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A psicologia das multidões do século XIX
3.1
Do indivíduo à multidão no século XIX
No capítulo anterior, foi possível acompanhar historicamente a
importância do individualismo na construção e na consolidação do mundo
moderno. De fato, essa noção encontrava-se intrinsecamente ligada ao
desenvolvimento do pensamento democrático-liberal na modernidade. Dentro
dessa perspectiva, o individualismo se expandiu por todo o corpo social nos
século XVII, XVIII e XIX, misturando-se à própria história da ideologia moderna
e terminando por tornar-se algo intrínseco à natureza humana. Entretanto, como
Elias (1987) apontou, a ideia de indivíduo foi construída ao longo da
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modernidade, sendo para Moscovici “a invenção mais importante de todos os
tempos” (Moscovici, 1981, p.25). Neste contexto, Simmel (1975[1957])
identificou dois tipos de individualismo que acompanharam as mudanças político
ideológico-sociais da história ocidental nos séculos XVIII e XIX. Fortemente
influenciadas pelos ideais da Revolução Francesa, pelo contrato social, pelo
liberalismo nascente e posteriormente pelo romantismo − que acentuou ainda mais
o caráter único do indivíduo − o individualismo firmou-se como produto último
da cultura moderna.
Entretanto, se por um lado a modernidade sustentou-se em seu
desenvolvimento econômico-social na noção necessária de indivíduo, as
transformações pelas quais o mundo moderno atravessou conduziram também a
uma nova preocupação, a questão do número 1 (Reynié, 1988). No período
medieval, os indivíduos se enquadravam em “solidariedades coletivas” feudais ou
comunitárias onde as noções de público e privado se confundiam sem haver
muitas distinções entre a vida privada e a vida pública (Ariés, 1995, p.7), o que
significava que muitos atos da vida cotidiana realizavam-se em público, em um
espaço comunitário (Elias, 1990). A partir da ascensão do ideário burguês e, mais
tarde, no século XVIII, do cultivo da privacidade, intimidade e autenticidade,
próprios do modelo individualista − atrelados ao iluminismo e ao romantismo da
1
“Question du nombre” do original em francês. Esse termo é também empregado nos estudos
sócio-históricos franceses sobre multidões e massas (Reynié, 1988, p.7).
50
modernidade − a experiência privada dos indivíduos passou a ser extremamente
valorizada e colocada em oposição à esfera pública totalmente diferenciada
(Sennett, 1998).
Justamente na esfera pública, especificamente através das transformações
desencadeadas no mundo moderno pela Revolução Francesa, observou-se a
questão das multidões pela primeira vez como fenômeno isolado (Canetti, 1960),
desencadeando grandes preocupações e inúmeras investigações ao longo do
século XIX. Foi a historiografia de Hippolyte Taine (1875-1893) − atualmente
denominada precursora dos estudos em psico-história na França 2 (Van Ginneken,
1992) − que, em sua investigação minuciosa do comportamento das turbas, dos
Girondinos e dos Jacobinos nos diversos episódios da Revolução Francesa,
chamou atenção do mundo moderno para o problema das multidões. Assim,
durante o século XIX, especialmente no último quarto, as preocupações e as
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investigações de intelectuais voltaram-se para esse novo foco de interesse. Se, por
um lado, a ideia de indivíduo já era uma noção incorporada ao corpo social da
época e, de um ponto de vista histórico-social, o individualismo é produto e
paradigma da modernidade, do outro, pode-se evidenciar que o surgimento da
ideia de multidão parece ganhar sentido apenas no século XIX. Isto é, embora as
multidões tenham sempre existido desde a Antiguidade Clássica (Moscovici,
1981), a ideia de multidão como uma entidade com comportamento e
características próprias só surgiu no contexto da modernidade do século XIX,
associada ao crescimento das cidades, ao progresso industrial, ao capitalismo e ao
advento do proletariado.
Assim como antes do Renascimento era impossível pensar na ideia de
indivíduo isolado, a noção de grupo, substrato da ideia de multidão − que é
considerada um grupo espontâneo, desorganizado − surgiu também apenas na
modernidade tardia. A partir da investigação realizada por Anzieu (1993) sobre as
origens da palavra grupo, é possível refletir sobre o surgimento dessa noção. De
fato, grupo é uma das mais recentes palavras das línguas ocidentais, tendo sido
importada da Itália para a França, no final do século XVII, para designar toda
2
Taine revolucionou a historiografia do século XIX ao imprimir um estilo totalmente original à
sua escrita em Les Origines de La France Contemporaine (1874-1893) mesclando a análise
histórica com a psicologia evolucionista da época. Suas obras exerceram uma influência
determinante na nascente psicologia das multidões de Sighele, Tarde e Le Bon (Van Ginneken,
1992).
51
reunião de pessoas vivas. Antes, as línguas antigas não dispunham de um termo
para designar uma associação ou agrupamento de pessoas. Fernández (2006)
acrescenta que a palavra groppo ou gruppo teve sua origem no Renascimento
italiano e, portanto, apenas na modernidade quando foi empregada para definir um
groppo escultórico, ou seja, um grupo de esculturas localizadas em um pátio ou
jardim, que adquiriam harmonia e significado plástico ou estético ao serem
rodeadas ou observadas de longe em seu conjunto (Fernández, 2006). Contudo,
somente a partir do século XIX − quando a sociedade volta-se para a observação e
a preocupação com o fenômeno das multidões − a palavra grupo adquiriu um uso
mais coloquial, sofrendo uma expansão vertiginosa em sua conceituação,
mantendo-se, porém, como um dos termos mais confusos da língua moderna, não
havendo até hoje um equivalente léxico para a ideia de um grupo pequeno ou
restrito. A ideia da inexistência de uma palavra que designasse os grupos até um
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período tão tardio da civilização conduz à reflexão de que os agrupamentos
adquiriram tardiamente na cultura relevância suficiente que permitisse que a
noção fizesse parte da produção de representações do mundo social.
Tal
evidência parece comprovar a hipótese de que as ideias de grupo e multidão
surgiram realmente tardiamente na história. Com efeito, é possível afirmar que as
transformações da Modernidade, o paradigma individualista e as consequentes
oposições cartesianas, em especial as que opõem indivíduo e sociedade ou
indivíduo e multidão, conferiram representação e destaque à multidão somente a
partir da Revolução Francesa, quando o fenômeno adquiriu significado no mundo
moderno.
3.2
O século XIX e o apogeu da civilização europeia: perspectivas e
medos
O século XIX foi o período marcado pelo impacto econômico e social
representado pela Revolução Industrial iniciada na Grã-Bretanha (1780) e pelas
mudanças político-ideológicas advindas da Revolução Americana (1775-1787) e
da Revolução Francesa (1789-1799). A Revolução Industrial foi responsável pelo
início da modernização econômica, da consolidação do capitalismo e da projeção
do poder ocidental, notadamente o europeu, no mundo. As Revoluções Americana
e Francesa, inspiradas na vertente liberal do iluminismo, desenvolveram e
expandiram o ideal de liberdade, igualdade de direitos, soberania popular e
52
democracia alterando radicalmente os fundamentos econômicos, sociais, políticos
e culturais do ocidente.
Em termos de análise histórica (Schneber, 1996), o século XIX abrangeu o
período de 1815 a 1914. Embora os conflitos entre o Antigo Regime e a ideologia
de 1789 ainda não estivessem terminados, a Europa da restauração do século XIX
encontrou uma fase de grande desenvolvimento e apogeu. Após a era
revolucionária e napoleônica, verificou-se uma progressiva transformação nas
técnicas de fabricação e transporte que, através das melhorias propiciadas pelos
inventos originários do século XVIII, realizaram vertiginosas transformações no
modo de vida europeu. A burguesia europeia começava a usufruir das vantagens
que a economia industrial e liberal podia proporcionar e o debate entre a ordem
tradicional e o liberalismo burguês se acirrava devido em parte à inquietude
despertada pela pobreza da crescente população urbana, fato que foi responsável
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por profundas mudanças político-sociais (Schneber, 1996).
A despeito de uma conjuntura econômica ainda um pouco desfavorável em
seu início, no decorrer do século, a Europa consolidou sua hegemonia no mundo
enquanto a burguesia atingia o poder nos países europeus onde predominavam as
atividades financeiras, o comércio e a indústria. A Revolução Industrial revelou a
ascensão do capitalismo, entretanto as terríveis condições sociais em que esta se
processou provocaram o nascimento de uma classe operária que a partir desse
momento passou a se opor à burguesia triunfante. O século XIX marcou ainda os
fundamentos do progresso e da independência americana e se, por um lado,
propiciou a eclosão da política colonialista europeia na África e na Ásia,
culminou, por outro, com o fim do escravismo nas Américas.
Desde o século XVIII, avançou o crescimento da população na Europa.
Se, por volta de 1700, eram 600 milhões de habitantes, em torno de 1800, o
número passou para 900 milhões. Esse número não cessou de aumentar ao longo
do século XIX principalmente devido ao progresso das pesquisas médicas e
científicas que terminaram por reduzir os anteriormente elevadíssimos índices de
mortalidade (Schneber, 1996). Em termos de investigação de patologias mentais,
o século XIX foi também fundamental para a diminuição do preconceito em
relação aos alienados dando espaço para o desenvolvimento das pesquisas de
Kraepelin, Janet, Charcot, Krafft-Ebing. A atmosfera cultural da Viena do final do
século XIX concentrava, no mundo ocidental, a fascinação pelas doenças mentais
53
e pelos problemas sexuais e conduziu, na virada do século, ao surgimento da
psicanálise (Bettelheim,1956).
O século XIX foi influenciado também pelo
romantismo surgido na Alemanha como expressão de uma inquietude e de uma
reação idealista à cultura racional iluminista. Pessimista, aristocrático,
impregnado de religiosidade e nostalgia tradicionalista, o romantismo sofreu
grande influência das correntes individualistas que enalteciam a cultura medieval
e a tradição clássica (Visentini & Pereira, 2008).
O intenso conflito em que se defrontavam − por um lado, o Antigo
Regime e seus prolongamentos coloniais e, de outro, as novas forças, burguesas e
populares − marcou o século XIX. De fato, o século em questão propiciou uma
profunda metamorfose nos indivíduos que, submergidos na multidão das ruas das
cidades em crescimento, nas oficinas, nas fábricas e nas aglomerações políticas,
deram lugar a um novo tipo de indivíduo. A mecanização rápida das indústrias,
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representada pela máquina a vapor e pela concentração de trabalhadores
assalariados, transformou as cidades em campos de batalha onde as classes
populares se confrontavam com a burguesia dando lugar à ascensão “virulenta e
maciça” da classe trabalhadora (Moscovici, 1981, p.34). De alguma forma, o
clássico trabalho de Tonnïes (1887), que apresentou a passagem da Comunidade
(Gemeinschaft) para a Sociedade (Gesellschaft), relata e metaforiza a transição
que se processava. Para Moscovici, (1981) a análise de Tonnïes descreveu o
momento em que uma coletividade espontânea e natural, fundamentada em
alianças de sangue, relações fraternas e coesão de crenças, deu lugar a uma
coletividade fria, artificial e coercitiva, repousada no contrato de interesses, num
sistema de vantagens mútuas e na lógica da ciência (Moscovici, 1981, p.33).
Assim, a modernidade tornou-se responsável pelo fim das antigas comunidades e,
a partir do século XIX, as cidades e as províncias tenderam a homogeneizar-se,
assemelhando-se nos valores, nos gostos e até na língua.
