Carmen Simone Grilo Diniz
Entre a técnica e os direitos humanos:
possibilidades e limites da humanização da
assistência ao parto
Tese apresentada à Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo para a
obtenção do título de Doutor em Medicina
Área de concentração: Medicina Preventiva
Orientador: Dr. José Ricardo de Carvalho
Mesquita Ayres
SÃO PAULO
2001
Ficha Catalográfica
Preparada pela biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Reprodução autorizada pelo autor.
Diniz, Carmen Simone Grilo
Entre a técnica e os direitos humanos: possibilidades e limites da humanização da
assistência ao parto
Carmen Simone Grilo Diniz. – São Paulo, 2001.
Tese (doutorado) - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Departamento de medicina preventiva.
Área de concentração: medicina preventiva.
Orientador: José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres.
Descritores:
1.direitos humanos / tendências
2.saúde reprodutiva
3.direitos da mulher/organização & administração
4.maternidades / normas
5.parto normal / tendências
6.assistência perinatal / recursos humanos
7.relações hospital - paciente
8.medicina baseada em evidências
9.sus (br)
Usp/fm/sbd- 10410 1
i
Agradecimentos
Diz-se que a gratidão é a primeira das virtudes, aquela a partir da qual todas as
demais são possíveis. Menos por virtude que por justiça, quero afirmar, como de
praxe dos agradecimentos que se fazem ao se apresentar um trabalho, que sem a
ajuda que se agradece, o trabalho seria impossível.
Esta tese é em grande medida um trabalho coletivo, o resultado sinérgico de vários
encontros felizes. Isentando todas as pessoas listadas de qualquer responsabilidade
sobre o resultado do trabalho, gostaria de expressar minha gratidão sincera pelo
apoio na concepção, gestação e parto deste tese.
Ao professor doutor José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, meu orientador,
quero expressar minha enorme satisfação com nosso trabalho conjunto. Agradeço
por sua capacidade e talento para de fato orientar, iluminando as questões de
pesquisa de forma crítica, inteligente, metódica e estimulante; por sua abertura a
questões novas e desafiadoras, por sua dedicação e paciência firmes.
Agradeço aos professores Lilia Blima Schraiber, Maria Inês Baptistella Nemes e
Ivan França Jr., que participaram da banca de qualificação, pela leitura atenta do
material e pelos comentários ao projeto desta tese, que foram muito valiosos e
iluminadores na etapa final do trabalho.
Às amigas e amigos da Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento
(REHUNA), pela inspiração e apoio, e por partilhar muitas das questões aqui
tratadas. Seria enorme a lista de pessoas a agradecer pelas conversas e sugestões, e
correndo o risco de esquecer pessoas muito importantes para o processo, agradeço
em especial a Adailton Salvatore, Anna Voloshko, Cristina Boareto, Daisuke Onuke,
Daniel Klotzel, Daphne Rattner, Hugo Sabatino, Islene Carvalho, Lívia Carneiro,
João Batista de Lima e Ivo Lopes, Marcos Dias, Marcos Leite, Marcos Tadeu,
ii
Marcos Ymayo, Maria Luísa Riesgo, Paula Viana, Ricardo Jones, Sônia Hotimsky,
entre tantos outros. É um privilégio contar com a companhia, ainda que virtual na
maioria das vezes, de uma comunidade como esta de pessoas envolvidas na reflexão
e na transformação da assistência ao parto no Brasil. Ainda na comunidade pela
humanização do parto, agradeço os Grupo de Estudos sobre Nascimento e Parto
(GENP), e às amigas das listas eletrônicas partonatural@Egroups e amigasdoparto@
Egroups, em especial a Fadynha Teixeira, Ana Cris Duarte e Adriana Tanese.
Quero agradecer também minhas companheiras e companheiros de trabalho que
partilharam as reflexões deste processo. Agradeço às amigas do Coletivo Feminista
Sexualidade Saúde, pela inspiração e especialmente por suportar minha ausência
neste momento; agradeço em particular a Sandra Dircinha por seus comentários ao
material empírico. A todas as integrantes dos projetos “Gênero, Saúde e Direitos
Humanos” e “Saúde da Mulher e Direitos Humanos”, entre elas Paula Francisquetti,
Lenira Mazoni e Maria José Araújo; agradeço especialmente a Ana Flávia Pires
Lucas d’Oliveira, minha colega de pós-graduação, comadre pessoal e intelectual,
cuja companhia e convivência é um privilégio em todos os sentidos; à professora
Lilia Schraiber, por sua liderança e reflexão inspirada sobre o tema, e ao professor
Ivan França Jr. pela sua estimulante discussão sobre saúde e direitos humanos. Aos
meus colegas de pós graduação, agradeço pela ajuda mútua na troca de experiências
sobre nossos avanços e dificuldades; em especial agradeço a Maria de Fátima
Marinho de Souza, pela ajuda nos assuntos logísticos da tese.
Agradeço também à Fundação Ford, nas pessoas de Sarah Costa e Denise Dourado
Dora, pela interlocucão, sugestões bibliográficas, e por terem sido de uma enorme
sensibilidade para o problema da violência institucional na assistência ao parto,
apoiando a pesquisa que veio e se desdobrar nesta tese.
Agradeço a generosa atenção e comentários a este trabalho feitos pelo minha madre
superiora no tema, Norma Meras Swenson. Agradeço às amigas e amigos do Grupo
de Pesquisa Internacional em Direitos Reprodutivos (IRRRAG), pelas inspiradoras
iii
conversas informais sobre o tema, em especial a Cecília de Mello e Souza, Benedito
Medrado, Ana Paula Portella, Rosalind Petchesky e Radhika Ramasuban.
Aos amigos e diretores dos serviços que estudamos, agradecemos sua abertura e
receptividade ao trabalho, sem a qual este trabalho de fato teria sido impossível.
Agradecemos aos doutores Marcos Ymayo e Irmã Monique Bourget, da OSS
Hospital Santa Marcelina de Itaim Paulista, por sua disponibilidade, abertura e
interesse, e a todo o pessoal técnico e administrativo que se dispôs a cooperar com a
pesquisa. Agradecemos à Comissão de doulas deste serviço, especialmente a
Fermina Lopes e a Maria Lúcia pelas preciosas informações sobre a implantação das
propostas. A elas e às militantes da Comissão de Mulheres do Movimento de Saúde
da Zona Leste, nossa grata admiração.
Agradecemos aos doutores José Antônio Jordão e Marcos Tadeu pela sua abertura e
disponibilidade; a este segundo agradecemos especialmente as muitas vezes que nos
acompanhou na observação do Hospital do Ipiranga, e a todos os residentes e
funcionários com quem interagimos. Esperamos com confiança corresponder à
expectativa de oferecer aos serviços estudados um retorno da pesquisa que seja uma
contribuição útil à melhoria da assistência.
Às pacientes que nos dois serviços consentiram com a observação de seus partos,
nossa gratidão e esperança de que esta intromissão venha a contribuir para que seus
próximos partos, ou os de suas filhas, sejam vividos com mais satisfação e
segurança.
Às minhas colaboradoras nesta pesquisa, minha gratidão sem limites: sem o nosso
trabalho conjunto, não haveria a riqueza que resulta da nossa troca sinérgica de
idéias e reflexão. Agradeço às antropólogas Sônia Nussenzweig Hotimsky e a
Regina Facchini pelo seu talentoso trabalho de observação de serviços, que tive o
prazer de partilhar e no qual pude aprender tanto. Jamais esquecerei nossas horas
nos plantões, ou nos engarrafamentos de São Paulo, onde surgiram muitos dos
insights desta pesquisa. Agradeço também a Lis Pasini, esperando que possamos
iv
voltar a trabalhar, as quatro juntas. Agradeço a Ana Claudia Fonseca, pela
transcrição das fitas, e a Cecilia Marks, pela cuidadosa e criativa revisão dos
originais. E ainda, a Renato Cury, pela fotografia do campo, e pelos comentários ao
trabalho.
Agradeço também à FAPESP, pela bolsa e pela sua reserva técnica que financiou
este trabalho. Agradeço aos seus pacientes funcionários, e ainda ao meu parecerista
desconhecido, pelos comentários estimulantes, ainda que telegráficos.
Agradeço a Luciene de Oliveira e Andréia de Souza pelo apoio na esfera doméstica
– sem elas, nem imagino como teria feito este trabalho.
Aos amigos ausentes que continuam como fonte de inspiração e de saudade, quero
lembrar dois professores, gurus da nossa geração e sempre presentes em nossas
reflexões, Paulo R. Michaliszyn e Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves. Ainda como
ausências inspiradoras deste trabalho, estão Ângela Gehrke, minha parteira e espécie
de santa de nossa geração, e David Gabriel, nosso anjo familiar.
E por fim, but not least, agradeço à minha família maravilhosa. Aos meus pais,
Carlos e Maria Arminda, por terem me ensinado a perseverança, a flexibilidade, o
espírito crítico e o bom humor; espero ter aprendido. Aos meus sogros, Anna e Salo,
pela ajuda logística e estímulo intelectual. Finalmente, aos meus maiores amores: a
meus filhos Beatriz e David, agradeço a
inspiração, e a paciência por terem
suportado minha presença-ausente em casa. E a Artur Kalichman, pelo mais feliz
desses encontros: ao meu amigo, colega, marido, namorado, leitor atento e generoso,
agradeço por sua solidariedade, bom humor e apoio amoroso em todo o percurso,
enfim, pela partilha.
v
RESUMO
Trata-se de estudo de caso sobre implantação de propostas de reorganização
da assistência ao parto em maternidades da cidade de São Paulo, orientados
pela idéia de humanização e de medicina perinatal baseada na evidência
científica. Foi usada metodologia qualitativa, combinando-se técnicas de
observação direta dos serviços em duas maternidades financiadas pelo SUS,
durante o ano de 2000, depoimentos orais com informantes privilegiados e
análise documental. Os achados sugerem que entre os fatores que podem
tornar possível ou limitada esta humanização do parto estão a adequação do
acesso aos leitos, da comunicação entre os sujeitos, do manejo da dor e dos
tempos no parto; assim como a presença ou não de uma cultura
de
reconhecimento pelos profissionais tanto da evidência científica quanto dos
direitos humanos e reprodutivos das mulheres.
vi
ABSTRACT
The present dissertation is a case study concerning the implementation of
proposals of reorganization of maternity care in São Paulo City hospitals
guided by the notions of humanization and of evidence based perinatal
medicine. Qualitative methodology was utilized, combining techniques of
participant observation, interviews and the analysis of primary sources.
Observation of maternity care was conducted during the year 2000, in two
hospitals which are financed by the Brazilian public health system, SUS
(Sistema Unificado de Saúde). Research findings suggest that among the
factors that may contribute towards or, on the other hand, create constraints to
the humanization of childbirth are the adequacy of gatekeeping;
communication among subjects; the management of pain and of time in labor;
as well as the presence or absence of a culture of recognition, on the part of
health professionals, with respect to scientific evidence as well as women´s
reproductive and human rights.
vii
SUMÁRIO
Agradecimentos
i
Resumo
Abstract
1. Introdução e contexto
1
1.1. A crise do modelo de assistência ao parto e as propostas de mudança
de paradigma
1.2. A especificidade brasileira das contradições entre evidência científica
e prática obstétrica, e as propostas de humanização
1.3. A distância entre intenção e gesto: as propostas de mudança, limites e
possibilidades
26
2. Material e método
32
2. 1. Objetivos do estudo
2.1.1.Objetivo Geral
2.1.2. Objetivos Específicos
2.2. Material e Método
2.2.1.Hipótese
2.2.2.Quadro interpretativo
2.2.2.1 Da narcose ao quimono alienígena: os muitos sentidos da
humanização - um conceito em construção (e em disputa)
2.2.2.2. A medicina perinatal baseada na evidência científica: confronto de
paradigmas e o caráter ritual da assistência
2.2.2.3. Técnica, ritual e intersubjetividade
2.2.2.4. Do parto como violência biológica (do corpo contra a pessoa) à
assistência ao parto como violência de gênero (das instituições contra as
pessoas).
2.2.2.5. As pontes entre humanização da assistência e direitos humanos, e
os limites e possibilidades de sua promoção
2.3. Desenho do estudo
2.3.1. Recursos metodológicos e seu ajuste
2.3.2. Observação de serviços: o percurso
2.3.3. Outras fontes de evidências e reflexões
2.3.4. Questões éticas
32
32
32
34
34
34
3. Resultados: Possibilidades e limites das propostas de humanização
3.1. Os muitos sentidos da humanização
3.2. Cenários da humanização
1
11
34
39
45
48
58
66
66
67
75
79
82
83
98
viii
3.2.1 A formação dos recursos humanos
3.2.2. As propostas de humanização, os médicos e o mercado de trabalho
3.2.3. Novas e velhas contradições
3.2.4. Os mesmos sujeitos e os sujeitos diferentes
3.2.4.1. A parturiente
3.2.4.2. O médico
3.2.4.3. A enfermeira
3.2.4.4. O pai, e a ou o acompanhante
3.2.4.5. A doula
3.3. A estrutura física
3.3.1. Arquitetura, equipamentos, rotas e movimentos
3.4. Os mecanismos e estilos de gestão
98
106
110
115
115
122
127
131
139
145
145
157
4. Discussão: Assistência ao parto e direitos – aproximações e
distância entre intenção e gesto
161
4.1. A reorganização do modelo de assistência: características,
permanências e rupturas
4.2. Assistência e percepção de direitos
4.2.1. O direito à equidade e o acesso ao leito obstétrico
4.2.2. O direito à segurança, à integridade corporal e ao usufruto da
sexualidade
4.2.3. O direito a estar livre de sofrimento desnecessário
167
172
175
184
193
5. Considerações Finais
204
5.1. Os limites às propostas de humanização
5.2. Fatores que contribuem para a implantação das propostas de
humanização
5.3. Lacunas do percurso e questões para a pesquisa
205
214
225
6. Bibliografia
230
7. Anexos
244
244
246
- Roteiros preliminares das entrevistas
- Exemplo de carta à direção dos serviços formalizando a pesquisa
- Formulário de Consentimento Informado para observação, fotografia e
acesso ao prontuário
- Classificação de Condutas no Parto Normal – Assistência ao Parto
Normal Um Guia Prático (OMS) 1996
248
250
1
Capítulo 1
1. Introdução e contexto
1.1. A crise do modelo de assistência ao parto e as propostas de
mudança de paradigma
No final do século 20, cresce em todo o mundo um movimento por
oferecer uma assistência à saúde baseada na evidência empírica da segurança
e da efetividade dos procedimentos, em todas as especialidades médicas. No
caso da assistência à gravidez e ao parto, esta preocupação com a evidência é
ainda mais crucial, uma vez que, diferentemente das outras especialidades,
estas práticas irão intervir sobre mulheres e crianças supostamente saudáveis,
e num processo supostamente normal, o parto (Chalmers, 1992).
Mas a própria definição do que seria um parto normal não é universal
ou facilmente padronizável. A partir da crença de que um parto só pode ser
considerado normal “em retrospecto”(Rezende, 1974), na segunda metade do
século 20, houve uma rápida expansão no uso de muitas tecnologias com a
finalidade de desencadear, aumentar, acelerar, regular ou monitorar o processo
fisiológico do parto, com o objetivo de torná-lo “mais normal” e melhorar a
saúde de mães e crianças. Neste processo, tanto em países desenvolvidos
como nos em desenvolvimento, as tentativas de melhorar a qualidade da
assistência ao parto muitas vezes levaram à adoção acrítica de intervenções
inapropriadas, desnecessárias e às vezes arriscadas, sem a devida avaliação de
sua efetividade ou segurança. (Enkin, 1995, 2000; WHO, 1996).
2
A sistematização da reflexão crítica sobre este modelo de assistência ao
parto se inicia, quando, no contexto do Ano Internacional da Criança (1979), é
criado na Europa um comitê regional para estudar os limites das intervenções
propostas para reduzir a morbidade e a mortalidade peri-natal e materna
naquele continente. Ali se detectavam problemas como o aumento de custos,
sem a respectiva melhoria, nos resultados da assistência, a falta de consenso
sobre os melhores procedimentos e a extrema variabilidade geográfica de
opiniões. A partir deste comitê, vários grupos de profissionais passam a se
organizar para sistematizar os estudos de eficácia e segurança na assistência à
gravidez, ao parto e pós-parto, iniciando um esforço que se estendeu
mundialmente, apoiado pela Organização Mundial da Saúde, OMS (WHO,
1985; Chalmers, 1992; Cochrane Collaboration, 1996; Wagner, 1997).
No decorrer do processo, foram incorporados nos grupos de trabalhos,
além dos especialistas, representantes de grupos de mulheres e de
organizações de consumidores dos serviços de saúde, que vieram a cumprir
um importante papel neste esforço (Wagner, 1997).
Este processo envolveu a utilização de estudos randomizados
controlados (randomized controlled trials) como método preferencial de
pesquisa, e o uso da metanálise como instrumento de sumarização sistemática
das pesquisas quantitativas existentes.
Um dos seus resultados mais
importantes foi a publicação da revisão sistemática de cerca de 40.000 estudos
sobre 275 práticas de assistência perinatal, que foram classificadas quanto à
sua efetividade e segurança. Este trabalho de uma década, coordenado por
obstetras1, contou com o esforço conjunto de mais de quatrocentos
1
A primeira versão da publicação de “Effective Care in Pregnancy and Childbirth” Enkin, Kierse,
Renfrew, Nielson,1993 incluía todas as revisões e era excessivamente volumoso e caro para ser um
recurso prático para o uso em serviços; em 1995, foi lançada uma versão condensada, “A Guide to
3
pesquisadores (incluindo obstetras, pediatras, enfermeiras, estatísticos,
epidemiologistas, cientistas sociais, parteiras,
etc.), que realizaram uma
revisão exaustiva de todos os estudos publicados sobre o tema desde 1950
(Johnson, 1997). O trabalho inteiro está disponível em publicações eletrônicas
(página e CD) desde a segunda metade da década de 90.
O grupo que trabalhou as revisões sistemática sobre gravidez e parto foi
o primeiro de centenas de outros grupos que se organizaram nos anos
seguintes para levantar as evidência sobre a eficácia e a segurança de
procedimentos em todas as especialidades médicas. Este movimento e seus
desdobramentos ficou conhecido como medicina baseada na evidência
científica e se organizou em grande medida sob a influência e o entusiasmo
do epidemiologista clínico britânico
Archie Cochrane2. A colaboração
internacional de grupos de pesquisa que compõe este esforço de
sistematização e divulgação da evidência científica disponível tomaram o
nome de “Iniciativa Cochrane” e “Biblioteca Cochrane” em sua homenagem.
A partir mesmo da metade da década de 80, com a publicação da
primeira fase destes trabalhos (WHO, 1985; 1986), a avaliação científica das
práticas de assistência vem evidenciando a efetividade e a segurança de uma
atenção ao parto com um mínimo de, se alguma, intervenção sobre a
Effective Care in Pregnancy and Childbirth”, que passou a ser uma espécie de bíblia dos defensores
da medicina perinatal baseada na evidência.
2
Archibald L. Cochrane (1909-1988) ficou conhecido por seu influente livro “Effectiveness and
Efficiency: Randon Reflections on Health Services” (1972), onde propõe que, como os recursos
para a saúde serão sempre limitados, estes deveriam prover equitativamente aquelas formas de
assistência que se provaram efetivas em estudos avaliativos bem desenhados. Ele defendia neste
livro que “Certamente é motivo de grande crítica à nossa profissão que não tenhamos organizado
um sumário crítico, por especialidade ou subespecialidade, adaptado periodicamente, de todos os
estudos clínicos randomizados relevantes”. Cochrane afirmava que em geral a prática médica se
orientava por 10% de evidências científicas e 90% de pajelança; uma das áreas que recebeu suas
críticas mais agudas – e bem humoradas – foi a obstetrícia, que ganhou dele o prêmio “The wooden
spoon” (a colher de pau, ou palmatória), por ser considerada a mais descolada da evidência
científica em sua prática.
4
fisiologia, e de muitos procedimentos centrados nas necessidades das
parturientes - ao invés de organizados em função das necessidades das
instituições de assistência. Isto resultou em um novo paradigma, que propõe
que
“O objetivo da assistência é obter uma mãe e uma criança
saudáveis com o mínimo possível de intervenção que seja compatível
com a segurança. Esta abordagem implica que no parto normal deve
haver uma razão válida para interferir sobre o processo natural” (WHO,
1996: 4).
Com base nesta concepção de assistência, qualquer intervenção sobre a
fisiologia só deve ser feita quando se prova mais segura e/ou efetiva que a
não-intervenção. Com o avanço dos estudos nesta direção, a argüição sobre
segurança e eficácia estende-se virtualmente a todos os procedimentos de
rotina na assistência à gravidez e ao parto.
A argüição da segurança e da efetividade se estendeu sobre a assistência
pré-natal, onde se constatou que, em grande medida, a extensão e o conteúdo
da atenção pré-natal, incluindo o número de consultas e os exames solicitados,
são ritualísticos ao invés de baseados na evidência. Esta constatação impõe a
necessidade de identificar os elementos da assistência que são de fato
provados como efetivos na prevenção ou no alívio de efeitos adversos na mãe
e na criança (Villar, J, 1997).
Neste processo, o campo da assistência à gravidez e ao parto acumulou
o maior volume de avaliação sistemática já desenvolvido como especialidade
médica até então (Enkin, 1996; Johnson, 1997).
Em meados da década de 90, a OMS passa a divulgar amplamente
documentos baseados nestes estudos, classificando os procedimentos de rotina
em quatro categorias:
5
A- Condutas que são claramente úteis e que deveriam ser
encorajadas;
B- - Condutas claramente prejudiciais ou ineficazes e que deveriam
ser eliminadas;
C- -
condutas
sem
evidência
suficiente
para
apoiar
uma
recomendação e que, deveriam ser usadas com precaução, enquanto
pesquisas adicionais comprovem o assunto; e
D- - condutas freqüentemente utilizadas de forma inapropriadas,
provocando mais dano que benefício.
A classificação buscou tornar mais objetiva a consulta por profissionais
a respeito de suas decisões na assistência. Este trabalho foi publicado em suas
várias versões, inclusive pela OMS, e algumas delas são conhecidos como
“recomendações da OMS”.
Por “recomendações da OMS” estamos considerando, para efeito deste
estudo, quatro documentos: o primeiro é Appropriate Technology for Birth.
(World Health Organization. 1985) também conhecido como “Carta de
Fortaleza”,
foi o primeiro “manifesto” internacional desta corrente, está
incluído como anexo, em português. O segundo, Recomendations for
Appropriate Technology Following Birth (1986), também conhecido como
Carta de Trieste, é uma versão para a neonatologia do que a Carta de Fortaleza
é para a obstetrícia. O terceiro é o Care in Normal Birth: A Practical Guide
(Maternal and Newborn Health/ Safe Motherhood Unit. WHO, 1996); este
trabalho é a versão completa e atualizada da Iniciativa Cochrane nesta área,
sistematizando todos os procedimento metanalisados; está desde 2000
disponível em português, em publicação do Ministério da Saúde e colocamos
em anexo um quadro resumo dos procedimentos. E finalmente, World Health
Day: Safe Motherhood. (WHO, 1998), um documento que retoma os
6
anteriores e coloca a Iniciativa Maternidade Segura também da perspectiva
dos direitos humanos das mulheres3.
Mas como estes trabalhos têm repercutido na assistência ao parto nos
diversos países? Como tem ajudado a promover mudanças? Como acontecem
estas mudanças?
Se consideramos as referidas recomendações da OMS e os
procedimentos reconhecidos como benéficos, vemos que a primeira
recomendação é o desenvolvimento de um plano individual feito pela mulher.
Os estudos mostram que quando a mulher está informada sobre as suas
possibilidades de escolha no parto – aí incluídos o lugar de dar à luz, o
profissional e demais pessoas que vão acompanhá-la e os procedimentos
eletivos na assistência – este parto tem mais chance tanto de ser mais saudável
para mãe e bebê quanto da mulher expressar maior satisfação com a
experiência (Enkin, 2000).
A partir desta concepção de parceria entre usuária e serviços, e de uma
maior simetria nesta relação, surge o conceito de de plano de parto. Como o
nome sugere, este é um planejamento dos procedimentos eletivos no parto, a
ser elaborado no pré-natal, sobre os diversos aspectos do processo, desde as
opções tecnológicas tradicionais e suas alternativas, até formas de
comunicação entre os envolvidos. Não se trata
3
de um contrato de
A Iniciativa Maternidade Segura é uma campanha mundial liderada pela OMS que busca combater
a tragédia da mortalidade materna, ou seja, a morte de mulheres por causas relacionadas à gravidez
ou ao parto, considerada um dos fatores de mortalidade mais preveníveis, pois perto de 100% destas
mortes são evitáveis. Estas mortes se concentram basicamente no mundo em desenvolvimento, onde
em alguns países africanos chega a 1000 mortes por 100.000 nascidos vivos. A taxa no Brasil,
corrigida a subnotificação, é de cerca de 110 mortes por 100.000, contra 3,6 mortes no Canadá.
(BSRM, 21/6). Infelizmente, constatou-se que a mortalidade materna mundial, que chega a 600.000
anuais, aumentou nos últimos 10 anos, seja por ter havido pouca mudança no quadro mundial e/ou
por terem melhorado as informações sobre as mortes.
7
compromisso que não possa ser modificado no decorrer do parto, mas é
principalmente uma oportunidade comunicativa e educativa para todos os
membros da “equipe”- a mulher, a família, o profissional e o serviço.
As recomendações que se orientam por este novo paradigma, ao mesmo
tempo baseado na evidência empírica e nas novas tendências nas relações
entre profissionais e pacientes, postulam a centralidade do direito à
informação e à decisão informada nas ações de saúde. Isto implica uma
mudança importante na concepção de relação médico-paciente, pois supõe que
a decisão deva ser compartilhada entre os envolvidos, ao invés de decidida de
forma unilateral pelo profissional e pela instituição que presta a assistência. A
parturiente não seria mais um objeto calado e imobilizado sobre o qual se
fazem procedimentos extrativos do feto, mas um sujeito com direito a voz e a
movimento, de quem se espera um papel ativo, reconhecendo que será ela a
parir, e da equipe se espera que ofereça o apoio quando e se necessário.
Na prática, no Brasil como em outros países, esta, como outras
recomendações, vem sendo sistematicamente desconsideradas - isto quando
são conhecidas. Este é o caso de condutas como o monitoramento de bemestar físico e emocional da mulher, a oferta oral de fluidos durante o trabalho
de parto e parto, as técnicas não-invasivas e não farmacológicas de alívio da
dor (como a massagem, o banho e o relaxamento); a liberdade de posição no
trabalho de parto e parto, o encorajamento a posturas verticais, entre outros.
Os procedimentos reconhecidamente danosos, ineficazes, e que deveriam ser
eliminados, continuam a fazer parte do dia a dia da maioria dos serviços,
como o uso da posição horizontal durante o trabalho de parto e parto; o uso de
rotina do enema; da tricotomia; da infusão intravenosa; a administração de
ocitocina para acelerarem o trabalho de parto e; os esforços expulsivos
dirigidos durante o segundo estágio do trabalho de parto. Isto sem contar com
8
a perigosa manobra de Kristeller4, entre outros. Mesmo práticas que,
devidamente indicadas, poderiam ser úteis são usadas de forma inapropriada,
causando mais dano que benefício, como os exames vaginais freqüentes e
repetidos.
A assistência é organizada como uma linha de montagem (Martin, 1987;
Rothman, 1992), com a rígida estipulação dos tempos para cada estágio do
parto. A transferência das mulheres de local em local durante o parto, assim
como a própria arquitetura das maternidades - fatores que contribuem para
inviabilizar o respeito à fisiologia do processo (Enkin e cols.1995), são parte
da assistência típica ao parto no Brasil.
Nos últimos anos, tem havido uma distinção cada vez mais enfática
sobre o que se considera “parto normal”. Em geral, o que consideramos como
parto normal é o chamado parto vaginal dirigido, ou seja, aquele que de rotina
é conduzido com a mulher imobilizada ou semi-imobilizada, privada de
alimentos e líquidos por via oral, usando de drogas para a indução ou
aceleração do parto , com a mulher imobilizada e em posição de litotomia no
período expulsivo, com eventual uso de fórceps, e com o uso de rotina
episiotomia e episiorrafia.
Para alguns autores (Gaskin, 2000; Davis-Floyd, 1997; Wagner, 2000),
com os quais nos identificamos, por parto normal devemos entender o parto
que ocorre conforme a fisiologia, sem intervenções desnecessárias nem
seqüelas destas intervenções. Um parto vaginal orientado por uma abordagem
médico-cirúrgica e pelo modelo tecnocrático5 acima descrito, que inclua um
4
Esta manobra consiste na expressão do fundo uterino para ajudar na saída do bebê; como veremos,
é um procedimento tão associado a complicações maternas e fetais graves que sequer é mencionado
em muitos livros e documentos, apesar de ser uma prática corrente nos serviços brasileiros.
5 5
O termo modelo tecnocrático de assistência ao parto (Davis-Floyd, 1992; 1998) é usado para se
referir àquela assistência que parte do suposto que a mulher depende da tecnologia para dar à luz,
9
conjunto de intervenções desnecessárias que vão deixar seqüelas físicas e um
maior desgaste emocional da mulher com sua experiência, deveria se chamar
de “parto típico”6, até por sua variabilidade geográfica, pois como vimos, este
“normal” varia de acordo com o país ou o serviço.
Em sua extensa revisão sobre os procedimentos de rotina no parto
tecnocrático, Enkin e cols. mostraram como a abordagem médico-cirúrgica do
parto, superestimando os riscos inerentes ao processo, freqüentemente implica
a “substituição do risco potencial de resultados adversos pelo risco certo de
tratamentos e intervenções duvidosas” (1995:39)7. Assim, cria-se o chamado
efeito cascata, quando os médicos submetem as mulheres a intervenções “que
podem levar a complicações, gerando intervenções subseqüentes e a mais
complicações, que terminam em uma intervenção final, em geral uma cesárea,
que não teria ocorrido se a cascata não tivesse se iniciado” (Mold e
Stein,1986).
Um dos procedimentos que permanece sendo usado de rotina é a
episiotomia, apesar de há muitos anos os abundantes dados disponíveis
revelarem que esse procedimento não cumpre os objetivos que justificariam
sua realização, sejam eles a prevenção de lesões nos genitais da mãe ou na
cabeça do recém-nascido. Não há qualquer justificativa médica para a
portanto essa assistência deve ser organizada em função daquele conjunto de recursos tecnológicos,
como estações de uma linha de produção, sendo o médico o administrador e manipulador da
máquina parturiente, a mulher (Martin, 1989). Nesse modelo, não se trata de uma oposição
mulheres x máquinas, mas de “recriar, discursivamente e na prática, a máquina de parir perfeita –
uma combinação da mulher e da tecnologia, um cyborg” (Davis-Floyd e Dummit, 1997, Szusek,
1998.)
6
Por “parto típico” entende-se um parto vaginal cuja assistência inclui o conjunto de intervenções
de rotina não baseadas nas evidências científicas, típica do seu respectivo contexto geográfico e
cultural (Wagner, 2000; Gaskin, 2000). O termo é usado em substituição ao vago termo “parto
normal”, que pode incluir desde um parto espontâneo sem intervenções até aquele parto de rotina
induzido, anestesiado, com o uso de fórceps e de episiotomia.
7
Literalmente, [...]“replacing a potential risk of adverse outcome with the certain risk of dubious
treatments and interventions”, no original.
10
realização da episiotomia de rotina ou para seu uso liberal (Thacker e Banta,
1980; WHO, 1985; Enkin, 1995). Mesmo assim, a episiotomia permanece na
rotina de assistência em nossos serviços, implicando em centenas de milhares
de lesões inúteis, arriscadas e potencialmente danosas sobre os genitais
femininos8. Diz-se que só escapa de episiotomia quem faz uma cesárea: é a
escolha entre “cortar em cima ou cortar em baixo”.
Nas palavras de um professor universitário que trabalha pela promoção
da assistência perinatal baseada na evidência:
“Como essa discussão democrática aqui, tem por trás a busca da
cidadania, eu fico muito preocupado com as mulheres brasileiras, se eu
fosse mulher eu já teria feito... sei lá, pegado em armas, porque é muita
violência... porque ela vai para a maternidade, ou lhe fazem um corte na
barriga, desnecessário na maioria das vezes, ou no períneo. De todo
jeito alguém vai atacá-la com uma faca, então é preciso que isso seja
melhor pensado, eu acho que é fundamental essa pressão da clientela
para forçar o médico a tomar atitude de acordo com a melhor ciência
existente ( Atallah, 1999)
Se a incorporação da evidência científica sistematizada à prática
cotidiana de profissionais e serviços tem sido lenta, mais problemática ainda é
a sua incorporação pelo aparelho formador, que pouco tem se modificado a
partir desta mudança de paradigma. (Tew, 1995; Enkin, 1996; Chalmers,
1992).
8
Dada a sua permanência de rotina mesmo diante da evidência bem documentada de sua limitada
indicação, a episiotomia tem sido motivo de acalorado debate. Segundo Kitzinger, esse
procedimento se mantém porque “representa o poder da obstetrícia” e deveria ser considerada “uma
forma de mutilação genital” (BWHBC,1993:458). Para Davis-Floyd (1992:129), por meio da
episiotomia, “os médicos, como representantes da sociedade, podem desconstruir a vagina (e por
extensão, suas representações), e então reconstruí-la de acordo com nossas crenças culturais e
sistema de valores”.
11
Ainda que haja uma variação entre os países, o problema até mesmo do
reconhecimento da existência destes trabalhos de revisão sistemática e das
conseqüências que seus achados apontam parece ser universal, e “apesar do
compromisso da comunidade de saúde pública com a saúde materna e infantil,
é difícil encontrar, mesmo no discurso da saúde pública, o reconhecimento
destes importantes recursos e da distância entre evidência e prática. (Sakala,
APHA, 2000)”.
