Revista Interdisciplinar de Humanidades
Pontos de Convergência entre Fotografia e Cinema no Século XIX
Paulo Maia
Para citar este artigo: MAIA, Paulo. 2012. Pontos de Convergência entre
Fotografia e Cinema no Século XIX. estrema: revista interdisciplinar de
humanidades 1, www.estrema-cec.com.
Um projecto do Centro de Estudos Comparatistas
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Para informação adicional
http://www.estrema-cec.com
Pontos de Convergência entre Fotografia e Cinema no Século XIX1
Paulo Maia2
Resumo:
O presente ensaio identifica os principais momentos da história e da evolução cultural
da fotografia, ao longo do século XIX, que se revelaram determinantes para a invenção
do cinema e que justificam uma análise comparada entre ambos. O contexto artístico,
científico, industrial e a nova ordem económica, estabeleceram as regras de
funcionamento mecânico e químico de todo o aparato fotográfico, e determinaram as
condições iniciais para que a fotografia e o cinema se desenvolvessem como culturas e
linguagens distintas. Niépce, Daguerre, Nadar, Baudelaire, Muybridge, Eastman,
Edison e os irmãos Lumière são algumas das personalidades mais importantes neste
processo evolutivo.
Palavras-chave: fotografia, cinema, cultura, indústria, história
Abstract:
The current essay identifies the key moments of history and cultural evolution of
photography over the nineteenth century, which proved instrumental in the invention of
cinema and justify a comparative analysis between both of them. The artistic, scientific
and industrial context, as well as the new economic order, established the mechanical
and chemical operating rules of the photographic and cinematographic apparatus. It also
determined the starting conditions for photography and cinema to develop themselves as
distinct cultures and languages. Niépce, Daguerre, Nadar, Baudelaire, Muybridge,
Eastman, Edison and the Lumière brothers, are some of the most important personalities
involved in this evolutionary process.
Keywords: photography, cinema, culture, industry, history
1
MAIA, Paulo. 2012. Pontos de Convergência entre Fotografia e Cinema no Século XIX. estrema:
Revista Interdisciplinar de Humanidades 1, www.estrema-cec.com.
2
Programa em Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
1
A imagem fotográfica mais antiga que se conhece foi obtida por Niépce, em 1826,
através de um processo químico designado por heliográfico. Sabe-se também que o
mesmo cientista conseguiu obter imagens negativas por volta de 1817, mas estas
sobreviveram à luz solar apenas durante algumas horas. Se recuarmos no tempo, vamos
encontrando na literatura, nas artes e na ciência, indícios de um desejo humano de
reprodução do mundo real num plano bidimensional. A impossibilidade de estabelecer
datas exactas para a invenção da fotografia e do cinema, obriga a situar os limites
temporais para esta reflexão nos momentos em que ambos entraram no domínio do
conhecimento público, conquistando deste modo a possibilidade de se transformarem
em actividades culturais: entre o registo da patente da fotografia, em Agosto de 1839,
por Daguerre, e a primeira projecção pública de imagens cinematográficas no Grand
Café de Paris, em Dezembro de 1895, pelos irmãos Lumière.
Se Niépce produziu as primeiras imagens fotográficas porque surge tantas vezes
Daguerre como o pai da fotografia? A resposta a esta questão deverá fundamentar-se
para além da falta de rigor histórico de algumas fontes do saber popular. O trabalho
científico de Niépce foi desenvolvido de forma praticamente anónima e sem o
conhecimento do público. Após um longo processo negocial, e pressionado por uma
situação financeira delicada, assinou um contrato com Daguerre, em Dezembro de 1829,
no qual renunciava, em parte, aos direitos do invento. Só em Agosto de 1839, já depois
da morte de Niépce, em 1833, a fotografia foi patenteada e tornada pública pela
Academia das Ciências e Belas-Artes de França (Amar 2001, 21). Este é o momentochave para o início da história da cultura fotográfica. Walter Benjamin caracteriza-o na
sua Pequena História da Fotografia da seguinte forma:
Estavam assim criadas as condições para um desenvolvimento acelerado e duradouro, que, por um
longo período, impediu qualquer investigação retrospectiva. Assim se explica que as questões
históricas ou, se quisermos, filosóficas que rodeiam a ascensão e decadência da fotografia tenham sido
ignoradas décadas a fio. (Benjamin 1992, 115)
No ano de publicação deste ensaio de Benjamin, em 1931, o conhecimento histórico
dos momentos anteriores à divulgação oficial da fotografia era bastante mais enevoado
do que hoje. Por essa razão o autor parece dar mais importância aos factos que surgem a
partir de 1839, contudo não deixa de revelar uma consciência de que este era, realmente,
o momento em que a fotografia reunia todas as condições para se tornar numa
actividade cultural.
2
Em 1839, para além da condução do processo burocrático que levou ao registo da
fotografia, Daguerre afirmou-se como pai do invento, uma vez que terá sido o primeiro
fotógrafo da história – da sua câmara escura surgiu a primeira intenção discursiva da
fotografia. Embora não tivesse produzido mais de cerca de meia centena de imagens,
deu início aos processos de industrialização e de comercialização do daguerreótipo,
ainda que de forma bastante rudimentar e dispendiosa, mas suficiente para que, cerca de
uma década depois, a actividade fotográfica se encontrasse um pouco por todo o mundo
industrializado. Os daguerreótipos, objectos únicos e irreprodutiveis mecanicamente,
eram dotados de um carácter de singularidade reforçado pela sua apresentação em
pequenas caixas forradas a veludo, semelhantes a relicários – o objecto parecia valer
mais do que a imagem, “[o] aqui e agora do original constitui o conceito da sua
autenticidade” (Benjamin 1992, 77). Durante as primeiras décadas da sua
comercialização, os custos de produção fotográfica eram muito elevados e tanto os
fotógrafos como os seus principais encomendadores surgiam nas famílias mais
abastadas, sendo muito raro encontrar-se retratos de pessoas de classes sociais e
económicas inferiores desta época. Neste aspecto só se verificaram alterações
significativas com a evolução dos processos industriais a partir da década de oitenta do
século XIX, que permitiram a democratização e massificação da fotografia. Na verdade,
sem esses processos evolutivos o surgimento do cinema não teria sido possível, pelo
menos na forma em que o conhecemos.
