cineastas. Eastman, consciente do sucesso do invento de Edison em todo o mundo, normalizou o formato da película e adaptou toda a produção de câmaras fotográficas, ou seja, o filme perfurado de 35mm serviria tanto o cinetógrafo como a câmara fotográfica. Mas a corrida não estava terminada, os aparelhos de Edison ainda apresentavam muitos problemas, na captação e visionamento das imagens. No início da década de noventa, do século XIX, Antoine Lumière, fotógrafo e dono de uma fábrica de produção industrial de materiais fotográficos, reformava-se e entregava o negócio aos seus dois filhos, Auguste e Louis. A Usine Lumière era a maior fábrica de películas fotográficas da Europa, no entanto era mais pequena do que a 15 Kodak e não tinha poder económico para combater as normas comerciais que esta impunha. Os Lumière acabaram por adoptar na sua produção os formatos de filme normalizados pela marca concorrente, era uma questão de sobrevivência no mercado, imposta pelas leis da oferta e da procura, e que explica o formato em torno do qual os irmãos trabalharam o seu novo invento – o filme americano de 35mm. Ironicamente a sobrevivência da Eastman Kodak Enterprise ao longo do século XX parece dever-se, em grande medida, ao invento dos seus rivais europeus. O cinematógrafo surgia como uma máquina que aproveitava o melhor das experiências dos anteriores pioneiros do cinema, era relativamente portátil, cumpria as funções de captação de imagens e da respectiva projecção num grande ecrã. Estava finalmente montada a base do sistema que iria durar até hoje. Toda a evolução tecnológica do cinema, a partir deste momento, é de aperfeiçoamento e não lhe altera o circuito comunicativo nem a linguagem visual base, embora alguns progressos, como o som, tenham vindo acrescentar-lhe complexidade. A 28 de Dezembro de 1895 acontece a primeira sessão pública de apresentação do cinematógrafo, no Grand Café de Paris. A projecção de dez filmes, de cerca de quarenta e cinco segundos cada, teve a aceitação imediata do público, como aliás tinham tido as experiencias de Muybridge e de Edison. Mas, em relação aos anteriores, o cinematógrafo é mais versátil, tanto no seu funcionamento e portabilidade como nas possibilidades de representação. Industrialmente os custos de fabrico e utilização eram bastante mais baixos, ainda assim eram suficientemente elevados para inviabilizar a massificação das câmaras de cinema, tal como Eastman havia conseguido com as câmaras fotográficas. Os planos de democratização do cinema, para os Lumière, passaram pela produção e difusão de filmes em salas de projecção. Rapidamente desenvolveram uma acção de divulgação do cinematógrafo à escala mundial e, nos primeiros dois anos, o público de mais de duas centenas de países aplaudia a nova experiencia (Cousins 2005). Mas será erróneo pensar-se que o sucesso dos Lumière se deve apenas às suas diligências comerciais e ao desenvolvimento industrial e tecnológico de determinados recursos; o sucesso do cinematógrafo está, principalmente, na relação que conseguiu estabelecer com um vasto público que nutria um desejo antigo de ver a realidade em movimento representada num ecrã. 16 _ A relação entre fotografia e cinema pode ser estabelecida em diversos níveis e define-se no contraste existente entre os objectos de comparação, tanto na sua especificidade como dentro do seu campo geral. Em relação à fotografia, a pintura levanta questões de representação e subjectividade, a literatura compara-se pelo realismo e expressividade descritiva, a escultura difere na forma e no volume, e o cinema opõe a imagem em movimento à imagem estática. É certo que esta é uma forma redutora e limitada de colocar o problema comparativo, porém a evidência torna a observação inevitável: a fotografia é o objecto livre do peso do seu tempo e do seu espaço, o cinema é a representação do objecto num espaço durante um determinado tempo. Uma análise comparativa assente apenas nos aspectos tecnológicos da fotografia e do cinema pode esgotar-se rapidamente nas potencialidades e limites dos mecanismos de produção. Ninguém precisa de saber utilizar uma câmara para poder compreender uma imagem, mas, paradoxalmente, o conhecimento do funcionamento dos seus mecanismos básicos torna-se num instrumento fundamental de interpretação, útil para qualquer tipo de análise – a configuração mecânica da fotografia e do cinema advém essencialmente de processos de industrialização do século XIX; esse legado industrial é a matriz a partir da qual ambos se desenvolveram, não só mecanicamente, mas também como linguagens e, consequentemente, como culturas. A esfera industrial não é apenas o cenário histórico, político e económico, é também a lei organizadora de todo o sistema fotográfico e cinematográfico. Mesmo à entrada do século XXI, com a implementação massiva dos processos digitais, pouco ou nada mudou na configuração industrial do cinema e da fotografia, os sistemas digitais imitam os sistemas anteriores, acrescentando-lhes novas opções técnicas e alterando a sua velocidade de processamento; é no uso ou no abuso destas opções que se centra uma grande parte da discussão contemporânea sobre o realismo na representação fotográfica. Na arte e na literatura europeia do século XIX há uma transição do movimento estético do Romantismo para o Realismo, sendo as fronteiras entre um e outro de definição bastante problemática. A representação da realidade, com toda a complexidade conceptual que lhe é inerente, balançava entre o estilo e a semelhança. 