Os Estados Nacionais adquiriram no século XIX um papel muito
importante, dando origem ao espírito patriótico e ao surgimento dos
nacionalismos. A ideia de soberania nacional, de autonomia como expressão de
liberdade e uma concepção romântica de povo (volkgeist) contribui para a ideia de
nação dando novas bases para ao Estado moderno. O nacionalismo revelou uma
das principais ideologias do século e de início, ao potencializar fatores
etnográficos, linguísticos, religiosos e geográficos, acabou favorecendo uma
54
política de maior consideração às minorias religiosas propiciando, dentre outras
realizações, a emancipação dos judeus. Entretanto, de uma ideologia democrática
e progressista, gradativamente passou a uma força reacionária na Europa
(Stackelberg, 2002).
O declínio da fé tradicional, o desenvolvimento das instituições e do
ensino público, os progressos no pensamento livre e as lutas pelo sufrágio
universal marcaram a consolidação dos avanços liberais no século XIX. No
entanto esses avanços não ocorreram sem problemas e os ideais republicanos
custaram a consolidar-se nos países europeus. As conquistas da burguesia
firmavam-se lentamente através de processos evolutivos e de minirevoluções –
como as de 1820 e de 1830 (Visentini & Pereira, 2008).
A situação da Inglaterra no século XIX era bastante diferente dos demais
países europeus e foi através de um “esplêndido isolamento” (Visentini & Pereira,
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2008) que o país consolidou sua hegemonia na Europa e a Pax Britânica,
principalmente através das vantagens obtidas com a Revolução Industrial, o
liberalismo econômico e a política colonial. Do alto de sua primazia, a Inglaterra
vigiava a balança continental e exercia sua influência nos mares e demais
continentes, estruturando uma ordem mundial liberal e um “império informal”.
Por outro lado, a Alemanha chegou ao século XIX de forma muito distinta
da França ou da Inglaterra. Assim como nos Estados italianos, os alemães
encontravam-se defasados dos demais países europeus ocidentais em termos de
desenvolvimento histórico-econômico. O Sacro Império Romano-Germânico, que
havia encontrado grande importância ao longo dos séculos XVII e XVIII, tinha
sido esmagado pelo surgimento de novos centros econômicos na Europa
Ocidental, desintegrando-se em múltiplos Estados independentes, entre os quais
se destacavam a Áustria e a Prússia (Visentini &Pereira, 2008). Apesar de
diferentes projetos que visavam à unificação alemã, o país congregava variadas
etnias permanecendo fundamentalmente agrário e dominado por uma forte
aristocracia territorial. A unidade alemã dependia do fortalecimento político e
econômico de um Estado em que os ideais liberais tinham pouca penetração e a
defesa do princípio das nacionalidades se impunha. Ainda que rejeitassem a
ideologia da Revolução Francesa e se opusessem à França, a Prússia
desempenhou com afinco seu papel na modernização do Estado e, através de
Bismarck e do apoio das forças militares e conservadoras, sofreu um vertiginoso
55
desenvolvimento do capitalismo industrial consolidando a primazia do Império
Alemão ou Segundo Reich (Stackelberg, 2002). A Áustria encontrou um
desenvolvimento diferente e Viena, no final do século XIX, era um centro cultural
de prestígio, onde a música, o teatro e as artes alcançaram um florescimento sem
igual (Bethelheim, 1956).
Com efeito, a consolidação do capitalismo imprimiu uma nova
configuração econômico-social que teve efeitos visíveis para a sociedade do
século XIX. Dentre as principais mudanças é possível constatar o surgimento da
classe operária que passou a representar um novo e grave problema social,
gerando, no restante da população, um sentimento de insegurança e um temor
quanto à sua insurgência. Dessa forma, a época se caracterizou por uma crônica
efervescência e uma constante ameaça de insurreição popular que encontrou nas
manifestações de rua, nas lutas sindicais, nos motins, nas greves, nas revoluções
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de 1830 e 1848 e na Comuna de Paris (1871) seu modo de expressão (Visentini &
Pereira, 2008, p.72).
Esses episódios tiveram uma profunda repercussão e influenciaram
profundamente o pensamento da época, visível na literatura do século XIX. A
capacidade dos escritores de captar e antecipar os fenômenos das multidões e os
conflitos sociais que nelas estavam embutidos revelava o âmago do espírito da
época. Alessandro Manzoni, importante escritor do início do século XIX, através
de I Promesi Sposi (Os noivos, 1827) parece ter sido o primeiro a retratar as
características da multidão e seus líderes em um romance − no qual descreve um
episódio violento em que uma multidão faminta e reivindicatória, inflamada de
paixão e com capacidade intelectual comprometida diante da miséria e da fome,
destrói armazéns italianos − antecipando descrições que foram largamente
utilizadas no final do século pelos estudiosos das multidões (Nye, 1995).
Flaubert, em Educação Sentimental (1869) descreveu a clara conexão entre as
ações e declarações das multidões e suas reivindicações em torno de ideais como a
soberania democrática e foi também através dele que se pode conhecer o
magnetismo das multidões e seus irracionais estados de mente. No entanto, foi
Émile Zola, em Germinal (1885) e Le Débâcle (1892), que conferiu na literatura
destaque às histéricas e aos selvagens comparando seus comportamentos aos das
multidões, apresentando ainda, em diversas novelas, as delicadas dinâmicas
estabelecidas entre os líderes e a multidão (Nye, 1995). Alguns críticos literários,
56
como o português Torres (2007), apontam para a importância de Zola na
compreensão do tema ao afirmar que o autor foi capaz de penetrar profundamente
na psicologia das multidões ao descrever seu comportamento na pouco conhecida
novela Lourdes (1894), onde uma multidão pacífica e generosa reunia-se em torno
da promessa de uma religião mais justa estando pronta a ser conduzida por um
líder conservador (Torres, 2007, p.733). Em Lourdes, Zola foi original ao analisar
as características da multidão religiosa, capaz de estabelecer coesão e de
apresentar nobres ideais e conferir uma visão mais positiva, totalmente distinta do
senso comum da época que costumava enfatizar apenas os aspectos negativos e
aterrorizantes encontrados na multidão. Nesse sentido, Torres (2007) afirma que
Zola foi o primeiro autor a conferir outro olhar para as multidões, antecipando
uma mudança de tom nos estudos sobre o assunto.
No século XIX o inimigo parecia estar localizado na “hidra
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revolucionária” representada pelo proletariado (Schneber, 1996). Cada vez mais a
classe operária se inflamava de ideais de justiça em busca de maior igualdade
social. Nesse momento, as ideias marxistas exerceram um papel fundamental
propondo uma nova e transformadora ordem social. Dessa maneira, fazendo uso
das palavras de Marx sobre os movimentos revoltosos no século XIX, “a barbárie
reaparece, mas dessa vez é engendrada no próprio seio da civilização e dela faz
parte integrante” (Marx, 1846-7). Mais tarde, Engels (1842) afirmou que, no
século XIX, “a luta de classes entre o proletariado e a burguesia passa ao primeiro
plano na história dos países avançados da Europa” (Engels, 1987 [1842], p. 89).
Os conflitos entre capital e o trabalho desenvolveram-se na Europa no
período de 1815 a 1848. Da tensão entre o progressismo e o conservadorismo,
decorreram diversos movimentos revolucionários no estilo de conjuras,
sociedades secretas e barricadas que visavam solucionar o crescente
descontentamento das classes assalariadas (Visentini & Pereira, 2008). Esses
movimentos foram duramente atingidos em seus propósitos quando, em 1848,
Karl Marx (1818-1883) publicou o Manifesto Comunista. A teoria marxista
provocou uma revolução no pensamento moderno. Marx, Émile Durkheim e Max
Weber acabaram sendo considerados os arquitetos da moderna ciência social (Ho
Kim,2007). Marx realizou uma profunda crítica às sociedades capitalistas
tomando como base uma concepção materialista da história ao compreender de
forma dialética as inter-relações entre os processos sociais (Burguiére,1986).
57
O socialismo surgiu em uma época em que tanto o romantismo quanto o
anarquismo − ao qual Marx se opunha radicalmente (Schnerb, 1996) − eram
movimentos que representavam o espírito de época do século XIX. Foi, contudo,
nesse contexto, que as ideias radicais do socialismo se difundiram tendo como
pano de fundo a influência do êxodo do campo para as grandes cidades. Embora o
socialismo pudesse chegar ao poder por vias pacíficas, as revoluções do século
XIX apresentavam ruas repletas de uma multidão de agitadores e manifestantes
reivindicando mudanças que ameaçavam o status quo das classes dominantes.
Foi também durante o século XIX que o movimento anarquista ganhou
força transformando-se no “pior inimigo” (Blainey, 2005) das monarquias. Em
torno de 1880, através do príncipe russo, Kropotkin, o anarquismo se propagou
rapidamente pela Europa (Tarde, 2005, p.175). Presentes na Itália, na França e na
Espanha onde se aliaram de início aos socialistas, os anarquistas desprezavam a
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propriedade privada e os parlamentos, bem como nutriam rancor pelos líderes
nacionais. Suas armas consistiam na insuflação de greves gerais e pelas mãos dos
anarquistas muitos líderes nacionais foram assassinados. Os mais radicais já eram
chamados na época de terroristas e suas ações despertavam o temor da população
levando os intelectuais da França e da Itália às primeiras investigações sobre o
assunto (Laqueur, 1977). Tanto nos textos de Gabriel Tarde (1892) e Gustave Le
Bon (1895) quanto nas análises sobre as multidões criminosas de Scipio Siguele
(1891) indagações sobre o comportamento dos anarquistas estavam presentes
fossem, como pano de fundo para o surgimento de investigações sobre as
multidões e o crime, fossem como ameaça à sociedade do final do século XIX.
Nesse sentido, é possível afirmar que as ações do movimento anarquista, que
provocavam pânico e incerteza, representavam as aspirações de uma sociedade em
mudança prenunciando as transformações que ocorreriam ao longo do século XX.
Assim, foi na França do século XIX, através do embate entre
conservadores e liberais, quando os movimentos populares ganharam força, que a
pesquisa sobre a psicologia das multidões se desenvolveu. Seu surgimento se
encontra, portanto, diretamente ligado às profundas mudanças que ocorreram ao
longo do século XIX, especialmente na França. Por outro lado − guardando a
mesma perspectiva de análise psico-histórica (Van Ginneken, 1992; Lowenberg,
1996) − é possível observar que as diferenças e especificidades que envolveram o
desenvolvimento antiliberal e antidemocrático da Alemanha e em parte da Itália
58
(Stackelberg, 2002) no século XIX permitiram compreender como a psicologia
das multidões do século XIX transformou-se na psicologia das massas do século
XX. Isto é, na Europa Ocidental, os desdobramentos da política das
nacionalidades no século XIX acabaram sendo responsáveis no século XX pelo
desencadeamento de duas Guerras Mundiais e por genocídios em massa que
transportaram o estudo da psicologia das multidões para o âmbito da psicologia
das massas.
Dessa forma, é visível que, a partir do século XX, a influência da
psicanálise freudiana, da teoria marxista e da Escola de Frankfurt permitiu que
novos instrumentos de análise fossem desenvolvidos para a compreensão do
comportamento das multidões conferindo ainda um novo status para o que se
transformou, ao longo do século XX, na psicologia das massas. Ainda dentro
dessa nova perspectiva, o foco de análise acabou deslocando-se e concentrando-se
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no estudo do papel das lideranças, bem como na necessidade de controle e
domínio das massas. Nesse aspecto, a psicologia das multidões do século XIX,
através das ideias de Tarde e Le Bon, contribuiu largamente para que a psicologia
das massas do século XX ganhasse forma.