A história da fotografia não pode ser compreendida sem um olhar sobre o trabalho
científico de William Henry Fox-Talbot, cujo contributo transformou definitivamente a
configuração da técnica e da cultura fotográfica. Em 1847 Talbot inventou a imagem
negativa em placa de vidro, a partir da qual poderiam ser reproduzidas quantas cópias
fossem necessárias. Neste processo a fotografia começa a perder a aura de objecto único
e a sua autenticidade é posta em causa. Se, por um lado, esta possibilidade de
reprodução infinita permite a multiplicação de uma imagem em inúmeros cartões-devisita, em postais ou em tablóides, por outro lado, assiste-se a um processo de
vulgarização do suporte físico e da consequente desmaterialização da fotografia – estava
aberto o caminho para uma valorização da imagem fotográfica como meio de expressão
artística, no entanto este processo não foi pacífico. O realismo da fotografia invadia o
espaço de uma imagética colectiva que então pertencia à literatura e, especialmente, à
3
pintura. Na literatura parece ter havido uma aceitação da entrada da fotografia na vida
quotidiana. Em Madame Bovary, Gustave Flaubert dedica-lhe palavras elogiosas:
Carlos, depois de fechar a porta, pediu-lhe que fosse pessoalmente a Ruão a fim de saber quais
podiam ser os preços dum bom daguerreótipo; era uma surpresa sentimental que reservava à mulher,
uma atenção fina, o seu retrato, de casaca. (1971, 91)
A literatura nunca foi ameaçada pela fotografia, não há indícios de que tal tenha
acontecido, mas o mesmo não se pode dizer em relação à pintura. O conflito entre as
questões da representação artística na fotografia e na pintura estendeu-se ao longo de
várias décadas, até aos anos trinta do século XX. Mas o conflito não era apenas estético:
A verdadeira vítima da fotografia não foi a pintura de paisagens mas sim as miniaturas de retratos. As
coisas evoluíram tão rapidamente que já em 1840 a maioria dos inúmeros pintores de miniaturas se
tornou fotógrafo profissional, a começo como actividade paralela, mas em pouco tempo, em
exclusividade. (Benjamin 1992, 122)
Os novos retratistas, com todo o seu fulgor industrial, conquistavam clientes à
pintura. Mais do que um problema de atenção das modas populares, esta rivalidade
desenvolve-se por razões de mercado e só mais tarde, no final do século XIX, entra no
campo da estética e da teoria da arte para dar origem ao primeiro movimento artístico da
fotografia – o pictorialismo.
Uma das vozes mais activas do cepticismo em relação ao potencial artístico e
representativo da imagem fotográfica partiu de Charles Baudelaire, que demonizou a
fotografia pelo seu excessivo realismo e classificou o público parisiense, que então
aplaudia a fotografia no Salão de 1859, como “incapaz de sentir a felicidade da
fantasia” (Baudelaire 2006, 155), acrescentando ainda:
Nestes dias lamentáveis, criou-se uma indústria nova, que não pouco contribuiu para confirmar a
estupidez na sua fé e para arruinar o que podia restar de divino no espírito francês. [...] Em matéria de
pintura e de estatutária, o Credo actual da sociedade, sobretudo em França [...] é o seguinte: [...] Creio
que a arte é e não pode deixar de ser a reprodução exacta da natureza [...]. Assim, uma indústria que
nos desse um resultado idêntico à natureza seria a arte absoluta.” Um Deus vingador satisfez os
desejos dessa multidão. Daguerre foi o seu messias. E então ela pensou “Visto que a fotografia nos dá
todas as garantias desejáveis de exactidão (eles acreditam nisso, insensatos são!), a arte é a
fotografia.” (Baudelaire 2006, 155)
Há nestas palavras uma reprovação evidente da ligeireza com que o público em geral
acolhe a fotografia, mas a crítica de Baudelaire não se fundamenta apenas na percepção
dos espectadores menos cultos, sustenta-se essencialmente em considerações estéticas e
ideológicas. A imagem fotográfica levanta questões sobre a representação da realidade e
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sobre a veracidade do que nos mostra um olho mecânico, implacável e imparcial. Sobre
este aspecto, Baudelaire refere que a doutrina da cópia excelente da natureza é inimiga
das artes. Na sua perspectiva a imaginação é a rainha de todas as faculdades humanas e
o elemento fundamental que evidencia a interioridade de um artista (Baudelaire 2006,
157-158). Comparando com a pintura ou com a poesia, a rigidez das técnicas
fotográficas e o seu carácter mecânico não permitiam aos fotógrafos grandes
possibilidades criativas que evidenciassem o desalinhamento do sujeito poético do
século XIX em relação à sua realidade exterior. Com efeito, esta realidade exterior ao
sujeito poético não é mais do que o contexto industrial e progressista no qual a
fotografia germinou e que Baudelaire várias vezes criticou:
Existe ainda um erro que está muito na moda e de que pretendo fugir como do inferno. Refiro-me à
ideia de progresso. Esse fanal obscuro, invenção do filosofismo actual, patenteado sem garantia da
Natureza ou da Divindade, esse lanternim moderno lança trevas sobre todos os objectos do
conhecimento; a liberdade esvai-se, o castigo desaparece. Quem quiser ver claro na história tem, antes
de mais nada, de apagar esse pérfido fanal. Esta ideia grotesca que floriu no terreno apodrecido da
fatuidade moderna isentou todos e cada um do seu dever, libertou todas as almas da sua
responsabilidade, soltou a vontade de todos os laços que o amor do belo lhe impunha: e as raças
diminuídas, se esta aflitiva loucura durar muito, dormirão sobre o travesseiro da fatalidade o sono
pateta da decrepitude. Esta presunção é o diagnóstico de uma decadência que é já mais que visível.