Uma das lições aprendidas neste processo de revisões sistemáticas é a
de que a disseminação passiva das evidências científicas não é suficiente para
mudar a prática clínica (Goer, 1995; Enkin, 1996). A resistência a tais
mudanças passa por questões extra-técnicas, relacionadas às percepções e
expectativas de profissionais e pacientes quanto ao parto e sua assistência, à
estrutura funcional e física dos serviços, aos problemas do acesso ao leito
obstétrico, às questões de financiamento do sistema de saúde, à cultura sexual
e reprodutiva; entre outras (Kitzinger, 1997; WHO, 1985; Wagner, 1997;
Davis-Floyd, 1992, 1997; Faúndes e Cecatti, 1991; Diniz, 1996 ).
Neste contexto, uma das questões mais importantes que se colocam para
uma agenda de pesquisa seria, portanto, o estudo de como promover as
mudanças que estas evidências nos colocam, e de quais seriam os fatores que
propiciariam ou impediriam a mudança nas práticas (Goer, 1995; Davis-Floyd
e Sargent, 1997; Wagner, 1997).
1.2. A especificidade brasileira das contradições entre evidência
científica e prática obstétrica e as propostas de humanização do parto
Em muitos contextos, como no caso do Brasil, vemos um quadro de
mudança muito tímido, quando algum, de incorporação das recomendações
emanadas do acúmulo de evidência científica referido. Em alguns contextos,
12
temos mesmo
uma
radicalização das tendências opostas a estas
recomendações, expressa, por exemplo, na manutenção de altas taxas de
episiotomia9 e de cesárea.
Mesmo nos últimos anos, com a criação de políticas para o controle do
abuso de cesárea pelo Ministério da Saúde, temos resultados contraditórios. O
aumento da freqüência da cesárea é um fenômeno comum a quase todos os
países do mundo, mas em nenhum país a curva de aumento foi tão acentuada
nem as taxas alcançam níveis tão altos como no Brasil, que em regiões inteiras
ficam acima de 70% (Faúndes e Ceccatti, 1991; Cecatti e cols., 1998). Em
alguns serviços mantêm-se acima de 90%, onde se diz que, quando os partos
normais acontecem, é porque os bebês “pregaram uma peça no médico, foram
mais rápidos do que eles”. O profissional que enfrenta este contexto
institucional adverso e insiste no parto vaginal é freqüentemente considerado
um “trouxa” pelos colegas.
Além dos vários mecanismos de pagamento diferenciado que fazem a
cesárea mais rentável para serviços e profissionais, o estabelecimento de nova
ordem de produção, marcada pela possibilidade da produção em série,
potencializaria, sob a convicção da inocuidade da cesariana, o parto com hora
marcada (Chiaravalloti & Goldenberg, 1998). Generaliza-se o recurso à
cesárea, sob essas condições, “ressaltando-se que
o empresariado da
medicina, no mercado livre de controle, favorecia à predominância das
cesarianas, particularmente nas instituições privadas e nos níveis de renda
mais elevados” (Cecatti e cols., 1998).
9
Não encontramos informações sobre taxas de episiotomia municipais, estaduais ou nacionais,
apenas de alguns serviços. Considerando que a recomendação científica há vários anos é aquela do
fim da episiotomia de rotina, e a manutenção de taxas entre 5 e 10%, o estudo de como se
comportam as porcentagens do seu uso, suas indicações, etc., poderia ser bastante relevante. A
análise destes dados só faria sentido em relação as taxas dos partos normais e não do total de partos,
sobretudo em serviço ou localidades com altos índices de cesárea.
13
No caso brasileiro, há também uma especificidade relacionada à
formação dos médicos obstetras e à cultura médica neste campo. A cesárea a
pedido é indicada pelos mais importantes professores e formadores de opinião
como tratamento da “neurose de ansiedade” que o parto pode despertar
(Rezende, 1974), ou ainda como “preventiva” das supostas lesões genitais do
parto, em muitos serviços foi assumida como regra, como rotina de boa
técnica (Faúndes e Cecatti, 1991; Mello e Souza, 1992; Diniz, 1996; SEADE,
1997; Voloshko, 1997; CRM-SP, 1997; CFM, 1997). No ano de 1996, 52%
dos partos do Estado de São Paulo foram por cesárea; esta cirurgia chegou a
virtualmente 100% dos partos em alguns serviços, havendo cidades inteiras
com incidência acima de 78% . Naquele ano, a cesárea foi a forma de parto de
nada menos que 84% das mulheres com 11 anos ou mais de escolaridade em
São Paulo (SEADE,1997), justamente a parcela que tem melhores condições
de negociar com os serviços. Um estudo mostra que quando se consideram as
diversas categorias de grau de instrução, a taxa de cesárea passa de 35% entre
as mulheres sem nenhuma escolaridade para cerca de 73% entre aquelas de
nível superior (Cecatti e cols, 1998).
Desde 1998, tem havido um conjunto de iniciativas governamentais no
sentido de reduzir as taxas de cesárea, entre elas o apoio a que o parto sem
complicações seja atendido pela enfermeira obstetriz; e o pagamento da
anestesia de parto nos serviços do SUS (a viabilidade deste pagamento foi
negada pelos profissionais e serviços, como veremos). Outra iniciativa foi a
criação de um “teto” percentual decrescente para a cesárea em cada serviço
(que deveria representar 40% no segundo semestre de 1998, 37% no primeiro
semestre de 1999, 35% no segundo semestre daquele ano, chegando a 30% no
primeiro semestre de 2000). Esta iniciativa tem contribuído para estabilizar ou
reduzir as taxas antes ascendentes, pelo menos nos serviços do SUS e em seus
14
conveniados, ao contrário da realidade dos serviços privados, onde estas taxas
aumentaram (BSRM, junho/2000).
O percentual de cesáreas realizadas na rede pública de São Paulo
diminuiu de 45% em 1997 para cerca de 33% em 1999. Nas maternidades
privadas, porém, o percentual de cesáreas entre os partos realizados subiu de
75,2% par 79,6%, havendo serviços, como o Hospital Santa Helena, no
interior do Estado, em que as cesáreas chegaram a 98% do total. (BSRM,
junho/2000) Dados do Ministério de 1999 apontavam para uma queda
nacional do índice de cesárea de 4% em dois anos, com grandes variações,
sendo a maior queda na região centro-oeste (de 40,7 para 28,7%).
Existem ainda evidências de que este dado seja fraudado em
maternidades financiadas pelo SUS, pois “para que a unidade conveniada se
adequasse ao teto estabelecido, cesarianas estariam sendo registradas como
parto normal o que, além de mascarar os dados encaminhados ao SUS, estaria
criando dificuldade para que os familiares investiguem complicações
resultantes da cirurgia.” (Radis/ENSP, p.44).
A fidelidade do registro nos prontuários é um dos dados mais
preocupantes quando se busca estudar a qualidade da assistência. Um estudo
do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) sobre a
assistência ao parto e ao recém-nascido no período de 1997 a 1998, estudando
cerca de 200 serviços, entre públicos, privados e universitários, mostrou que
94% dos prontuários não estava adequadamente preenchido. Esta realidade
“reflete o descaso com o documento mais fundamental para o adequado
seguimento das gestantes, puérperas e recém-nascidos, e para a avaliação
posterior da qualidade da assistência prestada” (Cremesp, 2000:89).
Nesse mesmo estudo, as taxas de cesárea informadas ao Cremesp
(apenas 77 dos 200 serviços estudados informaram suas taxas) mostrou que
15
63% das instituições tinham percentuais acima de 50, e mais de um terço
(36%) informaram percentagens acima de 70, refletindo, na avaliação dos
autores, “um cenário sombrio” (2000:86).
Sabe-se que abuso de cesárea, para além das possíveis repercussões
sobre a saúde das mulheres, tem um enorme impacto adicional sobre as contas
do setor saúde, resultante das complicações infecciosas e anestésicas, ou da
simples ocupação por mais dias de internação dos já reduzidos leitos
obstétricos.
O excesso de cesárea tem importantes repercussões sobre os recémnascidos, incluindo as complicações de saúde e seu impacto sobre as contas do
setor. Segundo José Formiga, chefe do Programa da Assistência à Mulher do
Ministério da Saúde, em 1996, 68% do total de mortes por afecções perinatais
eram devidos aos nascimentos de prematuros e desnutridos, e o índice de
cesarianas seria uma das principais causas de nascimento de bebês
prematuros: “Por falta de treinamento, muitos médicos terminam calculando
mal a idade gestacional e fazem a cesariana antes do que deviam”
(FSP,18/09/96). Há um crescente reconhecimento do impacto das práticas
obstétricas intervencionistas na mortalidade neonatal no caso brasileiro, em
especial o abuso de cesáreas (Schrimer, 1999).
Os recentes estudos sobre o impacto das cesáreas eletivas no Estado de
São Paulo mostram números bastante preocupantes e paradoxais, pois temos
uma tendência crescente de prematuridade e de baixo peso ao nascer (BPN) no
Estado de São Paulo. Uma pesquisa sobre os fatores de risco para essa
tendência em Ribeirão Preto, no interior do Estado, mostrou que, embora as
taxas de crianças nascidas de parto pré-termo tenham crescido para todas as
formas de parto, o aumento foi maior no grupo das que tiveram cesárea,
16
sugerindo que a cesárea representa o mais importante fator de prematuridade
e baixo peso naquela região. (Bettiol e cols., 2000).
Outro trabalho evidencia que o nascimento de crianças com BPN
aumentou mais nas faixas mais altas de renda da família e de qualificação
profissional dos pais. Para explicar esse paradoxo de ter piores indicadores de
saúde entre as famílias mais ricas, os autores concluem que “o aumento do
BPN foi provavelmente devido às praticas iatrogências associadas com a
cesárea eletiva”10 (Silva, AA, 2000).
Vemos um cenário no qual
“uma intervenção criada para proteger a vida da mãe e da
criança, quando indicada e realizada adequadamente, torna-se um
perigo para um ou para ambos, quando utilizada somente para a
conveniência do médico ou da mãe, ou como resultado das
incongruências do sistema de saúde” (Faúndes e Ceccatti, 1991:161).
A situação chegou a tal extremo que os próprios Conselhos Regionais e
Federal de Medicina se lançaram em 1998, junto com outros atores sociais, em
uma campanha pelo parto normal, incluindo eventos de lançamento, simpósios
com profissionais, cartazes e mensagens na TV (CRM, 1997; 1998; CFM,
1997; 1998).
No decorrer do período desde a apresentação do projeto de tese, em
1998, até o presente ano, é notável a quantidade de iniciativas que foram
desenvolvidas no sentido de coibir o abuso de cesáreas no Brasil. Além das
iniciativas das corporações profissionais, em especial as dos médicos, já
10
Estudos em países industrializados mostram que há uma tendência de diminuição do peso ao
nascer, devido a vários problemas, entre elas a interrupção iatrogênica precoce da gravidez, através
da indução e da cesárea. Um estudo na Noruega mostra que o baixo peso e a prematuridade
aumentam mais entre as ricas e não-migrantes, associados ao aumento “dramático” da cesárea
eletiva, mais freqüente entre esta faixa superior de renda também naquele país (Kramer, 1997).
17
citadas, temos também aquelas organizadas pelas enfermeiras-obstetrizes.
Estas profissionais têm sido muito valorizadas no novo modelo proposto, e
encontram na atual conjuntura uma rica oportunidade de ocupação de um
espaço profissional, antes relativamente restrito aos médicos. Esta
revitalização da profissião de enfermeira obstetra se reflete também em sua
organização como categoria, através da Associação Brasileira de Enfermeiras
Obstetras (ABENFO).
O Ministério da Saúde, agora gerido por um economista, assumiu o
conjunto de medidas para a redução das taxas de cesáreas já referidas, com as
respectivas sanções financeiras para aqueles serviços que não reduzirem suas
taxas de cesárea. O Ministério desenvolveu outras iniciativas de incentivo às
mudanças como a criação do prêmio Galba de Araújo11, destinado àqueles
serviços que se auto-definem como humanizados, tomando como referência
para esta humanização as recomendações da OMS (OMS-1996). O prêmio,
concedido a nível estadual, regional e nacional, tem provocado uma
mobilização considerável dos hospitais e tem tido a participação de um
número de serviços crescente a cada ano. Esta iniciativa inaugurou um
processo mais amplo de humanização dos serviços conduzido pelo Ministério,
com os projetos de “Humanização do Atendimento ao Pré-natal e ao Parto” e
de “Humanização de Hospitais”, lançados respectivamente em maio e junho
de 2000, que pretende abranger centenas de instituições.
11
Galba Araújo foi um obstetra e professor da Universidade Federal do Ceará, que iniciou na
década de 70 programas a incorporação de parteiras tradicionais e seu conhecimento a uma rede de
referência de assistência à gravidez e ao parto. Admirador do trabalho das parteiras, foi um
incentivador de seu reconhecimento, e trabalhou com a introdução de tecnologia apropriada para o
parto e o nascimento, entre eles o parto na posição vertical, o parto na rede e o banquinho de parto.
Seus projetos de educação em saúde para a diminuição da mortalidade materna e infantil, e de
participação da comunidade nas ações de saúde, foram reconhecidos internacionalmente e
reproduzidos em muitos países.
18
Outra medida adotada para reduzir o número de cesáreas tem sido o
estímulo à criação de Casas de Parto, baseada na evidência de que este pode
ser um recurso seguro e com boa aceitação pelas mulheres, no contexto de
uma rede de referência hierarquizada de assistência, em contextos rurais ou
mesmo em
grandes centros urbanos (WHO, 1996). Estas medidas têm
despertado uma polêmica acalorada e mobilizado defensores e opositores
apaixonados nos diversos segmentos que estão envolvidos, dentro e fora das
instituições de assistência ao parto no Brasil.
Neste período também foi criada a CPI da Mortalidade Materna, em
junho de 2000. Considerando que o Brasil está estacionado em índice de
mortalidade materna de cerca de 10 a 20 vezes aquela considerada aceitável,
criou-se um esforço em três frentes. Numa delas, a referida CPI; em outra, a
Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos (RNFSDR) lançou
uma ampla companha educativa nacional; e por fim, o Ministério da Saúde,
além de apoiar as iniciativas anteriores, anunciou uma série de medidas para a
humanização do parto e redução dos índices de cesárea.
Desta forma, vemos que mais recentemente a termo humanização passa
a ser incorporado mesmo por formuladores de políticas. Uma das vertentes
desta humanização na mudança da assistência materno infantil que vem se
institucionalizando nos anos recentes tem tem sido aquela ao recém-nascido.
Na década de setenta se consolida uma crítica ao tratamento ao recém-nascido
e um questionamente às rotinas de assistência, que tinham como pressuposto a
necessidade de um conjunto de intervenções de rotina, que se mostraram
desnecessárias e potencialmente dolorosas e perigosas.
Além das repercussões do uso de drogas e outras intervenções na mãe,
entre outras rotinas tínhamos, no momento do parto, vários procedimentos
agressivos ao bebê, como luzes fortes e o aparelho de ar condicionado ligado,
19
forçando o bebê a um choque térmico entre o ambiente intracorporal de cerca
de 36 graus e o meio externo. O bebê tinha o cordão clampeado
imediatamente, levando a uma supressão súbita de oxigênio e à respiração
forçada e dolorosa, era pendurado pelos pés e não raramente, recebia um tapa
para atestar sua vitalidade. Depois disso, era separado da mãe e levado por
outros profissionais, e de rotina, mesmo que estivesse respirando
perfeitamente, passava por uma “reanimação” que incluía uma sonda
introduzida até o estômago, sofria ainda instilação de gotas profiláticas nos
olhos que além de dolorosas, deixavam o recém-nascido com a visão nublada
por várias horas ou dias.
O bebê era de rotina separado da mãe para observação por um período
variável de algumas horas a um dia ou mais, em um berçário (hoje propõe-se a
extinção dos bercários para bebês normais), lugar onde ficava instalado
durante toda a estada no hospital. O contato com a mãe era regulado, e em
muitas instituições restritos a alguns dos horários das mamadas, pois em
outros horários, a criança era alimentada com leite em pó. Até a década de
oitenta, com a permissão dos serviços, era comum que todas as mães
recebessem no hospital a visita de uma representante das companhias de leite
em pó, vestidas como enfermeiras, que davam latas de leite para os primeiros
dias do bebê como amostra. Como não havia orientação sobre amamentação,
houve uma tendência generalizada de desmame precoce, com conseqüências
catastróficas para a saúde e mortalidade infantis. Os estudos mostraram que os
bebês alimentados por mamadeiras em condições de pobreza tinham um risco
até 25 vezes maior de morrer no primeiro ano de vida que um bebê
amamentado ao seio (UNICEF/WHO/UNESCO, 1989).
Este quadro vem sendo revertido com um grande esforço mundial
iniciado pela militância pró-aleitamento, que afrontou a indústria de alimentos
20
infantis através de um boicote mundial,
criando uma aliança mundial
(WABA, World Breastfeeding Alliance)12, incluindo instituições de saúde,
associações profissionais e órgãos governamentais. No Brasil, esta aliança
impulsionou a criação da Iniciativa Hospital Amigo da Criança, uma espécie
de “título” ganho por serviços que promovem (ou que não boicotam) o
aleitamento.
Até recentemente, acreditava-se que os recém-nascidos, em especial
aqueles prematuros, não tinham sensibilidade normal à dor, o que justificava
um conjunto de intervenções dolorosas feitas sem anestesia, como a inserção
de catéteres e numerosas punções venosas. Os prematuros eram mantidos
afastados da mãe e da família, em UTIs neonatais onde o contato pele a pela e
a criação do vínculo familiar não eram uma preocupação cotidiana.
Este movimento de humanização da assistência ao bebê tem muitas
relações e analogias com a humanização do parto, como nos conta uma
professora que se dedica ao trabalho de mudança institucional e de docência
neste campo:
Então, atualmente, assim, eu tenho feito uma leitura, da iniciativa
(Hospital Amigo da Criança), um pouco além da promoção da
amamentação em si, que já é uma questão fundamental e muito
importante; mas, assim, eu acho que as maternidades que trabalham a
iniciativa, elas também acabam trabalhando, caminhando no sentido da
humanização nesse sentido, de estar suprindo as necessidades do bebê,
desde o momento em que ele nasce. Bom, se em relação a bebês
saudáveis, as maternidades ainda, no momento, não têm uma
12
A WABA tem ainda um dos mais belos e funcionais sites de saúde do Brasil, o
www.aleitamento.org.br
21
preocupação tão grande em relação a suprir essas necessidades básicas,
a situação dos prematuros é um pouco pior, porque o prematuro é
aquele bebê que é mais privado desse contato com a mãe, em geral ele
fica isolado, na Isolete, exposto aquele ruído super forte ali,
incomodando os ouvidos, ele tem pouco contato... pouco estímulo,
praticado pela mãe, pelo pai, pela família, um contato maior com os
profissionais de saúde; e, assim, são sujeitos a inúmeras intervenções,
coleta de exames, enfim, então, esses bebês, eles realmente são
desprivilegiados. Tem alguns estudos mostrando que expor um bebê a
uma situação, como essa que eu descrevi, pode levar essa situação de
stress, a que ele é submetido, pode levar até manifestações
psicossomáticas mesmo. Um exemplo clássico: sangramentos digestivos
de bebês prematuros em UTI. Então, tem alguns estudos mostrando que
essas hemorragias, enfim, elas podem ser decorrentes, uma resposta do
bebê a esse stress da UTI Pediátrica. Teruya, 1999.
Um dos recursos para a humanização da assistência ao recém-nascido,
que tem sido incorporado em um número crescente de serviços por ser muito
custo-efetivo, e recentemente contar com um apoio efetivo do Ministério da
Saúde, é o programa Mãe Canguru13.
13
Desenvolvido na Colômbia no final da década de setenta pelo Instituto de Saúde Materno Infantil
de Bogotá (ISMIB), este projeto foi concebido em um serviço em que se convivia com uma
carência crônica de leitos de UTI para prematuros, levando a uma grande mortalidade perinatal.
Resolveu-se substituir as incubadoras ausentes por instalar os prematuros no colo da mães, entre os
seios, fixado com panos, para permitir o aquecimento pelo contato físico permanente. No início da
década de oitenta, se constata que além dos bons resultados do método em termos dos parâmetros
biológicos dos bebês, (temperatura, freqüência cardíaca, amamentação, ganho de peso, etc.), há uma
evidente vantagem emocional. Além disso o método tinha grandes vantagens econômicas, até
porque tinha sido concebido pela pressão da carência de recursos, soando para muitos apenas como
uma forma de “medicina para pobres”. Nessa direção, “foi recebido com restrições pela
comunidade científica internacional, devido à ausência de evidências científicas sólidas que
demonstrassem sua eficácia, efetividades e segurança”, até que estudos na década de noventa
22
Este processo de mudança e de ganho de legitimidade do uso e recursos
alternativos na atenção ao recém-nascido certamente contribui para ampliar o
espaço de mudança possível no cenário do parto. As duas abordagens
investem mais na relação humana – tanto em termos de comunicação quanto
mesmo da relação corporal, pele a pele, e a utilização dos recursos fisiológicos
do corpo reprodutivo ao invés de sua substituição por máquinas, e ainda,
ambas adotam, com menor ou maior ênfase, o termo “humanização” desta
assistência,.
Mais uma vez se coloca a questão: o que enfim se quer dizer quando se
fala em “humanização”? Não é objetivo deste trabalho encontrar a
humanização “correta”; mas sim reconhecer que cada um dos diferentes
sentidos dados à “humanização” delimita a participação de cada um dos atores
sociais neste diálogo. Estes diferentes sentidos e o diálogo que ele instaura são
temas a serem explorados neste trabalho.
Qual seria, por exemplo, os sentidos da humanização para as mulheres
organizadas? No caso brasileiro, quando o movimento de mulheres se
reorganiza a partir da década de setenta, inicialmente enfrenta a fase em que
era mais importante reafirmar o direito a decidir sobre não ter filhos, uma vez
que a urgência era questionar a maternidade obrigatória, considerada como
destino biológico de toda mulher “normal”. Nesta fase do movimento, duas
correntes políticas igualmente autoritárias disputavam a cena: por um lado os
anti-natalistas, que alardeavam que o planeta estava à beira do colapso por
causa da explosão demográfica (portanto as mulheres deveriam ser obrigadas
a reduzir o número de filhos a qualquer custo, para salvar a economia e o
planeta), e por outro, os natalistas, que defendiam que as mulheres deveriam
mostraram sua adequação, quando
(http://kangaroo.javeriana.edu.co/)
passa
a
ser
adotado
em
países
ricos
23
ter quantos filhos a natureza lhes trouxesse, pois regular a fertilidade era
pecado contra Deus e contra os interesses da nação (portanto as mulheres
deveriam ser proibidas de usar contraceptivos e de interromper a gravidez
indesejada). Estes dois pontos de vista consideravam a mulher como objeto,
como meio para alcançar objetivos alheios, jamais como sujeitos de suas
vidas, cidadãs capazes de fazer escolhas conscientes com relação à sua
fertilidade (Ávila, 1993; Diniz, 1998).
Dentro do movimento de mulheres passa a haver, ainda na década de
setenta, um crescente reconhecimento de que, mesmo quando a maternidade
era uma escolha consciente, esta era vivida em condições de opressão,
relacionadas ao controle social das grávidas. As mulheres se viram tratadas
não como pessoas, com necessidades adicionais e singulares, mas sim como
embalagens do feto, como uma “pélvis ambulante” assexuada, a ser vigiada e
submetidas a todo um conjunto de intervenções institucionais, em especial no
campo da medicina ( Ehrenreich & English, 1973, Rich, 1986; Rothman,
1992) muitas das quais, como vimos, irracionais, arriscadas, violentas e de
eficácia duvidosa.
No Brasil desde a década de oitenta, este movimento passa a ter como
uma de suas frentes a assistência ao parto, produzindo material educativo e
propondo políticas públicas, usando o termo humanização da assistência ao
parto.
E quais seriam as relações das distintas propostas de mudança da
assistência, e de seu conteúdo técnico, com as questões dos direitos das
pacientes, dos direitos reprodutivos e dos direitos humanos? Estas perguntas
tem sido colocadas mais recentemente por diversos atores sociais, como o
movimento internacional de mulheres pelos direitos humanos (Bunch e Heilly,
24
1999; Cook, 1996; CLADEM, 1998) e mesmo por agências como a
Organização Mundial de Saúde (WHO, 1998).
A discussão sobre humanização é de certa forma uma versão brasileira,
ou latino-americana, daquilo que nos países de língua inglesa é chamado
movimento por um “gentle birth” , “respectful birth”, entre outros termos
mais imediatamente referidos ao cuidado na relação pessoal. Ou daquilo que
em muitos contextos é referido com termos aparentados, como o “natural
childbirth” e suas muitas variações, herdeiros da tradição menos ou mais
crítica da assistência, do parto psicoprofilático de Dick-Read e de Lamaze na
década de 50, do método Bradley (“husband-coached birth”), que já trazia na
década de 60 o papel crucial do pai como acompanhante e do nascimento
como evento familiar.
Há também a abordagem centrada no parto ativo (“active birth”),
disseminado pelo trabalho de Janet Balaskas, que preconiza um papel ativo
física e emocionalmente por parte da mulher, que se educa sobre o nascimento
e assume seu papel de protagonismo na parto, ao invés de um papel passivo e
dependente, além de uma linha de parto centrado na mulher (“womencentered childbirth”), entre outros.
Cada um destas abordagens, que são de certa forma complementares
entre si, denota sua respectiva crítica a alguma face do modelo - à falta de
gentileza e de respeito; à assistência que obriga as mulheres à passividade e à
imobilidade,
que isola a mulher e impede o envolvimento paterno; que é
centrado na conveniência de profissionais e instituições e não das mulheres,
etc.
Desde a década de setenta, temos a importante contribuição de dois
autores franceses - a crítica vinda da neonatologia e do trabalho de Leboyer
pelo parto não-violento com o bebê, e a contribuição de Michel Odent e sua
25
anti-obstetrícia. Com estes autores, os termos violência na assistência e
humanização passam a ser mais popularizados na literatura latina.
Na década de oitenta, a discussão sobre os modelos de assistência leva à
distinção entre o modelo baseado na parteira, ou holístico, e o modelo médico
ou tecnocrático (BWHBC, 1998; Davis-Floyd, 1993), problematizando os
conflitos filosóficos, corporativos e financeiros envolvidos.
Mais recentemente, a discussão sobre humanização e direitos humanos
tem ocupado um espaço relevante no cenário internacional, mesmo em língua
inglesa. Em setembro de 2000, uma conferência internacional de midwifery
incluiu em seu programa várias referências a “humane care” e “humane
approach” (International Midwives Conference). Em novembro de 2000
ocorreu a Conferência Internacional sobre Humanização do Parto
(International Conference on the Humanization of Childbirth), apoiada por
instituições como UNICEF e FNUAP (Fundos das Nações Unidas para
Infância e para Assuntos de População), que teve entre seus objetivos
principais discutir como o conceito de maternidade segura pode incluir as
questões sobre o cuidado humanizado ao parto;
e como o cuidado
humanizado à maternidade pode ser promovido como um direito humano.
Assim, vemos que a busca por uma assistência humanizada ao parto é
um tema de crescente interesse, ainda que os sentidos, conteúdos e finalidades
desta forma de assistência sejam em grande medida um debate em aberto.
1.3. A distância entre intenção e gesto: as propostas de mudança,
limites e possibilidades
26
É importante reafirmar que o desenvolvimento de propostas de mudança
das práticas em direção à sua humanização (como vimos, seja qual for o
sentido dado pelo ator social participante deste diálogo), por parte de várias
instituições – inclusive do Ministério da Saúde - é muito marcante nos três
anos decorridos desde que apresentamos este projeto de tese, criando um
campo mais amplo de possibilidades de mudança concreta nos serviços que
aquele vislumbrado originalmente. Temos várias iniciativas institucionais de
mudança da assistência, em um contexto em rápida transformação.
Por um lado, em resposta aos incentivos do Ministério da Saúde mas
agindo desde anos antes deles, temos serviços e indivíduos que tentam
trabalhar com este novo paradigma, que busca operar uma síntese entre a
medicina baseada em evidências e o respeito ao direito das usuárias, com
menor ou maior sucesso. Parte destes sujeitos se organizam a partir do final da
década de 80 e no início da década de 90, fundam a Rede Nacional pela
Humanização do Parto e do Nascimento (REHUNA), que inclui dissidentes
representantes de segmentos diversos, entre eles profissionais de saúde –
médicos (sanitaristas, obstetras, pediatras), enfermeiras obstetrizes; parteiras;
usuárias; formuladores de políticas; diretores de serviços; grupos de mulheres;
pesquisadores; acadêmicos; movimento popular de saúde, centros de práticas
alternativas, entre outros.
Mais recentemente, como veremos, temos em São Paulo a entrada do
movimento popular de saúde diretamente na cena do parto, como no projeto
de doulas conduzido pela Comissão de Saúde da Mulher do Movimento de
Saúde da Zona Leste. Este projeto se traduz em outro tipo de militância,
aquela que busca intervir com a assistência no momento de sua realização,
agora como parte da equipe. Temos uma incipiente organização de
consumidores, mães, pais e simpatizantes, lutando por seu direito de presença
27
na sala de parto, e ainda o surgimento de sites e listas eletrônicas
(partonatural@Egroups, amigasdoparto@Egroups), onde
estes
sujeitos
debatem e buscam assistência para o parto “natural”.
O papel dos consumidores nas mudanças de políticas tem sido afirmado
como um fator decisivo em vários contextos, locais ou internacionais. Esta
importância é reconhecida nos vários documentos da OMS, e a representação
dos consumidores é obrigatória na Colaboração Cochrane, não apenas na
proposição de temas dos grupos de trabalho, mas também na leitura das
revisões sistemáticas: nesses grupos, o que não é compreensível para as/os
consumidores/as não é aceito para publicação. Os usuários na iniciativa têm
seu próprio boletim e processos de treinamento para a leitura crítica das
revisões (Cochrane, 2001, Bastian, 1994).
A esta amplo e heterogêneo conjunto de atores sociais, incluindo setores
não-governamentais e governamentais, identificados com as propostas de
humanização do parto e do nascimento, chamaremos, genericamente, de
movimento pela humanização do parto.
Enfim, temos na cena um amplo leque de reações a estas propostas de
mudança na assistência, positivas ou negativas, de apoio, restrito ou irrestrito,
ou mesmo de rejeição, vinda de todos os mesmos setores envolvidos, sejam
eles os profissionais – os médicos em geral e os gineco-obstetras e pediatras
em especial; enfermeiras, obstetrizes ou não; administradores de serviços,
públicos e privados; seguros e planos de saúde; usuárias dos serviços privados
e públicos (e seus acompanhantes/maridos, que agora contam com uma lei
para a garantia de sua presença no parto).
Estas mudanças trazem um
conjunto de questionamentos a cada um destes sujeitos que ainda estão para
ser respondidos, num processo de ajuste e reação em que os limites e
possibilidades das mudanças estarão sendo testados. Estas mudanças
28
envolvem de forma profunda estes sujeitos, propondo ou impondo novos
papéis para cada um dos envolvidos no drama do parto.
Quem pode atender aos partos, apenas o médico? Se não, isto não seria
uma temeridade, em termos da segurança de mãe e criança? Se alguém mais,
seria a enfermeira obstetriz, de nível superior? Qual seria o lugar da parteira,
seja ela leiga, treinada, formada, estrangeira, etc.? Quem poderia estar
presente no parto? Qual o papel, se algum, do marido- que segundo o folclore
médico, corre risco sério de desmaiar? Qual o papel dos outros
acompanhantes? E as doulas, ou monitoras perinatais, tão em moda, trazidas
pela própria MPBEC? Como se preparar para estas novas presenças? Quais as
novas conveniências, negociações de papéis e responsabilidade trazidas por
estas interações?
Estão em cheque também os lugares do parto – será o hospital de fato o
melhor cenário? O questionamento à segurança de mãe e criança prometida
pelo parto hospitalar tem sido uma das heresias trazidas pela medicina baseada
em evidências, que coloca a possibilidade do parto em Casas de Parto ou
mesmo no domicílio como uma das opções seguras a serem consideradas nos
partos de baixo risco. E qual o sentido de ter os partos nos centros cirúrgicos?
E na posição horizontal, porque manter as mulheres numa posição tão
desfavorável ao bom desenrolar do parto, se há alternativas às quais os
profissionais podem se ajustar? E o que fazer com o conceito de que o parto só
é normal em retrospecto? Qual o lugar, se algum, do chamado parto dirigido,
aquele em que cada uma das funções do corpo feminino no parto – contração,
dilatação, expulsão, etc. – deve ser substituído por uma intervenção, manejado
e ter seu tempo controlado?
Como lidar com o fato muito concreto de que as construções das
maternidades expressam uma certa concepção de assistência, fragmentada e
29
fragmentadora do processo fisiológico da parturição, que em seus tempos e
movimentos estipulados para cada fase do trabalho de parto, “conspiram
contra a evolução fisiológica”? Porque seguir acreditando que o período
expulsivo não deveria durar mais que meia hora? Porque interromper as
gestações quando estas completam 40 semanas, quando há evidência da
segurança de aguardar mais tempo?
Porque fazer uma mulher ser transferida de leito em leito durante o
trabalho de parto, como em uma linha de montagem (Martin, 1987; Davis
Floyd, 1992; Rothman, 1993), freqüentemente em diferentes andares de um
prédio; primeiro no leito de admissão; depois no de pré-parto, fora do centro
cirúrgico, até o fim do período de dilatação; para durante a delicada fase
chamada de transição (fim da dilatação) a mulher ser rebocada para a sala de
parto, no centro cirúrgico; depois do qual para uma maca num corredor ou
uma sala de recuperação/pós-operatório; em seguida para o leito de puerpério
– num movimento conforme a conveniência dos serviços porém atrapalhando
em todos os sentidos a fisiologia do parto?