Dessa maneira, o que de início era visto como uma multidão ameaçadora
pelas forças conservadoras ameaçadas em seu status quo resultou na formação de
um novo foco de interesse e estudo que teve importância fundamental ao longo do
século XX, levando autores como Moscovici (1981) a afirmar que, no início do
século XX, era segura a vitória das massas (Moscovici, 1981, p.9).
3.3
O surgimento da psicologia das multidões no século XIX
Desde a Revolução Francesa, a história dos confrontos de multidões
chamava a atenção de historiadores, fosse pelas manifestações espetaculares de
violência coletiva, fosse pelo horror e pelo temor que a visão da barbárie
provocava ou ainda apenas pelo mero interesse que os fat divers, apresentados nos
mais variados episódios de violência coletiva, despertavam na curiosidade dos
seres humanos (Farge, 1986). O florescimento da história das mentalidades
permitiu que se lançasse um olhar contemporâneo às diversas formas de violência
ordinária e cotidiana que passaram a ser definidas como constitutivas das relações
sociais. Isto é, tal forma de visão dos fatos estendeu a compreensão das relações
59
de violência no âmbito da vida civil, econômica e do trabalho. Por outro lado, a
análise das instituições repressoras e dos dispositivos de poder apresentados por
Foucault (1969, 1979) na década de 70 revolucionou a maneira de pensar a
questão da violência e das relações de poder. De fato, a violência é parte
constitutiva do contrato social (Farge, 1986) e sua investigação propiciou a
compreensão das relações entre forças no seio das sociedades. Nesse sentido, o
interesse despertado pelas manifestações coletivas e o medo e o horror da
insurreição das multidões no século XIX despertaram a atenção dos historiadores
e intelectuais da sociologia nascente da época para o estudo da psicologia das
multidões dando início às investigações sobre o tema e à preocupação com a
compreensão dos comportamentos coletivos.
Entretanto, até que a multidão fosse objeto de reflexão teórica, um longo
caminho teve de ser percorrido para que a questão do número (Reynié, 1988)
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fosse considerada um elemento importante. Assim, a partir dos movimentos
revolucionários iniciados em 1789, a questão do número entrou na cena política e
inaugurou o estudo de novas disciplinas como a estatística social, a teoria do
direito e a teoria política, inspirando ainda a literatura e a teoria literária e
conferindo uma identidade aos seres humanos quando agrupados. Contudo, o
século XIX foi o século das teorias pessimistas do número, que sempre
associavam a multidão à barbárie, à violência e à irracionalidade (Wolton, 1989).
Reynié (1988) apontou que, antes do aparecimento do Estado Moderno, no
período precedente à Revolução Francesa, a questão do número era apenas um
problema administrativo, relacionado à repartição de massas populacionais, ao
equilíbrio urbano, à higiene ou meramente à avaliação estatística. A partir do
período revolucionário do final do século XVII, ela entrou definitivamente na
cena política e desde então não se fez mais política sem se considerar o papel das
multidões (Wolton, 1989). Nesse sentido, é possível compreender a afirmação de
Moscovici (1981) de que “a psicologia das multidões é como a economia política,
uma das ciências do homem cujas ideias tem feito história, quer dizer tem
marcado de maneira concreta os feitos de sua época” (Moscovici, 1981, p.29).
No entanto, até que as multidões passassem a se constituir objeto de
investigação científica, inúmeras questões sobre seu comportamento foram
enunciadas ao longo do século XIX, podendo ser resumidas numa pergunta: o que
é uma multidão? (Moscovici, 1981, p.98). A resposta a esta pergunta resultou em
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três linhas de pensamento consideradas a princípio insuficientes por Moscovici
(1981), mas, cujo desfecho resultou no surgimento da ciência das multidões.
A primeira tentativa de definição das multidões afirmava que “são
conglomerados de indivíduos que se reúnem à margem das instituições e contra as
instituições (...) são associais e formadas por associais” (Moscovici, 1981, p.98).
Nesse sentido, eram o resultado da decomposição dos grupos e das classes sociais
e correspondiam à plebe, ao “populacho” ao lumpenproletariat (Moscovici, 1981,
p.98). Eram homens e mulheres sem identidade reconhecida à margem do tecido
social, retirados dos guetos, vivendo fora da lei e dos bons costumes. Eram
perturbações, rupturas no funcionamento da sociedade, representando desordem
social e hostilidade. Dessa forma, as multidões não podiam constituir matéria de
ciência ou mesmo um fenômeno novo ou importante a ser investigado, sendo
assim, vistas apenas como epifenômenos (Moscovici, 1981, p.99).
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A segunda resposta à pergunta inicial afirmava que as multidões eram
loucas e alimentavam sonhos obscuros, reunindo fãs enlouquecidos ou pessoas em
delírio em torno de um líder. As multidões extravagantes revelavam proezas ou
atos criminosos na mesma proporção e seu caráter fora do comum, delirante e
patológico sempre encantou a sociedade. Entretanto, afora este caráter
espetacular, não deveriam despertar nenhum outro interesse (Moscovici, 1981).
Já a terceira resposta − a de que as multidões eram criminosas, capazes
de destruir tudo o que vissem pela frente ou de cometer os crimes mais terríveis,
resistindo à autoridade e às leis − mereceu maior destaque, pois foi através dessa
ideia que o estudo das multidões transformou-se em uma nova ciência no século
XIX (Moscovici, 1981, p.101). Assim, embora, desde a Revolução Francesa, já se
pensasse no caráter criminoso das multidões e já houvesse inúmeros relatos e
descrições sobre o comportamento histérico e violento das multidões (Taine,
1875-1893, Van Ginneken, 1992), é possível observar que, no final do século
XIX, os fenômenos de multidão se multiplicavam, assustando as autoridades
temerosas em relação aos políticos extremistas e a democracia liberal e instigando
os intelectuais e a população em geral. A observação de que por sugestão os
indivíduos comuns poderiam se transformar dentro da multidão, apresentando
comportamentos atemorizantes, colocou em pauta a metamorfose experimentada
pelos indivíduos nas aglomerações dando lugar ao surgimento da psicologia das
multidões.
61
Assim, a nova disciplina veio dar sentido a ideias que já eram conhecidas e
debatidas tanto pela historiografia quanto pela literatura francesa quase cem anos
antes. Entretanto, a importância e a sedução da psicologia das multidões devem-se
à cumplicidade de toda uma sociedade com um temor e um forte sentimento
vivenciado na época − e que fazia parte do inconsciente social do século XIX −
que atribuía às multidões tendências assustadoras que levavam os indivíduos a
manifestar comportamentos aparentemente inexplicáveis (Moscovici, 1981).
Dessa forma, principalmente na França, com Henri Fournial (1866-1932),
Gabriel Tarde (1843-1904) e Gustave Le Bon (1841-1931), e na Itália, com
Cesare Lombroso (1835-1909) e Scipio Sighele (1868-1913), surgiu uma geração
de intelectuais dedicada ao estudo das multidões. Foi, contudo, necessário esperar
que o século XX chegasse para precisar seu sentido e conferir ao estudo uma
acepção mais científica (Moscovici, 1981, p.13). Vale ressaltar que o viés
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investigativo centrado na psicologia das multidões no século XIX coincidiu com o
nascimento das ciências sociais na França e com o estudo da criminologia
inaugurando um período criativo e profícuo no campo da psicologia coletiva.
A caracterização das massas como irracionais ou selvagens por natureza
dominou por muito tempo o pensamento de seus estudiosos no século XIX,
levando-os a erigir uma ciência da multidão centrada inicialmente em torno da
interpretação do comportamento coletivo como um fenômeno patológico. Embora
na atualidade muitas interpretações sobre o comportamento das multidões já
possam ser enunciadas dentro de outros critérios de análise, segundo Nye (1995),
essas afirmações ainda se baseiam em visões essencialmente polarizadas. As
multidões ainda são vistas como: “racionais ou irracionais, anômicas ou
extremamente motivadas, extensões do comportamento social ou excrescências
patológicas” (Nye, 1995, p.6). Nesse sentido, Moscovici foi preciso:
(...) urbanas ou trabalhadoras, as multidões foram psiquiatrizadas e criminalizadas
de um só golpe no século XIX. Pode-se observar nelas sintomas de patologia e
desvio da conduta normal. Tratam-se de excrescências insanas em um corpo são,
e se deve expulsá-las o quanto antes. Em suma, plebeias, loucas ou criminosas as
multidões se consideram resíduos, enfermidades da ordem social existente. Não
têm nem realidade, nem interesse por si mesmas (Moscovici, 1981, p.101).
Assim, somente no século XX, a corrente pessimista e o temor outrora
associado às multidões serão substituídos − através da influência da ciência da
opinião e da propaganda − pela exploração política e pelo controle exercido por
62
lideranças carismáticas. Dessa forma, o que era temido no século XIX passará a
ser manipulado, controlado e docilizado no século XX.
Antes de aprofundar a investigação é importante ressaltar que os termos
massa e multidão são empregados pelos autores ora como sinônimos − como o fez
Moscovici (1981) ao afirmar que “uma multidão, uma massa, é o animal social
que rompeu suas rédeas” (Moscovici, 1981, p.13) − ora de forma diferenciada
quando optam por empregar um dos termos. Dessa maneira, é possível encontrar o
termo multidão tendo sido empregado nas análises de Siguele, Tarde, Le Bon e
Moscovici. Por outro lado o termo massa foi empregado por Freud, Ortega Y
Gasset e os frankfurtianos, o que parece evidenciar que o termo multidão tenha
sido empregado nas primeiras investigações realizadas no final século XIX
enquanto que o termo massa passou a ser utilizado nas análises empreendidas a
partir do século XX, quando o estudo do tema recebeu novo status acadêmicoPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA
científico.
3.3.1
Gabriel Tarde: as leis da imitação, a ciência da opinião e as
multidões
Nascido em Sarlat, Gabriel Tarde (1943-1904) foi um jurista, filósofo e
sociólogo francês e um dos primeiros pensadores da criminologia moderna. Sua
trajetória escolar revelou um aluno brilhante e, se, por um lado, a saúde frágil o
prejudicou, por outro, propiciou tempo disponível para o estudo de Leibniz (16461716), que notadamente influenciou seu pensamento. Paralelamente à carreira de
magistrado, Tarde desenvolveu estudos sobre a criminologia, ciência que
avançava na época. Inicialmente adepto, mas depois adversário das premissas de
Alexandre Lacassagne (1843-1924) e Cesare Lombroso (1835-1909), rejeitou
veementemente as teorias que remetiam à origem psíquica e biológica da
criminalidade preferindo valorizar seus aspectos sociológicos e psicológicos.
Enquanto Lombroso acreditava que as multidões eram compostas de indivíduos
com tendências delinquentes, postulando a inclusão da psicologia das multidões
como parte da antropologia criminal, Tarde (1894) defendia a importância do
“meio social” em detrimento da valorização conferida pela escola italiana aos
caracteres biológicos na explicação do crime, analisando o comportamento das
multidões sobre um viés mais analítico e comportamental.