(Baudelaire 2006, 54)
Neste sentido, afigura-se lógica a sua preferência pela negação da realidade estética
na procura de uma beleza extravagante no interior do sujeito poético, como o próprio
refere, dando voz ao artista imaginativo:
Acho inútil e fastidioso representar o que existe, porque nada do que existe me satisfaz. A natureza é
feia e prefiro os monstros da minha fantasia à trivialidade positiva. [...] O artista, o verdadeiro artista,
o verdadeiro poeta não deve pintar senão segundo o que vê e o que sente. Deve ser realmente fiel à
sua própria natureza. (Baudelaire 2006, 158)
Baudelaire lançou uma discussão que está longe de se esgotar nos domínios da teoria
da representação artística. Na verdade, pode dizer-se que o seu postulado constitui
matéria-prima, no seu estado mais puro, de algumas das mais actuais teorias da
fotografia e do cinema que rejeitam as suas potencialidades realistas e a imparcialidade
do aparato. Por exemplo, Jacques Lacan, fundamentado em princípios de carácter
psicanalítico, defendeu para o cinema uma linguagem simbólica que não necessita de
representar ou reconstituir o mundo, mas apenas de o significar, numa atitude muito
semelhante ao simbolismo poético de Baudelaire. Louis Althusser, numa postura
assumidamente política, declara a construção cinematográfica como inevitavelmente
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ideológica e parcial, na medida em que todo o sistema sobre o qual se constrói a
linguagem do filme é marcadamente industrial, para ele a realidade só pode surgir no
ecrã através de um processo de enunciação auto-reflexiva, ou seja, revelando ao
espectador todo o aparato tecnológico diante das câmaras, desmistificando assim o
processo de construção da ilusão cinematográfica (Andrew 1984). Facilmente se
encontram outros pensadores da teoria do cinema que continuaram algumas da mais
antigas questões filosóficas da fotografia e que, na linha de Baudelaire, negam as
possibilidades de uma estética realista tal como é proposta, por Siegfried Kracauer ou
André Bazin. Com efeito, a importante teoria da estética realista de Bazin, postulada em
Qu’est-ce que le cinéma? (1958-62), assume a imagem fotográfica como matéria-prima
do cinema e parte do princípio de semelhança do objecto real com a imagem que
produz.
Na
segunda
metade
do
século
XIX
o
número
de
fotógrafos
crescia
consideravelmente e muitos viviam acomodados à sombra de um negócio cada vez mais
florescente. Para a grande maioria dos fotógrafos Baudelaire até podia ter razão ao
afirmar que fotografia não era arte, desde que as encomendas continuassem a surgir.
Esta atitude puramente mercantil define, em grande parte, a génese das imagens
fotográficas do século XIX: retratos formais, encomendados por ilustres aristocratas,
políticos e industriais de sucesso que, diante da câmara, envergam os seus melhores
trajes em poses de ostentação; paisagens e monumentos, em postais impressos por
museus ou organismos de Estado. Muitas destas imagens são de autor desconhecido,
não pela perda da informação da sua autoria, mas porque essa não era uma questão
relevante para o negócio – a autoria insere-se nos domínios da arte. Sabe-se hoje, por
exemplo, que Charles Thruston Thompson produziu grande parte das fotografias
publicadas em livros e postais do museu de South Kensington, no século XIX, no
entanto, todas as imagens estão identificadas com o nome do museu e não com o nome
do fotógrafo (Fontanella 1996). Muitos destes fotógrafos, talvez uma grande maioria,
eram simples executantes e funcionavam como operários das linhas de montagem
industrial que então surgiam na vida laboral das civilizações ocidentais. O processo
fotográfico repete-se quase cegamente, em busca do lucro e numa rigidez imposta pelos
limites tecnológicos da própria fotografia. Até à invenção das emulsões mais rápidas, na
década de oitenta, do século XIX, a fotografia caracterizava-se pelo seu carácter estático
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– em determinadas circunstâncias de iluminação, o retratado podia ter que sujeitar-se a
longos períodos de pose.
Dos fotógrafos de práticas industriais e automáticas, que constituíam a regra da
grande maioria dos estúdios fotográficos europeus, poucos sobreviveram na nossa
memória histórica e cultural. Uma das excepções é a de Gaspard-Félix Tournachon,
conhecido simplesmente por Nadar, e considerado por muitos historiadores como um
dos primeiros fotógrafos a incluir a fotografia nos domínios da produção artística. A
pertinência da inclusão de Nadar neste ensaio não se prende apenas com a sua
capacidade inovadora, mas, também, com o facto de alguns dos seus projectos e
processos criativos revelarem importantes pontos de convergência entre a fotografia e o
cinema, ainda assim, a título especulativo, pode atribuir-se a este seu espírito criativo a
aproximação que fez a um ideal cinematográfico. Não é minha intenção defender que
Nadar foi um dos pioneiros do cinema, nem afirmar que o seu iminente desejo de
completar a fotografia com movimento, som e encenação veio a definir os caminhos que
levaram a ciência e a indústria até ao cinematógrafo dos Lumière. Por outro lado, a
existência destes pontos de convergência, facilmente identificáveis no seu trabalho
muito antes das primeiras projecções públicas no Grand Café de Paris, são um indício
de que a invenção do cinema surge de um desejo e de uma necessidade. É certo que
muitos outros factores e acasos contribuíram para definir a configuração com que o
cinema surge no final do século XIX, mas também é certo que grande parte desses
indícios se encontram dentro da cultura fotográfica. Assim, pode dizer-se, com alguma
segurança, que a fotografia foi um ponto de passagem obrigatório no percurso da
invenção do cinema – na fotografia germinou uma nova cultura de imagem em
movimento.