No caso brasileiro, temos ainda a convivência paradoxal de dois
problemas igualmente graves. Por um lado, temos sérios problemas de acesso
aos serviços, com grandes áreas geográficas com déficits de leitos de
maternidade, o que leva a uma distorção conhecida como “peregrinação por
leito”, com freqüência durante o trabalho de parto e parto, e com
gravesconseqüências sobre a saúde da mulher e do bebês (Tanaka, 1995). Em
termos da segurança desta peregrinação, dentre as mortes maternas no período
do estudo, 55% ocorreram durante a peregrinação. Este é o pólo “falta de
assistência” do problema.
Por outro lado, temos o uso abusivo, intensivo e desnecessário de
procedimentos como a indução de parto, os fórceps de alívio, a manobra de
30
Kristeller, a episiotomia e a cesárea, levam a um maior consumo de material,
mais complicações, mais custos, mais dias de internação e de incapacidade
para as puérperas. Este é o pólo do “uso abusivo dos recursos de assistência”
do problema.
Este contexto reflete a permanência do que o professor Roberto
Caldeyro-Barcia14 já apontava na década de 70:
“A principal distorção da obstetrícia moderna é oferecer tecnologia
inadequada, cara, potencialmente perigosa e dolorosa para os partos
normais que delas não se beneficiam; o que muitas vezes resulta em não
oferecer tecnologia adequada para os partos anormais para os quais esta
tecnologia poderia ser útil”
Pode-se dizer que no caso brasileiro, para ter relações sexuais sem ter
filhos, ou para ter filhos, faz-se necessária uma “mediação cirúrgica” que
muitas vezes faz parte das histórias de vida de forma tão inevitável quanto a
menstruação ou a menopausa. (Diniz, 1997; Diniz e d’Oliveira 1998; Citeli e
cols, 1996; Hotimsky, 2000; Rattner, 1994; Dalsgard, 2000). Este
cirurgificação parece ter, no contexto brasileiro, uma utilidade ao mesmo
tempo funcional e estética, reprodutiva e sexual.
Há muito a cirurgia gineco-obstétrica parece ter avançado seu caráter
“reparador” de órgão sexuais ‘lesionados’ pela reprodução, para assumir uma
abordagem claramente estética, aquela da cirurgia plástica. A preocupação
14
O professor uruguaio Roberto Caldeyro-Barcia (1920-1996) foi um dos mais importantes
personagens médicos do movimento pela humanização do parto. Fisiologista de formação, ele ficou
conhecido internacionalmente por seus estudos pioneiros sobre a fisiologia da contratilidade uterina.
Foi professor honorário de várias universidades estrangeiras e indicado ao prêmio Nobel de
fisiologia. A partir dos seus próprios estudos, fez uma profunda crítica à própria prática e à
obstetrícia médica, em especial às posições convencionais de parto, consideradas por ele um
obstáculo à parturição por serem anti-fisiológicas. Escreveu já no final da década de setenta o
clássico “Bases Fisiológicas e Psicológicas del Manejo Humanizado del Parto Normal”
(CLAP/OPAS, 1979).
31
com o “estado” do aparelho genital e seu impacto sobre a vida sexual torna-se
cada vez mais um objeto de trabalho dos médicos no Brasil (www.obsidiana);
“o culto ao corpo no Brasil direcionou o bisturi dos cirurgiões plásticos para a
intimidade de homens e mulheres” (Folha de São Paulo, 30/06/96).
No caso brasileiro, onde a cirurgia plástica sexual vem cada vez mais se
afirmando como especialidade, cresce a demanda por procedimentos como a
“reconstrução de episiotomia” (“quando a costura feita no corte que facilita a
passagem da criança fica ‘torta’ ”) e “estreitamento da vagina” ( “realizada em
mulheres que já tiveram filhos e sofreram alargamento da vagina”)15. Todos
estes procedimentos instauram e explicitam o modelo de assistência que
considera o parto necessariamente como um agravo ao corpo feminino,
necessitado de reparos posteriores.
Neste contexto de redefinições e contradições, quais seriam os alcances
e limites das propostas de humanização do parto? Como estes fatores –
relativos à formação dos recursos humanos, às corporações profissionais, à
estrutura física dos serviços, ao papel de suas lideranças institucionais, aos
mecanismos de financiamento, à cultura sexual e reprodutiva, entre outros,
influenciariam a mudança, no sentido de promovê-la ou de impedi-la? Qual
tem sido o resultado das propostas de mudança, quando estas se confrontam
com os limites do real?
15
Essa especialidade oferece ainda as ninfoplastias (reduções de pequenos lábios), o implante de
pêlos pubianos, a correção da hipotrofia ou da hipertrofia do púbis, a correção do “clitóris
enclausurado”; e, para os homens, o engrossamento ou o alongamento do pênis, a neurotomia
seletiva do pênis (para tratar a ejaculação precoce), a correção de ptose (queda) do saco escrotal,
entre outros.
32
Capítulo 2
Material e Método
2.1. Objetivos do estudo
2.1.1. Objetivo Geral
Este trabalho tem como objetivo estudar as possibilidades e os limites
da implementação das propostas sobre a assistência humanizada ao parto,
tomando como referência as recomendações da OMS (1996) e como caso para
estudo dois serviços financiados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), no
município de São Paulo, no período de 1998 a 2000.
Nesse sentido, buscará compreender como, se e em que circunstâncias
os fatores extratécnicos (culturais, institucionais, corporativos, financeiros, do
espaço físico, entre outros) influenciam a adoção e a adesão de profissionais a
essas novas propostas, rotinas e procedimentos na assistência ao parto, assim
como identificar os argumentos que buscam justificar essa adesão ou a
resistência às mudanças.
2.1.2. Objetivos Específicos
2.1.2.1. Estudar os processos de mudança na assistência ao parto em
dois serviços de assistência ao parto identificados com o modelo de
humanização, buscando identificar as características das instituições e dos
recursos humanos associados à mudança ou à permanência de elementos
vinculados aos modelos tradicionais.
2.1.2.2. Estudar, nesses serviços, a percepção de profissionais sobre as
mudanças nas práticas de assistência no cotidiano do seu trabalho, com
33
destaque para as contradições entre a evidência e a prática; as prescrições de
mudança e os limites encontrados.
2.1.2.3. Estudar como os administradores dos serviços estudados
propõem, implementam e monitoram esses processos de mudança
institucional e como identificam e manejam possibilidades e limites dos
processos.
2.1.2.4. Estudar se, quando e em que circunstâncias a experiência de
situações injustas ou violentas na assistência ao parto são percebidas como
contrárias à idéia de humanização pelos sujeitos envolvidos, seja sob a forma
de violação de direitos estabelecidos, seja sob a forma de maus tratos ou de
inadequação da assistência.
2.1.2.5. Contribuir para a reflexão sobre os direitos humanos na
assistência ao ciclo gravídico-puerperal e suas relações com as propostas de
humanização dessa assistência.
34
2.2. Material e Método
2.2.1. Hipótese
Este trabalho parte da hipótese de que o movimento pela humanização
do parto tem um papel central na promoção do diálogo entre os diversos
sujeitos sociais atualmente em conflito na assistência ao parto, na direção de
um novo arranjo de assistência, orientado tanto por mais respeito à evidência
empírica da segurança e eficácia dos procedimentos, quanto pela maior
promoção dos direitos humanos das pacientes.
Esse novo paradigma da assistência, baseado na busca da síntese entre a
evidência científica e a promoção dos direitos humanos, encontra, para sua
implementação na prática, um conjunto de desafios – institucionais,
corporativos, financeiros, de estrutura física, de formação dos recursos
humanos, da cultura sexual e reprodutiva, entre outros –, que estão sendo
enfrentados, com maior ou menor sucesso, por alguns serviços.
Para desenvolver essa hipótese, este trabalho utilizará uma combinação
de metodologias qualitativas, incluindo observação de plantões em duas
maternidades identificadas com o modelo de humanização na cidade de São
Paulo; análise das discussões realizadas em encontros sobre o tema no período
de 1998 a 2000; do tratamento dado ao tema em órgãos da imprensa médica e
documentos normativos a respeito da humanização do parto; da produção de
depoimentos de profissionais e parturientes por meio de entrevistas semiestruturadas e conversas informais durante os plantões observados.
2.2.2. Quadro interpretativo
2.2.2.1. Da narcose ao quimono alienígena: os muitos sentidos da
humanização - um conceito em construção (e em disputa)
35
O termo “humanizar”16 e seus
derivados (que como vimos
anteriormente foi retomado e disseminado por atores sociais diversos) têm
adquirido sentidos igualmente diversos, em distintos contextos. Para deixar
claro para o leitor de que referência partimos, o sentido de humanização que
adotamos toma como base aquele usado pela REHUNA, referente a uma
atenção que parte do reconhecimento dos direitos fundamentais de mães e
crianças e do direito à tecnologia apropriada na assistência. Esse conjunto de
demandas incluiria o direito à escolha de local, pessoas e formas de assistência
no parto; a preservação da integridade corporal de mães e crianças; o respeito
ao parto como experiência altamente pessoal, sexual e familiar; a assistência à
saúde e o apoio emocional, social e material no ciclo gravídico-puerperal; a
proteção contra abuso e negligência (REHUNA, 2000). Mais adiante,
retomaremos a discussão dos vários sentidos que o termo pode adquirir,
encontrados no decorrer do trabalho.
A nosso ver, nessa noção há uma convergência entre as concepções
mais relacionadas à chamada medicina perinatal baseada na evidência e o
movimento que reconhece e busca promover os direitos das mulheres e
crianças na assistência, no marco mais amplo dos direitos humanos (Diniz,
1997; Diniz e d’Oliveira, 1998; WHO, 1998; CLADEM, 2000). Queremos
deixar claro que entendemos que a noção de direito que orienta a segunda
concepção é, em muitos sentidos, distinta da matriz que orienta a noção de
16
Encontramos em Ferreira (1986:908) o verbo humanizar como “1. tornar humano, dar condição
humana a; humanar. 2. tornar benévolo, afável, tratável; 3. fazer adquirir hábitos sociais polidos;
civilizar.[...]”; e o substantivo humanização como “ato ou efeito de humanizar (-se)”. No debate
atual sobre a prática obstétrica , acreditamos que o mais interessante de recorrer ao termo é a
sugestão de que o caráter interpessoal (de resto sempre colocado de alguma forma em qualquer
procedimento técnico) seja ativa e democraticamente negociado na definição das formas de
organização da assistência ao parto.
36
“medicina baseada na evidência”, porém nesse contexto preciso, há uma
grande convergência e mesmo uma inter-relação entre as duas.
Como muitos atores sociais, inclusive dentro do campo médico,
acreditamos que, no caso brasileiro, não há como conter a epidemia de cesárea
sem uma mudança
radical que humanize, no sentido acima descrito,
a
assistência ao parto vaginal, pois o recurso à cesárea tornou-se uma alternativa
considerada aceitável frente às dificuldades de acesso a leitos e à “difícil
escolha entre a tortura da sala de parto e a faca mesmo”17.
Contudo, partimos do reconhecimento de que não há consenso sobre o
sentido do termo humanização e seus derivados e que os vários atores sociais
envolvidos nesse diálogo parecem utilizá-los de maneiras distintas. A rigor, o
termo é utilizado há muitas décadas, desde os primeiros grandes autores
brasileiros da Obstetrícia, como Fernando de Magalhães – considerado o “Pai
da Obstetrícia Brasileira” –, que o empregou no início do século XX, e, na
segunda metade do século, o professor Jorge de Rezende. Ambos defendem
que a narcose e o uso de fórceps vieram humanizar a assistência aos partos
(Leite, 2000).
Esses conceitos foram difundidos por várias autoridades em obstetrícia
médica no cenário internacional desde o início do século XX, entre eles o
norte-americano Joseph DeLee. Para esses autores, como para muitos que os
sucederam, o parto é concebido como um processo necessariamente perigoso
e fisiologicamente danoso aos organismos materno e fetal, portanto
necessitando de um conjunto de intervenções que protejam o binômio mãefilho desses danos. Aqui estaria então um papel da obstetrícia médica, o de
trazer misericórdia e humanidade frente ao sofrimento e ao perigo (Diniz,
1996; Leite, 2000).
17
Agradeço ao dr. João Batista de Lima, do Hospital Sofia Feldman, pela riqueza da expressão.
37
Essa é uma concepção do fenômeno biológico e social do parto como
evento médico que ocorre à mulher, provocando riscos e danos ao seu corpo e
do seu bebê, riscos estes que devem ser de rotina manejados, prevenidos ou
corrigidos por meio da tecnologia médica em instituições. Nesse ambiente, as
mulheres devem entrar para viver aquele processo sedadas e imobilizadas,
com as pernas abertas e levantadas, tendo o funcionamento de seu útero
acelerado ou reduzido por pessoas que muitas vezes ela nunca viu antes, não
sabem o seu nome e não lhe dirigem a palavra. Separada de seus parentes,
pertences, roupas, dentadura, óculos, a mulher é submetida a uma cascata de
procedimentos dolorosos, de eficácia e segurança duvidosos. Como reação a
essa realidade, considerada por parte das usuárias e dos profissionais como
degradante e desumana, inicia-se no Brasil o movimento pela humanização do
parto, com seu conjunto de reivindicações de humanização (Rehuna, 1993).
Mais recentemente, o termo humanizar vem se expandindo e ganhando
os mais diversos sentidos, utilizados pelos diversos atores sociais, cada um
deles fazendo sua recriação do termo: movimentos menos ou mais críticos de
profissionais (médicos obstetras, sanitaristas, pediatras, enfermeiras);
formuladores de políticas; administradores de serviços públicos e privados,
movimento de mulheres; movimento popular de saúde; consumidores em
geral, mídia, etc. Tem havido, como descreveremos, uma crescente adesão ao
termo, expandido para outras formas de assistência à saúde e de
questionamentos às práticas de saúde, inclusive como propostas institucionais
nos âmbitos local e nacional, de humanização em geral de hospitais, da
assistência ao recém-nascido, ou mesmo a humanização da morte.
A humanização dos cuidados aos pacientes terminais, sejam eles idosos,
adultos ou crianças, está passando por uma revisão comparável àquela da
humanização do parto, ao nosso ver, ainda que em proporções mais discretas.
38
Esta inclui a mudança da postura dos profissionais frente o evento, de sua
relação com os familiares, da relação dos envolvidos com os corpos e seu
preparo para o funeral, entre outros. Na medicina perinatal, tem havido todo
um esforço para viabilizar o contato dos familiares com os pacientes terminais
e no oferecimento de oportunidades para o contato físico e emocional dos pais
com o corpo dos bebês doentes ou mortos. Este contato, evitado pelos
profissionais por décadas pela crença de que seria danoso aos pais,
especialmente às mães, parece estar associado a menos sofrimento emocional
e a um processo de luto mais saudável (Kushner, 1992; Enkin, 1995,
Indichova, 1997; Lopes e cols. 1999).
Há também, por outro lado, uma forte rejeição ao termo humanização
do parto por, pelo menos, dois motivos. Primeiro, por parte dos que gostam da
proposta mas não do termo, por sua conotação “soft”, “alternativa”, no sentido
de um tanto marginal à prática autorizada, que induziria uma compreensão de
que se refere apenas a uma melhor relação humana, perdendo assim sua
característica de “prática científica”. Esses críticos propõem que, em vez de
humanização, seja usado o termo “parto tecnicamente bem conduzido”, pois
seria a isso que se referem as recomendações da OMS (1996).
Em segundo lugar, há a objeção, por parte dos que rejeitam a proposta e
o termo, por sua associação com uma crítica à assistência: se é preciso
humanizar, é porque a assistência é desumana. Essa afirmação implícita
provoca nos profissionais, sobretudo nos médicos obstetras, muito
desconforto, pois questiona seu lugar de maneira radical, como veremos.
Há também uma certa xenofobia frente ao fato dessas propostas
“baseadas na evidência” serem feitas a partir de estudos realizados em outros
países, ou trazidos pelos programas de cooperação internacional. Nas palavras
do presidente de um comitê estadual de mortalidade materna, um formulador
39
de política, o termo não apenas provoca desconforto como carrega muitas
ameaças: a da expropriação da competência médica por outros sujeitos, com a
conseqüente morte de mães e crianças, a do atraso tecnológico, a da invasão
estrangeira, a da imposição autoritária das políticas, entre outras:
“Esses planos ministeriais estampam na mídia de maneira fantástica,
no entanto, na prática, o que se observa é uma degradante tragédia de
incompetência administrativa, ferindo os princípios da moral e da ética (...)
sob o quimono da humanização, as salas de parto estão sendo freqüentadas
por “enfermeiras parteiras”, defendendo teses sobre o parto de cócoras,
com patrocínio de um programa japonês de sigla JICA (...)
A Mortalidade materna no Ceará - Femina, Maio 2000 vol. 28 n. 4 p. 217
Trata-se portanto de um termo cujo sentido não só não é pacífico como
também está em disputa, seja entre aqueles que a ele aderem ou entre aqueles
que o recusam.
2.2.2.2. A medicina perinatal baseada na evidência científica: confronto
de paradigmas e o caráter ritual da assistência
Para pensar a questão da humanização da assistência ao parto, temos
que partir desta contradição: por um lado, temos a resistência institucional à
mudança; por outro, a evidência científica acumulada no exaustivo processo
de revisão da prática obstétrica, já discutida, atestando que, pelos parâmetros
que são hoje considerados o “padrão ouro” da ciência, rigorosamente nenhum
procedimento de rotina justifica-se no parto normal, o que se aplicaria a cerca
de 90 a 95% dos partos.
Isso inclui aspectos que raramente questionamos, como a hospitalização
ou institucionalização do parto ou sua assistência por médicos como rotina.
Postula-se que a melhor assistência é aquela que consegue uma mulher e um
40
bebê saudáveis, sem ou com o mínimo possível de intervenção, fazendo-se o
possível para facilitar ao invés de atrapalhar a fisiologia do parto e do
nascimento (Enkin e cols, 1996; OMS, 1996).
Em várias partes do mundo, há uma tendência crescente de considerar
de forma nova as polêmicas no campo da assistência à saúde reprodutiva em
geral e ao parto em especial. Os procedimentos e formas de organização dos
serviços que há apenas alguns anos eram pacificamente considerados como
benéficos ou neutros, cada vez mais são percebidos, por usuárias e também
por profissionais da saúde, como agravos e danos à saúde, como assaltos à
integridade corporal, ao bem-estar e à saúde física e mental de mulheres e de
crianças (Kitzinger, 1997; BWHBC, 1994; IRRRAG, 1998; CLADEM, 1998).
A tal ponto isso ocorre que atualmente existem propostas que invertem
a lógica que considera esses procedimentos como benefícios e os consideram
agravos à saúde, propondo a sua prevenção (ICAN, 1996; Goer,1995).
Esses procedimentos considerados como agravos parecem ter, pelo
menos no caso brasileiro, um papel importante na organização das práticas
obstétricas, como veremos. Ao analisarmos a epidemia de cesárea no Brasil,
devemos
reconhecer
que,
tantos
são
os
procedimentos
dolorosos,
desnecessários e arriscados que, nas condições em que o parto vaginal é
vivido, é difícil convencer as mulheres (e suas famílias) de que o parto vaginal
tenha vantagens sobre o parto abdominal (Rehuna, 1993; Diniz, 1996;
Voloshko, 1996).
Cabe aqui reafirmar que acreditamos serem os recursos técnicos sempre
necessários e que devam ser o mais desenvolvidos e seguros possível, capazes
de aliviar o sofrimento e adiar a morte. Mas também afirmar que qualquer
tecnologia, como expressão de relações sociais que é, deve ser
permanentemente argüida pelos sujeitos nela envolvidos, se quisermos de fato
41
usufruir do seu efeito racionalizador (Ayres, 1995; 1996; Mendes-Gonçalves,
1994, 1995; Schraiber, 1995; 1997).
Nesse sentido, queremos chamar a atenção para a contradição de ter
cada vez mais evidências sobre a inadequação das práticas e sua permanência,
e perguntar: por que as mudanças nas práticas são tão morosas, quando
ocorrem? Quais seriam os determinantes dessa permanência e da resistência à
mudança nessas práticas?
A questão da irracionalidade das práticas – a contradição entre o que
prescreve a ciência e como as práticas se organizam – tem intrigado muitos
estudiosos do tema há várias décadas, para além dos movimentos sociais
organizados e daqueles que lidam com a medicina perinatal, entre os quais
temos a importante contribuição de antropólogas que vieram a compor o que
hoje chamamos a “Antropologia do Parto”.
Não pretendemos aqui fazer um inventário do crescente universo de
estudos sobre o tema, sequer fazer justiça a muitas das principais autoras,
porém queremos citar algumas daquelas que iluminam as reflexões deste
trabalho. Para uma revisão exaustiva do tema, há a recente coletânea de
Davis-Floyd e Sargent (Childbirth and Authoritative Knowledge – CrossCultural Perspectives, 1997), que nos brinda com um extenso levantamento do
tema na literatura antropológica18.
Entre essas autoras, há o trabalho pioneiro da socióloga inglesa Sheila
Kitzinger, que publicou dezenas de livros e artigos sobre o tema desde 1962
(The experience of childbirth, 1962). Kitzinger inaugura uma corrente de
pensamento que propiciou uma re-descrição da experiência do parto a partir
das mulheres, o que contribuiu para criar uma nova visão sobre o evento
18
Veja a respeito Davis-Floyd e Sargent, “Introduction: The Anthropology of Birth” e ainda
Sakala, Carol, “Social Science Research on American Childbirth Practices: An Overview” in
Rothman (1993)
42
médico-cirúrgico
da
parturição
daquele
período,
contradizendo
e
redescrevendo a versão médica com a experiência feminina da gravidez, do
parto, da amamentação, da episiotomia, da dor do parto, entre muitos outros
temas. Essa autora, além de produzir com muita abundância, fugiu do circuito
de publicações acadêmicas e escreve para o grande público, o que deu um
alcance considerável a sua perspectiva crítica e ao método de educação para o
parto que desenvolveu, chamado psicossexual (Kitzinger, 1984). Ela
contribuiu de forma importante para a recuperação do parto como evento
sexual, relendo as intervenções no parto como formas de violência física e
sexual contra as mulheres, postulando ainda a associação entre a experiência
traumática no parto e a depressão pós-parto.
Em suas palavras:
“A episiotomia é a operação obstétrica mais freqüentemente
realizada no ocidente. É uma das maneiras mais dramáticas e intensas
em que o território do corpo das mulheres é apropriado, a única
operação feita sobre o corpo de uma mulher saudável sem o seu
consentimento. Ela representa o poder da obstetrícia: os bebês não
podem sair sem que as mulheres sejam cortadas. Ela evita que as
mulheres vivenciem o parto como evento sexual, e é uma forma de ritual
de mutilação genital” (apud BWHBC, 1992:458)
Uma autora que, não sendo cientista social, contribuiu de forma
marcante com o campo foi a poeta norte-americana Adrianne Rich, com seus
escritos sobre a maternidade e a sua tradução pelas instituições de saúde como
experiência de violência e de subordinação, notadamente em seu clássico
“Nascida de mulher” (Of Woman Born,1986).
Ela escreveu em 1979:
43
Somos aos poucos arruinadas, subvertidas, não apenas pela
precariedade com que controlamos nossa fertilidade, [...] mas também
pelo imaginário religioso de martírio que nos exige uma maternidade de
passividade e vitimização [...] pela maneira em que parimos em
hospitais,
cercadas
por
especialistas
homens,
negligentemente
amarradas, deitadas e drogadas contra nossa vontade, nossos bebês
arrancados de nós até que algum especialista nos diga quando
estaremos autorizadas a abraçar ou alimentar nossos recém-nascidos”
(1979:269-270)
Além das autoras que fizeram a crítica feminista através da literatura e
dos livros sobre gravidez, temos a importante contribuição das feministas na
academia. É importante mencionar, entre outras, a escola de pensamento que
se criou em torno do trabalho inovador de Brigitte Jordan, chamada a “parteira
da Antropologia do Parto”. Essa autora desenvolveu, na década de 70, um
estudo comparativo sobre o parto em quatro culturas e incluiu o modelo norteamericano de assistência como um deles, de forma a analisá-lo como
fenômeno antropológico da mesma forma que o “modelo” de outras culturas,
“complexas” ou “primitivas”, criando um estranhamento sobre as formas de
assistência norte-americanas até então inédito (Jordan, 1978).
Muitos foram os desdobramentos dessa pesquisa, entre eles o inspirador
trabalho de Robbie Davis-Floyd, “Birth as an American Rite of
Passage”(1992). Para essa autora, à medida que cresce e se acumula a
evidência de que os procedimentos médicos habituais na assistência ao parto
são muitas vezes desnecessários e mesmo danosos, “muitos indivíduos
envolvidos com o tema se perguntam como uma prática que se propõe tão
científica pode ser tão irracional”. Acredita-se que a transferência do local de
parto de casa para o hospital representou a definitiva desritualização daquilo
44
que em outras sociedades mais ‘primitivas’ foi sempre um processo onerado
por superstições e tabus, quando, ao contrário, a transferência do parto para o
hospital “resultou na mais elaborada proliferação de rituais em torno deste
evento fisiológico já vista no mundo cultural humano”. Segundo ela, os
procedimentos obstétricos, que não se justificam pela técnica, seriam
“respostas rituais racionais para o medo extremo, em nossa sociedade
tecnocrática, dos processos naturais dos quais esta sociedade depende para
continuar sua existência” (Davis-Floyd, 1992: 2-3).
Não podemos deixar de citar duas vertentes da crítica às práticas de
assistência ao parto, que fizeram uma análise das técnicas a partir dos
parâmetros que legitimam o conhecimento convencional da obstetrícia
médica. Entre elas está o trabalho pioneiro de Henci Goer e seu “Mitos da
Obstetrícia x Realidades de Pesquisa” (Obstetric Miths x Research Reality,
1989), um cuidadoso compêndio que se antecipa às revisões sistemáticas que
serão publicadas na década de 90, e ainda o trabalho de Marjorie Tew “Parto
Mais Seguro? Uma história crítica da assistência ao parto” (Safer Childbirth?
A Critical History of Maternity Care, 1990), um amplo trabalho no campo da
história e da estatística, que explora em detalhes a falta de fundamentação na
validação dos estudos que basearam as conclusões sobre cada um dos
procedimentos de rotina na assistência ao parto, muitos dos quais deveriam ter
sido interpretados na direção contrária.
Aqui devemos chamar a atenção da crescente produção brasileira no
campo dos estudos da assistência ao parto como evento social e cultural.
Correndo o risco de grandes injustiças, queremos fazer referência aos estudos,
no campo das ciências sociais e da saúde coletiva, aos trabalhos de Mello e
Souza (1994), Carranza (1994), Rattner (1996), Hotimsky (2000) a respeito da
construção cultural da cesárea como parto ideal, seus determinantes culturais e
45
econômicos e a relação das pacientes com sua indicação. Esses trabalhos,
assim como o de Hopkins (1998) e o de Dasgard (2000), questionam a noção
prevalente de que as mulheres brasileiras em geral querem a cesárea, e
mostram os muitos mecanismos de convencimento, no pré-natal ou durante o
parto, que levam as mulheres a aceitá-la como indicação. Mais recentemente,
temos os instigantes trabalhos de observação de maternidades e suas propostas
de humanização de Alves e Silva (orgs., 2000) e Tornquist (2001, no prelo).
2.2.2.3. Técnica, ritual e intersubjetividade:
Para muitos dos sujeitos envolvidos na cena de parto, temos dois
grandes problemas com a atual tradução tecnocrática da assistência. Por um
lado, temos os riscos e agravos desnecessários que provoca nas mães e bebês,
e, por outro, temos que essa assistência é uma versão muito empobrecida em
sua potencialidade de experiência humana, em especial no que diz respeito à
dimensão de experiência familiar, sexual, espiritual e social do parto e do
nascimento (Rothman, 1982; Kitzinger, 1984; Rich, 1986; WHO, 1986),
devendo ser superada em busca de rituais mais ricos, inclusivos e
gratificantes.
Um dos obstáculos à abordagem dessas dimensões rituais e simbólicas
do parto está justamente na nossa dificuldade de transpor a crença “religiosa”
na racionalidade da técnica, que nos dificulta a percepção das relações sociais,
sobretudo aquelas relações de poder e assimetria, de opressão e violência,
inscritas na própria técnica.
Não pretendemos aqui utilizar uma conceituação sofisticada de “ritual”,
porém tomar de empréstimos, provisoriamente, a idéia de que os
procedimentos institucionalizados se mantêm à revelia da evidência científica
46
“por ser um processo intensivo de socialização ritual nos valores dominantes”
de uma dada sociedade (Davis-Floyd, 1992).
Como ritual transformativo, a assistência ao parto instaura e explicita o
novo lugar daquela mulher, daquele bebê e do resto da família em sua
sociedade. Para os estudiosos do parto como ritual e suas metáforas, de certa
forma, a adesão ao modelo tecnocrático por tantos profissionais e parturientes
reflete a necessidade da inclusão e da participação plena no sistema de valores
fundamentais que estão inscritos – senão por seus resultados cientificamente
comprovados do processamento do corpo, pelo menos por seus símbolos, suas
metáforas – em cada um dos detalhes das ações de assistência ao parto em
uma dada sociedade (Jordan, 1977; Kitzinger, 1984; Davis-Floyd, 1992;
1993).
No presente estudo, essa dimensão ritual tem se mostrado centralmente
importante para a compreensão das formas de assistência. Aqui, este trabalho
se encontra com a tradição dessa “escola” de pensamento na Medicina Social,
em particular aquela que se inicia na década de setenta no Departamento de
Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. No Brasil, como na
América Latina em geral, a Medicina Social tem desenvolvido uma
problematização da naturalização dos fenômenos da saúde e da doença e, de
forma correlata, dos aspectos políticos e ideológicos da organização das
práticas de saúde, buscando uma aproximação com esses temas que passa pela
reflexão sobre os diversos valores e projetos sociais, historicamente
circunstanciados, que orientam essas práticas (Nunes, 1983:15-24).
É a partir dessa tradição, e da “confiança na racionalidade dos seres
humanos como poder de re-organizar e re-orientar suas intervenções práxicas
no mundo, na vida, na sociedade, na história, no conhecimento” (MendesGonçalves, 1995:18), que encontramos um ponto de confluência entre as
47
preocupações colocadas neste trabalho e a herança dessa escola de Medicina
Social. É a compreensão aí desenvolvida da consubstancialidade entre o
técnico e o social nas práticas de saúde que possibilita a reflexão sobre a
dimensão de socialidade na assistência ao parto a partir de suas formas de
organização técnica (Donnangelo, 1979; Mendes-Gonçalves, 1994, 1995;
Schraiber, 1995; 1997; Ayres, 1995, 1996, 1999; d’Oliveira, 1996; 2000).
Sob a perspectiva dessa consubstancialidade, entende-se a assistência à
saúde como um conjunto de práticas cuja legitimidade social apóia-se, ou
pode se apoiar, em uma positividade técnica (ou, como no caso em pauta, pelo
menos em um “conhecimento autorizado”19), mas não se limita a essa
“tecnicalidade”, permitindo examinar a socialidade dessas práticas pelo modo
como a técnica se coloca como instauradora e explicitadora de um conjunto
mais amplo de relações e perspectivas intersubjetivas (Donnangelo, 1979).
A compreensão das metáforas e dimensões rituais na assistência ao
parto, enquanto técnicas que instauram e explicitam relações intersubjetivas –
de gênero, de classe, de raça, enfim, de assimetria –, pode não só nos ajudar a
entender como essas relações de poder se mantêm, mas também imaginar
novos rituais que reconheçam e propiciem o direito dos sujeitos envolvidos a
uma negociação de relações mais saudáveis e fortalecedoras na cena
fundadora da vida humana.
2.2.2.4. Do parto como violência biológica (do corpo contra a pessoa) à
assistência ao parto como violência de gênero (das instituições contra as
mulheres).
19
Por conhecimento autorizado (authoritative knowledge, em uma tradução pobre), queremos nos
referir não à correção daquele conhecimento dentro de seus próprios parâmetros, mas ao seu (do
conhecimento) status dentro de um grupo social em particular, e ao seu papel de manter a definição
de racionalidade e de moralidade daquele grupo (Jordan, 1998)
48
Em nosso entender, a noção de direitos na assistência, já mencionada,
que se desencadeia a partir da década de oitenta e que se expressa na “Carta de
Fortaleza” (1985), converge para, e de certa forma antecipa, as definições
sobre direitos reprodutivos que viriam a ser desenvolvidas nos instrumentos
internacionais e programas de ação resultantes das conferências da década de
noventa (IWHC, 1995; Themis, 1997; WHO, 1998), como a de População e
Desenvolvimento (Cairo, em 1994) e sobre a Mulher (Pequim, em 1995).
A noção de direito é especialmente importante na problematização da
assistência, pois ela permite compreender a complexa questão da violência de
gênero nas instituições de saúde, em especial no ciclo gravídico- puerperal.
Essa abordagem tem sido reforçada pela crescente visibilidade do
problema da violência de gênero, em suas várias formas. Mesmo quando essa
“violência” é referida apenas àquela que ocorre na esfera doméstica e das
relações amorosas, essa violência durante o ciclo gravídico-puerperal é uma
das faces menos conhecidas e mais trágicas do fenômeno da violência de
gênero, implicando em conseqüências graves para a saúde física e mental das
mulheres.
Até recentemente considerado um assunto de interesse marginal na área
da saúde, a violência tem um impacto tão importante na saúde feminina que é
responsável por um em cada cinco anos potenciais de vida saudável perdido
pela população feminina (Heise, 1994; World Bank, 1993). Contrariando o
senso comum, a violência não diminui necessariamente na gestação, chegando
em muitos casos a piorar em intensidade ou freqüência. Os estudos sugerem
que a prevalência da violência é maior do que aquela apresentada por
problemas para os quais já se realizam screening ou avaliações de rotina no
pré-natal, incluindo a hipertensão, o diabetes e a placenta prévia, reforçando a
urgência da incorporação de rotina da pesquisa de violência (Gielen, 1994;
49
MacFarlane, 1995,Stewart, 1993), e sugerem ainda que ela se intensifica no
puerpério (Gielen, 1994).