17 Segundo André Bazin não existem vestígios desta discussão sobre a representação realista, anteriores à invenção da fotografia, o mesmo afirma que: “[p]hotography and cinema [...] are discoveries that satisfy, once and for all and in it’s very essence, our obsession with realism” (Bazin 2005, 12). Não é certo que a simples presença da fotografia tenha estimulado o início desta discussão, mas é certo que o realismo está presente na reflexão contemporânea sobre a representação na fotografia. A complexidade do conceito do realismo assenta no facto de a realidade ser um valor subjectivo, discutível e não universal. Se a fotografia é um processo mecânico e a formação da imagem não tem qualquer intervenção da mão humana, o fotógrafo não deixa de ter um papel subjectivo e detectável na imagem que capta. Nos primeiros anos de contacto do público com a fotografia, o valor material atribuído ao daguerreótipo, que deixava a imagem para segundo plano como se fosse apenas o espírito daquele objecto, parece ser um indício de que a imagem fotográfica ainda não era assunto de debate aprofundado. Mais tarde, já depois de uma nova vaga de industrialização que torna o daguerreótipo obsoleto, as palavras de Baudelaire confirmam a existência de uma consciência das potenciais ambiguidades da imagem fotográfica. O cinema, ao constituir-se de imagens fotográficas, importa todos os problemas filosóficos e todas as ambiguidades da fotografia, aos quais acrescenta complexidade e novas variantes lógicas a partir dos elementos específicos da sua cultura. O cinema é dependente da fotografia, por outro lado, a fotografia não depende do cinema, embora se desenvolva nos mesmos ambientes temáticos e recorra a motivos visuais semelhantes, talvez por questões culturais ou talvez pelas características dos recursos tecnológicos que utilizam. A 11 de Junho de 1895, o Congrès des Sociétés Photographiques de France, reunido em Lyon, oferecia uma viagem de barco aos seus associados. Louis Lumière instalou o cinematógrafo no cais e filmou o desembarque das várias dezenas de fotógrafos que, um a um, pisavam terra firme. Alguns dão pela presença da câmara de filmar e acenam, outros tiram o chapéu e outros fazem uma pequena vénia. Um deles, trazia o aparatoso equipamento fotográfico consigo, abranda o passo, olha para Louis, aponta a objectiva e dispara o obturador. Não é conhecido o paradeiro desta fotografia, nem sequer se sabe se o fotógrafo disparou mesmo o obturador ou se apenas o simulou, mas, pela primeira vez, ficou registada a imagem de uma troca de olhar entre a fotografia e o cinema. Há neste gesto um campo especulativo em torno das possibilidades de rivalidade ou de 18 cumplicidade entre a fotografia e o cinema, colocado por David Campany (Campany 2008), porém, a atitude cordial dos que acenam para a câmara de Louis Lumière enquanto desembarcam no cais não parece revelar qualquer tipo de rivalidade. O cinema não surgiu como ameaça à fotografia nem ao trabalho comercial dos fotógrafos, veio antes afirmar-se, desde os primeiros instantes, como uma extensão das suas potencialidades há muito desejada e agora conseguida; o cinema adquiriu ao longo do tempo uma linguagem, uma ritualização e uma cultura singular, sem, no entanto, esquecer o legado histórico, tecnológico e imagético da fotografia. Por outro lado, o trabalho de muitos fotógrafos revela-se como uma aproximação clara ao cinema – Nadar mostrou-o precocemente no século XIX e os exemplos que se multiplicaram ao longo do século XX fizeram com que se dissipassem quaisquer dúvidas: Helmar Lersky, Man Ray, Andy Warhol, Robert Frank, Hiroshi Sugimoto, Bernard Plossu, Larry Clark, Wim Wenders, Cindy Sherman, Jeff Wall e Gregory Crewdson, entre muitos outros, trabalham, cada um à sua maneira, nos limites das duas linguagens. A fotografia e o cinema são como dois irmãos que a todo o momento celebram as suas semelhanças e diferenças 19 Bibliografia AMAR, Pierre-Jean. 2001. História da Fotografia. Traduzido por Victor Silva. Lisboa: Edições 70. ANDREW, Dudley. 1984. Concepts in Film Theory. Nova Iorque: Oxford University Press. BAUDELAIRE, Charles. 2006. A Invenção da Modernidade. Traduzido por Pedro Tamen. Lisboa: Relógio d’Água. BAZIN, André. 2005. What is Cinema, Vol.1. Trad. Hugh Gray. 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