Antes de iniciar a sua actividade fotográfica Nadar tinha abandonado os estudos de
medicina para se dedicar ao jornalismo, como crítico de teatro, e ao desenho
caricaturista. Rapidamente se tornou numa figura carismática da vida literária e artística
da boémia parisiense. No seu circuito próximo de amigos figuravam ilustres como
Eugène Delacroix, Hector Berlioz, Gérard de Nerval, Théophile Gautier e Charles
Baudelaire. Quando abriu o seu primeiro estúdio fotográfico, em 1854, reunia todas as
condições para alcançar o sucesso; o lucro era apenas uma condição necessária à
sobrevivência artística e não uma finalidade, ainda assim a fama chegou quase
7
imediatamente. A sala de recepção do seu estúdio tornou-se num ponto de passagem
obrigatório da alta cultura parisiense, para onde atraía os seus amigos mais influentes e
onde tinham lugar descontraídas tertúlias. Nadar acabava por convencê-los a figurar nos
seus retratos – apesar da sua relutância em aceitar a fotografia, Baudelaire posa
frequentemente para a sua objectiva. Um olhar atento ao seu trabalho retratístico revela
mais do que um desfile de celebridades da vida cultural francesa daquela época; há algo
de diferente nas suas imagens que o distingue dos fotógrafos industriais e que as suas
palavras revelam:
The theory of photography can be learned in an hour and the elements of practicing it in a day... What
cannot be learned is the sense of light, an artistic feeling for the effects of varying luminosity and
combinations of it, the application of this or that effect to the features which confront the artist in you.
What can be learned even less is the moral grasp of the subject – that instant understanding which puts
you in touch with the model, helps you to sum him up, guides you to his habits, his ideas and his
character and enables you to produce, not an indifferent reproduction, a matter of routine or accident
such as any laboratory assistant could achieve, but a really convincing and sympathetic likeness, and
intimate portrait. (apud Rubin 2001, 3)
Nestas palavras, Nadar defende a importância do olhar do fotógrafo e liberta a
fotografia do seu peso mecânico e repetitivo. O acto fotográfico é pessoal e subjectivo.
O fotógrafo, escondido atrás da câmara no momento do disparo, evidencia-se na arte
das suas imagens pelas opções que toma: escolhe o enquadramento, controla a luz,
interpreta e orienta o modelo e, no fim, assume o momento do disparo – não há
mecanismo nem câmara fotográfica que tome estas decisões pelo fotógrafo. Ao colocarse no centro de todo o processo criativo, produzindo imagens de grande expressão
emotiva e de forte carácter social, Nadar representa o herói do Romantismo em
transição para um Realismo que então se vivia nas correntes artísticas e literárias.
É com esta postura marcadamente subjectiva que se funda a arte através dos meios
de reprodução mecânica, tais como a fotografia e o cinema. O fotógrafo e o cineasta
definem-se nas opções que tomam no controlo dos recursos técnicos de que dispõem,
para que a objectiva capte o assunto segundo as suas intenções – o sucesso de ambos
mede-se pela capacidade de concretização destas intenções. Os meios técnicos obrigam
a que o cineasta seja também um fotógrafo, embora a lógica inversa não se imponha,
contudo, é perfeitamente identificável nos métodos de trabalho de Nadar uma
componente cénica muito semelhante ao modo de actuar de um cineasta. O cinema
sempre foi uma actividade de grupo, independentemente da forma como se organiza –
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basta tomar alguma atenção à ficha técnica de um filme para se perceber a
complexidade de uma produção cinematográfica. Ao contrário do cinema, a fotografia
pode ser uma actividade solitária: um retratista industrial pode assumir o comando de
todo o processo, desde a pré-produção até à prova final; foi esta tendência que Nadar
inverteu. Nas suas sessões de retrato impunha a pose e a roupa com que o modelo iria
figurar na fotografia: casacos escuros de tom pouco contrastante com o fundo, também
escuro; a pele da cara bem iluminada emerge da penumbra; os braços muitas vezes
cruzados numa atitude tensa ou num estranho movimento em que a mão entra dentro do
casaco junto ao peito; Berlioz, por exemplo, é retratado dentro de um enorme casaco
com as mãos escondidas dentro das mangas. O efeito perturbador da normalidade, na
encenação da pose, é uma das suas marcas artísticas.
O interesse de Nadar pelo teatro e pelo acto performativo na fotografia foi levado
mais longe, quase ao nível de uma produção cinematográfica, quando fotografou o
mimo Jean-Charles Deburau trajado de arlequim da comnedia dell’ arte, numa
sequência de imagens que pretendia transmitir um movimento e uma expressividade
corporal que a fotografia estática, de pose contida, não transmitia. Uma vez mais, com a
ajuda de vários assistentes, cumpre o trabalho de iluminação, cenografia, adereços,
fotografia, direcção do actor e processamento químico final. Conforme observa Maria
Morris Hambourg, curadora, ensaísta e crítica de fotografia, o próprio Nadar acabava
por adquirir uma postura performativa no desempenho do seu trabalho: “Nadar’s
gregarious personality turned the entire process of posing, shooting, developing and
printing into a performance, with the artist as the actor” (apud Rubin 2001, 11). Ao
assumir a função performativa e participativa em todo o processo, embora sem figurar
nestas imagens, Nadar atenua o impacto do seu papel de observador e fotógrafo
estabelecendo uma relação de semelhança com o retratado e com os seus assistentes,
revelando assim uma técnica eficaz na gestão de uma equipa de trabalho que se
evidencia nas suas imagens. No seu modo de actuar verifica-se uma grande
conformidade com os processos criativos de muitos cineastas contemporâneos, por
outro lado, existem outras formas de trabalho antagónicas a esta e com resultados
igualmente interessantes – há realizadores e fotógrafos que preferem a distância e um
certo isolamento em relação a toda a equipa de trabalho. Apesar das diferenças e
incompatibilidades, a análise dos processos de criação artística não deixa de ser um
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aspecto importante de comparação entre as culturas da fotografia e do cinema. Nadar
não “inventou” este processo participativo nas sessões fotográficas, nem contagiou os
cineastas que como ele trabalham, mas são as características dos meios da fotografia e
do cinema que acabam por determinar as suas possibilidades e condições de enunciação.