À medida que aumentam as evidências e a visibilidade do problema da
violência de gênero nas relações familiares em suas repercussões sobre a
saúde materna e fetal, ocorre uma gradativa ampliação conceitual no
tratamento do problema – de início circunscrito à violência no âmbito
doméstico e privado – para incluir e documentar a violência de gênero
inscrita nas próprias ações e instituições de saúde no ciclo gravídicopuerperal e suas conseqüências.
O problema da violência no parto vem despertando crescente interesse
e, na segunda metade da década de 90, começam a ser organizadas
conferências sobre o tema, como a
“Birth and Violence - The Societal
Impact”, que reúne pesquisadores de diversas áreas médicas (com uma forte
presença dos neonatologistas) e das ciências sociais. Ainda que, de início, o
foco da violência das rotinas fosse mais voltado ao recém-nascido, em seguida
os encontros incluíram a parturiente e muitas das reflexões citadas
anteriormente. (www.birthpsycology.com)
Mais recentemente, outra linha de pensamento problematiza a
assistência ao parto como forma de violência sexual contra as mulheres, e
propõe a ressexualização do parto justamente para evidenciar esta dimensão.
Nas palavras de Lemay (2001):
“Ressexualizar o que é inerentemente sexual [o parto] é conferir
poder, dignidade e beleza onde agora só há mecanização e brutalização”
(www.birthlove.com)
No Brasil, o tema já vinha sendo abordado em muitos trabalhos nas
décadas anteriores e é importante citar o pioneiro “Espelho de Vênus”, do
Grupo Ceres (1981), que já naquela época fez uma etnografia do feminino,
50
incluindo explicitamente a vivência da assistência ao parto descrita como
violenta.
Já então, esse grupo de pesquisadoras militantes publica
depoimentos demonstrando que:
Não é apenas na relação sexual que a violência aparece marcando
a trajetória existencial da mulher. Também na relação médico-paciente,
ainda uma vez o desconhecimento de sua fisiologia é acionado para
explicar os sentimentos de desamparo e desalento com que a mulher
assiste seu corpo ser manipulado quando recorre à medicina nos
momentos mais significativos da sua vida: a contracepção, o parto, o
aborto. (1981:349)
Autoras como as já citadas A. Rich (1986), Davis-Floyd (1992) e
BWHBC (1994) exploraram a problematização pelas as mulheres da violência
no parto; mais recentemente, o trabalho de Kitzinger (1992,1997) tem se
voltado à interpretação da assistência ao parto como forma de violência de
gênero. O tema tem sido tratado no Brasil também sob a rubrica de violência
institucional na assistência, como refletido em textos e em vários encontros
locais e nacionais (Seminário Vitrines da Humanização, 1999; Congresso
Brasileiro de Enfermagem Obstétrica e Neonatal 1999; Seminário Parto e
Nascimento na Cidade do Rio de Janeiro,1999), entre outros.
Quando nos referimos à violência de gênero na assistência, queremos
chamar a atenção para o fato de que os papéis opressores, feminino ou
masculino, não são atributos naturais, mas sim construções sociais (Rubin,
1993, de Barbieri,1991).
Enquanto construções sociais, certamente um conjunto considerável de
dimensões não-técnicas sempre estará moldando quaisquer práticas de saúde,
em seus aspectos culturais, econômicos, corporativos, religiosos, entre outros.
Mas, dado o interesse central deste trabalho, em meio a esse amplo conjunto
51
de aspectos, queremos chamar a atenção sobretudo para aqueles aspectos mais
imediatamente referentes às relações de gênero. Será oportuno, nesse sentido,
partirmos da recuperação, ainda que muito sucinta, da emergência histórica
dos estudos de gênero e de como tais estudos se aproximam das questões da
saúde.
O estudo das relações de gênero surge da proliferação dos chamados
“estudos das mulheres”, que se iniciam nos anos 80 e são aprofundados pelo
feminismo no interior das ciências sociais. Dessa busca se expande, também
entre o movimento feminista de saúde, o conceito de gênero como categoria
que, no social, corresponde ao sexo anatômico e fisiológico das ciências
biológicas (De Barbieri; 1991). O gênero é o sexo socialmente construído. Ou,
como define Rubin (1986), o conjunto de disposições pelo qual uma sociedade
transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana e no
qual se satisfazem essas necessidades humanas transformadas.
Para o movimento de mulheres, o conceito de gênero está articulado à
politização da reprodução, assim, pois, retirada dos limites do espaço privado
e alçada ao debate público. Considerando seu papel estratégico na luta das
mulheres, as instituições de saúde têm merecido atenção especial do
movimento em nível internacional e nacional, por parte tanto das feministas
nas instituições de ensino e pesquisa quanto dos grupos autônomos
relacionados ao tema.
No final da década de 60 surgem nos países desenvolvidos os primeiros
grupos de auto-ajuda de mulheres, traduzindo textos médicos para uma
linguagem acessível, desenvolvendo a crítica aos saberes e às práticas de
saúde, criando centros de informação e serviços alternativos de atenção à
saúde. Nesse contexto, o movimento internacional de saúde fundou, em 1978,
a Rede Mundial de Mulheres pelos Direitos Reprodutivos, realizando
52
encontros e campanhas, e espalha-se pelo mundo inteiro. A Rede de Saúde das
Mulheres Latino-Americana e do Caribe nasceu em 1984, envolvendo
centenas de grupos da região.
No Brasil, em 1984, um encontro nacional do movimento de mulheres
pela saúde, com a presença de representantes de 19 estados, criou uma
plataforma nacional de ação, a Carta de Itapecerica, que orienta as ações
relativas ao então nascente Programa de Atenção Integral à Saúde das
Mulheres (PAISM), do Ministério da Saúde, formulado e conduzido com uma
forte presença feminista. A partir de 1991 surge a Rede Nacional Feminista de
Saúde e Direitos Reprodutivos, com mais de uma centena de grupos de
mulheres e instituições de ensino e pesquisa. No campo da Saúde Coletiva, é
notável a expansão dos estudos de gênero, tanto em quantidade como em
qualidade de sua recente produção.
À medida que esse movimento se expande, torna-se intenso, no campo
das ciências humanas, o debate conceitual sobre as relações de gênero. Esse
debate, plural por definição, deixa óbvia a existência de vários feminismos e
explicações para um mesmo objeto, enriquecendo seu quadro explicativo e
buscando trazer inesperadas articulações conceituais e complementaridades,
ainda que contraditórias (D’Oliveira, 1996:28).
Em sua discussão sobre a utilidade da categoria gênero na análise
histórica, Scott (1995) faz um balanço das diversas tentativas em diferentes
campos disciplinares de explicar a situação de subordinação social e política
das mulheres e a entrada em cena do conceito de gênero como categoria
analítica. Para essa autora, o background político do
surgimento desses
estudos é a tentativa das feministas da academia de desnaturalizar a diferença
sexual, rejeitando o determinismo biológico e ressaltando a historicidade da
relação entre homens e mulheres.
53
Considerando que a divisão do mundo fundada em diferenças
biológicas, particularmente aquelas referidas à divisão sexual do trabalho, da
reprodução e da procriação, opera como a mais fundamentada das ilusões
coletivas, Scott propõe que o gênero estrutura a percepção concreta e
simbólica de toda a vida social.
O trabalho dessa autora é especialmente instigante para pensar as
dimensões normativas das práticas de saúde do ponto de vista das relações de
gênero. Segundo ela, os conceitos normativos não podem esconder o sentido
metaforicamente restritivo de seus símbolos. Esses conceitos são expressos em
doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e,
tipicamente, tomam a forma de uma oposição binária que afirma, de modo
categórico e inequívoco, o sentido do masculino e do feminino. A história
posterior é escrita como se essas posições normativas fossem o produto apenas
de renovados consensos sociais e nunca de disputas e conflitos.
No caso aqui estudado, esse aparente consenso toma a forma das
conveniências práticas, sob as quais subjaz, porém, o conflito, sempre
tensionando, ainda que de forma oculta/velada à primeira vista, a
normatividade que essas práticas instauraram e explicitam. Como sugere
Yannoulas (1994), as relações de gênero, enquanto questões para a práxis,
devem ser tratadas no plano ético-político. Para ela, homens e mulheres não
são definíveis, não são substantiváveis; a diferença sexual só aparece na
experiência do diálogo que confronta mulheres e homens e a sua condição
de gênero no espaço público ou privado; enfim, a diferença sexual é, mais
do que tudo, um jogo ético-político presente em toda relação entre homens
e mulheres, individual ou coletivamente negociada.
A importância política e analítica do conceito de gênero está
vinculada também à sua fertilidade na consideração das mudanças nessas
54
relações sociais, exigindo para tanto a superação desse conceito enquanto
mero reconhecimento da diferença sexual, seja esta biológica ou ainda
construída socialmente, pois corre-se o risco de aprisionar a reflexão sobre
o masculino e o feminino num outro essencialismo, desta vez social. Essa
reflexão deixa cada vez mais claro o caráter “mutante” dos gêneros, como
construção social conflituosa: o gênero se constrói e desconstrói no espaço
de interação, conflito e instabilidade – inclusive na cena do parto – numa
interação entre sujeitos múltiplos, contraditórios, que se “engendram”
mutuamente.
O potencial epistemológico radical do feminismo, segundo de
Lauretis, estaria justamente em conceber o sujeito social como
“um sujeito constituído no gênero, sem dúvida, mas não apenas
na diferença sexual, e sim por meio de códigos lingüísticos e
representações culturais; um sujeito ‘engendrado’ não só na
experiência das relações de sexo, mas também de raça e classe: um
sujeito, portanto, múltiplo em vez de único, e contraditório ao invés de
simplesmente dividido” (de Lauretis,1992:208).
Aqui retomamos nossa dissertação de mestrado, para discutir alguns
dos desdobramentos trazidos pelo estudo das relações de gênero na
compreensão da
assistência ao parto (Diniz, 1997). Uma primeira
contribuição dessa reflexão seria a crítica à compreensão naturalizada da
reprodução e da sexualidade, tratadas como dimensões biológicas da esfera
privada da vida dos indivíduos, como se nessa cena não se inscrevessem
relações de poder, hierarquia, violência. Enquanto processo e produto dessa
construção e desconstrução dos gêneros, essa assistência ao parto e suas
rotinas instauram e explicitam relações sociais e políticas; trata-se de uma
55
interação assimétrica e hierárquica entre desiguais — mas ainda assim um
espaço de negociação e interação, como veremos.
Uma segunda contribuição é a que vem da discussão sobre a
medicalização, patologização e mesmo a cirurgificação da reprodução. A
reflexão feminista veio problematizar o que as práticas definem como seu
objeto de trabalho e questionar as bases históricas e políticas da concepção
do feminino como “fisiologicamente patológico”. A patologização do parto,
articulada à construção médico-científica do feminino como normalmente
defeituoso e dependente da tutela médico-cirúrgica, orienta-se, no último
século, por um modelo preventivo da distocia.
O modelo do parto como evento cirúrgico de risco derivado dessa
concepção, como vimos, não se sustenta pelos critérios que orientam a
própria técnica, mas por um conjunto complexo de determinações extratécnicas que chegam, no caso brasileiro, a uma distorção tamanha, que
sugere a existência de um modelo de prevenção do parto, numa reafirmação
insistente, aparentemente irracional e paradoxal, da imperfeição genital
feminina. Trata-se aqui de um núcleo especialmente contraditório, tenso e
instável dessa construção, um trauma potencial do gênero, no sentido dado
por de Lauretis20. No decorrer do presente trabalho, vimos uma tensão
crescente desse núcleo, que discutiremos adiante.
20
De Lauretis faz as seguintes proposições para a compreensão das relações de gênero: primeiro,
o gênero é uma representação (o que não significa que não tenha implicações concretas ou reais,
tanto sociais quanto subjetivas, na vida material das pessoas, muito ao contrário); segundo, a
representação do gênero é a sua construção e esta é tanto o produto quanto o processo de sua
representação, e “toda a arte e a cultura erudita ocidental são um registro da história desta
construção”; terceiro, a construção do gênero processa-se hoje como se processou no passado,
por meio das várias tecnologias de gênero (por exemplo, o cinema, a medicina) e dos discursos
institucionais (por exemplo, a teoria) com poder de controlar o campo de significado social e
assim produzir, promover e “implantar” representações do gênero; quarto e finalmente, a
construção também se faz pela desconstrução. O gênero, como o real, não é apenas sua
representação, mas também o seu excesso, aquilo que permanece fora do discurso como um
56
Uma terceira contribuição é a busca das dimensões relativas à
sexualidade e ao prazer sexual na discussão sobre a reprodução. Chama a
atenção a estreiteza da relação entre essas duas dimensões, ainda que com
sentidos muito distintos entre si. A sexualidade é uma presença constante,
mais visível ou menos visível, mais positiva ou mais negativa, em todos os
detalhes e contextos visitados neste trabalho. Tem sido assim nas diversas
configurações históricas da assistência, assim como no desenvolvimento
técnico dos procedimentos que reafirmam o parto como patogenicamente
despedaçador das entranhas femininas, exigindo a prevenção e o tratamento
do prejuízo genital-sexual decorrente. Essa dimensão sexual parece ser um
eixo estruturante das técnicas, talvez tão ou mais importante que as
dimensões que hoje consideramos propriamente “reprodutivas” (Diniz,
1997).
Nessa aproximação da assistência ao parto, a exploração dos vínculos
entre a “sexualidade” e a “reprodução” aparece como uma tarefa
fundamental, e não se trata aqui de “reprodutivizar” a sexualidade, mas, ao
contrário, de erotizar a reprodução, compreendendo o parto como uma
função sexual normal das mulheres (Kitzinger, 1978). O esforço por
remover a sexualidade da cena do parto constitui, segundo Davis-Floyd, um
dos dilemas do modelo técnico atual dessa forma de assistência. Hoje, “a
sexualidade continua sendo uma potente ameaça conceitual aos poderes
criativos da tecnologia, e a sexualidade feminina continua como a principal
lembrança desta ameaça” (1992:69).
Uma última contribuição da reflexão sobre relações de gênero que
queremos destacar é a da importância dessa esfera que resiste a definições,
trauma em potencial que, se/quando não contido, pode romper ou desestabilizar qualquer
representação.
57
que chamamos aqui de ritual, mas que poderia ser chamado por outros
sujeitos como “da esfera do sagrado” ou religiosa, espiritual, metafísica,
simbólica etc. Essa dimensão, difícil de nominar, está presente hoje, como
sempre esteve, re-ligando, integrando e conferindo os mais diferentes
sentidos à experiência do parto.
O parto, assim, é um ritual tranformativo para todos, ainda que
centralmente da mulher e da família, seja ela nuclear ou não, em que as
identidades de gênero, entre outras, são transformadas e re-negociadas.
O historiador das religiões Mircea Eliade, discutindo as sociedades
femininas dos mistérios na Antigüidade, afirma que “o mistério do parto,
quer dizer, a descoberta feita pela mulher de que ela é criadora no plano da
vida, constitui uma experiência intraduzível em termos da experiência
masculina” (1992:156). Gostaríamos de sugerir uma interpretação
alternativa: para além de uma experiência da esfera do sagrado ou do
profano, do “feminino” ou do “masculino”, poder-se-ia imaginar também
“o parto” e sua “assistência” para além da experiência feminina, um
construto social, como uma tradução humana dessa experiência,
intergenérica, relacional, dos demais envolvidos.
Embora ocorra no corpo da mulher, o parto parece ser traduzível
também em termos da experiência “masculina” e dos demais personagens
na cena, em seus papéis igualmente sociais. Para os demais envolvidos na
cena, o modelo de assistência também instaura e explicita lugares e
significados sociais que estão postos em cheque com a mudança do modelo.
Aqui também necessitamos entender a relação entre poder e gênero de
forma mais matizada que a polarização opressão-feminina e dominaçãomasculina, cuja tradução é o discurso da vitimização da mulher, que não teria
saída diante da supremacia do poder masculino. A assimetria de poder entre os
58
gêneros é sem dúvida uma realidade, assim como é a de classe, de raça, etc.,
mas onde existe poder existe resistência e podem ser criados caminhos para
exercitar contrapoderes (Foucault, 1986; Barbosa e Uziel,1996)21. Assim é
também na cena do parto.
2.2.2.5. As pontes entre humanização da assistência e direitos humanos
e os limites e as possibilidades de sua promoção
É nesse contexto complexo e contraditório que se desenvolve a crítica
do movimento de mulheres, inclusive aquele dentro da academia e de
instituições formuladoras de políticas, às práticas de assistência ao parto.
Uma das vertentes dessa crítica mostra que os estereótipos de gênero,
presentes na formação dos profissionais de saúde e na organização dos
serviços, fazem com que as freqüentes violações dos direitos humanos e
reprodutivos das mulheres sejam incorporadas como fazendo parte da rotina
“normal” da assistência; dessa forma, as situações de violência sequer causam
estranhamento (Pittman, 1995). Esse aspecto é certamente refletido no descaso
frente ao direito das mulheres à sua integridade corporal, à sua privacidade, a
21
Essa discussão está inserida num conjunto de reflexões sobre a relação entre poder, gênero e
sexualidade (que pensamos poder trazer contribuições importantes à nossa reflexão), na qual se
verificam duas tendências: uma baseada na teoria feminista clássica, que considera a construção
social das relações de gêneros um elemento prioritário para entender e analisar a sexualidade, e uma
outra, que defende uma separação ou, pelo menos, uma descontinuidade, no plano teórico, entre
gênero e sexualidade. De acordo com esta última vertente, no campo do gênero o poder estaria mais
referido às relações de poder entre homens e mulheres, masculino e feminino, enquanto no campo
da sexualidade ele se organizaria ao redor de categorias biomédicas; organizados de uma maneira
ou de outra, esses poderes podem se cruzar, entrelaçando formas de opressão (Parker, Barbosa e
Fajardo, 1996). No nosso caso, a questão que se coloca é como lidar com a “reprodução” em sua
articulação com essas dimensões, sobretudo se pretendemos considerá-la em sua socialidade, para
além das categorias biomédicas que a descrevem. Podemos começar por reconhecer uma
descontinuidade, pelo menos analítica, entre essas dimensões; pelo menos analítica porque
sexualidade e reprodução podem se separar no plano teórico, ainda que, no senso comum, assim
como na prática, não se separem facilmente.
59
estar livre de humilhações e maus tratos, inscritos de forma como essas
práticas se organizam (CLADEM, 1998, Diniz, 1999).
Outro desdobramento dessa crítica evidencia que as formas de
organização e as rotinas de assistência, enquanto expressão de relações sociais
– de classe, gênero, raça –, tanto podem reforçar quanto diminuir
desigualdades, promover ou inviabilizar direitos já formalmente reconhecidos
(CIMS, 1996; IRRRAG,1998; WHO, 1998).
Nessa direção, no Brasil desde a década de 80, grupos de mulheres e de
profissionais
se organizam em torno do tema da assistência ao parto e
criticam “as circunstâncias de violência e constrangimento em que se dá a
assistência, especialmente as condições pouco humanas a que são submetidas
mulheres e crianças no momento do nascimento” (REHUNA,1993).
Consideram que, no parto vaginal,
“a violência da imposição de rotinas, da posição de parto e das
interferências
obstétricas
desnecessárias
perturbam
e
inibem
o
desencadeamento natural dos mecanismos fisiológicos do parto, que passa
a ser sinônimo de patologia e de intervenção médica, transformando-se em
uma experiência de terror, impotência, alienação e dor. Desta forma, não
surpreende que as mulheres introjetem a cesárea como melhor forma de
dar à luz, sem medo, sem risco e sem dor” (REHUNA,1993).
A “epidemia” de cesárea (Berquó, 1993; Faúndes e Cecatti,1991;
Gomes, 1994) estaria, assim, relacionada ao contexto de violência no qual as
mulheres vivenciam o parto, conforme também sugerem estudos que abordam
a questão das relações das mulheres com os serviços de saúde (Souza,1992;
d’Oliveira,1996; Diniz, 1997). A violência na relação com os serviços de
saúde tem sido uma das constantes em vários dos estudos sobre percepção de
60
violência de gênero no Brasil, desde o já citado grupo Ceres, no início dos
anos 80.
O estudo de Souza (1992) em São Paulo, mostra que, na opinião de
parte significativa das entrevistadas, o atendimento aos partos é violento, os
funcionários são agressivos, freqüentemente humilham as pacientes e não
respeitam sua dor. Outro estudo conduzido em São Paulo mostra que a
negligência e os maus-tratos na assistência ao parto são freqüentes nos relatos
das mulheres, mobilizando nelas um intenso
sentimento de injustiça
(IRRRAG,1995).
Em vários estudos, aparece com grande freqüência a queixa relativa às
violações da dignidade da mulher e à humilhação sexual a que as mulheres
são submetidas, traduzidas por agressões verbais do tipo “na hora de fazer
você gostou, agora vem fazer escândalo” (Ceres, 1981; Souza, 1992;
IRRRAG, 1995; d’Oliveira,1996; Diniz, 1997; Kitzinger, 1997, Alves e cols.,
2000).
Queixas semelhantes sobre a assistência obstétrica aparecem também
em países e contextos culturais os mais diversos (Petchesky e Judd,1998).
Essa tendência ao tratamento rude e humilhante é especialmente intensa
quando as mulheres estão mais vulneráveis à discriminação, como no caso de
mulheres pobres em geral, negras, portadoras do HIV, prostitutas, solteiras e
adolescentes, usuárias de drogas, entre outras, entre as quais são freqüentes os
relatados de negligência e omissão de socorro (Ceres, 1981; Souza, 1992;
Berer, 1992; IRRRAG,1995; CFSS, 1997b; Diniz e Villela,1998), o que
configuraria claramente violações dos direitos reprodutivos e humanos das
mulheres.
Para refletir sobre a relação entre direitos humanos e assistência ao
parto, tomaremos como referência duas vertentes, até certo ponto (ou de certa
61
forma) convergentes. A primeira lida com a assistência ao parto no marco dos
direitos reprodutivos, como integrante dos direitos humanos; a segunda lida
com o marco mais geral dos direitos humanos.
O movimento feminista que reemerge, como descrevemos, afirma a
autoridade das mulheres na definição de suas necessidades, opõe-se às
condutas médicas feitas “para o seu próprio bem” e parte para o
desenvolvimento de uma formulação nova da assistência, mais recentemente
orientada pelo horizonte da construção dos direitos reprodutivos e sexuais,
reivindicando para as mulheres os direitos humanos à condição de pessoa, à
integridade corporal e à eqüidade (Correa e Petchesky, 1994). Esses direitos,
para além de serem ou não constituídos legalmente, são compreendidos
sobretudo como reivindicações de justiça, afirmações de que os arranjos
sociais de gênero são injustos e inadmissíveis e que, portanto, devem ser
transformados.
Nesse sentido, as condutas desnecessárias e arriscadas são consideradas
violações do direito da mulher à sua integridade corporal; a imposição
autoritária e não-informada desses procedimentos atenta contra o direito à
condição de pessoa, e a crise de acesso, com a peregrinação das mulheres por
leitos, viola o direito das mulheres à eqüidade e à assistência (Diniz, 1999).
No marco mais geral dos direitos humanos, cresce o reconhecimento de
que, em muitos contextos, os profissionais de saúde são autoritários e rudes
com as mulheres grávidas, que as mulheres sentem-se humilhadas e
ameaçadas nas interações com profissionais. Esse quadro implica em
repercussões graves para a segurança e a saúde materna e perinatal, resultantes
da má qualidade dessa interação – o que tem levado organismos internacionais
como a OMS a propor o marco dos direitos humanos das mulheres como
62
fundamental para a conquista de uma maternidade segura (WHO, 1998.3).
Para a OMS,
“as mudanças na oferta de serviços e no acesso a eles não é
suficiente. Os objetivos da Iniciativa Maternidade Segura não serão
alcançados até que as mulheres sejam fortalecidas e os seus direitos
humanos – incluindo seu direito a serviços e informação de qualidade
durante e depois do parto – sejam respeitados.” (WHO, 1998.3-1)
Embora o termo “humanização” tenha sido até recentemente de uso
relativamente restrito aos países de língua latina, há uma tendência à
internacionalização do termo, como refletido no título da Conferência
Internacional pela Humanização do Parto, já referida.
O reconhecimento dos direitos humanos na assistência ao parto,
independentemente do uso do termo “humanização”, tem sido feito em vários
importantes documentos internacionais, entre os quais o citado documento da
OMS “Safe Motherhood”, de 1998, no capítulo ‘Maternidade Segura: Uma
Questão de Direitos Humanos e de Justiça Social” (“Safe Motherhood: a
Matter of Human Rights and Social Justice”):
“A proteção e a promoção dos direitos humanos das mulheres pode
ajudar a assegurar que todas as mulheres tenham o direito a:
!"tomar decisões sobre sua própria saúde, livre de coerção e
violência, com base na mais completa informação; e
!"ter acesso a serviços e informação de qualidade, antes, durante e
depois da gravidez e do parto.”
Esse documento reforça ainda a necessidade de utilizar os já citados
instrumentos internacionais e nacionais de proteção dos direitos humanos das
mulheres ratificados por cada país, utilizando a linguagem dos direitos
humanos como um recurso na luta pela transformação da assistência.
63
A questão da assistência como tema de direitos humanos tem sido
mesmo levada a tribunais internacionais como exemplo de violação do direito
humano das mulheres à sua integridade corporal.
Como testemunha Carmen Cruz, no “Tribunal Internacional de Direitos
Reprodutivos como Direitos Humanos”:
“Durante a lenta recuperação, diante de tanto maltrato [uma
sucessão de procedimentos invasivos e perigosos, que resultaram em morte
do bebê, perda do útero e infeção hospitalar generalizada], a única coisa
que quero é morrer. Da minha vagina continua escorrendo pus, minha
filha está morta e, além de tudo, agora sou estéril. Minha familia, para
consolar-me, me diz que não sou nem a primeira nem serei a última que
passa por isso, que já vou me esquecer deste pesadelo, que me conforme. E
é ali, no meio da dor física e moral, da raiva e da impotência, que me
pergunto: e as que agora são meninas e um dia decidirão ser mães, vai
acontecer a elas o mesmo que me aconteceu? Até quando vamos esperar
para denunciar, falar, exigir? (Bunch et alli, 2000:117)
O tema da violação dos direitos humanos na assistência à saúde
reprodutiva em geral e na assistência ao parto em especial é amplamente
documentado pelo Comitê de America Latina e el Caribe para la Defensa de
los Derechos de la Mujer (CLADEM) em seu estudo “Silencio y Cumplicidad
– Violência Contra la Mujer em los Servicios Publicos de Salud em el Peru”,
que afirma:
“Nas narrações das usuárias, há uma constante menção a
maltratos, ofensas, humilhações, indiferença, negligência, e ao risco
eminente de sofrer abusos no âmbito dos estabelecimentos públicos de
saúde. Os testemunhos colhidos também dão conta de uma série de
intervenções sobre o corpo da mulher, sem que a ela se dê qualquer
64
informação nem se peça consentimento; exposição a sofrimentos
desnecessários a parturientes e a aquelas a quem se suspeita que
provocaram um aborto.”
Uma vez que a má qualidade da assistência expõe a mulher a agravos e
ao risco de morte, conforme a OMS, a redefinição da mortalidade materna de
“desvantagem na saúde” para uma “injustiça social” provê a base legal e
política para que os governos sejam obrigados a prover serviços adequados e
propõe, para tanto, o acionamento de instrumentos internacionais como a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Pela Eliminação de
todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, o Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos, a Convenção dos Direitos da Criança, entre
outros (WHO, 1998.3).
Segundo o CLADEM (1998), deve-se dar relevância aos instrumentos
que protegem os direitos à integridade pessoal e à autonomia nas decisões
sobre a sexualidade e a reprodução, aí incluídos os documentos resultantes das
Conferências de Cairo (População) e Pequim (Mulher e Desenvolvimento),
como orientações interpretativas das normas contidas nos tratados de direitos
humanos. Este trabalho reforça que a esses casos de violação dos direitos
aplicam-se muitos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
entre eles os conceitos de que “todo indivíduo tem o direito à vida, à liberdade
e à segurança de sua pessoa” e que “ninguém será submetido a torturas nem a
castigos ou a tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos”. Inclusive,
segundo a Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis,
Desumanos ou Degradantes, esses conceitos aplicam-se àquelas pessoas que
estão colocados em instituições, sejam elas prisões ou serviços de saúde
(CLADEM, 1998:51-52).
65
Dessa forma, entendemos que a promoção de uma assistência
humanizada, tomando como base a compreensão de humanização que
descrevemos, vem a convergir com a promoção dos direitos das mulheres na
assistência ao parto.
Mas, até que ponto, no contexto concreto em que se dá a assistência,
esses conceitos e instrumentos podem ser usados? Quais os limites e
possibilidades da implementação de formas de assistência que respeitem ou
promovam direitos? E como, na prática, a intenção de promover e proteger
direitos é compreendida e/ou utilizada pela mulher que procura os serviços?
66
2.2.3. Desenho do estudo
2.2.3.1. Recursos metodológicos e seu ajuste
Para trabalhar o objeto em questão, em um contexto de mudança
institucional contraditória e rápida, utilizaremos a metodologia qualitativa,
uma vez que queremos trabalhar “com o universo de significados, motivos,
aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais
profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser
reduzidos à operacionalização de variáveis” (Minayo 1995: 21-22).
Entendemos que o objetivo da pesquisa é, em uma perspectiva
construtivista, “o de ampliar a compreensão e re-construir as construções que
as pessoas (incluindo o pesquisador) têm no início da pesquisa, buscando um
conhecimento consensuado mas ainda aberto para novas interpretações, à
medida que a nossa compreensão dos fenômenos estudados amplia-se e se
torna mais sofisticadas”.
Nesse ponto de vista, “advocacy” e ativismo
também são conceitos-chave e o pesquisador é posto num papel de
participante e facilitador no processo (Guba & Lincoln, 1993:113).
O conhecimento consiste, nessa perspectiva, daquelas construções sobre
as quais há um relativo consenso (ou ao menos algum movimento em direção
ao consenso) entre aqueles considerados competentes para interpretar a
substância daquela construção. Múltiplos conhecimentos podem coexistir
quando intérpretes igualmente competentes (ou respeitados) discordam,
dependendo de fatores sociais, políticos, culturais, econômicos, étnicos, de
gênero. Essas construções são sujeitas a uma revisão contínua, com mudanças
que são mais possíveis de ocorrer quando construções relativamente diferentes
convivem, justapostas, em um contexto dialético. (Guba & Lincoln, 1993:113)
Em termos dos marcos conceituais, parte-se das concepções descritas no
quadro interpretativo, entendendo esse quadro como provisório, aberto a
67
novos aportes conceituais e às surpresas trazidas pelo trabalho de campo, seus
achados e sua interpretação. Utilizaremos as categorias de análise provisórias
(gerais) vislumbradas quando da elaboração do projeto original da pesquisa,
abertas às novas categorias (específicas) que emergem do trabalho de campo
(Minayo, 1994:70).
Em termos dos ajustes metodológicos com relação ao projeto original,
após análise da primeira fase do campo, decidimos que, em vez de entrevistar
pacientes e provedores em geral para estudar os limites e possibilidades das
mudanças na assistência, seria mais adequado estudar os casos dos serviços
que se dispuseram à mudança. Assim, poderíamos descrever por que um
serviço – sua direção, seus profissionais, sua instituição mantenedora, suas
pacientes, etc. – optaram por implementar uma proposta de mudança e que
limites e possibilidades terão efetivamente encontrado.
2.2.3.2. Observação de serviços: o percurso
Esta nova perspectiva, a de estudar os serviços auto-entitulados
“humanizados”, foi acrescida de mais um recurso: a observação participante
dos serviços, incluindo os plantões. No estudo de serviços de assistência ao
parto, esse tem sido um recurso muito valioso, utilizado em alguns dos estudos
mais relevantes na antropologia do parto desde os anos sessenta (Sakala,
1992:376-79).
O recurso à observação foi buscado para poder “captar uma variedade
de situações ou fenômenos que não são obtidos por meio de perguntas, uma
vez que, observados diretamente na própria realidade, transmitem o que há de
mais imponderável e evasivo na vida real” (Cruz Neto, 1994:60). Buscamos
esse recurso porque na metade do segundo ano do trabalho já tínhamos um
material abundante a respeito das propostas de mudanças e o discurso
68
institucional sobre os limites e possibilidades, porém havia nesse mesmo
discurso, assim como no material de entrevistas com provedores e pacientes,
várias contradições, sobretudo quando se confrontavam as percepções sobre o
que seria a assistência adequada, quem deveria provê-la e quais deveriam ser
os novos papéis na cena do parto. Havia, evidentemente, muitos lapsos entre o
que era a intenção de mudança e o gesto de efetuá-la.
Essa distância entre intenção e gesto é bem traduzida nas palavras de
uma médica entrevistada em um serviço escola:
“Racionalmente, eu sei que não é pra fazer a episiotomia. Mas a
minha mão vai sozinha.”
Para organizar a observação dos hospitais, tomamos como referência
inicialmente dois estudos etnográficos recentes sobre assistência ao parto e
esterilização no Brasil, a pesquisa de Kristine Hopkins (Under the Knife Cesarean Section and Female Sterilization in Brazil,1998); e a de Anne Line
Dalsgard (Matters of Life and Longing – Female Sterilization in Northern
Brazil, 2000). Os dois estudos utilizaram a observação de plantões, em
formatos distintos daquele que utilizamos, mas que nos ofereceram um
panorama das possibilidades do método em nosso contexto concreto. Com a
observação de plantões planejamos também uma imersão maior no ambiente
organizacional, além de viabilizar entrevistas no decorrer ou imediatamente
depois dos processos.