63
Contemporâneo, interlocutor e opositor de Durkheim (1858-1917), Tarde
participou dos primeiros debates que deram origem ao nascimento da sociologia
francesa. Sua obra As Leis da imitação (1890), em que descreveu a relação entre
os comportamentos sociais e as tendências psicológicas individuais, transformouo em um dos grandes atores dos debates da segunda metade do século XIX nos
meios intelectuais. Apesar do pensamento sociológico de Tarde ter se mantido
eclipsado no século XX em função da escola durkheimiana, atualmente sua obra
vem sendo redescoberta e reeditada na França − numa verdadeira “tardomania”
como enunciou Mucchielli (2000, p.161) − e sua influência é notável entre autores
que trabalham nas fronteiras da sociologia e da psicologia. Nos Estados Unidos,
tem sido visto como um dos fundadores da psicologia social e, na França, foi
redescoberto a partir dos anos 60 por Gilles Deleuze e mais recentemente por
Bruno Latour, que fez de Tarde um dos precursores da teoria de l’ácteur-réseau 3
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(Reynié, 1988, p.92; Latour, 2001). Na opinião de Mucchielli (2000), além de
poder ser considerado hoje como o precursor da sociologia moderna, suas análises
serviram de inspiração para Michael Maffesoli (2000) forjar o conceito de tribo
(Mucchielli, 2000, p. 160).
De fato, Consolim (2008a) aponta para a posição central de Tarde no
campo intelectual parisiense em torno de 1890. As ideias do autor representavam
uma importante solução ideológica para os debates que ocorriam no combate
republicano contra o socialismo. As opções teóricas de Tarde se afinavam com a
modernização conservadora da época e suas ideias tiveram papel fundamental
para o amplo movimento de oposição à sociologia durkheimiana. Em uma época
em que a ascensão institucional dependia de intrincadas relações de poder e
posicionamentos
políticos,
Tarde
consolidou
uma
carreira
onde
seu
conservadorismo intelectual e social foi determinante e sua legitimidade decorria
do compromisso com valores científicos e republicanos em oposição ao
socialismo, ao darwinismo social e a Durkheim. Mesmo não tendo constituído
uma escola ou tendo feito discípulos, podendo ser visto como um outsider, Tarde
ocupou uma posição de destaque nas ciências sociais, sendo responsável pela
criação do termo “psicologia social” (Consolim, 2008a, p.15).
3
A teoria de ácteur-réseau, ator-rede em português, vem sendo desenvolvida por Bruno Latour
para descrever uma forma de investigação sociológica, influenciada pelo pragmatismo, onde não é
o pesquisador que estabelece os parâmetros a serem investigados, mas os atores envolvidos no
processo (Latour, 2001).
64
A diversidade psicológica dos indivíduos era em Tarde (1890) a instância
básica das agregações coletivas. A realidade social não era uma construção
homogênea que se impunha ao indivíduo, mas o resultado de laços sociais
dinâmicos como a invenção, a imitação, a resistência e a adaptação, frutos da
interação entre os indivíduos. Nesse sentido, a realidade social e o consenso
democrático eram construções progressivas dos indivíduos baseadas em processos
de imitação e nas condutas pessoais. Foi assim que Tarde propôs, em As Leis da
Imitação (1890), duas noções para explicar os movimentos sociais: a imitação e a
invenção. A imitação seria o princípio constitutivo das comunidades humanas,
que seriam definidas como: “uma coleção de seres na medida em que estão se
imitando entre si” (Tarde, 1979, p.76). A inspiração para a ideia de imitação em
Tarde estava diretamente relacionada à filosofia de Leibniz na medida em que
retomou o conceito de mônada 4 (1714) para conceber os indivíduos como um
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grande conjunto de reflexos que interagiam como num jogo de espelhos, onde
“cada indivíduo se vê e se espelha no semelhante, julga e é julgado pelo outro, de
maneira que naturalmente se observa e se reconhece no outro, fazendo como o
outro” (Wolton, 1989, p.5). Assim, Tarde acreditava que a história se apresentava
como uma sucessão de fluxos imitativos diferentes, ou seja, uma sucessão de
modelos que podiam ocasionar imitação por um grande número de indivíduos.
Em Tarde, portanto, “a imitação é o próprio vínculo social” (Tarde, 2005,
p.XXI) estabelecido através da opinião pública e não a partir uma verdade
determinada aprioristicamente. Isto é, a opinião seria criada no seio da sociedade
sendo veiculada, transmitida e legitimada por ela em conjunto com todo o seu
sistema de crenças e valores. A opinião, a ideia 5 ou o desejo de um tornaria-se
gradativamente a opinião, a ideia ou o desejo de um grande número de pessoas.
Assim, o futuro de uma inovação seria a sua propagação universal, facilitada pela
sugestão, levando Tarde a afirmar que “o fenômeno da imitação de um indivíduo
pelo outro e depois por uma multidão, provém da sugestão que não é nada mais do
que uma forma de sonambulismo e depois de hipnotismo” (Tarde, 1890). Nesse
4
A contribuição mais importante de Leibniz para a metafísica é a sua teoria sobre as mônodas,
expostas em sua obra Monadologia de 1714. As mônadas estão para a realidade metafisica da
mesma forma que os átomos estão para os fenômenos físicos sendo os elementos de todas as
coisas. As mônadas são formas, substâncias simples que fazem parte das compostas e por isso são
eternas, indivisíveis, sujeitas às suas próprias leis, sem interação mútua, cada uma refletindo o
próprio universo dentro de uma harmonia pré-estabelecida (Marcondes, 2006)
5
Reynié (2005, p.XVII) aponta em Tarde uma equivalência entre os conceitos de opinião e ideia,
que são a todo momento substituídos um pelo outro e empregados indiferentemente.
65
aspecto, Tarde se afinava com o pensamento de sua época quando as pesquisas de
Bernheim, Richet e Binet sobre a hipnose ganhavam corpo e a importância do
fenômeno da sugestão e da sugestionabilidade das multidões ganhavam relevo.
Entretanto, foi através da imitação que sua obra se aproximou da
psicanálise nascente. Nesse sentido, a imitação seria fundamental para a
compreensão do fenômeno das multidões e é possível constatar que a maneira
como o autor a concebeu se assemelha ao conceito de identificação postulado por
Freud em Psicologia de Grupo e Análise do Ego (1921). A semelhança entre os
conceitos de imitação em Tarde e identificação em Freud levaram o suíço Fischer
(1961, apud Moscovici, 1981, p.321) a postular uma continuidade entre os dois
conceitos. De fato, a importância que Tarde conferiu à imitação, chegando a
considerá-la como o “vínculo social em si” (Tarde, 2005, p.XXI), pode ser
remetida à identificação apresentada por Freud como “a mais remota expressão de
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um laço emocional” (Freud, 1921, p.133), ou seja, como origem do laço social por
excelência. De fato, Freud conhecia as ideias de Tarde chegando a citá-lo em
Psicologia de Grupo e Análise do Ego (1921), contudo foi categórico ao afirmar
que o que o autor denominava de imitação, ele chamava de sugestão (Freud, 1921,
p.113). Entretanto, após uma investigação mais apurada da obra tardeana, é
possível afirmar que os dois conceitos não são equivalentes como Freud supunha.
Embora o conceito de identificação só tenha sido devidamente explicitado em
1921, ele remonta, em Freud, à Interpretação dos Sonhos (1900) sendo
provavelmente contemporâneo ao desenvolvimento da ideia de imitação de Tarde.
Em A Opinião e as Massas (1895), encontram-se reunidos textos de
Gabriel Tarde sobre opinião e multidão que representaram um marco na teoria
sociológica de grande número (Reynié, 2005). Muitos dos textos ali apresentados
giravam em torno da psicologia coletiva, em especial o estudo sobre O público e a
multidão de 1898, bem como As multidões e as seitas criminosas de 1893. Em
termos gerais, os trabalhos de Tarde reuniam reações contra o temor de uma
desordem fatal que as multidões do século XIX ameaçavam produzir apontando
ainda para a importância da opinião pública e da crescente formação de públicos
que mobilizavam a intelectualidade da época. Essa questão foi ilustrada através do
66
emblemático caso Dreyfus 6 (1859-1935), que acirrou debates e dividiu a opinião
pública e a elite intelectual francesa. As batalhas políticas e de opinião em torno
do “affair Dreyfus” deram vida ao nascente antissemitismo moderno, favorecendo
ainda a disputa pública entre agitadores de esquerda e políticos conservadores
que, a partir desse episódio, passaram a se utilizar de uma retórica própria para
mobilizar e manipular grandes multidões (Nye, 1995). Na verdade, Nye (1995)
afirma sobre o episódio que “a política de massas moderna e todas as questões
relacionadas aos ódios nacionais, conflitos de raça ou classe, tiveram sua origem
no “cadinho” do caso Dreyfus” (Nye, 1995, p.13).
A opinião, em Tarde (1894), propagava-se graças ao movimento social da
imitação que se produzia a cada instante e de forma imperceptível. Assim, toda a
vida social e, por conseguinte, toda a opinião reduzia-se a uma sugestão. Uma
opinião poderia nascer do encontro de uma ideia e de um indivíduo e poderia ou
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não coincidir com uma opinião já existente, propagando-se como ideia/opinião
nova reforçando ou não o status quo. O que importa é que a lei da imitação
caracterizaria o movimento, o fluxo e o refluxo das ideias e necessidades, gostos e
crenças nas sociedades (Tarde, 1890). Seria como se as leis de imitação
correspondessem a um ideal de progresso do século XIX em que a aceleração e a
circulação de opiniões estivessem acompanhadas da diminuição das fronteiras
sociais, ampliando a propagação de ideias acima de credos, clãs ou classes sociais.
Nesse sentido, as leis de imitação de Tarde foram precursoras de fenômenos
contemporâneos tais como a moda, a volatilidade de ideias, ideais e crenças.
Assim, se antes a imposição de opiniões ou ideias se fazia de forma autoritária, a
partir das observações de Tarde, ela passou a se dar de forma persuasiva através
da opinião pública.
Dessa forma, é possível constatar em Tarde a impossibilidade da livre
escolha das opiniões, marcadas em grande parte pelo fenômeno da imitação.
Nesse sentido, Tarde é bastante atual, pois suas concepções remetem às críticas ao
6
O caso Dreyfus teve como origem um erro judicial em que a vítima foi o capitão Dreyfus. O
episódio dividiu a sociedade francesa durante doze anos (1894-1906). A revelação do escândalo
através de um artigo de 1898, J´Accuse, de Emilé Zola, provocou uma série de crises sociais e
políticas inéditas na história da França, dividindo duramente a opinião pública e a imprensa em
campos opostos. O caso Dreyfus expôs as fragilidades da Terceira República, revelando ainda,
com a ajuda de uma imprensa forte e influente, o nacionalismo e o antissemitismo francês.
67
individualismo moderno, desferindo um golpe mortal nas crenças de liberdade e
igualdade do homem do Iluminismo, visto como senhor de sua racionalidade e
destino. Além disso, a psicologia das multidões em Tarde revelou a
impossibilidade da existência do indivíduo sem o social, corroborando com as
ideias desenvolvidas no mesmo período na Alemanha por Simmel (1908) sobre a
sociedade e as formas de sociação, bem como com a teoria das figurações
proposta anos mais tarde por Elias (1970).