À parte da produção criativa que lhe dava fama, Nadar desenvolveu algum trabalho
fotográfico de suporte científico, nomeadamente ligado ao ramo da medicina que era do
seu interesse. Algumas correntes do pensamento científico oitocentista acreditavam que
a personalidade de um indivíduo se revelava nas características das suas expressões
faciais. Em 1854, Nadar executou uma série de fotografias cujo objectivo era a
ilustração de um tratado, realizado pelo Dr. Guillaume Duchenne, que procurava as
marcas distintivas do rosto conforme a profissão e o estatuto social do indivíduo –
Mècanisme de la Physionomie Humaine, publicado em 1862. O resultado visual revela
mais um método científico do que um processo criativo: são painéis de dezasseis
imagens em sequência com variações mínimas entre elas, ou conjuntos de duas a quatro
fotografias, dispostas lado a lado, ilustrando os diversos momentos da expressão facial
de uma pessoa. Esta mudança de expressão ao longo das diferentes fotografias acaba
por surgir como uma simulação de movimento que mais tarde viria a caracterizar o
cinema – a noção de movimento sustenta-se na percepção de mudança dentro de um
determinado espaço ao longo de um determinado tempo. Alguns anos mais tarde, ao
testar um sistema de iluminação artificial e experimentando nos limites desta
potencialidade, Nadar produz numa série de dezasseis auto-retratos, sentado numa
cadeira rotativa e nos quais capta as imagens em torno de si próprio. Vistas
sequencialmente no mesmo plano, estas imagens transmitiriam a ilusão de um
movimento de rotação, porém, faltava a Nadar um aparelho para desempenhar essa
tarefa.
Já no final da sua carreira, em 1886, Nadar produziu a primeira entrevista
fotográfica. Sentou-se à mesa e conduziu uma conversa com o químico Michel-Eugéne
Chevreul, enquanto o seu filho, Paul Nadar, os fotografava continuadamente – vistas em
sequência as fotografias davam a ilusão de um pequeno filme. Neste conjunto o aspecto
cénico e performativo parece regressar ao seu trabalho; desta vez Nadar figura nas
imagens gesticulando e Chevreul parece aderir com o mesmo espírito. A expressividade
corporal de ambos confere às imagens uma leveza e um sentido de acção que os retratos
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mais estáticos não tinham. Por esta altura as películas instantâneas já circulavam no
mercado e abriam-se novas possibilidades na fotografia. Nadar nunca viu as suas
imagens em movimento, mas o seu espírito criativo e experimentalista ultrapassou os
limites da convencionalidade na procura de uma representação mais completa, como se
a fotografia fosse insuficiente para satisfazer o desejo de reprodução da vida real num
plano bidimensional. Um ano antes de realizar a entrevista fotográfica a Chevreul,
Nadar deixou uma ideia muito clara do seu desejo: “[m]y dream is to see the photograph
register the bodily movements and the facial expressions of a speaker while the
phonograph is recording his speech” (apud Bazin 2005, 20). O caminho para a invenção
do cinematógrafo estava aberto, não por um desejo exclusivo de Nadar, mas porque essa
parece ser a vontade de muitos fotógrafos.
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Ao longo da segunda metade do século XIX as tentativas de criação de imagem
fotográfica em movimento são inúmeras e a grande maioria não foi conclusiva nem
determinante na evolução do cinematógrafo. No entanto, torna-se necessário identificar
alguns acontecimentos históricos, de carácter industrial e económico, que cruzaram os
caminhos da fotografia e do cinema. A importância destes acontecimentos reforça a
lógica de comparação entre ambas as culturas.
Tanto a fotografia como o cinema caracterizam-se necessariamente pelas suas bases
científicas e tecnológicas. Os processos de produção industrial baseiam-se na repetição
e a mercantilização dos produtos é estabelecida de acordo com a nova ordem
económica. O ambiente industrial de comercialização massiva é o cenário contextual
que impõe a lógica de funcionamento da fotografia e do cinema: da representação
mecânica da realidade, da reprodutibilidade das imagens e da velocidade crescente de
todos os processos fotográficos nasce a democratização da imagem fotográfica e dos
seus objectos de observação.
The subsequent industrialization of camera technology only carried out a promise inherent in
photography from its very beginning: to democratize all experiences by translating them into images.
(Sontag 2008, 7)
11
Parece ser consensual que o aparecimento da fotografia transformou os imaginários
colectivos e deu origem a uma nova forma de percepção da realidade congelada numa
imagem estática. Mas este processo de democratização da imagem daria ainda um passo
final antes de ser definitivamente reforçado pelo cinema: se o problema da
representação mecânica foi ultrapassado por Niépce e Daguerre, e a reprodutibilidade
conseguida pouco depois por Talbot, a velocidade e a agilização dos processos
fotográficos só foi conseguida de forma satisfatória e determinante a partir de 1880. O
filme instantâneo da Kodak era aperfeiçoado por George Eastman e dava origem a uma
nova configuração do processamento químico da fotografia que iria permanecer ao
longo de todo o século XX. Até então, o processo fotográfico mais popular era o
colódio húmido, de menor sensibilidade, exposição mais lenta e aplicado numa placa de
vidro – a cada placa de vidro correspondia um negativo fotográfico. Toda a produção
química da fotografia era lenta, trabalhosa e dispendiosa.
A película fotográfica, produzida em Nova Iorque pela Eastman Kodak Company,
em certas condições de luz, conseguia captar uma imagem numa fracção de um
milésimo de segundo. Com esta nova possibilidade a lógica industrial e a necessidade
de agilização de todo o sistema fotográfico justificaram profundas alterações
tecnológicas: em poucos anos a chapa de vidro é substituída pelo suporte em celulóide
maleável, em forma de rolo, com capacidade para várias fotografias e, a partir de 1888,
a produção industrial e comercialização da primeira câmara Kodak, a preço e
manuseamento muito acessíveis, tornaram-se nos eventos mais decisivos no processo de
democratização da actividade fotográfica. Em apenas alguns meses, todo o mundo
industrializado é povoado por fotógrafos amadores e as fotografias multiplicam-se por
todo o lado. A imagem estática do retrato, da paisagem e da natureza-morta é agora
tomada pelo instantâneo amador: momentos de lazer entre família e amigos, expressões
inesperadas, acontecimentos públicos, poses em movimento onde pessoas surgem a
correr ou a saltar conferem à nova fotografia uma espontaneidade que até então não se
conhecia3. A Kodak tornou-se rapidamente numa das primeiras grandes marcas de
consumo globalizado, não só pela produção industrial de materiais a preços acessíveis,
3
A obra do fotógrafo Jacques Henri Lartigue (1894-1896) é uma das mais ilustrativas deste fenómeno.