Na fase final do trabalho, entramos em contato com outros estudos
muito relevantes para nosso tema, como o “Avaliação da Qualidade de
Maternidades – Assistência à Mulher e seu recém-nascido no SUS” (Alves e
Silva, orgs., 2000), que utilizou a observação de maternidades no Nordeste à
luz do conceito de humanização, e uma etnografia da humanização de uma
maternidade-escola no Sul (Tornquist, Carmem, no prelo, “Paradoxos da
69
Humanização”). Esses trabalhos, embora diferentes em seu desenho quanto à
observação, foram também muito úteis na comparação dos achados e na
análise.
Nossa experiência de observação participante, em termos da tipologia
clássica proposta por Gold e Junker sobre o quanto de observação e de
participação o papel da pesquisadora comporta (completo observador,
observador que participa, participante que observa, e completo participante,
Atkinson e Hammersley, 1993:248), foi variada.
Podemos dizer que, no nosso caso, o trabalho seria melhor tipificado
como um observador que participa, pois nos dois serviços há uma interação
importante entre a observadora e a cena. No caso da OSS Hospital Santa
Efigênia (nome fictício), no decorrer do processo houve uma superposição
entre o papel de doula (acompanhante do parto) e de observadora, pois havia
essa possibilidade; enquanto no Hospital Independência (nome fictício),
embora não haja formalmente o papel de doula na instituição, essa interação
pretendeu ser considerada como admissível e mesmo desejável (pelo menos
com a mulher e acompanhantes), em certos contextos, em outros, mostrou-se
mais adequado o papel de “móvel”, de observador apenas, inerte na cena,
como descreveremos mais adiante.
Para enfrentar a tarefa da observação, tanto pelos limites da formação
médica quanto por sugestão de um dos serviços envolvidos (que considerou
que o olhar médico é excessivamente viciado para poder perceber o que o
olhar ‘leigo’ percebe), decidimos contar com o apoio de profissionais
experientes em etnografia e observação de serviços e convidamos colegas do
Grupo de Estudos de Relações de Gênero da Unicamp para colaborar com esta
pesquisa.
70
Essa decisão de ter etnógrafas como colaboradoras mostrou-se muito
acertada, pois como outsiders do ambiente “nativo” das maternidades são
capazes de um estranhamento de outra natureza, impossível a uma profissional
como a autora, que tem uma familiaridade com o campo que limita o
estranhamento antropológico, por sua uma leitura a priori dos procedimentos,
rotinas e códigos do ambiente. Certamente tanto este trabalho quanto a autora
ganharam muito com essa inestimável colaboração.
Dessa forma tivemos como colaboradoras duas etnógrafas, Sonia N.
Hotimsky e Regina Fachini, que participaram da observação. A primeira
observou a Maternidade Santa Efigênia, a segunda a do Hospital
Independência. O contato com essas profissionais foi feito por intermédio de
um grupo de estudos de ciências sociais, gênero e saúde da Unicamp, e elas
mostraram interesse em colaborar com a pesquisa. Em preparação para essa
participação, elas leram e discutiram o projeto original, o primeiro relatório de
progresso e um texto da aluna sobre o tema.
A abordagem dos serviços seguiu processos diferentes. A observação
foi organizada em etapas, sendo a primeira a dos contatos institucionais e
observação exploratória, feita pela autora em companhia da antropóloga que
observou o respectivo serviço, em seguida
a observação de plantões
propriamente a partir do roteiro preparado na etapa exploratória.
Essa fase estava planejada para incluir o total de quarenta e oito horas
de observação por serviço, sendo um plantão de doze horas e seis meiosplantões de seis horas, incluindo horários noturnos, diurnos, durante a semana
e nos finais de semana, porém ao final foram necessárias várias outras visitas a
cada serviço, além de contatos com os profissionais fora do serviço. A autora
participou na maior parte das idas aos serviços e, enquanto equipe, tivemos
encontros periódicos para discutir os cadernos de campo produzidos. As
71
muitas horas de deslocamento até os serviços no trânsito de São Paulo foi um
espaço privilegiado de discussão, em que muitas das expectativas e insights
foram elaborados. Toda a observação ocorreu de junho a dezembro de 2000.
Após a discussão do material dos cadernos de campo dessa etapa,
voltamos
a contactar os serviços para discutir nossas impressões e a
observação e para complementar as informações com entrevistas com
informantes privilegiados. Nessa etapa, fotografamos os serviços em seus
detalhes de equipamento e espaço físico.
Para iniciar o trabalho de campo, fizemos o contato com os serviços
melhor colocados em um prêmio nacional para a humanização do parto em
1999. O serviço preimado em primeiro lugar, a Maternidade do Hospital Santa
Efigênia da Zona Leste. A direção desse serviço mostrou-se muito interessada
no projeto de tese e se dispôs a colaborar. O Hospital Santa Efigênia (nome
fictício) da Zona Leste é uma Organização Social de Saúde (OSS), um
hospital geral, possui 220 leitos de nível secundário e constitui referência para
o "Módulo de Saúde" do bairro com a perspectiva de abranger de 10 a 20
unidades básicas de saúde e os ambulatórios "médicos de família" da região. O
hospital atende mais de quinhentos partos mensais.
Foram feitas quatro visitas exploratórias de observação, que incluíram o
pronto-socorro, o setor de admissão (a “porta” do serviço) e as enfermarias
(salas de pré-parto e parto). Essas visitas tiveram como finalidade travar uma
primeira interlocução com as pessoas envolvidas, que seriam nossos
informantes privilegiados, para apresentar e negociar o projeto de observação
do serviço; para estabelecer com elas uma relação de confiança e de possível
parceria, ainda que preservando uma perspectiva autônoma e crítica do
serviço; e para conhecer o espaço físico e o fluxo das pacientes no serviço em
cada um dos espaços da instituição. Essas visitas iniciais permitiram registrar
72
essas abordagens e informações, assim como nossas impressões subjetivas,
dúvidas a serem esclarecidas e novas questões a explorar. Tivemos acesso aos
protocolos de atendimento do serviço (amniorexis prematura, fluxo para
referências, doença hipertensiva específica da gravidez, parto cesárea, parto
normal, parto fórceps e sofrimento fetal), o que nos permitiu comparar a teoria
e a prática das propostas de mudança.
Como o serviço já introduzira a fotografia em algumas de suas
atividades de rotina (como o registro das perdas fetais, para susto de muitos
dos trabalhadores, num programa surpreendente de manejo humanizado
desses momentos dramáticos), incluímos o registro fotográfico dos plantões na
observação. Para tanto, elaboramos um consentimento informado por escrito
para a observação, que inclui o consentimento para a observação
propriamente, para a fotografia e para o acesso ao prontuário (v. anexo).
Foram realizadas várias entrevistas exploratórias com profissionais do
serviço e contatos com pessoas da comunidade que trabalham em parceria
com a maternidade, em um dos projetos de “doulas” (acompanhantes de
parto). Este último espaço mostrou-se um dos mais preciosos para a
observação, pois fomos convidadas para participar, como docente, da
capacitação dessas voluntárias da comunidade para o acompanhamento de
parturientes durante sua estadia no serviço. Muitas dessas voluntárias fazem
parte do Movimento de Saúde da Zona Leste e trouxeram uma grande
quantidade de informações sobre a realidade da peregrinação entre os serviços
da região, a precária ou ausente atenção pré-natal e sua versão das histórias
contadas pelas mulheres que fazem uso do serviço.
A observação foi organizada de forma a contemplar plantões diurnos e
noturnos, durante a semana e finais de semana, dadas as sua características
bem diversas (nos fins de semana há menos profissionais e menos controle
73
sobre as práticas); assim como a observação de “acompanhamento” da
realidade a partir da perspectiva de diferentes atores – parturiente,
acompanhante (marido/parente) da parturiente, enfermeira-obstetriz, médico
(obstetra, pediatra). As duas maternidades contam ainda com um serviço de
atenção ao consumidor (SAC), que funciona como uma “ouvidoria”, que
sistematiza as queixas formalizadas ao serviço. Entrevistamos os profissionais
responsáveis por esse serviço e tivemos acesso ao banco de dados das queixas.
A primeira fase de observação de plantões no Santa Efigênia foi
finalizada em outubro e os cadernos de campo discutidos pelo conjunto da
equipe. Como a observação iniciou-se por aquele serviço, a antropóloga
responsável pela observação no Hospital Independência (Regina Facchini)
teve a oportunidade de acompanhar Sônia N. Hotimsky em um plantão de fim
de semana e elaborar o seu diário de campo.
Ao contrário do Santa Efigênia, que desenvolveu seu processo de
humanização no momento que o hospital foi aberto, ou seja, “começou do
zero”, o segundo serviço a ser estudado, a Maternidade do Hospital
Independência, foi um hospital tradicional que aos poucos foi incorporando
novas abordagens na assistência ao parto no decorrer de vários anos. O serviço
oferece residência médica em Ginecologia e Obstetrícia. Este é um hospital
estadual situado em um bairro de classe média, que conta com 250 leitos das
várias especialidades, e sua maternidade atende cerca de 200 partos mensais,
com a perspectiva de expansão nos próximos meses.
O contato com a direção do serviço demorou um pouco para se
concretizar, em um primeiro momento, pois houve troca da direção no
período, porém insistimos por tratar-se de um serviço que inclui uma
residência médica, onde poderíamos estudar a especificidade de um processo
de mudança no contexto da formação dos recursos humanos, o que é apontado
74
por muitos autores (Davis-Floyd, 1992; Wagner, 1997; Kitzinger, 1997) como
um dos principais pólos de resistência. Entrevistamos inicialmente o diretor
anterior do serviço, que estivera presente desde o início da implantação das
primeiras mudanças nos procedimentos de rotina (atualmente ocupando um
cargo em outra instituição).
Os primeiros contatos no hospital, feitos pela autora e pela antropóloga
Regina Facchini, incluindo visita às enfermarias e entrevista com o diretor
atual, foram muito amigáveis e reveladores, confirmando as nossas
expectativas do potencial da observação. Tivemos a oportunidade de visitar a
ala atual de parto, puerpério e suas pacientes, o banco de leite e o trabalho de
promoção do aleitamento e a
considerável expansão da maternidade.
Visitamos a nova ala a ser transformada em ala de obstetrícia no andar
superior ao da maternidade, atualmente reservada à cirurgia oncológica, e ao
novo centro obstétrico, então em reformas devido a uma infiltração do sistema
de esgotos. Essa reforma foi o pretexto para uma criativa mudança
arquitetônica, propiciando a transformação de um centro obstétrico
convencional, orientado por um fluxo de “linha de montagem”, para um
inovador sistema PPP (pré-parto, parto e puerpério no mesmo leito).
A pedido da direção do hospital, a continuidade do trabalho foi adiada
até a conclusão das obras da nova ala obstétrica (PPP), prevista inicialmente
para final de julho; monitoramos a abertura da ala nova quase semanalmente,
porém a cada contato conhecíamos mais um capítulo dos adiamentos. Em
setembro, mesmo sem a nova ala pronta, voltamos a procurar o serviço para
retomar as entrevistas exploratórias, fechar detalhes de formalização dos
contatos institucionais e dos consentimentos informados para as pacientes.
Nessa visita, soubemos que a ala deveria ser aberta na semana seguinte e
renegociamos o prazo para duas semanas após a sua abertura, o que seria a
75
primeira semana de outubro; nessa ocasião, tivemos a oportunidade de
conversar com mais detalhes sobre o contexto institucional, avanços e limites
da proposta, e de visitar a ala nova finalmente pronta, porém ainda sem parte
do equipamento encomendado (camas especiais para o modelo “PPP” de
assistência).
Assim como no Santa Efigênia, discutimos o conteúdo do
consentimento informado para as pacientes e formalizamos por escrito o
contato com a direção do hospital sobre a observação. Por se tratar de um
hospital-escola, comprometemos-nos a discutir o projeto e seus achados na
reunião clínica com os residentes. Finalmente, iniciamos a observação já em
outubro, quando a nova ala enfim ficou pronta. Como no primeiro serviço, a
observação incluiu períodos diurnos e noturnos, durante a semana e fins de
semana.
Quando da abordagem dos serviços para a pesquisa, propusemos como
contrapartida ao estudo partilhar os resultados da pesquisa, um processo de
feedback sobre os serviços, algo menos sistemático que uma avaliação dos
serviços, de forma respeitosa para com esses limites institucionais e de
maneira a preservar a reputação do serviço e a confidencialidade do trabalho
de pesquisa, não expondo a instituição, na medida do possível, a qualquer
situação constrangedora. Pretendemos mostrar que, independentemente dos
limites do serviço à mudança, esse tipo de diagnóstico pode ser muito útil e os
serviços mostraram-se muito interessados.
2.2.3.3. Outras fontes de evidências e reflexões
Além dos cadernos de campo da observação de plantões, incluindo os
depoimentos em plantão com pacientes e provedores de serviços autodefinidos como humanizados, utilizamos como nossa base empírica
76
entrevistas exploratórias sobre o tema com provedores e pacientes em geral
(as entrevistas foram feitas pessoalmente e posteriormente transcritas), temos
ainda a transcrição dos dois seminários sobre o tema realizados entre 19982000, os documentos normativos sobre humanização e os artigos na imprensa
médica. A análise desse material compõe o contexto mais amplo em que se
localiza o eixo do trabalho – a observação dos plantões –, e será entretecido
nos diversos capítulos.
Com relação aos seminários, observamos centralmente dois eventos em
que ocorrem os diálogos entre os atores. Um deles foi o “2O Seminário sobre
Nascimento e Parto em São Paulo – Vitrines de Humanização” (nos
referiremos a este seminário como SVH), realizado em maio de 1999. Esse
encontro discutiu as bases científicas das mudanças na prática obstétrica e as
experiências de mudança, entre elas as maternidades premiadas como “mais
humanizadas” no Estado, a Maternidade Santa Efigênia da Zona Lestee a
Maternidade do Hospital Independência. Esse seminário foi gravado e
transcrito, a transcrição revisada, resultando em 15 horas e meia de transcrição
ou cerca de 310 laudas.
O segundo seminário que observamos foi o “Seminário Práticas
Obstétricas baseadas nas Evidências Científicas”, (nos referiremos a ele como
SPOBEC), realizado em outubro de 1999 pelo Instituto de Saúde, pelo
Hospital Santa Efigênia e pela Associação Brasileira de Enfermeiras
Obstetrizes (ABENFO). Esse seminário foi realizado com o apoio do
Ministério da Saúde, da Organização Panamericana da Saúde (OPAS), da
FEBRASGO e da ABENFO, motivado pelo reconhecimento de que
“freqüentemente a prática médica se faz a partir de escolhas diagnósticas e
terapêuticas nem sempre fundamentadas em evidências científicas que
comprovem sua eficácia e efetividade”, como descrito no convite do
77
Seminário. O seminário foi igualmente gravado e transcrito, resultando em
sete horas ou cerca de 140 laudas.
Um terceiro seminário que observamos foi o “Violência e Saúde”,
promovido pelo Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São
Paulo, em agosto de 2000. Nos referiremos a ele como SVS. Este encontro
explorou as relações entre violência, saúde e instituições, discutindo as várias
iniciativas de enfrentamento do problema, desde as propostas de humanização
do parto às ouvidorias dos serviços no contexto do SUS. Parte do seminário e
dos grupos de trabalhos foi gravado e transcrito, num total de cinco horas de
gravação.
No decorrer desta pesquisa, surgiu uma articulação que organizou a
“Conferência Internacional sobre Humanização do Parto”, realizada em
Fortaleza em novembro de 2000. Essa conferência foi idealizada em
comemoração aos 15 anos da publicação no Lancet da “Carta de Fortaleza”,
que teve como subtítulo “Parto não é doença – tecnologia apropriada para o
parto”, a primeira expressão organizada internacional desse movimento de
confluência que veio impulsionar o desenvolvimento da medicina perinatal
baseada em evidências, em especial da Iniciativa Cochrane, já mencionada
neste texto.
A
participação
nessa
Conferência
trouxe
muitas
informações
importantes, pois marca um momento especialmente relevante desse
movimento e uma certa “internacionalização” do termo humanização,
anteriormente muito mais utilizado pelos países de língua latina,
principalmente na América do Sul. A Conferência teve como objetivo
principal “promover a assistência humanizada à maternidade visando um
nascimento saudável”, foi dirigida a “todos interessados no tema, como
parteiras,
obstetras,
pediatras,
enfermeiras,
grupos
de
mulheres,
78
epidemiologistas, cientistas sociais, administradores de saúde, formuladores
de política, jornalistas, assim como grávidas e suas famílias”.
O evento teve como questões norteadoras temas como a expansão do
conceito de maternidade segura para incluir a assistência humanizada; a
promoção de uma assistência à saúde materna que seja fortalecedora e traga
satisfação tanto para as mulheres como para os provedores da assistência; a
promoção da participação ativa das mulheres em todos os aspectos da
assistência, inclusive no processo decisório; a promoção de uma assistência ao
parto e nascimento em que profissionais médicos e não-médicos trabalhem
conjuntamente em harmonia; a promoção de uma assistência ao parto e
nascimento que seja baseada em evidências científicas, incluindo a utilização
de tecnologias; debater a percepção de risco e sua influência na assistência ao
parto e nascimento; e a promoção da assistência humanizada ao parto e
nascimento como um direito reprodutivo. (www.humanization.org)
Com relação aos documentos normativos estudados, dada a grande
quantidade de documentos disponíveis, buscamos priorizar aqueles com
referências diretas à humanização do parto e que melhor dialogassem com
nosso material de observação de plantões e seus achados. Valorizou-se, em
especial aqueles a quem os sujeitos pesquisados fazem referência, como os
relativos ao problema de acesso a leitos e à peridural nos serviços do SUS22.
22
No nível do Ministério da Saúde, houve o lançamento do Programa de Humanização no Pré-Natal
e Nascimento (junho de 2000), a ser executado de forma articulada entre o Ministério e as
Secretarias estaduais e municipais de saúde, que deverão produzir seus respectivos documentos; no
caso do Estado de São Paulo, várias iniciativas foram articuladas para o segundo semestre de 2000,
entre elas um seminário em agosto sobre violência e saúde, incluindo a violência institucional e a
humanização do parto. O lançamento do Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento do
Ministério e seus respectivos documentos ocorreu de forma quase simultânea com um Programa de
Humanização de Serviços de Saúde daquele Ministério (maio de 2000), que se iniciaria com um
projeto piloto em 11 hospitais, incluindo entre eles os hospitais premiados pelo Ministério como
maternidades humanizadas (Prêmio Galba de Araújo, 1999). Essa proposta envolverá todo um
processo de treinamento e assessoria pela humanização de hospitais, porém os textos e documentos
de formação não se encontravam disponíveis. Ainda na linha das iniciativas do Ministério, houve a
79
No estudo dos artigos da imprensa médica publicados de janeiro de
1998 a dezembro de 2000, procedemos ao que chamamos a varredura (leitura
orientada pelas categorias do estudo) e fizemos uma análise preliminar do
“Jornal da SOGESP”, do “Jornal do CREMESP” e do “Medicina” (Jornal do
Conselho Federal), do “Jornal da FEBRASGO” e da “Femina”. Neste
trabalho, consideramos cada artigo, carta ou editorial que lidava com o tema
da tese como “unidade de registro” a ser selecionada para a leitura.
Na análise dos diversos materiais ocorreram as seguintes etapas:
primeiro a leitura flutuante do material – o contato exaustivo com o material,
deixando-se impregnar por seu conteúdo – das transcrições de entrevistas,
seminários, artigos e cadernos de campo. Em seguida, vem a leitura detalhada
e distribuição na forma de temas; e finalmente, fizemos uma análise temática
do material selecionado, a partir das categorias de análise iniciais e aquelas
que surgiram no decorrer do trabalho (Minayo, 1993, 1994).
Na metade final do trabalho surgiram ainda duas fontes importantes, as
listas eletrônicas da “comunidade virtual” pela humanização do parto, a “Parto
Natural” e a “Amigas do Parto”. Escolhemos alguns trechos entre as milhares
de mensagens como exemplares do pensamento desta comunidade crescente.
2.2.3.4. Questões éticas
Várias questões éticas são colocadas neste trabalho, para além das
formalidades de praxe. Atualmente há uma polêmica (certamente ainda
marginal ao núcleo de temas que compõe a área, mesmo entre os setores mais
reedição em 2000 do prêmio Galba de Araújo; a publicação de 40.000 exemplares da tradução para
o português do excelente manual “Guia Prático para a Assistência ao Parto Normal” da
Organização Mundial de Saúde (1996), onde estão compiladas as recomendações baseadas na
evidência às quais nos referimos; e ainda a publicação de meio milhão de exemplares de uma
cartilha sobre os direitos das gestantes, em parceria com a Rede Nacional Feminista de Saúde e
Direitos Reprodutivos.
80
progressistas) sobre considerar a privacidade uma das condições mais
importantes para o bom andamento da fisiologia do parto (Odent, 2000).
Nesse sentido, haveria uma contradição entre pretender promover a boa
assistência e acrescentar mais uma pessoa na cena do parto, ainda que essa
pessoa adicional tenha sido a única que tenha pedido permissão para a sua
presença.
Como em outros estudos, buscamos compensar essa intrusão e diminuir
o risco de eventualmente contribuir para atrapalhar ainda mais a vida daquela
mulher, por meio do oferecimento dos limitados recursos que se pode brindar
nesse contexto, por exemplo, servindo como “doula”. Isso certamente é uma
intromissão na cena que pode modificar seu desenrolar, mas enfim trata-se de
uma observação participante, na qual “o observador é parte do contexto sob
observação, ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por este
contexto” (Schwatz e Schwartz, 1955, apud Minayo, 1993).
Com relação à proteção da identidade dos entrevistados em geral, em
especial as pacientes, propusemos às pessoas entrevistadas que escolhessem
um nome de fantasia para elas ou trocamos nós mesmos nas transcrições;
dessa forma, todos os entrevistados e pessoas observadas nos plantões tiveram
seus nomes trocados. Para preservar melhor a privacidade dos estudados,
decidimos, além da troca dos nomes das pessoas, a troca do nome dos
serviços, e a omissão do nome do prêmio que eles ganharam (o critério que
nos levou a escolhê-los). Para o leitor com o qual queremos dialogar,
conhecedor desse contexto, é provável que haja um reconhecimento, ao menos
parcial, das pessoas e situações.
Como estamos lidando com pessoas e instituições públicas, tentamos
resolver o problema deste reconhecimento parcial da seguinte maneira: após
consulta ao CRM sobre possíveis problemas e o esclarecimento de que o
81
conteúdo do material, embora repleto de infrações, não deveria complicar a
vida dos envolvidos - pois eram dados públicos - resolvemos manter o nome
dos personagens em suas falas públicas, ainda que trocando o nome dos
serviços e todos os nomes nas falas a entrevistas ou depoimentos de plantão
feitos especificamente para esta tese. Assim, alguns personagens aparecem em
suas falas públicas como eles mesmo, e nas entrevistas com um nome trocado.
Apresentamos para os serviços um formulário de consentimento
informado mais completo e por escrito para as pacientes, que incluía a
observação do parto, o uso de fotografia no parto e o acesso ao prontuário (v.
formulário anexo). Para os depoimentos colhidos em plantão, não gravados,
foram explicados os objetivos da pesquisa e, em alguns casos, lidas as cartas
enviadas aos diretores dos respectivos serviços.
O recurso à fotografia tem como finalidade principalmente ilustrar as
cenas descritas e os recursos disponíveis em termos de equipamentos e espaço
físico, desta forma, poucas cenas de parto serão utilizadas. No consentimento
informado, a mulher é esclarecida de que, mesmo permitindo a fotografia,
pode tanto mudar de idéia quanto dizer que naquele dado momento não quer
ser fotografada. Também oferecemos cópias das fotos para as parturientes,
como forma de agradecimento.
82
Capítulo 3 – Resultados
Possibilidades e limites das propostas de humanização
A partir da observação de plantões, do estudo das entrevistas e dos
seminários e da leitura da imprensa médica, retomamos as categorias de
análise delimitadas no projeto original e acrescentamos algumas que
emergiram no decorrer do trabalho de campo.
O material de observação de plantões refere-se aos
dois serviços
anteriormente citados, quais sejam, a Maternidade da OSS Hospital Santa
Efigênia da Zona Leste(serviço 1) e a Maternidade do Hospital Independência
(serviço 2), além dos relatos das visitas, material de entrevistas formais,
depoimentos colhidos durante os plantões e de apresentações dos trabalhos
nos seminários referidos.
É importante chamar a atenção para o fato de que a assistência ao parto
tem formatos diferentes nos dois serviços e é oferecida por sujeitos com
papéis diferentes. Na OSS (serviço 1), a paciente é admitida pelo médico e
normalmente atendida pela obstetriz, que é responsável por conduzir o
trabalho de parto, enquanto no hospital com residência (serviço 2), o trabalho
de parto é conduzido basicamente por médicos, sejam residentes, na maioria
dos casos, ou funcionários do serviço.
Aqui buscaremos entretecer o material de observação, entrevistas e
seminários com aquele derivado da leitura de periódicos e documentos
normativos, buscando as consistências e inconsistências dos padrões
identificados.
83
3.1. Os muitos sentidos da humanização
Antes de recuperar essas categorias, é importante mostrar algumas
questões que, embora não previstas anteriormente, emergiram e se impuseram
à análise no decorrer do trabalho. Tentaremos sintetizá-las numa catalogação
que chamaremos de ‘os muitos sentidos da humanização’, uma vez que
percebemos que, quando cada um dos atores sociais estudados fala de
humanização, está se referindo à sua versão, entre as várias interpretações
possíveis desse termo.
Não pretendemos aqui encontrar a versão mais correta ou mais
‘científica’ do que seria a humanização do atendimento ao parto, mas sim
descrever como cada uma dessas versões instaura e explicita um conjunto de
relações sociais. Podemos assim considerar cada uma dessas versões como a
participação de atores sociais no diálogo que se desenrola presentemente sobre
o tema da humanização da assistência ao parto na sociedade brasileira.
Dessa forma, esboçaremos a identificação, em termos gerais, de várias
compreensões, ou “linhas”, sobre humanização, reconhecendo que há entre
elas muitas combinações, convergências, divergências e contradições, como
listamos abaixo. Podemos ver que há aqueles sujeitos que se referem à
humanização de forma negativa, recusando a proposta, e aqueles que aderem à
proposta; nos dois grupos encontramos o termo humanização referido a
sentidos distintos.
Entre os que rejeitam o termo, temos aqueles que o consideram
ofensivo, por sugerir que as práticas de assistência seriam desumanizadas, o
que é considerado por parte dos profissionais uma agressão ao seu trabalho e à
sua pessoa, como descrito eloqüentemente por um professor:
“Aqui também vou ser criticado, porque junto com a
epidemiologia, junto com a medicina baseada em evidência, surgiu um
84
termo que nos agrediu: a humanização do parto. A utilização abrangente
desse termo causou um sentimento nos professores de que tudo o que
havia sido feito até aquele momento era desumano, de que a
Universidade falhou. Por favor, mudem esse termo, eu não sei para qual,
mas eu penso dia e noite. Simplificação não é o melhor termo, talvez
como outro professor disse, um termo melhor fosse da vigilância ativa.
Mas tem que mudar, porque esse termo nos agrediu de forma violenta,
tanto que hoje, dentro da escola, a gente está mudando várias coisas,
mas a mágoa continua, a gente valoriza demais esse suporte emocional e
psicológico [...]” Seminário POBEC, professor universitário
O termo é ainda considerado por alguns como inadequado para
descrever o trabalho, mesmo aqueles que simpatizam com a proposta, pois
sugeriria uma abordagem “alternativa”, marginal, quando de fato é hoje o
padrão ouro da ciência:
Eu acho que a discussão que sempre se tem, que humanização do
nascimento é um nome errado para se utilizar, é porque se considera
que, na verdade, qualquer ato desempenhado pelo ser humano é um ato
humano. [...] Olha, um dos termos que é proposto, que é o parto
respeitoso, eu acho que seria, talvez, mais adequado. [...] Apesar de
que, no começo, e até hoje, muita gente infelizmente identifica as pessoas
que se pautam por uma atitude um pouco mais respeitosa para com o
bebê e com a mulher como pessoas que têm uma visão alternativa do
atendimento obstétrico. Eu acho isso uma visão de alternativo
completamente equivocada, porque são os que se baseiam na evidência
científica. {...} (dr. David Petchesky. médico ‘humanizado’ de hospital
privado)
85
Existe ainda uma recusa ao termo por considerar que a humanização da
assistência implicaria na recusa do uso adequado de tecnologia efetiva,
reduzindo a humanização a uma recuperação da gentileza, mediada ou não
pelo retorno financeiro do ato médico, redução da relação médico/profissional
de saúde - paciente à dimensão humana, solidária, dialógica; ou ainda, na
substituição acrítica da tecnologia pela relação humana, como se o uso de
ambas juntas fosse incompatível:
“[...]Tudo bem, podem existir diversos níveis de práticas médicas
– para os que desejam médicos mais simpáticos e menos simpáticos.
Pode ser que os médicos mais simpáticos não sejam tão capazes de fazer
o máximo no campo científico. As pessoas devem escolher o que desejam
da medicina. [...] Muitos médicos só são simpáticos pelo retorno
financeiro, porque o dinheiro é um valioso incentivo para tudo. Acho que
devemos esquecer a humanização da medicina, pois leva a uma forma
social arcaica, que funcionava bem no passado.“ Entrevista com M.
Mori, “Espero que os homens façam melhor do que Deus”. Ser Médico,
Ano IV, n. 14, p.8
Nessa mesma direção, o termo é também criticado por sugerir uma
visão essencialista do nascimento, como se a incorporação de tecnologia não
fosse um fato humano; teme-se que o termo tenha inscrito em si uma proposta
de rechaço de qualquer tecnologia, uma espécie de obstetrícia “volta às
cavernas”. Nesse caso, a incorporação de tecnologia é equivalente à
modernidade, enquanto sua “des-incorporação”, inserida no novo paradigma
de que “qualquer intervenção só se justifica se se prova mais segura e eficaz
que a não intervenção” significa um retrocesso, num momento em que o
modelo da cesárea, como o parto típico para a classe média, já seria uma
unanimidade.
86
Tal idéia está implícita, por exemplo, no debate intitulado “Resgate do
parto vaginal: vale a pena?”, promovido pela secretaria municipal de saúde de
Ribeirão Preto em março de 2001. Nessa cidade campeã de cesáreas, o parto
vaginal parece ser uma relíquia da barbárie pré-tecnológica, cujo possível
“resgate” é questionado exatamente porque faz pouco sentido diante do
suposto conteúdo civilizatório da incorporação de tecnologia, mesmo quando
inadequada.
Esses seriam os sentidos negativos do termo humanização. A seguir
veremos as referências positivas ao termo. No que diz respeito aos vários
sentidos de humanização encontrados, vemos que a tipologia abaixo não
representa segmentos sociais ou profissionais de maneira homogênea, mas sim
expressa tendências que podem contar com mais ou menos simpatia dos atores
sociais envolvidos.
Abaixo, buscaremos exemplificar essa polissemia a partir do uso dado
ao termo por cada um dos atores que dele faz uso. No decorrer do trabalho,
percebemos como cada um desses sentidos, de certa forma, instaura e explicita
uma “reivindicação de legitimidade” do discurso, num contexto em que se
identifica um espaço político a ser ocupado, no qual essas reivindicações de
legitimidade, em disputa, podem ser convergentes ou conflitantes.
a) Humanização
como
referida
à
legitimidade
política
da
reivindicação e defesa dos direitos das mulheres e crianças na assistência
ao nascimento, demandando, mais do que uma assistência que promova a
segurança e o parto seguro, uma assistência não-violenta (mais relacionada
a idéias de “humanismo” e de “direitos humanos”, admitindo às usuárias o
direito de conhecer e decidir sobre os procedimentos no parto sem
complicações);
87
“[...] As mudanças na oferta de serviços e no acesso a eles não
são suficientes. Os objetivos da Iniciativa Maternidade Segura não serão
alcançados até que as mulheres sejam fortalecidas e os seus direitos
humanos – incluindo seu direito a serviços e informação de qualidade
durante e depois do parto – sejam respeitados.” (WHO, 1998.3-1).
Esse discurso de direitos parece já influir na fala dos formuladores de
políticas, estando presente, pelo menos de forma retórica, nos discursos
públicos:
“Eu acho que é importante o parto humanizado pensando em
resgatar o nascimento como evento sociocultural crítico, com profundas e
amplas repercussões pessoais, [...] que muda todas as relações familiares.