A concepção tardeana contribuiu para a emergência de uma teoria
moderna sobre a opinião pública dando-lhe um conteúdo sociológico ao
transformá-la em objeto de estudo. Tarde foi o primeiro autor a teorizar sobre uma
nova forma de relação social de massa que ele nomeou de público. Pela primeira
vez na história, as multidões não precisavam mais se encontrar reunidas em um
mesmo lugar e, através da noção de público, foi possível imaginar multidões
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dispersas, sem contato físico, mas que, no entanto, apresentavam características
similares as das multidões reunidas. Assim para Tarde, desde a invenção da
imprensa, começou a aparecer um tipo de público completamente distinto, que
não parou de aumentar e cuja extensão indefinida foi uma das marcas
características de seu tempo, configurando o que passou a denominar, não mais
psicologia das multidões, mas a psicologia do público. Essa observação o levou a
concluir, diferentemente de Le Bon, que imaginou o século XIX como a era das
multidões (Le Bon, 1895), que o século XIX constituía a era dos públicos (Tarde,
2005, p.14). Nesse sentido, Reynié (2005) afirma que o trabalho de Tarde
apresentou os primeiros elementos de uma nascente ciência da opinião pública.
Contudo, ao desenvolver sua análise apoiando-se nas semelhanças e nas
diferenças entre público e multidão, ofereceu uma análise do público que só
enriqueceu e pormenorizou o estudo das multidões. Em suma, embora as ideias de
Tarde fossem de grande interesse por terem sido precursoras do desenvolvimento
da ciência de opinião pública, da propaganda e dos estudos sobre as sociedades de
massa no século XX, o que mais interessa captar em sua obra são as análises da
imitação, do contágio, da sugestão e da hipnose, fenômenos cruciais na
investigação das multidões, temas que serão discutidos em Tarde.
Desde a Idade Moderna, surgiu um público diferente que se multiplicou de
forma indefinida e que aos poucos se disseminou entre os indivíduos criando
correntes de opinião (Tarde, 2005, p.6). A esses fenômenos Tarde deu o nome de
68
multidão e, em sua visão, parecem ser constituídos de um feixe de contágios
psíquicos produzidos por contato físico. Na verdade, o vínculo estabelecido entre
os indivíduos nas multidões seria da ordem de uma simultaneidade de convicções
ou paixões, de vontades compartilhadas, transmitidas por contágio, em um mesmo
momento por um grande número de homens.
Segundo Tarde (2005), não existia palavra em latim ou grego que
correspondesse ao que hoje se entende por público, embora na Antiguidade
existissem palavras que designassem povo, assembléias, corpos eleitorais ou até
mesmo multidões. De fato, multidões parecem ter existido desde os tempos do
Coliseu romano ou mesmo das audiências que ocorriam em torno de Péricles ou
Cícero. Na Idade Média, também não havia a noção de público embora possam
ser encontradas descrições de “feiras, peregrinações de multidões tumultuosas,
dominadas por emoções piedosas ou belicosas, cóleras ou pânicos” (Tarde, 2005,
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p.10). A noção de público como tal, só se constituiu no Antigo Regime por volta
do reinado de Luís XIV quando então multidões corriam para presenciar a
coroação de reis nas grandes festas ou nas insurreições. No entanto, somente a
partir da Revolução Francesa, que a ideia de público tomou corpo em função da
influência da imprensa e do jornalismo que tiveram grande importância no
desenrolar da Revolução. Nesse sentido, é possível constatar na análise de Tarde a
estreita correlação entre público e multidão, que aparecem aqui como
praticamente equivalentes. Entretanto, a partir do século XIX, o aperfeiçoamento
da locomoção e a rapidez nas comunicações tornaram possível a transmissão de
ideias a todos os públicos. Para Tarde (2005 [1894]), foi nesse momento que se
estabeleceu a diferença entre público e multidão:
A multidão é o grupo social do passado; depois da família, é o mais antigo de
todos os grupos sociais. Ela é incapaz de se estender além de um pequeno raio,
quando seus líderes cessam de tê-la in manu e quando ela deixa de ouvir a voz
deles, a multidão desaparece (Tarde, 2005 [1894], p.13).
Em Tarde (2005[1894]), a multidão era a forma de agrupamento mais
natural que poderia ser encontrada na história sendo diferente de outras
aglomerações sociais. Dentro dessa perspectiva, passantes em uma rua
movimentada, viajantes reunidos em uma estação de trem ou em um vagão,
camponeses em uma feira estavam agrupados fisicamente, mas não socialmente.
Embora não se conhecessem ou não houvesse nenhum grau de cooperação entre
69
eles, essas pessoas carregavam consigo a virtualidade de um agrupamento social
(Tarde, 2005 [1894], p.148). Assim, se a ocasião exigisse, essas pessoas poderiam
se associar espontaneamente formando uma multidão. Desse modo, através de
uma série de graus intermediários, um agregado rudimentar, fugaz e amorfo pode
se tornar uma multidão que, mais tarde, se estiver suficientemente organizada,
poderá se transformar em um grupo organizado, que o autor denominou de
corporação monástica ou regimental (Tarde, 2005 [1894], p.146).
Os membros de uma multidão eram considerados por Tarde (2005 [1894])
inferiores em inteligência e em moralidade, apresentando, por um lado, uma
previsibilidade e, por outro, uma instabilidade em seu comportamento. A
previsibilidade do comportamento de uma multidão podia ser associada à questão
da nacionalidade, já que o comportamento dos indivíduos em uma multidão
decorria em grande parte de similitudes étnicas apresentadas que se somavam ou
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se reforçavam e nunca por suas diferenças que, na multidão, neutralizavam-se.
Isto é, Tarde acreditava que as individualidades em uma multidão tendiam a se
atenuar em proveito de um “tipo nacional” (Tarde, 2005, p.16) que eliminaria as
diferenças e tenderia a sobressair-se no comportamento da multidão. Nesse
sentido, Tarde apontou para o caráter previsível do comportamento dos indivíduos
na multidão, tais como a obediência ao líder e a tendência à homogeneização que
podem ser determinadas em função da similaridade da raça e de nação. Num
primeiro momento, este tipo de perspectiva − adotada tanto por Tarde quanto por
Le Bon − que associava o comportamento das multidões às especificidades da
raça, parece conservador e ultrapassado, fruto de pontos de vista em voga no
século XIX devido à influência do darwinismo social. Entretanto, dentro de uma
visão contemporânea, pode remeter às reflexões em torno do inconsciente social
(Weinberg, 2007; Hopper & Weinberg, 2011) de culturas que têm seu
comportamento afetado e influenciado por restrições e repressões de ordem
inconsciente que determinam as atitudes de um grupo ou nação específica. Nesse
sentido, o que, no século XIX, era atribuído à raça nas diferenças encontradas no
comportamento das multidões, no século XXI, pode girar em torno de
especificidades e diferenças culturais.
Além disso, Tarde estabeleceu ainda uma correlação entre as diferenças e
oscilações de comportamento apresentadas pelas multidões e características
encontradas no universo feminino e animal:
70
A multidão entre as populações civilizadas é sempre uma mulher selvagem ou
uma faunesa, menos que isso, um bicho impulsivo e maníaco, joguete de seus
instintos e de seus hábitos maquinais, às vezes um animal de ordem inferior, um
invertebrado, um verme monstruoso em que a sensibilidade é difusa e que
continua a agitar-se em movimentos desordenados depois de secionada sua
cabeça, confusamente distinta do corpo (Tarde, 2005 [1894], p.IX).
Assim, em Tarde, “a multidão é feminina” (Tarde, 2005 [1894], p.172)
caprichosa, docilmente revoltada, nervosa com bruscas mudanças psicológicas,
oscilando do furor à ternura, da exasperação ao riso. Pode ser ainda pueril e
bestial, covarde ou extremamente corajosa, devido à mobilidade de humor e a
fácil sugestão. Essa comparação parece estar ligada às representações sociais do
sexo feminino no final do século XIX, associando a mulher a um comportamento
facilmente sugestionável, intempestivo e imprevisível como o observado nas
histéricas ou nas reivindicações das sufragistas.
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Tarde definiu ainda as multidões em termos de amor e ódio. As multidões
de amor podiam ser capazes dos mais incríveis prodígios e das mais altruísticas
realizações. De fato, as multidões de festa, de alegria, foram de grande
importância para a tessitura e o estreitamento dos vínculos sociais ao longo da
história. Por outro lado, as multidões de ódio, quando revelavam seu furor, eram
capazes de cometer as piores atrocidades, envoltas em um delírio destruidor e por
vezes canibal (Tarde, 2005, p.42). Em linhas gerais, uma multidão criminosa não
agia inspirada por vingança ou pela necessidade de punição de crimes reais,
tampouco por um sentimento de justiça social, mas inflamada por uma “justiça
dos tempos primitivos” (Tarde, 2005 [1894], p.50) e também por uma confiança
no líder, numa credulidade que se aproximava ao estado de sonho ou de hipnose.
Nesse sentido, o comentário de Tarde de que “as multidões não são apenas
crédulas, elas são loucas” (Tarde, 2005 [1894], p.51) ajuda a compreender o
fascínio hipnótico que conduz a multidão criminosa.
Tarde afirmava poder encontrar nas multidões características semelhantes
as de povos primitivos e de neuróticos, afirmando ainda a semelhança do
comportamento das multidões e de pacientes psiquiátricos quando estes oscilavam
entre polos extremos que iam da excitação à depressão, passando por alucinações
coletivas e paranoia (Tarde, 2005 [1894], p.52). Foi assim que em Tarde a
credulidade da multidão, quando girava em torno de uma ideia, podia levar ao
desencadeamento de um delírio coletivo de perseguição e medo em relação a
71
crimes imaginários (Tarde, 2005, p.166). A análise de Tarde aponta para o fato de
que a multidão era extremamente sensível a uma espécie de hipnose coletiva,
fomentada pela sugestão, pela credulidade e pelo contágio que se estabelecia entre
os indivíduos. Essas afirmações também encontraram eco nas considerações de Le
Bon sobre o contágio, a hipnose, bem como na ideia de que as multidões podem
sofrer de alucinações coletivas (Le Bon, 2008 [1895], p.123). Dentro dessa
perspectiva, as considerações de Tarde anteciparam tanto discussões atuais sobre
o comportamento projetivo das massas e dos grandes grupos (Kernberg, 1998;
Volkan, 2004) quanto discussões sobre o amor e a hipnose que Freud irá retomar
e desenvolver em Psicologia de Grupo e Análise do Ego (1921).
A atualidade de Tarde em relação à investigação das multidões referia-se
ainda à importância conferida ao líder. A ideia da existência de um líder era um
dos principais fatores que distinguia uma multidão de agrupamentos variados. A
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natureza do vínculo com seus líderes e a comunhão de crenças ou desejos que os
uniam marcavam o comportamento das multidões. Assim, o fato das multidões
estarem reunidas em torno do líder levou-o a concluir que: “multidão atrai e
admira multidão e o sentimento de número embriaga os homens reunidos os
fazendo desprezar o homem isolado, a menos que este consiga deslumbrá-los ou
enfeitiçá-los” (Tarde, 2005[1894], p.39). Nesse sentido, é possível observar que a
questão do líder e de sua intencionalidade − embora ainda se restringissem aos
fenômenos da imitação, do contágio e da influência hipnótica − já adquiriam em
Tarde destaque, prenunciando a importância que o problema das lideranças
apresentaria para a psicologia das massas do século XX.
As ponderações de Tarde sobre a influência do líder na condução do
comportamento das multidões remetia às preocupações com o crime coletivo e
com as ações terroristas dos movimentos anarquistas. Partindo das multidões, mas
deslizando para a análise do que nomeou de corporações − que mais tarde
passaram a ser estudadas, como grupos organizados e como pequenos grupos −
Tarde dedicou-se à análise do comportamento das seitas e grupos criminosos em
especial da “seita anarquista” e de suas relações com suas crenças e com seus
líderes (Tarde, 2005, p.173). Ou seja, revelou que, por trás das atividades de uma
corporação ou de uma multidão organizada, existia sempre a crença em um líder.