Lartigue começou a fotografar aos 7 anos de idade e só aos 69 anos de idade é que divulgou o seu
trabalho de amador.
12
mas também porque se instalou por todo o mundo com pontos de distribuição e serviços
de laboratório de apoio aos milhões de amadores e entusiastas praticantes da fotografia.
A importância da Kodak na invenção do cinematógrafo foi determinante na medida
em que a obtenção de imagens em movimento depende de uma produção industrial bem
desenvolvida. A fotografia podia existir com processos lentos e pouco industrializados,
mas tal não seria possível com o cinema, cuja ilusão de movimento se consegue com a
captação de vinte e quatro imagens fotográficas por segundo. Uma hora de filme
consome cerca de dois quilómetros de película fotografada – só um estado muito
avançado de desenvolvimento tecnológico, industrial e comercial, como o que a Kodak
ofereceu, é que permitiu, finalmente, a possibilidade de invenção do cinema, ou seja, os
aspectos que definiram a configuração final do cinematógrafo e da consequente
evolução do cinema, estão profundamente relacionados com as características dos
produtos que a Kodak fabricava e normalizava, não pela vontade de George Eastman,
mas pelas exigências que o mercado da fotografia amadora foi impondo à sobrevivência
e prosperidade da empresa.
Se a fotografia se sabia inventada após a obtenção da primeira imagem fotográfica, o
mesmo não se pode dizer do cinema. Embora a etimologia da palavra conduza ao
conceito de movimento (do grego kinema) o cinema não nasce com os primeiros
resultados na obtenção dessa ilusão – sabe-se que tal foi conseguido há quase dois mil
anos, na China, com a invenção de um engenho muito semelhante ao zootrópio, cuja
função rotativa animava sequências de desenhos. A caracterização do cinema é bem
mais complexa do que a mera obtenção de movimento, porém não poderá nunca
desligar-se desta especificidade. O que caracteriza o cinema que faz com que a primeira
projecção pública dos irmãos Lumière, no Grand Café de Paris, em 1895, seja o
momento eleito pelos historiadores como o ponto de partida da sua invenção? Tal como
fizeram os historiadores da fotografia, a data escolhida representa o momento em que o
invento é tornado público. Certamente que este processo envolve a obtenção de patentes
e direitos de propriedade industrial e intelectual, contudo, no caso do cinema, a sala de
projecção e o público vieram completar um circuito comunicativo que se ritualizou e
condicionou grande parte da enunciação cinematográfica. Sem o público, o cinema não
poderia desenvolver-se como indústria. Neste aspecto reside uma das diferenças
fundamentais entre cinema e fotografia: a indústria cinematográfica está dependente da
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existência de um público para ser rentável; um filme, por mais básico que seja na
utilização de recursos, tem custos muito elevados de produção e tal não favorece o
aparecimento de cineastas amadores; por fim, o carácter artístico do filme não se
encontra no objecto material utilizado para a projecção, mas sim na imagem que este
projecta – tudo o que o público pode fazer é registá-la na sua memória ou revisitá-la
numa sala de projecção. É, por isso, na imagem fotográfica em movimento que reside
toda a força do cinema.
Ao longo da segunda metade do século XIX foram dados passos significativos de
aperfeiçoamento que levaram a evolução tecnológica até ao cinematógrafo dos Lumière.
O desejo de movimento era manifestado pelos fotógrafos, mas a invenção da câmara
que o permitisse era desígnio de engenheiros, cientistas e homens fortes da indústria da
fotografia, espalhados um pouco por toda a Europa industrializada e pelos Estados
Unidos da América. A mais notável excepção está no exemplo de Eadweard Muybridge,
que juntou os seus atributos de fotógrafo ao seu engenho inventivo, tendo conseguido
obter imagens fotográficas em movimento no final da década de setenta do século XIX.
Nascido em Inglaterra, mudou-se para os Estados Unidos da América com pouco mais
de vinte anos de idade, onde se estabeleceu e se tornou num fotógrafo de reconhecido
valor. Entre 1872 e 1879 trabalhou para Leland Stanford num estudo sobre o
movimento de corrida de um cavalo. Só depois dos primeiros progressos de George
Eastman na obtenção de emulsões rápidas é que Muybridge conseguiu resultados
satisfatórios: instalou um conjunto de vinte e quatro câmaras fotográficas ao longo da
pista, com um sistema de disparo automático accionado pela passagem do cavalo. Para
ver estas imagens em movimento, num só plano, Muybridge construiu o
zoopraxiscópio, um aparelho com um prato rotativo que projectava ciclicamente as
imagens em movimento por um período de tempo limitado pela paciência do
espectador.
Apercebendo-se do que tinha alcançado, Muybridge produziu mais de cento e
sessenta cenas de movimento, com outros animais e figuras humanas. Exibiu os seus
trabalhos nos Estados Unidos da América e na Europa, nomeadamente em França,
Alemanha e Inglaterra. O seu invento produziu imagens fotográficas em movimento e
foi projectado para diversos públicos em salões e exposições, mas tinha alguns limites:
a captação das imagens exigia uma produção pesada e dispendiosa, com vinte e quatro
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câmaras estáticas; a repetição cíclica das imagens não permitia uma representação real
de continuidade do tempo. Apesar destes limites ficou demonstrado que era possível
animar imagens fotográficas. A partir dos limites do zoopraxiscópio a ciência e a
indústria da fotografia estabeleceram as metas a atingir nos anos seguintes – havia que
produzir um sistema de captação de imagens fotográficas em movimento que fosse mais
fácil de manusear e que permitisse representar a continuidade da passagem do tempo.