Fazer um parto humanizado, fazer um pré-natal humanizado é pensar na
formação do núcleo familiar, e não é só fazer um pré-natal de barriga, mas
sim de pessoa. Aqui, eu acho um ponto importante os Direitos das
Parturientes da Organização Mundial de Saúde de 198523. A parturiente
deve ter papel central em todos os momentos de assistência, quer dizer, tem
que ser o centro de tudo e, na realidade, na nossa prática não é bem isso
que a gente vê.” (Apresentação sobre Assistência humanizada à saúde da
mulher, Formulador de políticas públicas, Seminário sobre violência e
saúde, SES, 2000)
Por parte do movimento social, como componente de uma agenda de
direitos sociais em geral e direitos reprodutivos em especial, e por que não, a
uma experiência prazerosa, esse debate está relacionado à luta do movimento
de mulheres por desfazer as supostas incompatibilidades entre essas
23
A rigor, os documentos da OMS de 1985 não se constituem formalmente como uma carta de
direitos das parturientes, embora indiquem direitos que foram, na década de 90, organizados como
tais (ou a sua reivindicação) por instituições internacionais da sociedade civil como a AIMS
(Association for the Improvement of Maternity Services, 1996)
88
“gerações” de direitos, reivindicando a integralidade dos direitos humanos e
dos direitos reprodutivos das mulheres, pois o direito de decidir sobre sua vida
e saúde (o direito à liberdade) não pode se realizar sem que existam as
condições sociais que viabilizem essas escolhas (Dora, 1998):
“Das recomendações emanadas daquela reunião, referendadas e
ampliadas pela Organização Mundial de Saúde no documento de
atenção ao parto normal em 1996, obtivemos as informações necessárias
para propor alterações e realizar modificações em diversas instituições
de saúde, que nos mostraram como pode ser melhor a atenção e os
cuidados que devemos oferecer às mulheres e seus bebês, mas também o
quanto ainda temos que avançar. [Precisamos de] conhecimento e
tecnologia a serviço da humanidade, com respeito às diferenças
culturais e religiosas; educação e saúde como direitos fundamentais
disponíveis para todos; direitos sexuais e reprodutivos garantidos para
mulheres e homens.” REHUNA, Carta de Fortaleza, 2000
b) Humanização como referida à legitimidade científica da medicina
baseada na evidência (orientada pelo respeito à fisiologia humana e pelo
uso do conceito de tecnologia adequada); como o “padrão ouro” de uma
prática orientada cientificamente através de revisões sistemáticas e em
oposição à prática orientada pela opinião e pela tradição. Esse sentido
busca inverter a lógica que avalia o parto vaginal como primitivo e arcaico,
contrapondo aqui a idéia de que a não-intervenção é o “moderno”,
enquanto a intervenção tecnológica acrítica e sem base na evidência é o
que se busca superar. Há uma relativa equivalência do termo em alguns dos
documentos, como os da REHUNA e outras instituições;
89
“Eu acho que o seminário vai mostrar inúmeras possibilidades. A
gente que faz uma assistência usando, às vezes até sem muito critério,
todas essas intervenções, porque fomos formadas desse jeito e porque
acreditamos, e acreditávamos, que essa era a melhor forma, e que,
depois de um determinado momento, você começa a ter uma
sensibilidade que talvez aquela episio que você fazia em 90% das
mulheres era porque era assim, porque sempre foi feito assim, eu
aprendi assim e me parece que era a melhor forma. Se é uma discussão
mais franca, de fato, aquilo tinha alguma evidência científica. Eu acho
que dentro da Academia as evidências científicas são necessárias, nós
precisamos ter trabalhos que mostrem que essa ou aquela prática é, sim,
danosa ou traz benefício, quanto de benefício, se esse benefício justifica
a intervenção, justifica você não ouvir a escolha que a mulher queira
fazer”. Apresentação sobre prática humanizada no parto, Seminário
Vitrines da Humanização, 1999.
c) Humanização como referida ao resultado promovido pela tecnologia
adequada na saúde da população. Essa dimensão pode ainda ser pensada, além
dos melhores resultados nos indivíduos de uma assistência mais adequada e
baseada na evidência, em sua dimensão coletiva, no sentido de uma
legitimidade epidemiológica, ou de saúde pública, derivada dessa adequação
tecnológica, que resultaria em melhores resultados com menos agravos
iatrogênicos maternos e perinatais. Isso é especialmente relevante quando se
trata da Iniciativa Maternidade Segura, pois a racionalidade no uso de recursos
adequados aparece como um conceito diferente do mero acesso a consultas
pré-natais e a leitos e procedimentos obstétricos, independentemente do
conteúdo e da adequação dessa assistência.
90
“O objetivo da assistência é obter uma mãe e uma criança
saudáveis com o mínimo possível de intervenção que seja compatível
com a segurança. Essa abordagem implica que, no parto normal, deve
haver uma razão válida para interferir sobre o processo natural” (WHO,
1996: 4).
d) Humanização como referida à legitimidade profissional e
corporativa de um redimensionamento dos papéis e poderes na cena do parto,
com o deslocamento da função principal, no parto normal, do médico obstetra
para a enfermeira obstetriz – legitimado pelo pagamento desse procedimento
pelo Ministério da Saúde – e do local privilegiado – o palco do drama – do
centro cirúrgico para a sala de parto ou casa de parto;
Todas as enfermeiras destes hospitais [...] assistem o parto
humanizado. Eu não admito um enfermeiro não humanizar o parto,
porque qual é a diferença do parto feito por médico para o de um
enfermeiro? [...] no pequeno momento que nós estamos com elas, elas
são assistidas, são humanizadas e nós fazemos com que elas tenham a
melhor assistência porque a nossa parte é cumprida dentro de nossa
qualificação [...], é no segurar a mão, é na orientação da respiração, é
no dizer à mãe “faça força que seu parto será normal” Enfermeira,
debate sobre “Papel da enfermagem na assistência ao Parto e ao
Nascimento” Relatório da Conferência Nacional sobre Organização de
Serviços para a Maternidade Segura à Luz da Humanização, 1999, p.33
Naturalmente, essa perspectiva nova inspira mais ou menos cautela, seja
entre as enfermeiras ou para os formuladores de políticas. Como diz esta
enfermeira que ocupa um cargo executivo no Ministério da Saúde, num debate
sobre “Papel da enfermagem na assistência ao Parto e ao Nascimento” :
91
Eu continuo a dizer que quem deve assistir o parto deve ser o mais
preparado. Pode ser da enfermeira à parteira , do médico ao
especialista, seja lá qual for. [...] Agora, o preparo vai além do preparo
técnico, até porque uma das preocupações do Ministério da Saúde
quando introduziu na portaria o pagamento do parto sem distocia pela
enfermeira obstetra era que íamos criar uma discussão acalorada [...]
Nós hoje temos a formação da enfermeira obstetriz dentro da escola de
medicina, por isso muitas vezes ela repete os mesmos erros. Nem sempre
ser uma enfermeira garante que esse parto tenha uma assistência mais
humanizada, então nós temos que trabalhar para mudar este modelo de
formação”. Relatório da Conferência Nacional sobre Organização de
Serviços para a Maternidade Segura à Luz da Humanização, 1999, p.33
Por outro lado, os médicos sentem seu espaço expropriado, como
podemos perceber pelo discurso de representantes dessa categoria, que
insistem na crença de que o parto só pode ser seguro se assistido pelo médico,
apesar do questionamento trazido pela medicina baseada na evidência:
“[...] Eu temo muito pelo parto. Claro que a grande maioria
evolui bem, mas os grandes problemas que ocorrem exigem soluções
imediatas que não podem ser tomadas pela parteira, mesmo que seja a
mais gabaritada. Se a paciente acompanhada pela parteira foi para uma
sala de parto, deu à luz e tem uma atonia uterina: quem vai resolver?
Este é o problema: essa paciente vai morrer”. Lippi, Ser médico Ano II
no. 5, p. 26.
e) Temos a humanização como referida à legitimidade financeira dos
modelos de assistência, da racionalidade no uso dos recursos. Esta
racionalidade é argumentada tanto como desvantagem (economia de recurso e
92
sonegação do cuidado apropriado para as populações carentes, enfim, uma
“medicina para pobres”), quanto como vantagem (economia de recursos
escassos, propiciando um maior alcance das ações e menos gastos com
procedimentos desnecessários e suas complicações). Do ponto de vista dos
planejadores, essa vantagem aparece como um elemento definidor da adesão
ao modelo, sobretudo em sua relação custo-benefício, na extensão de
cobertura e melhora de indicadores:
“Infelizmente, nós temos muito poucos indicadores para trabalhar
no Brasil. Basicamente, estão disponíveis alguns indicadores de serviços
e indicadores de mortalidade, além da técnica que trabalha com esse
tipo de avaliação, mas mais dura. Essa legitimidade também reúne
aquilo que vem pela outra vertente da palavra humanização, que é um
enfoque filosófico afetivo. Não é por mero acaso que essas coisas se
reúnem apontando para a mesma direção, se reúnem na direção de uma
legitimidade financeira, quando se pensa também na eliminação de
tecnologias desnecessárias ou na não intervenção. Felizmente, quando a
gente discute com os economistas, discute um novo projeto, discute uma
nova postura, a gente também pode usar o argumento deles, que além de
todas as vantagens técnicas, além das vantagens das filosofias afetivas,
de crédito ou de justiça, elas são mais econômicas também e,
eventualmente, esse argumento é muito mais forte do que os anteriores”.
Apresentação do representante da Vigilância Sanitária do Ministério da
Saúde, SPOBEC
Nesse sentido, as propostas de humanização da assistência ao parto vão
ao encontro das necessidades institucionais de financiamento do setor público,
o que parece ser um fator decisivo para o seu apoio político. É importante
93
notar que o setor privado tem se beneficiado do modelo oposto, pois até certo
ponto a incorporação de tecnologia é mais lucrativa.
f) Humanização como referida à legitimidade da participação da
parturiente como consumidora nas decisões sobre sua saúde, à melhora na
relação médico-paciente ou enfermeira-paciente – ênfase na importância do
diálogo com a paciente, inclusão do pai no parto, presença de doulas, alguma
negociação nos procedimentos de rotina, da necessidade da gentileza e da
“boa educação” na relação entre instituições e seus consumidores.
Diferentemente de uma noção referida a direitos sociais, aqui está presente a
idéia liberal (no melhor sentido da tradição liberal de direitos do consumidor
de escolher).
“Alta tecnologia, profissionais capacitados e atendimento
humanizado”[...] Ele (diretor do hospital) salienta também a eficiência e
o aspecto humanístico das técnicas de acompanhamento do parto na
Maternidade Santa Efigênia24, fruto de anos de aperfeiçoamento e
investimentos que privilegiam o parto normal. A segurança dos
procedimentos baseia-se nas recomendações da OMS e a família decide
sobre sua participação ou não, assim como sobre a possibilidade de
abolir rotinas como a tricotomia, enteroclisma, episiotomia, aminiotomia
e clampeamento precoce do cordão.
Essa vertente tem crescido, inclusive através da propaganda pela rede
privada de assistência humanizada, considerada aqui como uma estrutura
física que permite o parto vaginal e mesmo a cesárea como alternativa, entre
24
Este não é o serviço estudado neste trabalho, mas um outro hospital situado também na Zona
Leste de São Paulo (Itaquera) gerido pela mesma irmandade religiosa, que atende pacientes do SUS
e tem uma ala privada, que recebe também pacientes conveniados, onde há uma ala modificada para
atender partos em um modelo humanizado.
94
outras escolhas informadas às mulheres. Essas são vertentes, ou modelos,
relativamente distintos.
O primeiro é referido à criação, por parte de serviços privados, de salas
(ou “suítes”) de parto normal, onde se encontram os recursos tecnológicos de
uma assistência típica ao parto vaginal, porém disfarçados em mobiliário de
um quarto de dormir, dentro de armários de madeira. Nessas suítes podemos
encontrar também cadeiras de balanço e um banheiro, que em alguns serviços
também inclui uma banheira, eventualmente com hidromassagem, que pode
ser usada para aliviar as contrações no trabalho de parto. Esses recursos foram
organizados nessas maternidades privadas como parte de uma estratégia de
reduzir os índices de cesárea, que estariam sempre acima de 70%, chegando
perto de 90% em algumas delas.
É importante ressaltar, embora não seja o foco deste estudo, que houve
um relativo aumento do interesse nas mudanças de práticas por parte do setor
privado, o que se evidencia pela criação de um grupo organizado de
profissionais e serviços privados mais caros, que tem buscado discutir os
determinantes dos altos índices de cesárea em seus serviços e se reunido para
discutir alternativas e propor mudanças, como é o caso do Grupo de Estudos
Partejar.
Segundo nossos informantes, apesar da melhor disponibilidade de
recursos para a prevenção da cesárea eletiva, com um ambiente mais
acolhedor a oferecer para a parturiente, isso não tem resultado
necessariamente em mais partos vaginais, pois a cultura da intervenção é
muito presente entre os profissionais dos serviços, que parecem não acreditar
na alternativa. Um desses informantes, diretor de maternidade pública e que
usa um desses serviços para suas pacientes privadas, afirma que mesmo nas
95
chamadas suítes de parto daquele serviço, 60% das pacientes que são
internadas na ala de partos normais terminam em uma cesárea.
Apesar das contradições, entendemos que essa é uma cunha, uma
relativa quebra da noção da cesárea como parto ideal para a classe média
(Melo e Souza, 1992), pois a existência dessas alas de parto vaginal é a
representação concreta do reconhecimento, por parte dos hospitais – menos ou
mais cosmético –, da respeitabilidade técnica dessa opção.
A segunda vertente é aquela que coloca a cesárea formalmente como
parte do leque de escolhas eletivas na parturição normal, que a defende como
direito das mulheres à escolha e afirma sua segurança superior como
procedimento, tanto para a mulher como para a criança. É importante chamar
a atenção desse fenômeno, pois é novo que se postule a defesa, inclusive por
importantes autoridades nacionais e internacionais, da cesárea como recurso
médico independente de indicação clínica (Wagner, 1999; 2000; Zugaib,
2001).
Na prática, isso vem sendo feito no Brasil há décadas, porém nunca de
forma tão explícita. A nosso ver, essa polêmica não resiste ao exame da
evidência científica, porém instaura e explicita um conjunto de valores em
jogo, não apenas aqueles referidos à prática médica e suas evidências, mas
também ao debate sobre o direito das mulheres à escolha.
g) Humanização como referida à legitimidade do acesso ao alívio da
dor, da inclusão para pacientes do SUS no consumo de certos procedimentos
tidos como humanitários, antes restritos às pacientes privadas, como a
analgesia de parto – ainda que esse procedimento, embora formalmente
previsto e pagável desde 1998 pelo SUS, por meio da portaria/GM/MS 2815,
na prática seja muito virtualmente impossível de operacionalizar, de acordo
96
com informantes de ambos os serviços observados e de freqüentes queixas dos
obstetras, publicadas em suas revistas. O pagamento do procedimento “parto”
foi aumentado de valor, sem incluir honorários específicos para o
procedimento do anestesista:
“Indignação e repúdio aos honorários do SUS (título): Os
obstetras paulistanos [...] vêm perante a classe médica e a população em
geral apresentar ao excelentíssimo
senhor Ministro da Saúde seu
inconformismo, indignação e repúdio à portaria que estabelece os
honorários profissionais para os procedimentos obstétricos das
pacientes atendidas pelo SUS e negam veementemente que o MS paga
analgesia de parto para o parto normal [...] Moção de repúdio da
Sogesp e Febrasgo, JS, ano III, no. 14, p. 15.
A percepção da imprescindibilidade da analgesia peridural no bom
manejo do parto vaginal, como condição mesma de sua humanização, foi
reiterada por muitos dos profissionais médicos:
“Primeiro, eu acho que não pode haver humanização sem ter
peridural no parto. Como podemos ser humanos com a parturiente sem
sedar a dor dela, que é uma tarefa primordial do médico?[...] Aí a gente
vê que na prática não tem anestesia disponível no SUS, é só discurso,
porque aqui tem vários anestesistas no plantão, mas para atender todas
as cirurgias do hospital. Então a gente praticamente só conta com
anestesista quando é cesárea. Uma rara vez ou outra, a gente faz uma
peridural humanitária, quando a paciente, às vezes uma adolescente,
está muito, muito descompensada. Já a paciente no consultório, a gente
faz analgesia em praticamente cem por cento dos partos vaginais.”
(médica do serviço 2, depoimento no plantão)
97
Em sua etnografia de uma maternidade humanizada, Tornquist (2001)
mostra que o termo “descompensação” se refere às situações
“quando a parturiente transcende os limites considerados
‘normais’ de conduta em termos da suportabilidade da dor, [quando]
essas barreiras são quebradas e quase todo o centro obstétrico escuta os
gritos e apelos das mulheres. Não é por acaso que a “descompensação”
de uma gestante é tida como altamente perturbadora do ambiente de
trabalho como um todo, sendo freqüentemente vista como provocador de
stress na equipe” (2001:8)
Essa forma de legitimidade da humanização, que coloca a peridural
como condição necessária e imprescindível no manejo do parto, é fortemente
referida à tradição médica hipocrática de “divinum opus sedare dolor”, ao
papel divino ou humanitário. Aqui, os obstetras efetivam o “resgate” da
parturiente da pena do Gênesis, de que as mulheres devem parir entre dores .
Para além dessa perspectiva metafísica, a escolha por parte do
profissional da assistência ao parto sem analgesia parece ser considerada pelos
médicos como má técnica (uma vez que ela é indicada para todas as pacientes,
se disponível) ou “medicina para pobre”, orientada pela carência de recursos,
delineando modelos de assistência claramente associados ao padrão de
consumo relacionado à renda ou à classe social da paciente. O benefício da
anestesia e dessa redenção seria comparável ao de uma indulgência – se não
pagar, resta o sofrimento.
Dessa forma, delineia-se dois modelos de assistência: um para aquelas
que podem pagar o trabalho do anestesista, que seria o padrão ouro da
assistência, e um outro que não inclui a anestesia, porém na maioria das vezes
inclui um conjunto de procedimentos que multiplicam a dor – esse seria o
modelo possível de ser adquirido por aquelas que dependem do SUS. Aqui
98
estaria, para muitos de nossos informantes, um importante impedimento para a
humanização da assistência ao parto.
Sabe-se que a dor do parto é em grande medida iatrogênica, amplificada
e acrescida por rotinas como a imobilização, a indução ou aceleração do parto
com ocitócitos, a manobra de Kristeller, a episiotomia e a episiorrafia, a
curagem manual pós-parto, entre outras. Pode-se imaginar que a experiência,
para profissional de inflingir esses procedimentos dolorosos, e para parturiente
de submeter-se a eles, seja muito diferente com e sem a peridural.
Apesar de mais eficaz como analgesia, a peridural tem efeitos colaterais
importantes. Além de implicar em uma relativa impossibilidade de
movimento, mesmo as técnicas mais modernas, a peridural implica em um
risco aumentado de partos prolongados, operatórios, uso de ocitócitos, de
cesárea, além das dificuldades neonatais (Enkin e cols, 2000). É importante
lembrar que as chamadas alternativas não-farmacológicas efetivas de manejo
da dor (presença de doulas, massagem, banhos, liberdade de movimentos e de
posição, entre outras) raramente estão disponíveis. Segundo Enkin e cols
(2000:329-330), os estudos mostram que
“A satisfação no parto não é contingente à ausência de dor.
Muitas mulheres estão dispostas a sentir alguma dor no parto, o que elas
não querem é que a dor seja insuportável. [...] A consideração pelas
necessidades de cada mulher parturiente como indivíduo, juntamente
com o conhecimento da efetividade e dos efeitos colaterais de cada
forma de analgesia, pode ajudar as mulheres a fazerem uma escolha
informada entre as alternativas disponíveis”
3.2. Cenários da humanização
3.2.1.A formação dos recursos humanos
99
Neste trabalho, tivemos a oportunidade de observar um serviço (2) que
tem um forte componente de formação de recursos humanos, com um
programa de residência com seus desdobramentos teórico e prático. Já
estávamos alertas para o elemento conservador desse tipo de serviço,
considerado por alguns autores (Wagner, 1999; Enkin et al, 1995) o mais
importante pólo de resistência à mudança nas práticas, porém como é um dos
poucos programas que tem a finalidade explícita de ensinar posturas
comprometidas com um modelo humanizado de assistência ao parto, ficamos
surpresas com o que encontramos.
Na fala de todos os “formuladores de política” entrevistados, os
recursos humanos são considerados o fator mais decisivo para a
implementação das propostas de humanização.
Segundo os informantes da direção do hospital 1 sobre a distância entre
o proposto nas rotinas e o que de fato acontece, a grande questão que se
colocou foi a ausência desse profissional “baseado na evidência” no mercado
– ele tem que ser treinado em serviço. Há uma grande inadequação da
formação desses profissionais, médico ou enfermeira, sendo que o aparelho
formador tem sido muito lento em incorporar tanto as mudanças referidas à
humanização de serviços em geral, quanto aquelas da medicina baseada na
evidência.
Nas palavras de dois profissionais que lidam com essa formação:
“O médico brasileiro é formado principalmente em hospitais
terciários. Como a residência é obrigatória, a opção, claro, é pelos
melhores hospitais de referência. Como a parte da formação que mais
agrada é a ginecologia cirúrgica, o residente se vê tentado pela solução
cirúrgica e acaba empregando isso na obstetrícia. Ele acaba entendendo o
100
parto cirúrgico como uma coisa normal, interiorizando a idéia errônea e
perigosa de que o corpo da mulher é incapaz de funcionar naturalmente”
prof. Umberto Lippi. Ser médico, ano II, n. 5, p.23
Os residentes entram num hospital e passam a ser caçadores de
patologia. Quando aparece uma mulher normal eles não sabem o que fazer.
(...) O conhecimento cirúrgico é mais fácil que o emocional. As pessoas que
ensinam não têm essa formação. No fundo, as estruturas acadêmicas não
querem essa abertura porque incomoda. Quanto mais passiva a paciente,
mais fácil para a prática médica. A mudança tem que começar pelo
ensino.”
J. A Jordão . Ser médico, ano II, n. 5, p.23
Diante dessa lacuna, tem cabido aos serviços implementar processos de
sensibilização (retomando idéias humanistas e de resgate da relação médicopaciente na instituição), desde a seleção do pessoal; organizar uma
capacitação de convencimento baseado na evidência científica, além de
manter um programa de formação continuada. É importante salientar que isso
não tem sido suficiente para impedir a permanência de um modelo
intervencionista. Nas palavras de um implementador de treinamentos:
A humanização dos profissionais, para a gente, pega muito
também. Se a gente não trabalhar essa humanização dos profissionais,
fica difícil avançar. O profissional tem que estar sensibilizado, saber que
ele tem que atender a gestante, olhar para a cara dela, ver que ela está
com um edema, ela tem a pressão alta, perguntar o que ela sentiu. Se
você não humanizar os profissionais, não vai avançar na humanização
do atendimento. E tem também a necessidade da interdisciplinaridade,
que é o poder não concentrado, na figura de um profissional só. (SVSSES).
101
Há toda uma ênfase no trabalho de equipe, interdisciplinar, e na
melhoria da comunicação e do relacionamento entre os membros das equipes.
Há também um reconhecimento, nas entrevistas com os diretores de serviços,
que esse esforço de integração tem sido insuficiente para promover um
trabalho de fato integrado.
Na prática, como veremos, há mais uma substituição de profissionais
nas mesmas funções, no caso do serviço 1. Nesse caso, observamos que
mesmo aqueles procedimentos que não fazem parte do protocolo proposto são
muitas vezes incorporados como rotina, só que agora feitos pela enfermeira e
não pelo médico, como a aceleração do parto com ocitócitos, a manutenção da
posição horizontal durante o parto e o uso da episiotomia.
No caso do serviço 2, dada a presença dos residentes, a exclusão dos
demais profissionais de seu protagonismo na cena do parto é aquela do
modelo tradicional, ou seja, quase total:
Sentei no banquinho ao lado da enfermeira Lúcia, que se
preparava para sair, pois seu plantão terminara. Perguntei a ela sobre o
trabalho ali, a diferença que havia com outros serviços em que ela
trabalhava, ela disse que nenhuma, e baixou o tom de voz, sugerindo que
não queria ser ouvida pelos outros. “Aqui só médico que atende parto,
por isso é assim” Perguntei baixinho se ela poderia estimar quanto se
fazia de episiotomia e de indução ali, ao que ela cochichou “perto de
100%”25. Eu perguntei:
- - Perto de 100%? Por que?
25
Estes números parecem superestimados se comparados com os dados oficiais da instituição, que
mostra uma incidência de episiotomia (incluindo as mediana, ou perineotomias) de cerca de 50%.
102
- - Porque eles têm que aprender (olha de soslaio para os
residentes) e as mulheres são o material didático deles, falou, fazendo
uma concha com a mão em minha direção.
E levantou-se para sair, como quem sugere que já falou demais
(Caderno de campo, serviço 2 , outubro)
O “procedimento didático” e do uso das mulheres como material de
ensino, independentemente da indicação do procedimento, foi um tema
recorrente no serviço 2. Não pretendemos defender que os profissionais não
necessitem treinar os procedimentos, inclusive os mais invasivos, em
pacientes reais, mas o evidente abuso de indicações parece evidenciar que o
aprendizado do procedimento é secundário ao aprendizado de valores como o
respeito à integridade física das pacientes.
O uso da episiotomia e seu reparo como a primeira oportunidade de
treinamento de suturas pelos futuros cirurgiões, de qualquer especialidade e
não apenas dos gineco-obstetras, nos foi reiterado em muitas oportunidades:
Onde você acha que cirurgião aprende a suturar? O primeiro
ponto de todo cirurgião é numa episiorrafia. (Médica, depoimento de
plantão, serviço 2)
Essa questão já havia sido trazida insistentemente pelo material
empírico e pela literatura. Ou como nos conta um professor universitário:
Então nós estávamos com os estagiários de vários países no
CLAP (Centro Latinoamericano de Perinatologia, no Uruguai) assistindo
um parto conduzido segundo as recomendações da OMS. Quando
terminou, percebemos que um dos médicos estagiáriocontinuava na sala
e fomos ver o que ele estava fazendo. Ele tinha feito uma episiotomia
depois do parto, que foi conduzido sem episio. E ele disse, na maior
103
seriedade, que foi porque ele precisava treinar! (SPOBEC, mesa sobre
MPBEC)
O fato de um serviço ser crítico com a quantidade de procedimentos e
pretender reduzi-los quando desnecessários pode ser mesmo um critério para
que o residente queira ou não se manter na instituição, pois uma boa
residência é aquela que oferece muitas chances de praticar as intervenções, em
detrimento do ensino de suas indicações e seu uso criterioso:
- Em relação à episiotomia, foi muito interessante, a gente tirou da
rotina, a gente fazia muito a perinotomia também, mas acabamos, não
existe mais isso, é tudo sem... e se tem, há indicação. E os residentes que
entraram, do R1, este ano, quando chegaram na instituição, foram fazer
parto com o R2, o R2: “Não, não. Não precisa fazer episio”. Os caras
ficaram desesperados, quase que eles mudaram de instituição, porque eles
estavam entrando numa instituição que, eles diziam, “Vocês são tigres26”.
E aí a gente teve que fazer uma reunião científica, mostrar os resultados e
por que não fazer, é muito preferível costurar uma laceração do que fazer
uma episio, está mais do que provado isso, tem uma infinidade de
trabalhos, e os residentes apóiam. Diretor de hospital com residentes.
Apresentação no SVH, Experiências de Humanização do Parto
É importante ressaltar que no serviço 1, que não tem residentes e cujo
processo de capacitação inclui exatamente protocolos com os procedimentos
recomendados pela OMS, em certa medida o modelo intervencionista se
mantém, mesmo executado pelas enfermeiras, como veremos com mais
detalhes abaixo.
26
O termo “tigre” e seu derivado “tigrada” se referem à má prática, ao procedimento mal feito,
desleixado, e àqueles identificados a essas práticas. Também pode ser referidos às pacientes
desobedientes, que não seguem as prescrições ou que sequer as compreendem. Para nós o termo
tigre sugere uma certa selvageria, em oposição ao esforço civilizatório do médico.
104
No serviço que tem residentes, para enfrentar as resistências, além dos
argumentos baseados na ciência, são usados os de que esse é um filão do
mercado cada vez mais importante, que exige formação específica, é um
importante novo “nicho de mercado”. Ainda assim, mesmo considerando a
crescente adesão dos serviços privados a essas alternativas, há um relativo
despreparo dos residentes para “praticar” a nova abordagem, uma vez que o
referencial teórico baseado na evidência parece ter eco limitado na cultura do
serviço na prática.
Embora haja de fato uma relativa adesão, encontramos entre os
residentes e funcionários muita resistência ao modelo:
Eduarda aceitou a contragosto nossa presença e foi bastante rude
conosco a princípio. Disse que achava um absurdo uma suíte daquelas
naquele hospital e disse que iria nos mostrar como a humanização e a
desumanização do parto, ali, conviviam lado a lado. Assim que terminou
o exame de Verônica, nos levou para ver a sala de pré-parto. Nessa sala,
as quatro camas estavam ocupadas e uma gestante aguardava sentada
uma vaga. Dizia que aquilo era um desperdício de espaço, que aquele
era um hospital de referência para alto risco, que eles não podiam
limitar a quantidade de atendimentos porque um leito de parto estava
ocupado durante todo o trabalho de parto de uma mulher, que, por isso,
eles tinham que induzir os partos. Disse que não acredita em
humanização do parto sem analgesia, mas que eles contam apenas com
um anestesista, mas que o anestesista deve acompanhar o trabalho de
parto todo da paciente e que, nesse caso, deveriam contar com um
anestesista por leito. Falou novamente sobre a falta de material, sobre o
problema da autoclave.[...] “Como falar em humanização para quem
vive em condições tão desumanas de vida, num lugar que quando um
105
filho morre aos 25 anos, ele morreu velho, já não se chora a morte
dele?” Diário de campo, serviço 2, novembro
Os residentes aprendem também com os mais graduados, aqueles que
enfrentam a dureza do mercado de trabalho “de verdade”, quais as estratégias
de sobrevivência para adotar se querem alcançar o padrão de vida considerado
compatível com a condição de médico e como essas estratégias são
incompatíveis com o modelo proposto, como nos conta esta médica
funcionária:
Argumentando contra a proposta do hospital, ela contou a respeito
dos convênios que pagam 270 reais por parto e sobre a prática dos
profissionais terem de juntar três ou quatro mulheres com cesárea
programada para um mesmo período de trabalho e fazer os partos em
série para compensar a baixa remuneração. (Caderno de campo, serviço
2)
Também fazem parte do modelo ensinado alguns mitos já superados
pela medicina baseada em evidências, porém reproduzidos na formação, como
mostra a cena abaixo, sobre uma episiotomia tida como procedimento que
melhoraria a vida sexual da mulher , quando a evidência aponta em
contrário27:
Depois, João (residente) apalpou a barriga da mulher, colocou a
mão por dentro do canal vaginal, dizendo que ia doer um pouco mas era
importante para evitar infecção. Colocou uma boneca de gaze no
27
A episotomia é associada a vários efeitos adversos, tais como a lesão ou a extensão de lesões do
esfíncter anal ou do reto; resultados anatômicos insatisfatórios, como a assimetria da vulva
(jocosamente chamada pelos informantes como “AVC de vulva”, em analogia à assimetria da face
naquela doença) e o estreitamento excessivo do introito vaginal; perda de sangue excessiva,
hematoma, infecção, deiscência; dor e edema; além de disfunção sexual (Enkin, 2000, 295).
Segundo os informantes, o chamado ponto do marido é freqüentemente associado a queixas das
mulheres de dor à relação sexual por ficarem “muito apertadas”.
106
interior do canal vaginal da mulher e secou um pouco o sangue por fora
para iniciar a sutura. Depois, pediu para que eu pegasse o banquinho
para ele sentar. A mulher se queixava de dor durante a sutura, mas
estava bem mais tranqüila. Como ela reclamasse muito, ele aplicou
anestesia novamente. Num determinado momento da sutura, ele disse
que ia dar dois pontos que iam doer um pouco mais, depois comentou
que era o “ponto do marido”. Perguntei a ele o que era isso e ele disse
que era um ponto que era dado para que “as coisas voltassem a ser
parecidas com o que era antes” e que, se eles não fizessem isso, depois o
marido voltava para reclamar.
Como a referência ao marido é uma constante, perguntamos se eles já
viram um marido reclamar, ao que responderam que não, uma vez que esse
ponto era sempre feito.
3.2.2. As propostas de humanização, os médicos e o mercado de
trabalho
No novo modelo proposto, com quem e onde estaria a responsabilidade
quanto à qualidade – e a crise – da assistência? Em linhas gerais, tomando
como base aquilo publicado pelos periódicos de suas entidades representativas
e as entrevistas nos plantões, os médicos reconhecem que estão fazendo um
trabalho de qualidade questionável, porém o modelo de trabalho em si ou a
postura do profissional são raramente questionadas. Na grande maioria dos
textos, os questionamentos à prática se justificam como devidas à
precariedade das condições de trabalho, à exploração dos convênios e planos
de saúde, ao despreparo das pacientes, enfim, o médico é com freqüência
apresentado como uma vítima mais ou menos impotente das circunstâncias.
Em sua descrição, o médico parece um refém do modelo típico.
107
Não queremos aqui subestimar a precariedade da qualidade de vida e de
trabalho da grande maioria dos ginecologistas-obstetras, fartamente
documentada pela recente pesquisa de Mário Afonso Maluf, mas sim chamar a
atenção para uma
postura vitimizada que descreve o profissional como
impotente diante da adversidade das condições de trabalho:
“Os saguões das maternidades tornaram-se verdadeiras praças de
guerra, com gestantes suplicando vagas que não existem mais. Os médicos
obstetras espremidos como mariscos entre o mar e o rochedo, vendo-se
forçados diariamente a fazer ‘escolhas de Sofia’ para decidir a quem
atender.”
“Firmeza e certeza no grande engano”. Editorial .Jornal da Sogesp, n1299
No capitalismo selvagem nacional, onde a cidadania é um luxo e
raro, as empresas intermediadoras de saúde tentam de todas as formas
obter um bom empenho em cima disso. (...) A perda da autonomia (do
médico) vai de ameaças veladas ou diretas sobre as decisões médicas à
vinculação trabalhista, onde hoje o trabalho médico não tem o mínimo
amparo, nem mesmo o da assistência médica. Isto é muito grave e vexatório
para toda a medicina.(...) Sendo que nas instituições públicas o médico
recebe R$2,00 por atendimento. Está institucionalizado o trabalho escravo.
“Modelo perverso leva atividade médica ao absurdo” Entrevista com M.
A Maluf. Jornal da Sogesp, 2 /99
O progressivo assalariamento médico e o aviltamento salarial levam os
médicos a contrastar suas expectativas profissionais – tanto em termos da sua
avaliação do próprio desempenho quanto do padrão de vida considerado
adequado – com uma realidade dura e frustrante:
108
Imaginem se para cada dificuldade orçamentária, colocássemos
um remendo (na roupa de médico) (...) não teríamos dificuldade de nos
misturar, ou nos confundir, com andarilhos famintos e quem sabe
evitaríamos assaltos (...) poderiam nos dedicar um espaço maior do que
aos sem-terra, pois seríamos mais de 300.000 mendigos organizados (...)