Contudo, suas observações, apesar de guardarem certa atualidade, restringiam-se
às considerações relacionadas às típicas preocupações do século XIX como
72
questões de raça e predestinação orgânica, embora já conferissem alguma
importância a motivações de origem psicológica ou social (Tarde, 2005 [1894],
p.180). Nesse sentido é possível constatar que suas teorias estavam em sintonia
com as principais inquietações do século XIX − o anarquismo, a ameaça
socialista, as greves, a revolta do proletariado, as discussões sobre raça e
nacionalidade e a nascente opinião pública − que davam expressão ao
inconsciente social do século XIX.
Embora Moscovici (1981) aponte para o fato de que grande parte das
ideias de Tarde sejam hoje triviais, é importante reconhecer que sua obra
inaugurou um dos capítulos mais importantes das ciências sociais pelo fato de ter
definido as relações entre público e multidão, desenvolvendo ainda a nova ciência
da opinião pública. Suas principais contribuições à psicologia das multidões
residem na importância que conferiu ao líder como aquele que transforma a
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multidão espontânea, anárquica e natural − que é encontrada na origem de toda a
vida social − em uma multidão artificial e organizada. Essa multidão disciplinada
está na base da constituição dos grupos organizados e do social (Moscovici, 1981,
p.198). Além disso, a descrição do conceito de imitação, bem como a importância
que conferiu à sugestão e ao papel do líder permitiram avaliações contemporâneas
que conduziram à observação de que “a obra de Tarde sobre a psicologia das
multidões apresenta um parentesco importante com a obra de Freud” (Moscovici,
1981, p.321). Nesse sentido, suas considerações podem ser vistas como mais
próximas das elaborações freudianas do que os trabalhos do próprio Le Bon (Van
Ginneken, 1992).
Em suma, a obra tardeana em seu conjunto oferece com precisão a
dimensão da investigação das multidões que se processava sobre o tema no século
XIX revelando mais do que as descobertas, os temores e o fascínio de um século
de progresso e promessas. Em Tarde, a psicologia das multidões, através dos
fenômenos da imitação e da sugestão, foi a principal responsável pela expansão
dos fenômenos de comunicação e é possível considerar que suas ideias foram
fundamentais para os desdobramentos que a psicologia das multidões adquiriu no
século XX quando a política e os meios de comunicação erigiram uma nova
cultura, transformando a psicologia das multidões em psicologia das massas. A
obra de Tarde, assim como a de Le Bon, com a qual guarda inúmeras
semelhanças, como será apreciado a seguir, permite o mergulho no espírito de
73
uma época que marca em definitivo o início do estudo da psicologia e da
sociedade de massas.
3.3.2
Gustave Le Bon e a psicologia das multidões
Nascido em Nogent-le-Rotrou, na Normandia, Charles-Marie Gustave Le
Bon (1841-1931) estudou medicina prática na Universidade de Paris e, embora
não tenha completado o curso, escreveu sobre uma variedade de assuntos que
incluíam fisiologia, ótica, fotografia, antropologia, tabaco, adestramento de
animais, civilizações orientais, psicologia, política e sociologia (Van Ginneken,
1992). Sua vida acadêmica foi marcada pela falta de recursos econômicos e por
suas ambições junto ao cultivo das letras e da alta cultura, fato que marcou sua
disposição de “intelectual livre” (Nye, 1995) e de detentor de algumas escolhas
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profissionais contraditórias. Após a experiência como médico, durante a guerra
franco-prussiana (1870), seu interesse parece ter se afastado da medicina indo em
direção à sociologia e à psicologia nascentes. Para Consolim (2008b), após esse
período, Le Bon, deixa de lado o otimismo perante o progresso social e adota uma
visão pessimista e fatalista do social.
Assim, sua carreira profissional evoluiu na contramão das tendências de
especialização no mundo científico que dominavam a França de sua época
seguindo um curso peculiar que se, por um lado, conferiu-lhe sobrevivência
financeira, prestígio e destaque, por outro, fechou-lhe as portas para a almejada
academia (Nye, 1995). Sua carreira intelectual foi, portanto, bastante conturbada e
instável. Ambicioso, tendo em vista sua posição social modesta, buscava fazer
sucesso diante do grande público, mesmo que isso lhe custasse o desprezo por
parte dos especialistas e da academia. Entretanto, seu círculo de amizades era
intenso e contava com homens de Estado, literatos e cientistas, entre eles
Théodule Ribot e Gabriel Tarde, o filósofo Bérgson, o matemático Poincaré e o
ilustre Paul Valéry, bem como as princesas Marthe Bibesco e Marie Bonaparte
(Moscovici, 1981).
Le Bon parece ter intuído exatamente a que sua época aspirava e sua ânsia
por uma resposta levou-o a trabalhar incessantemente como outsider mesmo à
margem dos círculos oficiais e com a pecha de vulgarizador científico. Como
editor da Flammarion entre os anos de 1902 e 1931, obteve destaque na edição de
74
mais de 200 títulos da coleção Bibliothèque de philosophie scientifique
(Consolim, 2004). De uma maneira geral, sua obra obteve grande sucesso e
repercussão tendo sido lida e traduzida para mais de dezesseis línguas (Nye,
1995). Assim, influenciado pelas premências da época, Le Bon publicou,
principalmente a partir da década de 90, uma série de trabalhos de cunho
psicológico, fato que levou sua obra a ser considerada fundamental para o
nascimento da psicologia na França (Moscovici, 1981; Nye, 1995).
Através de um caráter peculiar de “investigador diletante” (Moscovici,
1981, p.74) aprimorou-se como periodicista e alcançou grande penetração de
ideias. A resistência que os meios acadêmicos ofereciam ao seu trabalho
alimentava seu êxito no campo político e social. O talento de Le Bon parecia estar
ligado à sua capacidade de captar e traduzir em palavras o espírito de sua época,
ou seja, a conjuntura social, os temores e as aspirações características do final do
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século XIX. Moscovici (1981) afirma que suas obras refletiam a conjunção de
ideias novas e progressistas com a antiga tradição das letras. Por outro lado,
postula que ele possuía uma sensibilidade especial para detectar pensamentos e
ideias que pairavam no ar naquela época entre as quais se destacava o inquietante
fenômeno psicológico das multidões, que pululavam no século XIX, seja nos
movimentos populares e trabalhistas, seja nas situações de barbárie, na ameaça do
socialismo ou do terrorismo anarquista.
A Psicologia das Multidões (1895) de Le Bon surgiu circunscrita em torno
das teses conservadoras do século XIX que se afinavam com a vanguarda política
e intelectual da época sofrendo influência do evolucionismo de Herbert Spencer,
da psiquiatria de Bernheim e da psicologia experimental de Théodule Ribot
(Moscovici,1981). A nova disciplina que Le Bon procurou erigir não foi, portanto,
uma criação original, pois suas premissas se apropriavam de conceitos e teorias
científicas advindas do discurso médico, psiquiátrico e antropológico (Consolim,
2004). Dessa maneira, teses sobre hierarquias sociais, hereditariedade das raças e
crenças coletivas influenciaram − da mesma forma que o fizeram com Tarde −
suas postulações sobre o comportamento das multidões. Dentro dessa perspectiva,
Le Bon era um evolucionista que atribuía à hereditariedade um papel fundamental
na psicologia individual ou coletiva (Consolim, 2008a). Le Bon encontrava-se
ainda bastante afinado com o desenvolvimento científico no século XIX e muitos
dos conceitos dos quais se utilizava, tais como imitação, sugestão, hipnose e
75
contágio foram importados da École de Salpêtrière, de Charcot e da École de
Nancy, de Bernheim (Van Ginneken,2006). Dentre as inúmeras contribuições da
medicina do século XIX para o estudo das multidões, Le Bon passou a adotar em
suas teses a teoria de Bernheim, para quem a hipnose era um processo de sugestão
do médico sobre um indivíduo através da manipulação da imaginação do paciente
que ficava sugestionado por ideias, imaginações ou atos − principalmente se
fosse mulher, criança ou um representante de povos primitivos que afirmava
serem mais sugestionáveis. Desse modo, a sugestão hipnótica passou a ser um
fenômeno que ocorria no contexto de uma relação hierárquica, isto é, de poder,
associando indivíduos superiores e inferiores (Nye, 1995).
Le Bon colocou as multidões no centro da interpretação do mundo
moderno, professando em suas teses o conflito social que se processava entre as
elites e o povo, representado pelas multidões. A percepção da realidade
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ameaçadora em que a França estava mergulhada no final do século XIX levou Le
Bon a buscar um antídoto contra as desordens que as multidões provocavam
através da psicologia ainda embrionária. Assim, formulou a hipótese da existência
de uma alma nas multidões, formada por impulsos elementares e organizadas em
torno de fortes crenças pouco sensíveis à experiência ou à razão. Para
compreender a alma das multidões, Le Bon (2008 [1985]) propôs o estudo de sua
constituição mental, isto é, de suas formas de sentir, pensar, agir.
Do mesmo modo que a alma dos indivíduos obedecia a um hipnotizador, a
alma das multidões obedecia a sugestões de um líder ou condutor, que lhe
impunha sua vontade fazendo com que, como em um estado de transe, as
multidões executassem ordens que não seriam jamais obedecidas por indivíduos
isolados. Le Bon, visivelmente decepcionado com a democracia parlamentar
francesa, apontou a incapacidade dos dirigentes das nações de se relacionar e lidar
com as multidões como um dos motivos para as dificuldades que ocorriam no
mundo conturbado europeu do século XIX e que se relacionavam, de uma forma
ou de outra, com a irrupção e o descontrole das multidões. Nesse sentido, o
antídoto era simples. Para Le Bon bastava conhecer as leis das multidões e saber
reconhecê-las para aprender a controlá-las. Nye (1995) afirma que dentro dessa
perspectiva:
A nova disciplina (a psicologia das massas) seduzia mais fortemente as elites
democráticas que viam nela um instrumento conceitual que confirmava seu medo
76
mais profundo das massas, mas que lhes proporcionava também um conjunto de
regras com a ajuda das quais podia manipular e dominar o potencial violento das
massas (Nye,1995, p.24. Tradução da autora).
Infelizmente a receita de Le Bon dada a dirigentes de Estados em inúmeros
encontros em salões franceses não foi apenas seguida pelos círculos militares e
pelas democracias nascentes do século XIX, mas serviu de inspiração para líderes
totalitários. É sabido que tanto Mussolini quanto Hitler (Moscovici, 1981, p.89)
foram dedicados leitores e apreciadores das ideias de Le Bon. Horkheimer e
Adorno (1978) afirmam que Mein Kampf se caracterizava por uma adesão
profunda de Hitler às argumentações sobre as multidões de Le Bon que foram
transformadas em cópias baratas repletas de clichês de valor pretensamente
científico (Moscovici, 1981, p.90). Ao longo do século XX, a obra de Le Bon
influenciou muitos democratas como De Gaulle, mas também foi utilizada
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literalmente por ditadores inescrupulosos que a transformou em regras inflexíveis
de ação acabando por serem consideradas como protofascistas (Moscovici,1981,
p.91).