Muybridge retirou-se da corrida que procurava um sistema satisfatório, mas não deixou
de dedicar alguns anos à transferência de conhecimento dando conferências que
captavam a atenção dos inventores e industriais mais interessados. A sua missão neste
campo estava concluída e, a partir daqui, os progressos tecnológicos desenvolveram-se
num cenário de competitividade industrial. Foram muitos os participantes nesta corrida,
todos eles importantes, mas nem todos determinantes naquela que viria a ser a
configuração tecnológica do cinema ao longo do século XX – é de notar que esta
configuração tecnológica tem uma grande influência na enunciação cinematográfica e
em toda a sua linguagem.
Thomas Edison inventou o cinetoscópio e o cinetógrafo. O primeiro destes aparelhos
permitia o visionamento das imagens no interior de uma caixa, mas era limitado a um
espectador de cada vez. Por sua vez, o cinetógrafo era o aparelho de captação de
imagens que, embora muito pesado e dependente de um estúdio que o acompanhasse,
introduziu um mecanismo ainda hoje utilizado na fotografia e no cinema analógicos:
Edison utilizou rolos de filme fotográfico instantâneo que George Eastman produzia na
Kodak e aplicou-lhes uma perfuração que permitia que o filme fosse puxado pelo
sistema de rodas dentadas da sua câmara – nascia assim o filme de 35mm, ainda hoje
utilizado por fotógrafos e cineastas. Eastman, consciente do sucesso do invento de
Edison em todo o mundo, normalizou o formato da película e adaptou toda a produção
de câmaras fotográficas, ou seja, o filme perfurado de 35mm serviria tanto o cinetógrafo
como a câmara fotográfica. Mas a corrida não estava terminada, os aparelhos de Edison
ainda apresentavam muitos problemas, na captação e visionamento das imagens.
No início da década de noventa, do século XIX, Antoine Lumière, fotógrafo e dono
de uma fábrica de produção industrial de materiais fotográficos, reformava-se e
entregava o negócio aos seus dois filhos, Auguste e Louis. A Usine Lumière era a maior
fábrica de películas fotográficas da Europa, no entanto era mais pequena do que a
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Kodak e não tinha poder económico para combater as normas comerciais que esta
impunha. Os Lumière acabaram por adoptar na sua produção os formatos de filme
normalizados pela marca concorrente, era uma questão de sobrevivência no mercado,
imposta pelas leis da oferta e da procura, e que explica o formato em torno do qual os
irmãos trabalharam o seu novo invento – o filme americano de 35mm. Ironicamente a
sobrevivência da Eastman Kodak Enterprise ao longo do século XX parece dever-se,
em grande medida, ao invento dos seus rivais europeus.
O cinematógrafo surgia como uma máquina que aproveitava o melhor das
experiências dos anteriores pioneiros do cinema, era relativamente portátil, cumpria as
funções de captação de imagens e da respectiva projecção num grande ecrã. Estava
finalmente montada a base do sistema que iria durar até hoje. Toda a evolução
tecnológica do cinema, a partir deste momento, é de aperfeiçoamento e não lhe altera o
circuito comunicativo nem a linguagem visual base, embora alguns progressos, como o
som, tenham vindo acrescentar-lhe complexidade.
A 28 de Dezembro de 1895 acontece a primeira sessão pública de apresentação do
cinematógrafo, no Grand Café de Paris. A projecção de dez filmes, de cerca de quarenta
e cinco segundos cada, teve a aceitação imediata do público, como aliás tinham tido as
experiencias de Muybridge e de Edison. Mas, em relação aos anteriores, o
cinematógrafo é mais versátil, tanto no seu funcionamento e portabilidade como nas
possibilidades de representação. Industrialmente os custos de fabrico e utilização eram
bastante mais baixos, ainda assim eram suficientemente elevados para inviabilizar a
massificação das câmaras de cinema, tal como Eastman havia conseguido com as
câmaras fotográficas. Os planos de democratização do cinema, para os Lumière,
passaram pela produção e difusão de filmes em salas de projecção. Rapidamente
desenvolveram uma acção de divulgação do cinematógrafo à escala mundial e, nos
primeiros dois anos, o público de mais de duas centenas de países aplaudia a nova
experiencia (Cousins 2005). Mas será erróneo pensar-se que o sucesso dos Lumière se
deve apenas às suas diligências comerciais e ao desenvolvimento industrial e
tecnológico de determinados recursos; o sucesso do cinematógrafo está, principalmente,
na relação que conseguiu estabelecer com um vasto público que nutria um desejo antigo
de ver a realidade em movimento representada num ecrã.
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A relação entre fotografia e cinema pode ser estabelecida em diversos níveis e
define-se no contraste existente entre os objectos de comparação, tanto na sua
especificidade como dentro do seu campo geral. Em relação à fotografia, a pintura
levanta questões de representação e subjectividade, a literatura compara-se pelo
realismo e expressividade descritiva, a escultura difere na forma e no volume, e o
cinema opõe a imagem em movimento à imagem estática. É certo que esta é uma forma
redutora e limitada de colocar o problema comparativo, porém a evidência torna a
observação inevitável: a fotografia é o objecto livre do peso do seu tempo e do seu
espaço, o cinema é a representação do objecto num espaço durante um determinado
tempo.
Uma análise comparativa assente apenas nos aspectos tecnológicos da fotografia e do
cinema pode esgotar-se rapidamente nas potencialidades e limites dos mecanismos de
produção. Ninguém precisa de saber utilizar uma câmara para poder compreender uma
imagem, mas, paradoxalmente, o conhecimento do funcionamento dos seus mecanismos
básicos torna-se num instrumento fundamental de interpretação, útil para qualquer tipo
de análise – a configuração mecânica da fotografia e do cinema advém essencialmente
de processos de industrialização do século XIX; esse legado industrial é a matriz a partir
da qual ambos se desenvolveram, não só mecanicamente, mas também como linguagens
e, consequentemente, como culturas. A esfera industrial não é apenas o cenário
histórico, político e económico, é também a lei organizadora de todo o sistema
fotográfico e cinematográfico. Mesmo à entrada do século XXI, com a implementação
massiva dos processos digitais, pouco ou nada mudou na configuração industrial do
cinema e da fotografia, os sistemas digitais imitam os sistemas anteriores,
acrescentando-lhes novas opções técnicas e alterando a sua velocidade de
processamento; é no uso ou no abuso destas opções que se centra uma grande parte da
discussão contemporânea sobre o realismo na representação fotográfica.