Dirijo-me à maternidade com medo de um assalto e preocupado, não só
da qualidade do atendimento ao parto que me espera, mas também com
a possibilidade de não ter recursos para me defender de um processo
judicial.”
Sugestões para o médico se vestir adequadamente – J. da Sogesp,
3/98,15
A essas condições precárias, em especial nos serviços localizados na
periferia, como é o caso do 1, somam-se os salários pouco competitivos e a
violência urbana na região (o que foi recentemente evidenciado pela
campanha feita pelo Sindicato dos Médicos e pelo CRM), além dos freqüentes
conflitos entre profissionais e usuários na “porta”.
“Medo nos hospitais – autoridades ignoram o problema da
segurança na saúde pública” (capa).“Um dos casos mais extremos e
lamentáveis de violência contra os médicos em São Paulo, e que chocou
a opinião pública há quase um ano, foi o da pediatra Lucy Mayuki
Udakiri, assassinada no estacionamento da Cohab José Bonifácio II, na
Zona Leste, em outubro do ano passado. Morta com dois tiros, a médica
foi vítima de uma tentativa de roubo quando chegava para trabalhar às
6:50.”
DR! – Revista do Simesp, n. 4, maio 2000, ano VII
Por um lado, é importante também inserir esse debate na realidade mais
ampla da precariedade das condições de trabalho e de remuneração do
109
conjunto dos profissionais de saúde, seja na rede pública ou privada. E
também sublinhar que existe uma reação a esse quadro: frente ao aviltamento
das condições de trabalho, no caso dos médicos, em especial nos últimos dois
anos, tem havido uma reação organizada pelas suas entidades representativas,
como a já citada campanha pela humanização da medicina, a denúncia da
violência sofrida pelos médicos no exercício de seu trabalho (em especial a
falta de segurança no trabalho nos serviços de saúde da periferia) e a
campanha de esclarecimento sobre os abusos que cometem as empresas
operadoras dos seguros de saúde, lançada no mês de junho de 2000 pela
Associação Paulista de Medicina e apoiada pelas entidades médicas estaduais
e federais.
Por outro lado, o reconhecimento desse aviltamento salarial e das más
condições de trabalho deve porém ser colocado em perspectiva, pois os dados
mais recentes mostram que, ao lado de um dado considerado negativo, a queda
da prática liberal no consultório (de 74% para 55%, em grande parte resultado
do descredenciamento pelos planos de saúde), os médicos paulistas tinham
uma renda familiar média de R$8.287,30, ou algo em torno de 55 salários
mínimos na ocasião da publicação dos dados (J.Cremesp, março de 2001). Os
dados da pesquisa acima foram questionados por sua inconsistência
metodológica, pois compara renda pessoal em dólar com renda familiar em
reais. Isso levaria a uma superestimação da renda do médico e sua
possibilidade de viabilizar um padrão de vida compatível, especialmente em
uma cidade de custo de vida muito alto, como é o caso de São Paulo.
A manutenção desse padrão de vida idealizado é em muitos momentos
argumentado pelos nossos informantes como a motivação maior dos médicos
para organizar arranjos na assistência para compensarem a baixa remuneração
oferecida pelos convênios e serviços, como as cesáreas agendadas ou a
110
“limpeza da área” (realizar todos os partos, por cesárea ou indução até uma
certa hora do plantão, para viabilizar horas de sono suficientes para que o
profissional possa enfrentar mais um plantão em seguida daquele).
Aqui, temos uma contradição entre o trabalho médico tal como ele se
organiza na prática e o modelo de humanização, que exigiria várias horas de
assistência e um mínimo de intervenção.
3.2.3. Novas e velhas contradições
Nos serviços que buscam incorporar as propostas de humanização, a
cena de parto está sendo reorganizada com os mesmos sujeitos em novos
papéis, e com a presença de novos sujeitos, o que certamente não ocorre sem
contradições. Essas contradições são refletidas no ambiente de trabalho e nas
discussões corporativas na imprensa médica, como discutiremos abaixo.
Uma das surpresas da observação foi a distância entre o modelo
humanizado prescrito e o cotidiano dos dois serviços, consideravelmente
maior que o esperado. Chamamos a atenção para o fato de que nos referimos a
serviços que apontaram claramente o modelo de trabalho para seus
funcionários ou residentes quando de sua seleção e contratação, sensibilizaram
e treinaram naqueles procedimentos propostos, têm um programa de
qualidade, têm rotinas de assistência escritas, além do monitoramento mensal
da prevalência de certos procedimentos, como cesárea e episiotomia.
No serviço 1, partimos do suposto de que havia um deslocamento do
papel central do médico obstetra no parto normal. Ele passaria a ser um
profissional de quem se espera que se mantenha na retaguarda para a
assistência de patologias e complicações cirúrgicas (na OSS) e/ou numa
postura de expectação ativa, sem ter que seguir um protocolo de intervenções.
111
Uma vez que as propostas de humanização incluem um deslocamento
da centralidade do médico obstetra – figura única como protagonista na
assistência, no modelo que se busca superar –, um grupo de questões surge
fortemente explicitando um receio do questionamento do papel do obstetra, da
perda do seu lugar para outros profissionais e da retirada do parto do ambiente
cirúrgico, inscrita nas propostas de humanização do parto, sejam elas no
ambiente
hospitalar
(incluindo
condutas
mais
expectantes,
menos
intervencionistas, ou partos assistidos pelas enfermeiras obstetras) ou a
transferência do parto de baixo risco para as casas de parto, onde os médicos
estariam ausentes.
Nessa discussão, em especial naquela explicitada pela imprensa médica,
muitas vezes qualquer iniciativa que tenha outro profissional em uma posição
mais autônoma é discutida como se equivalesse à recusa de qualquer
tecnologia. O reconhecimento da polêmica é diferente entre as várias
publicações, desde os comedidos Jornal e Revista do Cremesp:
Ninguém discorda que na maioria dos casos no Brasil este ato [o
parto] tornou-se nas últimas décadas, um processo cirúrgico e isso precisa
ser revertido. Como fazer isso é a grande questão. As parteiras e
enfermeiras obstetrizes humanizam mais o parto? Ou os obstetras devem
continuar a ser responsáveis por ele – afinal, a emoção pode transformarse num drama em que a vida da mãe, da criança ou ambas podem estar em
risco?
Introdução ao Debate “Reforma...”Ser Médico, ano II n. 5, p.22
Até um certo tom intolerante de alguns dos colaboradores do Jornal da
Sogesp:
“A criação de casas de parto pretendida pelo Ministério da Saúde,
abolindo a indispensável presença do médico na atenção ao nascimento,
112
poderá aumentar em no mínimo três ou quatro vezes a chance de a criança
morrer e em outro tanto da parturiente morrer na hora de dar à luz.” A
advertência é do presidente da Comissão Nacional Especializada em Morte
Materna (CNEMM) da Febrasgo, o obstetra gaúcho Sérgio Martins Costa.
“Qualquer programa que se aventure a trazer para o Brasil esta
questionável experiência alienígena de oferecer a atenção domiciliar ao
parto, deve ter a honestidade de informar os riscos que a modalidade
representa para a parturiente e para a criança”, afirma. “Apesar dos
riscos, as medidas para implantação das casas de parto estão sendo
tomados com a firmeza e a certeza dos grandes enganos. Os sobreviventes
da próxima geração vão cobrar por esses erros”, alerta Sérgio Costa.
“Firmeza e certeza no grande engano”. Jornal da Sogesp, n12-99
Há evidência em muitos estudos de que esses outros profissionais
podem ser resolutivos, seguros e custo-efetivos em um sistema hierarquizado,
poupando intervenções desnecessárias e outros recursos, e contando com um
bom índice de satisfação das pacientes nesses casos (WHO 1996:6). Essa
evidência, contudo, é desconsiderada, de forma geral, em defesa da ordem em
que os médicos são imprescindíveis. Outro profissional com autonomia na
assistência ao parto só poderia existir na inexistência do médico, como afirma
um conselheiro do CRM:
Para o conselheiro [...] as casas de parto não fazem sentido nos
grandes centros. “Pode ser uma boa solução para o interior do Brasil,
onde não há médicos ginecologistas-obstetras. [...] A assistência ao parto
deve sempre contar com a presença de um médico, pois o diagnóstico é
muitas vezes evolutivo.[...] Temos número suficiente de obstetras.”
Jornal do CREMESP, ano XVIII n.144 Ago 1999 p.6
113
“Com esta portaria [n.985 do Ministério da Saúde, que institui as
casas de parto], o governo federal reforça a idéia equivocada de que a
hospitalização para o parto e sua assistência pelo médico são os fatores
responsáveis pela falta de humanização e pelos elevados índices de
mortalidade materno-fetal. Desconsidera a necessidade da melhoria da
qualidade da assistência pré-natal, ao parto e puerpério”
Jornal do CREMESP, ano XVIII n.152 Abril 2000 p.3
A resistência às iniciativas do Ministério da Saúde em instituir um teto
para o número de cesáreas aparece também nessa negação das evidências,
sugerindo que essa medida não é operacionalizável, por necessidade das
pacientes. E mesmo admitindo que na prática haverá desobediência a estas
medidas e que pode haver fraude:
A decisão do Ministério da Saúde de estabelecer o limite de 37% de
cesáreas na rede pública e conveniada com o SUS, deixando de pagar os
procedimentos que extrapolam este índice, não vai resolver o problema do
exagerado número de partos operatórios no país e provocará distorção nas
estatísticas, que passarão a apresentar índices que não corresponderão à
pratica dos hospitais (...) “Como ficam, por exemplo, os casos das
mulheres que já deram à luz por cesárea e não poderão mais ter parto
normal?”, questiona (representante dos hospitais).
“O problema do limite de 37% de cesáreas no SUS Jornal da Sogesp,
n. 13/99”
Uma parcela dos médicos, até certo ponto, endossa as críticas às
distorções da prática – ainda que, é importante ressaltar, haja uma forte
rejeição ao parto domiciliar, às casas de parto e ao protagonismo de outros
profissionais na cena do parto –, em especial quando se trata do abuso de
intervenções e particularmente do uso pouco criterioso da cesárea.
114
A cesariana é um procedimento [...] associado à maior morbidade e
mortalidade materna e perinatal . [...] a ausência de trabalho de parto [na
cesárea eletiva] implica em perda dos mecanismos fisiológicos adaptativos
fundamentais para o período neonatal imediato. Alterações pulmonares,
humorais, endócrinas, circulatórias, hematológicas e neurológicas foram
descritas no recém-nascido. [...] A pontuação pelo Apgar também foi mais
baixa no parto cesáreo [...]
Também para o recém-nascido natural é o parto normal - Jornal da
Sogesp, n. 13/abril 99, 12
Na imprensa médica, temos também aqueles artigos que apóiam a
mudança no contexto hospitalar e a multiplicação das experiências de
humanização para outros serviços, como as matérias sobre a campanha pelo
parto normal.
“A campanha Natural é o Parto Normal, lançada pelo CFM,
constitui-se em um dos maiores êxitos [...] foi motivada pelo fato de o
Brasil deter a lamentável liderança mundial de partos cesarianos, com um
índice de 36,4%, e a realização de até 558 mil cirurgias anuais
desnecessárias.”
Medicina. CF Ano XII n. 89 Jan 98
Encontramos artigos sobre humanização da medicina em geral no jornal
do CFM e do Cremesp. A revista do Cremesp, Ser médico, publicou um
interessante debate sobre humanização do parto, “Parto por enfermeira ou
reforma obstétrica?”.
Há matérias elogiosas a essas propostas nas várias publicações, como
essa sobre a humanização da Maternidade do Hospital Independência:
“Precisamos saber que nossas rotinas são temporárias e mutáveis,
para cada vez mais estarmos próximos ao usuário. Não podemos idealizar
115
o trabalho. Temos que viver a realidade e são coisas simples que trazem
melhora da qualidade, sem interferir na quantidade e nos custos”, define o
diretor da maternidade da instituição, José Antônio Jordão de Araújo
Ribeiro Neto.
Jornal da Sogesp, 10/99
3.2.4. Os mesmos sujeitos e os sujeitos diferentes
3.2.4.1. A parturiente
Os profissionais, médicos ou enfermeiras e suas auxiliares, lidam com
uma usuária que se espera que seja menos passiva, instada a participar de
forma ativa do seu parto, mesmo em uma cultura em que se espera que o
profissional “faça o parto” dela, poupando-a desse esforço, desse sofrimento e
de eventuais lesões, reais ou supostas. O que temos observado é como se
constrói essa interação com o novo modelo, tal como ele acontece na prática.
Até agora temos visto alguns padrões: primeiro, a importância central do
acesso ao leito, que parece ser quase “o evento em si”, a partir do qual tudo é
secundário. Como mostra a cena abaixo:
Quando subi, encontrei um homem que tinha visto no saguão de
manhã. Fui perguntar a ele quem ele estava acompanhando e ele me
disse que era o marido da Meire, que tinha conversado comigo e que ela
havia sido transferida para o Stella Maris de manhã, pouco depois que
cheguei. Ele me disse que sua mulher estava fazendo um cardiotoco e
que tinham voltado ao hospital pois, quando chegaram ao Stella Maris,
ela foi examinada por outro médico que lhe disse que não estava com 4
dedos coisa nenhuma, que estava com 2 dedos de dilatação e mandou ela
embora para casa. Disse-me, então, que ele e sua mulher pegaram um
taxi do Stella Maris e voltaram para o Santa Efigênia. O Dr. Luiz tinha
116
acabado de ver sua mulher e disse a eles que não poderia interná-la,
pois não havia vaga no berçário. Ele e sua mulher haviam insistido em
relação à internação, dizendo que não queriam voltar ao Hospital Stella
Maris, pois, além de considerar que foram mal atendidos pelo médico da
admissão, que fora grosso com eles e teria se recusado a internar Meire,
tinham receio que faria isso novamente. Ela chorava. Dr. Luiz dissera
então que só poderia internar a Meire se ela e seu marido se
dispusessem a assinar um termo de responsabilidade pela saúde do filho,
pois se acontecesse qualquer problema de saúde com o bebê, o hospital,
que não tinha vaga no berçário, não teria como prestar assistência ao
bebê . (Diário de campo, serviço 1, agosto 2000)
Nesse sentido, no serviço 1 o conjunto de mudanças parece ficar
obscurecido por essa necessidade de acessar um leito, enfim, de ter alguma,
qualquer assistência. Nesse contexto, “ter a competência social de dar à luz
adequadamente” parece tender a equivaler “a ter a competência social de
acessar um leito de forma adequada”, qual seja,
!"No lugar tecnologicamente adequado (certos serviços não são
bons, pois não são gratuitos, tratam mal, há negligência, má prática, têm
restrição de área para o atendimento, etc.), com os profissionais e os
insumos adequados .
!"No momento adequado (não muito cedo, pois há o risco de ser
mandada para casa ou de admissão precoce, e não muito tarde, pois não
pode ‘passar da hora’). Por um lado, a admissão precoce é
reconhecidamente um problema, levando a mais intervenção, longas
induções ou acelerações do parto, complicações e sofrimento. Por outro, o
problema do “passar da hora” parece também ser muito problemático e
seria algo diferente do chamado pós-datismo (passadas as 42 semanas
117
completas) e seus riscos reais ou imaginários, uma vez que no Brasil
instalou-se uma cultura de que o parto pode ter no máximo 40 semanas28.
Nesse sentido, o trabalho das doulas oriundas do Movimento Popular de
Saúde, como veremos, voltou-se também para o “advocacy” pelo
acesso/admissão das mulheres nos serviços.
Uma segunda questão que nos chama a atenção é que não
necessariamente as mulheres percebem os procedimentos invasivos como
problemáticos, pois nesse contexto, ter qualquer assistência pode ser
interpretado como ter uma boa assistência. Parece haver mesmo uma certa
expectativa do consumo de procedimentos, pois esses são identificados como
uma assistência adequada, portanto, com a devida “inclusão” no sistema.
O que parece fazer uma grande diferença
é a maneira como são
tratadas, do ponto de vista da relação pessoal – ser chamada pelo nome, que
dirijam a palavra a ela, que expliquem o que estão fazendo, etc. – mais que o
conteúdo da assistência em termos de procedimentos propriamente:
Durante o parto, várias vezes Fabíola (obstetriz) pediu para as
auxiliares aumentarem e diminuírem o soro. Depois do nascimento do
bebê, pediu para injetar um pouco mais de ocitocina. Enquanto suturava,
Fabíola disse que aquele tinha sido um parto normal e não natural29. A
auxiliar perguntou se aquele era um parto com período longo de expulsão e
Fabíola disse que sim, porque o bebê tinha ficado muito tempo no canal de
28
Apesar de não haver evidências de que a gravidez deva ser interompida até 41 semanas completas
e a entrada da 42 ª (Enkin, 2000:238), segundo nossos informantes, no Brasil há uma noção de que
a gravidez não pode passar da data provável do parto (40 semanas completas). Segundo esses
informantes, em parte essa noção estaria relacionada à cultura da cesárea agendada, que deveria
acontecer antes da mulher entrar em trabalho de parto, preferencialmente a partir das 38 semanas
completas, para evitar o parto espontâneo e não-planejado. Este procedimento seria responsável
pela grande prevalência de prematuridade e baixo peso ao nascer entre bebês de classe média no
Brasil (Barbieri, 2000; Silva, 2000)
29
Vimos que essa distinção era marcada nesse serviço pela economia de procedimentos de
processamento no parto em geral, e em especial do uso da episiotomia.
118
parto. Falou que por isso ele tinha a bossa, explicou que isso era uma
bolsa molinha que se formava na cabeça do bebê no parto e que sumia em
alguns dias e disse que já havia visto bebês com bossas enormes que
pareciam dinossauros ou ETs, não me lembro.[...] Após a saída de Fabíola,
antes que as auxiliares viessem remover Amanda e seu bebê, Cacilda
comentava como os partos dela foram diferentes, como os médicos
gritavam mandando calar a boca, etc. Amanda disse que o outro parto dela
tinha sido no Tide Setúbal e que tinha sido tudo muito diferente, que os
médicos eram muito estúpidos. Cacilda confirmou que o Tide não é um bom
hospital para ter parto. Depois da fala de Fabíola, ela parecia plenamente
convencida de que teve um parto diferenciado.[paciente que foi atendida
com uma sucessão de procedimentos “condenáveis” por serem invasivos e
arriscados e que teve uma lesão genital talvez prevenível] (Diário de campo,
serviço 1, agosto 2000).
Para avaliar a qualidade dessa dimensão relacional, é preciso ter algum
parâmetro de comparação, o que é o caso da maioria das usuárias dos serviços
públicos apenas até certa medida, pela sua carência de experiências com o
contrato médico-paciente do setor privado.
Essa dimensão relacional parece mais difícil de incorporar em um
serviço com residentes; no serviço 2, observamos em um dos partos que no
intervalo de menos de duas horas, três pessoas chegaram para uma paciente e,
sem se apresentar ou dirigir a palavra, fizeram toques vaginais que sequer
foram registrados no prontuário.
O valor dado a essa dimensão relacional é tão importante que essa
assistência não apenas é considerada melhor, como também o acesso àquele
serviço é percebido como uma alternativa concreta, superior em qualidade ao
serviço privado. Eis a questão – desde que acessado.
119
Depois, Amanda foi retirada da cama e deram um pano dobrado
para que ela colocasse entre as pernas. Ao que ela reagiu dizendo
alguma coisa no sentido de que iria usar fraldas. Foi colocada na
cadeira de rodas e levada para a outra ala. Depois disso permaneci com
ela no quarto por um tempo. Enquanto isso, comentou que estava
preocupada com sua irmã que ia ter bebê no mês seguinte e havia
pagado vinte e cinco reais por consulta de pré-natal, num hospital
particular em São Miguel, sem ter recebido sequer vacina antitetânica.
Disse que a irmã iria pagar seiscentos reais no parto e que ela achava
um desperdício, que isso daria pra comprar muitas roupinhas. (Diário de
campo, serviço 1, agosto 2000).
Até certo ponto, em especial no serviço 2, espera-se a passividade das
parturientes e às vezes suas tentativas de interlocução tenderam a ser
consideradas
quase
despropositadas.
Por
exemplo,
sabe-se
que
a
recomendação da OMS é a permissão do uso de alimentos líquidos; vimos
situações em que a mulher tinha sede e pedia água, porém sequer havia como
conseguir um copo para oferecer-lhe qualquer líquido.
A situação da paciente, ou de seu acompanhante, ser capaz de interagir
e tentar dialogar com os profissionais de saúde, foi um evento pouco
encontrado no campo. Em uma dessas raras situações – talvez a mais
característica de assertividade, incluindo o conhecimento dos procedimentos, a
participação ativa do parceiro e a tentativa de negociá-los – não foi bem
recebida:
A próxima paciente foi Cibele Aquino, estava acompanhada do
marido e a aparência dos dois demonstrava um perfil de classe média.
Na mesa em frente ao médico, ela sentou-se e ele ficou a seu lado. Ela
contou que na semana anterior surgiram as contrações e que ela havia
120
ido ao Hospital Beneficência Portuguesa. Lá, haviam inibido dando
glicose com dramim e buscopan e inibina no músculo. Disse que eles
estavam fazendo só parto normal e fórceps e que ela acabou saindo do
hospital. Ela disse que sua médica disse que aquele procedimento estava
errado e que não deveria ter inibido porque ela já tinha duas cesáreas
anteriores. O residente pergunta se a data da última menstruação dos
documentos de pré-natal estava correta. Ela diz que não tinha muita
certeza. O residente diz que vai examiná-la. O marido a acompanha até
a outra parte da sala, ajuda-a a tirar a roupa e a se deitar, puxando
antes o papel da mesa ginecológica, e permanece do lado de dentro do
biombo, diferente dos outros acompanhantes. A mulher se queixa que
está doendo muito, que ela tem muita cólica e contração em seguida. O
residente pergunta se o bebê está sentado. Ela diz que parece que sim.
Ele pergunta se ela não tinha nem um dedinho de dilatação. Ela disse
que não tinha nada. O pai explicou para o médico os ultra-sons, quais
eram de quando e ajudou a ajeitar o calcanhar da mulher para o exame
ginecológico,
se
afastando
em seguida.[O
residente
faz
uma
amnioscopia, procedimento para estimar o bem-estar do bebê] Enquanto
ele observava o âmnio, o pai pergunta: “Você acha que está na hora?”
O residente responde que “não está em dinâmica efetiva, mas tem que
ser cesárea mesmo.” A mulher pergunta: “Vocês não vão inibir mais
não, né?” O residente
pede pra eles irem ao 8o. andar e depois
voltarem. Quando eles saíram, o residente comentou: “É, rico querendo
vir em hospital público... Já chega sabendo tudo, ou achando que
sabe...” (Caderno de campo, Serviço 2, outubro de 2000).
É possível que em algumas situações a paciente resista às normas
institucionais, porém de forma dissimulada, ao mesmo tempo se
121
submetendo/acomodando e subvertendo/resistindo à regra, numa situação que
poderia ser chamada de “resistência acomodada”30, como sugere a situação
abaixo:
No leito ao lado, a outra mulher, uma negra que usava trancinhas,
tinha contrações bastante freqüentes e, quando vinham as contrações,
ela fazia força. Não reclamava da dor. Ficava o tempo todo virada para
a parede. Enquanto João examinava a primeira mulher, me aproximei
dela e conversei um pouco, me apresentei, perguntei se era seu primeiro
filho e ela disse que sim. Seu bebê acabou nascendo na própria sala de
pré-parto, sozinho, ao mesmo tempo em que o residente estava com a
outra na sala de parto. (Caderno de campo, Serviço 2, outubro de 2000)
O tema do parto na cama, imprevisto e bem sucedido, é mencionado
por vários sujeitos nesta pesquisa, como na fala abaixo:
Quando a gente está numa instituição, há 5 ou 6 anos depois de
receber o diploma, tem muita coisa anterior. As experiências de parto
que a minha mãe passou para mim, como é que foi o meu parto, foi um
fórceps, de um sofrimento fetal, abreviação do período expulsivo, na mão
do Prof. Domingos Delascio, de quem depois eu fui ser assistente. A
minha irmã, que nasceu muito em cima, a minha mãe engravidou um
mês e pouco depois de eu nascer, a minha mãe deu à luz, no segundo
parto, um parto na cama. Depois fui fazer obstetrícia, me formar, fiz a
minha residência, achava uma tigrada nascer na cama; mas, a
experiência que a minha mãe passava era que foi o parto mais gostoso
30
A idéia de resistência acomodada é usada por estudiosos de como os direitos das mulheres são
negociados no cotidiano concreto de interdições e constrangimentos a que elas estão submetidas.
Em muitos contextos culturais, as mulheres resistem às normas a elas impostas não apenas através
da confrontação direta das regras, mas também de estratégias como a aceitação da regra e seu
descumprimento; da desobediência velada; simulando acomodar-se à norma enquanto tenta
subvertê-la. (Petchesky e Judd, 1998)
122
da vida dela, com meu pai junto, tudo isso.
Seminário “Vitrines”
Depoimento de A Jordão Neto.
O nascimento no leito é considerado, do ponto de vista institucional,
uma falha grave do atendimento, ou no linguajar médico, uma “tigrada”, pois
a mulher “escapa” do conjunto de procedimentos e rituais, sem os quais
supõe-se que ela não poderia ou não deveria ter dado à luz (Davis-Floyd,
1992,1997). Curiosamente se aproxima, de forma não-intencional, do novo
paradigma do que seria uma boa assistência, baseada na evidência, do parto
idealmente sem intervenções (OMS, 1996).
3.2.4.2. O médico
Na prática, o que observamos e vemos descrito nas entrevistas é que, o
que tínhamos antes na maioria dos serviços seria um “protagonismo apenas
teórico” (conforme descrito por um profissional) do médico no parto normal,
pois este estaria presente – quando estava - apenas no período expulsivo; sua
responsabilidade era a dos partos cirúrgicos. Assim, havia um “acordo nãoformal” de divisão do trabalho entre a enfermeira/obstetriz (ou outro
profissional, menos qualificado que aquele médico, como um recém-formado)
e o médico plantonista. Essa situação é muito bem descrita em um artigo no
Jornal da Sogesp:
“Para o profissional que está no seu escritório ou em sua casa
dormindo e alguém faz o parto em seu nome, e no fim do mês recebe do
Ministério em torno de 50 partos ou mais, e que efetivamente não fez
nenhum (...) a ele interessa os reais que entram em sua conta sem ter
trabalhado.”
“Cesárea x Parto Normal – A mão do Gato” Jornal da Sogesp, n. 7, Ano
II, maio 99.
123
Esse é apenas um dos mecanismos encontrados pelos médicos de aceitar
certas condições de trabalho e remuneração formalmente, porém organizar
arranjos informais para compensar o aviltamento salarial e ampliar sua renda,
delegando parte de suas funções a colegas e outros profissionais.
Outro mecanismo descrito pelos informantes (e pelos diretores dos
serviços como um dos problemas a ser combatido) é o “arranjo do plantão”,ou
“gomo”, que funciona da seguinte maneira: a partir de certo cálculo de
demanda, o serviço contrata, por exemplo, cinco obstetras e duas ou três
obstetrizes para conduzir o plantão; porém, os obstetras articulam-se de
maneira que dois ou três deles possam estar ausentes, em esquema de
revezamento; assim, na prática eles fazem apenas uma parte, digamos, a
metade dos plantões, ou metade do tempo de cada plantão. O arranjo bem
feito inclui esvaziar a enfermaria e deixá-la limpa (sem pacientes que
demandem uma resolução do trabalho de parto) para o período de sono ou
para o plantão seguinte. Isso implica em uma sobrecarga de trabalho para os
que ficam que inviabiliza a evolução “fisiológica” do parto, pois a assistência
tem que ser otimizada com metade ou menos dos recursos já escassos e,
eventualmente, na metade do tempo:
“Aí você pergunta pra paciente: a senhora sabe por que foi cesárea
o seu parto? Aí ela diz: “Eu acho que era porque a minha área estava suja,
o médico falou: ‘Vamos fazer cesárea, porque precisa limpar a área’ ”
(diretor de hospital).
“Médico é um bicho triste, obstetra mais ainda. Ele diz que faz isso
porque o salário é aviltado – e é mesmo – mas pegue o exemplo do PAS.
“Ah, eu faço isso porque ganho pouco, tal”. Aí vem o PAS, paga duas, três
vezes o que ele ganhava, pensa que ele fica no plantão? Fica nada, ele faz
o mesmo arranjo, é sem vergonha mesmo. E ele não acha que tenha
124
problema nisso, porque ele vê que todo mundo faz e quem não faz é até
olhado de lado” (diretor de hospital).
No serviço 1, os diários de campo da observação de plantão mostram
um padrão curioso com relação à participação dos médicos, evidenciando dois
papéis principais nesta nova cena/divisão de trabalho: um primeiro, tal como
previsto, de fazer a retaguarda clínica apenas nos casos complicados; se de
fato essa era uma tendência informal (a da delegação da assistência ao parto
normal a outro personagem da equipe), esse papel é facilitado e formalizado:
Quando a irmã (diretora clínica) entrou na sala de parto, em seguida
chegaram os dois [médicos] e ficaram na sala até ela sair, aí eles voltaram
para a sala deles. Eu perguntei quando eles entram no parto e a auxiliar
trocou um olhar divertido com a obstetriz e comentou, fazendo a mão em
concha como quem conta um segredo: ‘quando a irmã aparece’. [...]
O segundo papel estaria associado ao fato de serem homens e, na
maioria das vezes, mais corpulentos e pesados, ajudando assim com sua força
física nas manobras de Kristeller.
Apesar da freqüência do seu uso nos plantões observados, esse
procedimento sequer consta da lista de centenas de procedimentos avaliados
por Enkin e cols. (1995) ou do índice remissivo do “Tratado em Obstetrícia”
da Febrasgo (2000).
Há referência no “Obstetrícia”, de Rezende (8ª edição, 1998):
“Ordena-se à paciente, quando vígil, que respire pela boca,
suspendendo o esforço expulsivo voluntário; dá-se o desprendimento às
custas das metrossístoles; ou com o auxílio da manobra de RitgenOlshausen nas cefálicas (introdução de dois dedos na cavidade retal para
ajudar a deflexão lenta da cabeça). Vezes outras, a expressão do fundo do
útero poderá ser efetuada por ajudante qualificado (manobra de
125
Kristeller).
Não é procedimento inofensivo. Mal orientada ou
violentamente praticada, a expressão acarreta lesões maternas e fetais de
monta, entre as quais se descreveu o descolamento prematuro da placenta e
a embolia amniótica” (1998:338)
Como em duas cenas de manobra de Kristeller observadas:
A auxiliar se posicionou ao lado dela e falou para que ela não
gritasse para não perder o fôlego e segurava a cabeça dela de modo que o
queixo encostasse no peito enquanto ela fazia força. A mãe de Virna então
disse que ela tinha só um pulmão, que ela tinha tido um abscesso e tinha
perdido um pulmão. Virna fez força mais algumas vezes, Fabíola e a
auxiliar pediam para ela não parar, mas ela parava. Ela fazia força, ficava
vermelha e parava. Fabíola disse que já podia sentir a cabeça do bebê, mas
que o fôlego de Virna e a contração eram curtos. Disse que o bebê já
estava há muito tempo no canal de parto e disse que ele tinha feito uma
bossa. Pediu para que a auxiliar ajudasse pondo o braço no guidão. A
auxiliar cruzou seu braço sobre a barriga de Virna de modo que seu ombro
ficava posicionado no meio da barriga de Virna e ela forçava a barriga
para baixo. Fez isso várias vezes enquanto Virna fazia força. Essa auxiliar
se cansou e outra a substituiu. Enquanto isso, a primeira auxiliar saiu da
sala e voltou com um banquinho/escadinha de dois degraus. Substituiu a
outra, que já havia feito força várias vezes sobre a barriga de Virna,
subindo no banquinho. Fabíola falou que não estava sendo suficiente.
Alguém comentou que um determinado homem do serviço era muito bom
para fazer isso, que ele sempre era chamado quando estava lá. (Diário de
campo, serviço 1, agosto 2000)
Nesse meio tempo, o obstetra, Dr. Lauro, entrou na sala e perguntou
a Luísa, enfermeira obstetra, se ela lhe havia chamado e se estava tudo
126
bem. Ela lhe disse que estava tudo bem e que o tinha chamado para fazer
um Kristeler. Como não era mais requisitado, o Dr. Lauro foi embora.
(Diário de campo, serviço 1, setembro 2000)
Na observação do serviço 1, há uma delimitação mais explícita dos
espaços, sendo que o local dos partos vaginais é conduzido pelas obstetrizes e
o centro cirúrgico pelos médicos.
No serviço 2, há uma manutenção quase total do papel do médico, como
já descrito, seguindo em praticamente tudo os componentes e a divisão de
trabalho tradicional:
A observação [...] pôde delinear um padrão bem claro de
assistência aos partos normais, que pudemos checar em outras visitas,
todas com protagonismo total do médico: internações precoces (várias
mulheres foram internadas com 3 cm de dilatação e colocadas na
ocitocina); ruptura de bolsa na admissão ou na chegada ao centro
obstétrico; uso de ocitocina de rotina para induzir o parto; toques
repetidos que não são registrados; não é feita lavagem nem tricotomia,
que seria papel das enfermeiras (auxiliares); a episiotomia foi feita em
quase todos os partos (apenas um dos partos observados não teve
episio); dieta zero e proibição da ingestão de água de rotina;
clampeamento e corte do cordão umbilical imediatamente após o
nascimento; uso de foco mesmo nas salas de PPP; o bebê é apenas
mostrado à mãe na sala de parto, não é rotina colocá-lo para mamar ou
sobre a barriga da mãe após o nascimento, até porque a barriga é
coberta pelo campo cirúrgico” (Diário de campo, dezembro ).