Aqui cabe uma indagação. Como um autor de reputação controvertida,
elitista, conservador, apoiado em pressupostos científicos datados e ultrapassados,
pode ainda ser hoje referência em um estudo tão complexo quanto o das
multidões? O natural seria que sua obra baseada em premissas há muito tempo
abandonadas, de cunho considerado antidemocrático, tivessem perdido com o
tempo o interesse ou a importância no estudo da psicologia das multidões.
Entretanto, Nye (1995) é preciso ao afirmar que todos os subsequentes
comentadores do tema de Sigmund Freud e Robert Park (fundador da Escola de
Chicago) a Theodor Adorno e Elias Canetti foram obrigados a absorver ou a
refutar suas ideias, mas nunca puderam ignorá-las. Mesmo as mais recentes
teorizações sobre o coletivo prestam sua homenagem a Le Bon (Nye, 1995, p.13).
Procurando compreender esta indagação, Moscovici (1981) afirma que a
novidade apresentada por Le Bon não está simplesmente no fato de ele ter
associado os meios da sugestão à política, mas, sobretudo, no de transpor uma
perspectiva estritamente jurídica, que tratava o problema das multidões de um
ponto de vista exclusivamente criminal, buscando na psicologia uma explicação
plausível para as desordens provocadas pelas multidões naquele momento. Assim,
parece que sua principal contribuição foi ter mostrado que as multidões são, antes
77
de tudo, um fenômeno social cuja compreensão requer situá-las numa nova
perspectiva: não mais a do direito ou da economia política, mas a da psicologia.
De fato, embora Le Bon apresentasse uma visão pessimista sobre as multidões,
sua obra é fundamental por ter conferido importância ao caráter inconsciente das
multidões e essa foi sem dúvida uma de suas principais contribuições.
Embora Le Bon afirmasse que a consciência podia ser individual, ele não
se referia ao inconsciente como um inconsciente individual e nesse sentido, suas
concepções poderiam se assemelhar, em um primeiro momento, ao inconsciente
coletivo postulado por Jung. Entretanto, apoiava-se em uma visão biológica de
inconsciente afirmando que o “substrato inconsciente é formado por influências
hereditárias que contém resíduos ancestrais que constituem a alma de uma raça”
(Le Bon, 2008, p.33). Moscovici (1981) afirma que o inconsciente de Le Bon
representava muito mais do que um resíduo ancestral de uma nação ou de uma
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raça, “ele retira sua força da herança de uma longa série de gerações, cada uma
das quais lhe acrescenta mais alguma coisa” (Moscovici, 1981, p.303). Análises
baseadas em conceitos como raça ou tradição parecem hoje ultrapassadas,
contudo, em Le Bon desempenhavam um papel preponderante na investigação do
comportamento das multidões na medida em que todos os elementos
civilizatórios que as compunham tornavam-se “expressão exterior da alma das
multidões” (Le Bon, 2008, p.81). Assim, Le Bon chamava de “raça histórica”
aquilo que era construído a partir de experiências vividas por gerações e que
determinavam através de suas tradições e instituições o comportamento de um
povo. Dessa forma, a cultura, o desenvolvimento, a história e as tradições de uma
raça eram capazes de imprimir características peculiares ao seu comportamento
de forma inconsciente quando em situação de multidão. Neste processo, o tempo
era o terreno onde germinavam as opiniões e as crenças das multidões,
acumulando um imenso resíduo de pensamentos sobre o qual nasciam as ideias de
uma época. Suas raízes remontavam a um passado longínquo de uma raça e no
momento em que certas ideias ou manifestações eclodiam em uma multidão um
longo período de gestação as havia preparado. Le Bon parecia falar de um tipo de
multidão, em que os fatores inconscientes eram regidos por uma herança
filogenética e, portanto, eram multidões qualitativamente diferentes em virtude de
revelarem manifestações inconscientes de um determinado grupo social. A
análise de Le Bon parece desse modo, dirigir-se a uma multidão vista como um
78
povo ou uma nação, onde a transversalidade de sua história se combinava à
horizontalidade
do
aqui-e-agora
na
determinação
das
diferenças
de
comportamento encontradas nas multidões. Assim, mesmo que influenciada por
correntes biologizantes e darwinistas ultrapassadas, sua concepção de
inconsciente − embora bastante distinta do inconsciente individual freudiano −
parece guardar semelhanças com o inconsciente filogenético de Freud (1937) e
com os estudos atuais sobre transmissão psíquica em famílias e sociedades (Kaës,
2001; Volkan 2002; Faimberg, 2005). Além disso, podem ser feitas aproximações
com o conceito de inconsciente social, pesquisado pela grupanálise (Hopper &
Weinberg, 2011).
Mesmo que a ideia de inconsciente de Le Bon fosse bastante distinta da
noção do inconsciente freudiano, é importante destacar que a percepção do caráter
inconsciente do comportamento das multidões permitiu uma análise de suas
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características psicológicas que se afastou da lógica que considerava a multidão
como uma enfermidade, uma excrescência da ordem social existente. Moscovici
(1981) aponta que a ideia genial de Le Bon foi a de se opor a este tipo de
conceituação, preferindo afirmar que a multidão tinha como característica
principal a fusão dos indivíduos em um espírito e um sentimento comum que
esmaeceriam as diferenças individuais e diminuiriam a capacidade intelectual,
favorecendo o grupo em detrimento do indivíduo. A universalidade desses efeitos
seria capaz de provocar uma transformação que afetaria os indivíduos reunidos em
uma multidão. Dessa forma, as ideias que preponderavam sobre o caráter
criminoso das multidões caíram por terra, sendo meras ilusões nas palavras de
Moscovici (1981, p.103). Assim, seria fundamental conhecer a psicologia das
multidões e seu modus operandi com o intuito de governá-las, já que as leis e as
instituições humanas exerciam pouca influência sobre sua natureza impulsiva. De
fato, as multidões podiam revelar-se violentas ou anárquicas sendo capazes de
cometer atos de ferocidade e barbárie. Entretanto, seriam capazes de exibir uma
moralidade elevada, mostrando-se altruístas e heroicas (Torres, 2007), mais justas
do que qualquer indivíduo isolado, demonstrando uma aparente contradição que,
no entanto, a psicologia das multidões seria capaz de esclarecer. Para Le Bon
(2008 [1895]), portanto, não havia nada de demente ou patológico nas ações
praticadas pelas multidões. Na maioria dos casos, elas se constituíam de
indivíduos normais que, reunidos, sentiam, raciocinavam e relacionavam-se em
79
um plano psíquico distinto, isto é, apresentavam uma vida mental característica.
Assim, dentro de um ponto de vista psicológico “são uma realidade autônoma,
organizada em uma forma coletiva, uma forma coletiva de vida” (Le Bon, 2008
[1895], p.125). A multidão representava para Le Bon, a matéria prima das
instituições políticas, a energia virtual dos movimentos sociais e o estado
primitivo de todas as civilizações (Moscovici, 1981). Nesse sentido o autor
afirmou:
(...) o último soberano da Idade Moderna é o poder das multidões (...) Enquanto
nossas antigas crenças cambaleiam e desaparecem, enquanto as velhas colunas da
sociedade desabam sucessivamente, a ação das multidões é a única força que
nada ameaça e cujo prestígio sempre aumenta. A idade que entramos será
verdadeiramente a era das multidões (Le Bon, 2008[1895], p.20).
Le Bon estava verdadeiramente convencido de que o século XIX
prenunciava o advento de uma era das multidões e, de fato, como Ortega Y
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Gasset (1926) anos mais tarde analisou − através da observação da tendência à
homogeneização e à coletivização da vida moderna e do conceito de “homemmassa” − o triunfo das massas verdadeiramente se impôs sobre a sociedade
ocidental (Ortega Y Gasset, 1926, p.68).
Observando a alma coletiva, Le Bon (2008 [1895], p.81) constatou que as
aptidões intelectuais e a individualidade na multidão desapareciam, dando lugar a
um partilhar de qualidades ordinárias e um sentimento de invencibilidade. Essas
diferentes características estavam diretamente relacionadas ao contágio mental
que era considerado o elemento central na constituição das multidões. Em Le
Bon, o contágio estava também associado à ideia de hipnose e sua excessiva
sugestionabilidade. Assim, tanto o contágio quanto a sugestão remetiam ao estado
de fascinação do indivíduo em relação ao hipnotizador (Le Bon, 2008 [1895],
p.35) e, portanto, as modificações psíquicas que ocorriam em um indivíduo
quando em uma multidão seriam análogas as que ocorriam com o indivíduo sob
hipnose. Isto é, os estados coletivos eram análogos aos estados hipnóticos. Os
indivíduos na multidão encontravam-se, em um estado crepuscular entre a vigília
e o sono e sua consciência seria menos ativa, deixando-se levar ora por um êxtase
místico, como num sonho, ora pelo pânico e pelo pesadelo (Moscovici, 1981,
p.109). Nesse sentido, é fato que, ao fazer parte de uma multidão, um indivíduo
se porta de forma diferente na medida em que desaparece a personalidade
consciente e os aspectos inconscientes predominam, ficando o indivíduo
80
submetido à sugestão e ao contágio de sentimentos e ideias, agindo como um
autômato frente à multidão ou ao líder. A sugestão explicaria perfeitamente
porque um indivíduo em uma multidão é diferente de um indivíduo isolado da
mesma forma que, em sono hipnótico, é diferente de em estado de vigília. Dessa
maneira, “a sugestão determina a fusão do indivíduo com a multidão” e a hipnose
funciona como “modelo para a relação com o condutor” (Moscovici, 1981,
p.117). Essas afirmativas reforçaram a importância da sugestão e da hipnose na
psicologia das multidões, pois, para Le Bon (2008 [1895]), a hipnose era o
modelo principal dos atos e das reações dos indivíduos nas relações sociais o que
explica porque era necessário que, na multidão, fosse recriado e encenado uma
espécie de teatro hipnótico, capaz de fixar a atenção da multidão, desviando-a da
realidade e estimulando sua imaginação.
Assim, para Le Bon, é possível constatar que a psicologia das multidões
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realizava uma série de transformações nos indivíduos. O desaparecimento da
personalidade consciente, o predomínio de mecanismos inconscientes, a
orientação por meio da sugestão e do contágio de sentimentos e ideias, bem como
a influência hipnótica do condutor eram características dos indivíduos na
multidão. Além disso, existe ainda a intolerância, o autoritarismo e o
conservadorismo presentes no comportamento das multidões. A incapacidade de
raciocinar, a ausência de julgamento e de espírito crítico conduziam as ações das
multidões que eram movidas por pensamentos, imagens e sentimentos
ambivalentes e exagerados. Todas essas transformações que ocorrem nas
multidões são descritas como uma “descida do homem a vários graus na escala de
civilização” (Le Bon, 2008 [1895], p.36). Moscovici (1981) chega a afirmar que o
pensamento do indivíduo na multidão é um “pensamento automático” que se
opõe a outras formas de pensamento como o pensamento simbólico (Moscovici,
1981, p.131). É possível constatar ainda que a sugestionabilidade e a credulidade
excessiva acrescidas ao pensamento automático poderiam levar os indivíduos nas
multidões a serem acometidos por alucinações coletivas, o que nos remete
novamente à profunda importância do contágio, da sugestão, da hipnose e da
influência do líder − hipnotizador e condutor das multidões. Neste aspecto, como
ainda não era possível analisar a questão das multidões em termos do fenômeno
da regressão − enunciado anos mais tarde por Freud (1921) e atualmente
considerado onipresente no comportamento das multidões − Le Bon, assim como
81
Tarde, associava as características das multidões ao comportamento das “formas
inferiores de evolução” (Le Bon, 2008 [1895], p.39) identificadas na época como
o selvagem, a mulher e a criança.