Na arte e na literatura europeia do século XIX há uma transição do movimento
estético do Romantismo para o Realismo, sendo as fronteiras entre um e outro de
definição bastante problemática. A representação da realidade, com toda a
complexidade conceptual que lhe é inerente, balançava entre o estilo e a semelhança.
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Segundo André Bazin não existem vestígios desta discussão sobre a representação
realista, anteriores à invenção da fotografia, o mesmo afirma que: “[p]hotography and
cinema [...] are discoveries that satisfy, once and for all and in it’s very essence, our
obsession with realism” (Bazin 2005, 12). Não é certo que a simples presença da
fotografia tenha estimulado o início desta discussão, mas é certo que o realismo está
presente na reflexão contemporânea sobre a representação na fotografia. A
complexidade do conceito do realismo assenta no facto de a realidade ser um valor
subjectivo, discutível e não universal. Se a fotografia é um processo mecânico e a
formação da imagem não tem qualquer intervenção da mão humana, o fotógrafo não
deixa de ter um papel subjectivo e detectável na imagem que capta. Nos primeiros anos
de contacto do público com a fotografia, o valor material atribuído ao daguerreótipo,
que deixava a imagem para segundo plano como se fosse apenas o espírito daquele
objecto, parece ser um indício de que a imagem fotográfica ainda não era assunto de
debate aprofundado. Mais tarde, já depois de uma nova vaga de industrialização que
torna o daguerreótipo obsoleto, as palavras de Baudelaire confirmam a existência de
uma consciência das potenciais ambiguidades da imagem fotográfica. O cinema, ao
constituir-se de imagens fotográficas, importa todos os problemas filosóficos e todas as
ambiguidades da fotografia, aos quais acrescenta complexidade e novas variantes
lógicas a partir dos elementos específicos da sua cultura. O cinema é dependente da
fotografia, por outro lado, a fotografia não depende do cinema, embora se desenvolva
nos mesmos ambientes temáticos e recorra a motivos visuais semelhantes, talvez por
questões culturais ou talvez pelas características dos recursos tecnológicos que utilizam.
A 11 de Junho de 1895, o Congrès des Sociétés Photographiques de France, reunido
em Lyon, oferecia uma viagem de barco aos seus associados. Louis Lumière instalou o
cinematógrafo no cais e filmou o desembarque das várias dezenas de fotógrafos que, um
a um, pisavam terra firme. Alguns dão pela presença da câmara de filmar e acenam,
outros tiram o chapéu e outros fazem uma pequena vénia. Um deles, trazia o aparatoso
equipamento fotográfico consigo, abranda o passo, olha para Louis, aponta a objectiva e
dispara o obturador. Não é conhecido o paradeiro desta fotografia, nem sequer se sabe
se o fotógrafo disparou mesmo o obturador ou se apenas o simulou, mas, pela primeira
vez, ficou registada a imagem de uma troca de olhar entre a fotografia e o cinema. Há
neste gesto um campo especulativo em torno das possibilidades de rivalidade ou de
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cumplicidade entre a fotografia e o cinema, colocado por David Campany (Campany
2008), porém, a atitude cordial dos que acenam para a câmara de Louis Lumière
enquanto desembarcam no cais não parece revelar qualquer tipo de rivalidade. O cinema
não surgiu como ameaça à fotografia nem ao trabalho comercial dos fotógrafos, veio
antes afirmar-se, desde os primeiros instantes, como uma extensão das suas
potencialidades há muito desejada e agora conseguida; o cinema adquiriu ao longo do
tempo uma linguagem, uma ritualização e uma cultura singular, sem, no entanto,
esquecer o legado histórico, tecnológico e imagético da fotografia. Por outro lado, o
trabalho de muitos fotógrafos revela-se como uma aproximação clara ao cinema –
Nadar mostrou-o precocemente no século XIX e os exemplos que se multiplicaram ao
longo do século XX fizeram com que se dissipassem quaisquer dúvidas: Helmar Lersky,
Man Ray, Andy Warhol, Robert Frank, Hiroshi Sugimoto, Bernard Plossu, Larry Clark,
Wim Wenders, Cindy Sherman, Jeff Wall e Gregory Crewdson, entre muitos outros,
trabalham, cada um à sua maneira, nos limites das duas linguagens. A fotografia e o
cinema são como dois irmãos que a todo o momento celebram as suas semelhanças e
diferenças
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Bibliografia
AMAR, Pierre-Jean. 2001. História da Fotografia. Traduzido por Victor Silva. Lisboa:
Edições 70.
ANDREW, Dudley. 1984. Concepts in Film Theory. Nova Iorque: Oxford University
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BAUDELAIRE, Charles. 2006. A Invenção da Modernidade. Traduzido por Pedro Tamen.
Lisboa: Relógio d’Água.
BAZIN, André. 2005. What is Cinema, Vol.1. Trad. Hugh Gray. Londres: University of
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BENJAMIN, Walter. 1992. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Traduzido por
Maria Luz Moita, Lisboa: Relógio d’Água.
CAMPANY, David. 2008. Photography and Cinema. Londres: Reaktion Books.
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FONTANELLA, Lee. 1996. Charles Thruston Thompson e o Proxecto Fotográfico
Ibérico, A-Coruña: Centro Galego de Artes da Imaxe.
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RUBIN, James Henry. 2001. Nadar. Londres: Phaidon Press Ltd.
SONTAG, Susan. 2008. On Photography. Londres: Penguin Books Ltd.
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Fotografia e Cinema no século XIX – pontos de