Outro importante aspecto encontrado nas multidões era o fato de que a
sugestão era sempre uma ilusão e ideias ou sentimentos simples ou exagerados
acabavam sendo compartilhados com os demais indivíduos por contágio e
sugestão. A questão das ilusões estava diretamente relacionada às crenças
transmitidas nas multidões e tanto as ilusões quanto as crenças podiam ser
construídas, manipuladas e dirigidas pelo seu condutor. Ou seja, as multidões
necessitariam de crenças, de ideias ilusórias que as movimentassem e que
conduzissem suas ações, quer elas tivessem motivações de cunho prático,
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imediato ou quer tivessem ideais sublimes:
Desde a aurora das civilizações os povos sempre sofreram a influência das
ilusões, e foi aos criadores de ilusões que eles ergueram mais templos, estátuas e
altares. Ilusões religiosas outrora, ilusões filosóficas e sociais atualmente. (Le
Bon, 2008 [1895], p.103).
As crenças e as ilusões na visão leboniana assemelhavam-se muito às
ideias que Freud mais tarde vai discutir em O Futuro de uma Ilusão (1927) sobre
o papel das religiões e das ilusões na formação do processo civilizatório, já que
foi através das ilusões que o homem fugiu da barbárie e construiu civilizações.
Foi assim que as ilusões adquiriram uma função primordial na construção do
mundo civilizado, e o papel do líder foi fundamental nessa condução.
Não somente o líder e suas crenças imprimiam uma direção para as
multidões, mas também as convicções, principalmente se reveladas através da
religião quando uma espécie de sentimento religioso dominava a multidão
terminando por direcionar suas ações. Esse sentimento implicava em uma
adoração a um ser supostamente superior, personificado na figura de um líder que
provocava medo e submissão cega às suas ordens. A intolerância e o fanatismo
das multidões tornariam impossível a discussão de seus dogmas, levando a uma
necessidade premente de difundi-los em larga escala e, nesse contexto, eram
considerados inimigos aqueles que se opunham às suas crenças ou aos seus
líderes. É possível constatar, no modelo da multidão religiosa, a inequívoca
influência da sugestão, do contágio e o caráter hipnótico e condutor do líder.
Além disso, a estrutura interna que regia o funcionamento de uma multidão
religiosa estava diretamente relacionada, em Le Bon, à alma das multidões e à
82
relação com o líder. Isto é, por mais que suas ações se originassem do poder e da
vontade de monarcas ou líderes, todas as manifestações eram provenientes, no
fundo, da alma das multidões.
No século XIX, a preocupação com as multidões criminosas deixava
pouco espaço para o surgimento de outras perspectivas de análise, no entanto, na
medida em que o século XX se avizinhava e a análise psicológica das multidões
progredia, a investigação sobre as multidões parecia transferir-se para a esfera
política. Nesse momento, começava a se consolidar a ideia de que elas podiam ser
controladas e manipuladas por um líder carismático. Observadas, podiam ser
transformadas em objeto de estudo e pesquisa científica de métodos de governo
para os homens de ação ou chefes de Estado. Essa era a ambição de Le Bon, a de
“erigir uma nova ciência que proporcionará uma solução e um método ao
problema do governo das sociedades de massa” (Moscovici, 1981, p.108). De
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fato, foi Consolim (2008a) que possibilitou o esclarecimento da dúvida que
permeou a transformação do termo multidão − característico da denominação de
grupos biológicos ou psicologicamente inferiores, como a plebe ou o populacho
no século XIX − para o termo massa, característico do século XX, porque, no
século XIX, especialmente na última década, a palavra massa havia se tornado
apanágio das esquerdas, ficando excluída de qualquer referência ou análise de
cunho republicano que caracterizava as pesquisas de Tarde ou Le Bon. Assim,
partindo das investigações sobre as atemorizantes multidões do século XIX, foi
possível chegar à psicologia das massas do século XX. Nesse processo, as pouco
percebidas multidões religiosas do século XIX tiveram ainda um papel de
transição por apresentarem uma estruturação interna e um modus operandi,
baseado na fé compartilhada entre os membros e na organização em torno de um
líder ou de uma ideia poderosa, que mais tarde foi destrinchada pela psicologia
das massas de freudiana. Dessa forma, é possível afirmar que o tipo de multidão
que passou despercebido pela psicologia das multidões do século XIX acabou
contribuindo para dar um novo contorno à pesquisa ao substituir a multidão
turbulenta e feroz por uma massa artificialmente organizada em torno de um
ideal, na presença de um líder carismático e com características previsíveis e
controláveis. Esse foi o modelo em que se baseou toda a psicologia das massas no
século XX, no qual a figura do líder é central.
83
Le Bon (2008 [1895]) afirmava que nos grupos humanos o líder possuía
um papel considerável, do qual a multidão não poderia prescindir. Os condutores
seriam homens enérgicos, de ação, pouco afeitos ao pensamento ou à reflexão, de
vontade momentânea e pouco duradoura. A visão de Le Bon sobre os líderes era
pouco lisonjeira já que enfatizava, dentre suas características, o despotismo, a
pouca clarividência e a obstinação diante de ideias defendidas como uma fé
religiosa que não admitia dúvidas ou incertezas. A maior ou menor influência do
líder estava também diretamente relacionada ao poder de suas palavras e à
capacidade que estas possuíam de transformar ideias e crenças em imagens que
adquiriam um poder mágico e transformador na multidão. A capacidade de
raciocínio dos indivíduos na multidão se enfraquecia diante de suas convicções e
eles pareciam estar dispostos a sacrificar valores pessoais e a própria vida em
função da ideia defendida. Nessa situação, o que estava em jogo, era o poder
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manipulador dos líderes, pois “conhecer a arte de impressionar as multidões é
conhecer a arte de governá-las” (Le Bon, 2008 [1895], p.70). Através de sua
capacidade de manipulação o líder conseguia obter da multidão uma docilidade e
uma submissão surpreendentes e sua capacidade de persuadir e amealhar prestígio
era vista por Le Bon como elemento fundamental no processo. Isto é, um líder ou
uma ideia investida de prestígio seriam, através do contágio, imediatamente
imitados, impondo a uma geração certos modos específicos de sentir e de traduzir
pensamentos. Assim, embora Le Bon tenha se debruçado de forma inegável sobre
o fenômeno da liderança nas multidões destacando os efeitos do contágio, da
sugestão, da hipnose e do prestígio, sua análise permaneceu superficial e foi
somente Freud, em Psicologia de Grupo e Análise do Ego (1921), ao apresentar a
libido e as identificações como responsáveis pelo laço social, que a reflexão sobre
as massas pode se complexificar.
Outra importante contribuição de Le Bon (2008 [1895]) para a psicologia
das multidões remete à divisão que propôs para multidões ao classificá-las em
homogêneas ou heterogêneas. Embora a classificação das multidões apresentada
por Le Bon conferisse excessiva importância à raça, sua visão apresentava uma
atualidade conceitual na descrição de multidões efêmeras ou organizadas.
Baseando-se em uma nomeclatura que ressaltava sua heterogeneidade ou
homogeneidade, suas classificações estão em plena sintonia com as demais que
vieram daí por diante. A enumeração dos critérios de heterogeneidade e
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homogeneidade foi importante para a compreensão dos diferentes tipos de
multidão, entretanto já apontavam para diferenciações que seriam definitivas na
compreensão da estrutura interna dos grupos do século XX. Assim, é possível
afirmar que se, no século XIX, existia um predomínio do estudo de multidões
espontâneas sem grande nível de organização e de grupos de ordem mais
homogênea, no século XX, principalmente após o estudo dos grupos organizados
de McDougall e Freud, a análise dirigiu-se para as multidões artificiais e os
pequenos grupos organizados em torno de um líder. Dentro dessa perspectiva, a
influência das lideranças ocupou um papel fundamental nos estudos psicológicos,
sociológicos e políticos sobre as massas no século XX. Entretanto, através das
transformações do mundo contemporâneo a partir da década de 70 − quando foi
possível considerar que o estudo dos grupos organizados já havia consolidado um
lugar de destaque no ideário contemporâneo e nas práticas psicológicoPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA
assistenciais − o interesse científico voltou-se para o estudo de grandes grupos
não-estruturados e para a necessidade de investigação de sua psicodinâmica.
Em suma, a psicologia das multidões em Le Bon constitui um campo
imenso de pesquisa. Apesar de ter sido um autor ao mesmo tempo controvertido e
em sintonia com sua época, suas ideias foram ponto de partida para quase tudo o
que é dito até hoje sobre a psicologia das multidões. No entanto, embora
possamos afirmar que como ciência a psicologia das multidões tenha sido criada
por Le Bon, após sua morte e na segunda metade do século XX, sua obra passou
por um momento de ostracismo nas ciências sociais (Consolim, 2008a;
Moscovici, 1981). De fato, mesmo redimensionada pela análise freudiana,
manipulada ao extremo por ditadores de direita ou esquerda, parece esgotada,
dissecada ao extremo, não fornecendo qualquer novidade para um leitor
desavisado. Entretanto, vislumbra-se, nas entrelinhas das mais conhecidas
afirmações de Le Bon, certas nuances que adquirem novos significados no
contexto do mundo atual principalmente quando algumas asserções lebonianas
são atualizadas à luz da psicanálise contemporânea. Se no século XIX Le Bon se
utilizava de uma psicanálise que trabalhava com a sugestão, o contágio e a
hipnose e fazia uso de uma visão ainda incipiente de inconsciente para explicar o
comportamento das multidões, após Freud foi possível pensar as multidões
através de um renovado arcabouço teórico. Nesse sentido, os fenômenos
identificatórios, o inconsciente, as instâncias ideais, os mecanismos de regressão,
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clivagem e projeção foram fundamentais para o avanço das pesquisas sobre o
assunto. Na segunda metade do século XX, Bion (1970) e os pressupostos
básicos, onipresentes nos grupos, bem como o conhecimento das áreas de
transicionalidade (Winnicott, 1971), dos envelopes psíquicos (Anzieu, 1993) e
dos espaços compartilhados (Kaës, 2005) conferiram renovadas perspectivas de
análise. Durante o século XX, a investigação sobre a psicologia das multidões deu
lugar à ação das massas e dos grupos organizados tendo como teorias de base as
ideias de Tarde e Le Bon. A teorização passou a se concentrar no fenômeno das
massas e os movimentos totalitários do século XX são a prova desse fato. No
momento atual, quando novas configurações políticas ainda tecem seus
contornos, o interesse pela compreensão do fenômeno das massas se renova.
Embora mais de um século tenha se passado e a investigação seja facilitada pela
experiência vivenciada ao longo do século XX, o comportamento das multidões
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continua a desafiar os estudiosos. Antes de passar para a próxima etapa − de
análise detalhada da psicologia das massas e dos grupos organizados
empreendidas no século XX − a afirmação de Le Bon, antecipando um enigma
tão familiar à psicanálise, atualiza-se, fomentando a discussão que prossegue:
As multidões são como a Esfinge da antiga parábola: é preciso saber resolver os
problemas que a psicologia delas nos apresenta ou se resignar a ser devorado por
elas... (Le Bon, 1895, p. 97)
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3 A psicologia das multidões do século XIX - Maxwell - PUC-Rio