3.2.4.3 A enfermeira
127
Nos últimos anos, as enfermeiras brasileiras têm se mobilizado para
transformar seu papel subalterno na obstetrícia e retomar o antigo
protagonismo na assistência aos partos normais. Isso levou a uma
reorganização de suas instituições representativas, como foi o caso da
ABENFO – Associação Brasileira de Enfermeiras Obstétricas, e do
surgimento de sessões estaduais dessa categoria, de novos programas de
formação com base em um papel ativo da enfermeira na assistência e de
encontros locais e nacionais dessa categoria. Ao final da década de noventa, o
Ministério da Saúde reconhece esse novo papel, passando a remunerar o parto
feito por enfermeira obstetriz.
É nesse contexto propício que muitos serviços incorporam a presença
dessa profissional como responsável pela assistência aos partos vaginais,
como é o caso do serviço 1. A enfermeira obstetriz, ali, tem agora suas
responsabilidades ampliadas para o parto de baixo risco, tendo que se
confrontar com uma situação nova e com os limites de sua formação.
Uma das questões que tem aparecido com clareza na observação tem
sido que as obstetrizes, ainda que treinadas para esse novo modelo, não têm
baseado a sua prática necessariamente nas condutas prescritas; ao contrário,
muitas seguem fazendo freqüentemente os procedimentos condenados pela
OMS, classificados como “condutas claramente prejudiciais ou ineficazes e
que deveriam ser eliminadas”, como a inserção de soro intravenoso e a
administração de ocitócitos de rotina , além de procedimentos que sequer são
referidos - como a manobra de Kristeller, ou aqueles que “devem ser usados
com cautela, em indicações clínicas muito precisas”, como é o caso da
episotomia.
É importante sublinhar que, a partir do acesso ao prontuário, vimos que
essas prescrições ‘condenáveis’ constam das fichas clínicas, prescritas pelos
128
médicos. O acesso aos prontuários forneceu muitos dados relevantes, como
uma visão da contradição entre o modelo proposto e o informalmente adotado.
Certos procedimentos, como da manobra de Kristeller, simplesmente
são invisíveis aos registros: como não deveriam ser praticados, não há campo
para anotar se é ou não feito. O registro de procedimentos a evitar, como a
amniotomia de rotina, desaconselhável (sobretudo em um serviço que conta
com amnioscópio, e portanto não precisa romper a bolsa amniótica para
avaliar a presença de mecônio e de risco adicional), pode no registro aparecer
como “perda das águas”, o que não especifica se esta é espontânea ou
cirúrgica.
Mas onde e quem tem responsabilidade na decisão sobre os
procedimentos? O impasse é assim descrito por um diretor de hospital:
“Quem oferece mais resistência? Quando a gente pergunta para uma
enfermeira, ela fala: “Ah, é o médico. O médico não aceita o processo de
humanização”. Quando a gente pergunta para o médico, ele mete o pau na
obstetriz também, que eu já vi muitas vezes, chegar lá no hospital,
perguntar: “Ah, por que que foi colocado o soro nessa paciente?” - “Ah,
foi a obstetriz que colocou, eu não estou nem sabendo o que está se
passando ali”. Então... Mas não é. Olha, eu acho que é igual, o número
de... a resistência é tanto por parte da enfermagem, como por parte dos
médicos, a qualquer mudança”
Seminário “Vitrines...” mesa “Experiências...”
No serviço 2, há um lugar muito limitado para a enfermeira, inclusive
espacialmente: enquanto os médicos têm a sua sala (“descanso médico”), as
enfermeiras podem ocupar apenas a sala do café nos seus momentos de
descanso.
129
O limitado espaço físico ou de atuação das enfermeiras nesse contexto
não impede que elas possam ter, algumas vezes, uma postura hostil às
propostas de humanização da assistência:
Depois, Ceci, a enfermeira chefe do plantão, nos abordou para
saber quem éramos. Conversamos em pé, no corredor que liga o
vestiário à sala de refeições. Simone perguntou a ela o que ela mudaria
se ela tivesse muito dinheiro e pudesse mudar as coisas lá. A princípio,
ela disse que se tivesse dinheiro não estaria lá. Mas Simone disse que
não, que a situação era se ela tivesse dinheiro e autonomia para mudar o
que ela bem entendesse lá. Ela fez, então, uma série de restrições a
coisas que poderiam ser identificadas como relacionadas à humanização
do parto, começando pela questão de que ela tiraria aquelas salas de lá.
Ela questionou a reforma que havia sido feita no Centro Cirúrgico.[...]
Ela criticou também as camas, que no caso de uma cesárea, aquelas
camas não serviam; se o anestesista precisasse de uma determinada
posição para fazer a anestesia, no caso de uma emergência, as camas
não
eram
adequadas
(contradizendo
a
informação
recebida
anteriormente).
É importante ressaltar que as condições de trabalho das enfermeiras e
suas auxiliares foram muito criticadas pelas mesmas, em várias oportunidades.
Essas condições apareciam, por exemplo, na recorrência de uma música que
foi tema na novela Escrava Isaura31 em muitas situações no serviço 2.
Quando indagadas sobre a razão da música, nos informaram que se sentem
31
“A Escrava Isaura” foi uma novela de grande audiência na televisão no início da década de
oitenta, contando, como sugere o título, uma história passada no período escravocrata no Brasil,
donde a alusão ao trabalho escravo em analogia às condições de trabalho do hospital.
130
como escravas – nas conversas, a condição de “lerê” é partilhada com os
residentes e seus exaustivos plantões de 24 horas,
Aproximei-me e falei que já estava indo, perguntei a ele até que
horas ele ficava de plantão. Ele disse que seu plantão era de 24 horas,
que aquilo é que era desumano e que no dia seguinte de manhã ainda ia
passar visita em não sei quantos quartos na maternidade e aí, se ele
fizesse alguma besteira, a culpa era dele.
Nesse sentido, os residentes parecem ficar numa condição hierárquica
intermediária entre os médicos experientes e as enfermeiras, o que parece
estimular uma certa camaradagem entre eles, como mostra esta cena depois de
um parto:
Eles todos voltaram a cantarolar o lerê. Depois, o residente
contou que era impossível, que depois ele ficava sonhando com tudo
aquilo, ainda, nos dias em que não estava no plantão. As enfermeiras
também contaram sonhos que tiveram. Uma delas diz que sonhou que
chegava ao hospital uma mulher muito gorda e quando foram fazer o
parto dela, não parava de sair crianças. A outra contou que sonhou que
não achava a placenta e procurava desesperada quando viu que a
placenta estava dentro da sua boca, que ela puxava a placenta de dentro
da boca pelo cordão. (Serviço 2, Diário de campo, novembro).
Em ambos os serviços, em especial no serviço 1, onde elas têm um
papel mais protagonista, encontramos também muitas obstetrizes que vêm
assumindo com bastante segurança e disposição seu novo papel e, apesar dos
seus limites de formação, incorporam a proposta de humanização como uma
missão pessoal e profissional.
131
Além dos médicos, enfermeiras e usuárias, na cena do parto temos ainda
pelo menos mais dois, ou mais três, personagens: o pai, o ou a acompanhante,
e a doula.
3.2.4.4 O pai e a ou o acompanhante
O acompanhamento das parturientes durante o trabalho de parto e parto,
enquanto questão para os serviços, surge com mais força a partir dos estudos
de Hodnett e Osborn (1989), que mostraram, entre outros achados, que uma
mulher dando à luz ao seu primeiro filho em um hospital universitário poderia
a ser atendida por até 16 pessoas diferentes, e ainda assim ficar sozinha
durante a maior parte do tempo. A presença muitas vezes invasiva de
estranhos e o isolamento das pessoas queridas durante o trabalho de parto e
parto estavam relacionados ao aumento do estresse,
interferindo no
andamento do parto, prolongando-o e desencadeando o que foi descrito como
uma “cascata de intervenções” (OMS, 1996).
Desde março de 1999, a lei nº 10.241 (de autoria do deputado estadual
Roberto Gouveia, do PT-SP) assegura que, nos hospitais públicos do Estado
de São Paulo, o pai (ou outra pessoa da escolha da mulher) pode estar junto da
mulher e acompanhar o nascimento do bebê. Essa lei, infelizmente, não está
ainda sendo cumprida pela grande maioria dos hospitais deste Estado, apesar
de vir sendo divulgada em vários setores e instâncias da sociedade civil,
inclusive como parte do trabalho da ReHuNa, como veremos adiante.
Estudos em vários países indicam que a presença de acompanhante no
parto tem sido associada a resultados muito positivos, como a menor
solicitação de alívio da dor, menor risco de cesárea ou de partos operatórios,
menor risco de Apgar abaixo de 7 nos primeiros 5 minutos; menor avaliação
pela mulher do parto como experiência negativa, maior satisfação com o
132
parto, menos trauma perineal, menor risco de desmame precoce e de
dificuldades com a maternagem no pós-parto, entre outros. A revisão
sistemática desses estudos, feita pela Iniciativa Cochrane, resultou em
recomendação para a incorporação de acompanhantes no parto por parte das
instituições de assistência:
Dados os claros benefícios e a ausência de riscos conhecidos
associados ao apoio intraparto, todo esforço deve ser feito para
assegurar que todas as parturientes recebam suporte, não apenas de
seus familiares ou pessoas próximas, mas também de profissionais
experientes. O apoio oferecido às mulheres deve incluir a presença
contínua (quando desejado pela mãe), o contato manual como
massagem e o encorajamento verbal (Enkin e cols., 2000: 254).
Até certo ponto, essas evidências apontam para uma maior economia
dos serviços, tanto pelo menor uso de insumos e procedimentos quanto pela
diminuição da carga sobre os profissionais, sobretudo das enfermeiras, como
veremos no caso das doulas.
A rigor, a lei acima assegura a presença do pai, o que foi
“reinterpretado” pelo movimento social, pois essa lei, que regulamenta os
direitos dos pacientes no Estado de São Paulo, inclui o direito de qualquer
paciente internado - o que é o caso das parturientes - a terem um
acompanhante de sua escolha.
Desde muito tempo, o pai tem sido tratado na cena de parto como uma
ausência. No “Obstetrícia” de Rezende, edição de 1998, no capítulo sobre “O
parto – Estudo Clínico e Assistência”, a referência mais próxima desse sujeito
na cena do parto é:
133
“Os familiares nervosos e as pessoas que, em grande número, vão
às Maternidades como acompanhantes, devem ser afastados.”
(1998:330)
Esta mesma crítica à separação dos familiares emerge entre aqueles que
repensam a assistência ao recém-nascido, rotineiramente “seqüestrado” da
família no momento do nascimento. Como descrito por uma diretora de
serviço:
Quando, veja só, quando nós começamos, nós realmente
detectamos esse quadro. Então, o que que era a separação do pai com o
filho? Que o pai, às vezes, só podia na hora da visita, porque a visita ia
até as 3 horas, e se a criança nascesse depois das 6, ela só ia ver o pai
no dia seguinte. E o que que significava isso, que era essa síndrome da
janela, do vitrô? Diretora de Maternidade, SVH, Mesa sobre
Experiências de Humanização da Assistência ao Parto.
Na prática, em especial a partir da década de 80, a presença do pai na
cena do parto passa a ser aceitável em alguns serviços privados, desde que
estes paguem uma taxa variável, justificada pela necessidade eventual de
socorro ao pai, caso este passe mal na cena (o que pela existência da própria
taxa parece ser um incidente esperado) ou pelo uso de roupa cirúrgica.
Segundo os informantes, o valor das taxas foram caindo, estando atualmente
entre R$65,00 e R$250,00. Alguns serviços não admitem os parceiros nem
mediante pagamento. Nos últimos anos, muitas revistas para o “público
mamãe e bebê” trazem matérias estimulando a presença do pai, em geral se
referindo a sua presença durante uma cesárea, “ao lado da mãe”; no parto
normal, há freqüentemente uma recomendação para evitar assistir à expulsão,
pois essa visão poderia prejudicar o interesse sexual pela esposa.
134
O afastamento do pai ou acompanhante na cena do parto é explicado
pelo fato de que, durante as décadas de 40 a 60, existia a prática prevalente
dos partos em que a mulher estava sedada e inconsciente, portanto não
necessitaria de qualquer suporte emocional. Com as mudanças nas práticas,
decorrentes dos altos custos biológicos para mãe e filho resultantes da
sedação, as mulheres voltaram à consciência no decorrer do parto, passando a
demandar apoio emocional (Enkin, 2000; Rothman, 1992).
A dimensão relacional, familiar e mesmo, por assim dizer, espiritual do
nascimento é recuperada com o oferecimento da partilha com o pai pela
equipe daquele momento tão especial para a família inteira, a experiência da
revelação, de uma nova beleza. Mas uma vez surge a crítica à separação da
família: a mãe para o obstetra, o pai na sala de espera e o bebê levado pelo
neonatologista. Os profissionais se perguntam:
De quem que era a criança? Se eu já tinha pensado alguma vez na
vida! E aquilo me chocou demais, eu falei: "Meu Deus, eu sempre achei
que eu faço a coisa mais certa, tudo mais, de aspirar, de limpar a
criança, de não deixar perder calor; e, de repente, vem essa enfermeira e
me diz uma coisa dessa!" Mas foi, realmente, uma coisa fantástica,
porque ela fez eu repensar toda aquela rotina que eu tinha feito a vida
inteira: "Aquela criança é daquela mãe, não é minha". E, portanto,,
porque para ela, realmente, o momento é único, é o momento que é dela
e que a gente, eu não sei até quando a gente tem esse direito de tirar esse
momento. Temos esse direito? Temos esse direito sim, quando, em torno
de 2% a 3%, a criança precisa realmente de procedimentos. Isso sim.
Agora, a gente como pediatra, nós devemos ser o quê? Expectante.
Estarmos de prontidão para poder atender. Mas até eu entender isso,
realmente, até... mais de 30 anos[...] Eu sempre digo, se eu tivesse uma
135
filmadora, eu queria ter ela embutida, assim, para ver, para mostrar o
que que é a felicidade, o olhar de uma mãe ao ver pela primeira vez o
seu filho, o olhar de um pai quando, pela primeira vez, olha para o seu
filho. Olha, eu acho assim, não sei, ainda é uma coisa indescritível, só
quem consegue enxergar isso, consegue ver beleza no nosso trabalho,
certo? Mesa sobre Experiências de Humanização da Assistência ao
Nascimento.
Ou ainda da hierofania, a experiência do sagrado, do milagre, como
descrito nesta apresentação no Seminário Vitrines:
Aqui também é um casal de evangélicos, era o primeiro filho dela,
tanto ela, com mais de 30 anos, e ele bastante envolvido e auxiliando
durante todo o processo. Aqui, o êxtase, [...] da situação ímpar do
nascimento, o êxtase do marido, o êxtase da mulher. Aqui, também, da
mesma forma, o banho, o primeiro banho do... o pai fazer a... prestando
os primeiros cuidados e se familiarizando com o bebezinho; quando não
tem pai, tem mãe, tem avó, tem sogra, sempre tem alguém que pode
prestar esse cuidado no caso de não ser possível ser prestado pela mãe.
Aqui também, num outro momento, a mesma situação, a situação que é
simbólica, é ímpar, que é o corte do cordão umbilical, que traduz toda
uma cumplicidade dessa família.
A direção de ambos os serviços estudados empenhou-se em incluir o pai
na assistência, tal como recomendado pela OMS e Rehuna. O serviço 1, que
começou “do zero” e já admitindo os acompanhantes no parto, enfrentou
alguma resistência dos profissionais, mas que aos poucos vão se acostumando.
Os pais, por sua vez, nem sempre têm conhecimento dessa possibilidade, uma
vez cientes, muitos dão à ocasião a devida solenidade:
136
Enquanto isso, por volta das 23h, foram admitidas duas mulheres
e a sala de espera foi esvaziada – não sei ao certo se haviam outras
parturientes que foram transferidas. Um dos maridos não sabia que ele
podia ficar lá para acompanhar o parto e ao saber disso, pediu para que
Sonia ficasse com a esposa dele enquanto ele ia em casa e tomava um
banho. Ele estava de chinelo, barba sem fazer e boné. Cerca de uma
hora depois, ele voltou de barba feita, com o cabelo arrumado e vestindo
um blazer. Serviço 1, Caderno de Campo, agosto.
No serviço 2, a presença do o pai já havia sido estimulada no pré-natal
personalizado e na mudança do regime de visitas às enfermarias, não sem
dificuldades, justamente por ser um serviço do SUS:
[...]o atual diretor continua me apoiando, parece que com uma
certa carta bege, ou carta branca, [...]. E, então, eu acho que isso a
gente tem que pensar nessa integração e colocar todo mundo à
disposição, há pai, o pai a gente está pondo lá, né? E os pais estão
entrando nas salas de parto, é uma coisa muito legal. E pai não é visita.
Olha que rotina besta que a gente trocou. Particular pode ir em qualquer
lugar, pode entrar a hora que quiser. Agora, por que que não pode
entrar no SUS? Ah, pode; e aí gente começou, discutiu, discutiu,
discutiu... E aí o que que aconteceu? A gente conseguiu... foi uma certa
confusão, porque normalmente a visita é na hora que o médico vai tomar
café, para não poder conversar com a paciente que está lá, e os
familiares. E é terrível aquele negócio de, tem 10 pessoas, então tem que
trocar cartão, aquelas maluquices. A gente acabou com isso, foi uma
resistência no começo, mas depois a gente percebeu que diluiu e ficou
muito mais tranqüilo as visitas. Então, a visita é uma coisa normal, como
se fosse em qualquer maternidade, Einstein, Santa Catarina, um bom
137
hospital de São Paulo, a Promater. SVH, Mesa sobre Experiências de
Humanização da Assistência ao Parto.
Como qualquer outro sujeito novo, pai entra na cena de parto como um
intruso despreparado. Isso parece ser mais evidente nos serviços públicos,
onde até recentemente sua presença ali era inconcebível, pois significava uma
concessão à venda apenas no contexto da prática provada.
Os serviços parecem às vezes querer auto-realizar a profecia do
estereótipo do pai nervoso prestes a desmaiar.
O bebê nasceu e a enfermeira deu o instrumento para que o pai
cortasse o cordão entre os dois clampes, logo que o neném nasceu.
Penny perguntou se ele queria pegar o bebê e ele disse que não. Logo a
neonatologista pegou o bebê e levou-o à sala do fundo do corredor. O
pai saiu da sala e sentou-se no corredor. Uma das pessoas presentes
dizia para ele empurrar a cabeça para baixo entre as pernas: sua
pressão tinha caído e ele estava bastante pálido. Fiz companhia a ele um
pouco no corredor e depois voltei. Houve, nesse tempo, um comentário
jocoso que foi dirigido a Penny em referência ao pai do bebê, que ainda
bem que ela não tinha dado o bebê para ele segurar, ele podia ter
deixado a criança cair. Pareceu-me que a presença do pai na sala de
parto é também uma oportunidade de fazê-lo passar por uma situação
vexatória, com comentário do tipo: “Esses pais...” (Serviço 2, Caderno
de Campo, dezembro).
Às vezes, o pai é hostilizado, considerado uma ameaça ao bom
andamento do serviço e à segurança das pacientes, e ainda infantilizado, se
comportando como criança curiosa, indisciplinado:
O argumento que ela usou contra a presença das salas de PPP no
interior do CO era muito estranho. Ela dizia que os pais ficavam
138
entrando e saindo, que eles sujavam muita roupa e aumentavam os
custos do hospital e que nos hospitais privados eles cobravam a mais por
causa disso. Questionou que a presença do pai fosse efetivamente
humanização, visto que eles ficavam lá assistindo cirurgias ao lado e que
isso era um problema. Disse também que a presença do pai podia
aumentar a possibilidade de infecção, porque eles tinham episiotomia
para fazer, senão a mulher depois reclamava que tinha ficado “frouxa”,
com problema de “bexiga caída”. (Serviço 2, diário de campo,
novembro 2000)
A referência ao marido no parto em geral aparece com o já mencionado
ponto do marido, o já referido apertamento final da sutura da vulva na
episiotomia, sem a qual os maridos reclamariam da frouxidão. Note-se que os
profissionais argumentam que agem aqui na defesa dos interesses do marido,
representando seus interesses, e fazem referência ao fato de que se não
fizerem tal “aperto”, os maridos voltarão ao serviço para reclamar.
Como vimos, o pai é ainda o motivo de muitas controvérsias e
resistências relacionadas à privacidade das demais pacientes, o que motivou a
discussão de alternativas, como a separação dos espaços coletivos com
biombos e cortinas; ou seu uso exclusivo nas salas de PPP, como observado
no serviço 2.
É interessante perceber que a entrada do marido na cena de parto é feita
com um despreparo maior ou menor por parte tanto das equipes de
profissionais quanto dele próprio, o que pode eventualmente levar a problemas
de comunicação entre este e equipe, ainda que as intenções de ambos os lados
sejam de cooperação, como vemos na cena abaixo:
Quando estava no período expulsivo, a Sônia e a Irmã Pauline tinham
instruído a Liliane que era legal ela ficar com a boca fechada e respirar pelo
139
nariz, de que era importante, quando ela tivesse tendo uma contração, que ela
fechasse a boca, prendesse a respiração e fizesse força; [...]e nisso, quando
estava fazendo essa força, o marido, então, resolveu ajudar e ele, além de
falar: “Não. Força! Força!”, tal, essas coisas, ele pegava a mão dele e passava
na boca dela, eu acho que tentava, entre aspas, ajudar, fechar a boca dela; ou
seja, ele também, o fato que está dando a entender, é que ele estava ajudando
fazendo isso. (Serviço 1, Diário de campo, agosto 2000)
3.2.3.5 A doula
A recomendação da incorporação do “apoio no trabalho de parto e
parto”, legitimada como baseada na evidência como possível redutora de
custos, aplica-se de forma ainda mais enfática a acompanhantes com o papel
específico de fazer um suporte emocional, físico e social, como é o caso das
doulas. O termo grego doula vem da maiêutica, forma de assistência feminina
ao parto na antigüidade clássica, de caráter ritualístico, porém incorporando
uma relativa especialização de papéis técnicos, sendo a doula uma entre
várias. (Diniz, 1997). Essa figura é retomada na década de 80 e vem sendo
incorporada a equipes de trabalho na assistência ao parto de maneira cada vez
mais formal.
Seu papel é diferente daquele do acompanhante, pois tem tarefas
definidas na assistência e para isso estaria qualificada; é diferente daquela da
parteira, pois não se ocupa da assistência ao parto, mas à parturiente, aí
incluídos o encorajamento emocional, a ajuda a caminhar e mudar de posição,
à respiração, ao banho, ao início da amamentação na sala de parto, entre
outras. Em alguns contextos, a doula tem um papel importante no puerpério e
no apoio à lactação.
140
O papel da doula no Brasil ainda está por se definir, porém já há
algumas experiências em serviços públicos, como no caso da Maternidade
Sofia Feldman, uma ONG de Belo Horizonte que incorporou doulas da
comunidade ao redor do hospital; estas doulas têm uma relação com o
movimento popular de saúde da região.
No serviço 1, temos a presença de “doulas” ou acompanhantes de parto
voluntárias da comunidade (desde que a paciente consinta), que se
incorporaram às equipes no segundo ano de funcionamento da maternidade. A
maioria delas é oriunda do movimento popular de saúde, trabalham como
voluntárias e teriam como papel oferecer apoio às mulheres no sentido mais
amplo do encorajamento – “pegar na mão”, diminuir a solidão, em especial
daquelas que enfrentam o parto sem acompanhante, ajudar a mulher a andar,
tomar banho, acalmá-la; aquelas que sabem, fazem massagens, etc.
Para essas voluntárias doulas foi oferecido um curso com uma carga
horária teórica de cerca de 16 horas, incluindo vários temas como o pré-natal e
os procedimentos tecnologicamente adequados. Conforme pudemos observar
nesse processo de capacitação, havia uma certa expectativa delas de que
pudessem garantir o direito das gestantes a um leito no hospital e a parto
humanizado, quem sabe “patrulhando” o trabalho da instituição e seus
profissionais. O trabalho das doulas nos plantões se iniciou em agosto de
2000.
Dada a sua origem política no Movimento Popular de Saúde, em
especial a Comissão de Mulheres do Movimento de Saúde da Zona Leste,
essas mulheres, em grande medida, incorporaram o problema de acesso aos
leitos na região como uma das tarefas mais importantes: garantir que a
parturiente pudesse entrar no hospital, identificar quando e por quem elas não
são admitidas, e que seja tratada adequadamente. A preocupação com o acesso
141
e a sonegação de leitos pela equipe parece ser uma realidade também em
outros contextos, como no caso da Maternidade Sofia Feldman (MG), onde
representantes da comunidade checam a cada plantão se há ou não há leitos
disponíveis.
Na verdade, são tantos os problemas identificados, que elas se
perguntam qual a lista inteira de suas funções na cena:
Foi citada aqui, várias vezes, a conduta da Dra. Márcia, nem só
nesse grupo, como pessoas antes, acho que a Ana falou: vamos abrir os
olhos, vocês não estão lá para fazer o controle social. Eu estou no
Movimento, enquanto Comissão e Saúde da Mulher, e questionando com
a Ana, acho que nós estamos fazendo os 3 papéis: papel do Movimento
de Saúde, papel da Comissão e Saúde da Mulher, papel de doula, e 4º
papel, o papel do controle social e eu não abro mão disso, se eu tiver que
abrir mão disso, para mim esse trabalho não está sendo, entendeu? Eu
acho sim, que nós estamos lá, além de, como eles chamaram? Para
paparicar mulher, eu acho que nós estamos lá para isso, para atender a
mulher e não os funcionários, não os médicos, nada disso, nós estamos
lá para paparicar, atender a necessidade da mulher e sim fazer o
controle social também, nós vamos estar lá para isso, não vamos com
confronto com a equipe não, mas o nosso papel é trazer isso para os
Conselheiros[...] a Comissão, tem que sentar com eles e fazer o relato
gente, do que a gente está observando.
Uma das questões adicionais que se colocou no decorrer do trabalho foi
a adequação dos procedimentos na assistência:
“Eu tenho ido em horários diferentes e, pelo que eu tenho visto,
outras pessoas em outros horários também, então, por que estou falando
isso? Porque quando a gente fala do controle social, eu concordo
142
completamente, só que eu acho que a gente também tem que tomar
cuidado no sentido de que assim, muitas das práticas que estão sendo
feitas, que não são legais, não é uma pessoa que está fazendo, são
várias, então é questão de falta de treinamento, de monitoramento, de
orientação do hospital, não é assim, então é só fulano de tal, então
manda aquele fulano de tal embora e resolve o problema, não é assim,
por isso que eu acho legal quando a gente pergunta: vocês estão vendo
muito corte? Vocês estão vendo muito soro? Vocês estão vendo muito
essa força que faz em cima da barriga da mãe? Por que? (Reunião de
doulas, setembro 2000)
Há um reconhecimento da necessidade de treinamento continuado e
melhor monitoramento, para além da responsabilização de algum funcionário
em especial:
Porque são coisas que não deveriam estar acontecendo com essa
freqüência, que o Paulo queria abaixar a taxa de episiotomia, de corte,
ele diz que ele queria abaixar, isso faz parte da proposta de
humanização, essa coisa da barriga, de fazer essa força em cima da
barriga da mãe, não devia ter em hospital nenhum, eu sempre falo
errado, é manobra de Kristeller, eu acho que chama, então assim, por
isso, quando eu digo isso, é importante que a gente anota qual é o
plantão, que equipe e tudo mais, mas é importante a gente ter em vista
que há uma falha aí mesmo, do hospital e não é com uma pessoa, um
profissional que está falhando, é o hospital, eu acho, que está falhando,
na orientação, no treinamento, no monitoramento e nas práticas dos seus
profissionais (reunião de doulas, set. 2000).
143
Mesmo que a doula não fosse fazer partos, precisava até certo ponto
saber se ou não os profissionais estavam fazendo o trabalho adequado. Isso
esbarrava no impasse dos limites do conhecimento:
Aquela questão do sofrimento da mulher, o que vocês falaram aí,
24 horas de sofrimento da mulher para tomar uma decisão de fazer uma
cesárea. Teve uma equipe que já me falou assim: eu recebo ordens, é
ordem do hospital, aqui cesárea jamais; aí eu ouço: cumpro ordens.
Então eu fico muito preocupada com essa coisa porque nós já sabemos
de casos de criança que nasce com problemas cerebral, por outros
problemas, por conta da demora de nascer, então, como é que fica? Nós
não temos como intervir, mas vamos assistir ao sofrimento dessas
mulheres de braços cruzados? Isso é para se pensar, de como vai agir
nesse momento. (Reunião de doulas, setembro 2000)
Também se perguntam até que ponto não estão ali para compensar a
carência de funcionários. Como comentado por uma doula a quem foi
solicitado que fizesse a limpeza do chão em um parto:
Tudo bem, se não tem funcionário, a gente acompanha, mas não é
nosso papel de acompanhar e nem de dar banho, porque se o nenê
nascer lá de qualquer jeito no banheiro, vão culpar nós que estamos ali,
que não fomos chamar a mulher, que tinha que chamar a enfermeira,
nem é nosso papel, mas tudo bem, não tem funcionário, eu fico receosa
de fazer isso, agora essa coisa de usar luva é ética do obstetra, da
enfermeira e não é nosso, de limpar.
Apesar do apoio da direção do hospital, as doulas enfrentaram também
uma certa hostilidade inicial:
As meninas todas estavam lá, estavam com ela e tudo bem, só que eu
achei assim, 99% não está apoiando, que eu senti na pele isso, a rejeição, até
144
a médica, a Dra. Eugênia, chegou para a enfermeira e falou assim: o que que
essas mulheres, num final de semana, com horários vagos e elas não têm o
que fazer? Não tem um final de semana? Não tem marido? Não tem
passeio? Eu falei para a enfermeira assim: para mim, o meu melhor passeio
é estar fazendo isso.
- Essa enfermeira, como é o nome?
- Eugênia.
- Não, é a Dra. Eugênia. A outra é enfermeira, eu fiquei admirada,
ela falou: você não tem mais o que fazer? Aí eu respondi para ela: Eu
faço isso porque gosto, isso que respondi, não deixei por menos não,
respondi à altura e o Dr. Paulo falou: as doulas têm que sentir orgulho
de estar lá e não as pessoas maltratando, pisando e desrespeitando,
entendeu?
No que pudemos observar, apesar de enfrentar dificuldade, as doulas
avaliavam o seu trabalho de forma positiva e o consideravam muito
gratificante, assim como as mulheres assistidas:
Eu também fiquei muito feliz em ver o trabalho, me senti muito
bem, fiquei assim, achei o máximo assistir um parto, eu sou mãe de 3
filhos, nunca tinha visto, então elas ficaram muito felizes da gente estar
no quarto com elas, e algumas mães escreveram me agradecendo, no 1º
dia, ela até falou assim para mim: caiu do céu, porque eu tenho
problema de pressão, não quero ficar aqui, pois eu fiquei com ela das 10
horas, quando eu entrei, até 20 para meio dia, quando o bebê dela
nasceu, fiquei 20 minutos com ela no banheiro e a médica sempre
entrando, fazendo o toque nela, a gente andou, conversei, ela ficou
muito, muito à vontade e eu falei para ela: você já tinha feito esse
trabalho? Ela falou: não, mas isso está sendo muito bom para a gente,
145
porque a gente fica com medo, a gente tem que agüentar, vocês ajudam a
gente. Isso já no 1º dia.[...] As pessoas ficaram tão felizes.
Parece haver um crescente interesse no trabalho das doulas e uma
crescente adesão a essa proposta por parte de serviços e indivíduos, como
mostra a recente reunião em São Paulo organizada pela Rehuna (março de
2001), a preparação de um encontro nacional para o mesmo ano, planejado a
partir de um encontro delas em Fortaleza, por ocasião do Congresso de
Humanização, além da realização de um Curso de Formação de Doulas em
Campinas, abril de 2001.
3.3 Estrutura física (arquitetura, equipamento, rotas e movimentos)
Com relação à arquitetura e à estrutura física, as entrevistas e a
observação têm apontado para dois momentos: em primeiro lugar, parte-se do
reconhecimento da inadequação dessa estrutura dos serviços – ambos foram
desenhados como serviços “convencionais”, orientados para uma abordagem
cirúrgica de linha de montagem, incluindo a separação física de cada etapa,
onde a parturiente seguia um “trajeto” de cinco ou seis leitos: prontosocorro/admissão, enfermaria de pré-parto, sala de parto no centro cirúrgico,
leito de puerpério imediato/pós-operatório e finalmente no quarto. Num
segundo momento, foram feitas as mais diversas adaptações da estrutura
física, menos ou mais resolutivas, em geral muito criativas.
No serviço 1, as mudanças feitas incluíram a retirada de grades das
janelas para deixar o ambiente mais acolhedor; a pintura em tons salmão e
vitrais nas portas, a utilização de bolas de parto para o manejo da dor; a
garantia do uso do chuveiro aquecido (comum); cadeiras de balanço, o uso de
camas comuns como leitos para o pré-parto, parto e puerpério – além de
camas especiais PPP, bem mais caras (veja fotos 1 a 6); e até mesmo a
146
utilização das escadinhas do leito como recursos de parto (informado sempre
como um improviso extra-oficial, com ênfase no fato de que o marido pode
apoiar a mulher sentado no degrau de cima), entre outras. Pequenos detalhes
baratos (muitos deles conseguidos por doação), como quadros na parede,
iluminação indireta com abajures, o uso de sofás comuns ao invés de bancos;
biombos e cortinas quando necessário entre os leitos; roupas menos feias e que
não envergonhem as mulheres por ter seus genitais expostos; mudança das
cores das paredes; são alguns dos ajustes indicados como muito efetivos.
Descreveremos abaixo o espaço no serviço 1. Ao descer dos elevadores,
no quarto andar, à esquerda está a sala de espera, com sofás pretos, estofados
como de sala de estar, que formam um quadrado. Entre a sala de espera e o
elevador há um corredor no final do qual há portas num tom de rosa velho que
dão acesso, à esquerda, à ala de pós-parto e, à direita, à ala onde são feitos os
partos. Entre a sala de espera e a ala de pós-parto, no corredor, ao lado de
amplas janelas, está a sala de atendimento ginecológico – provavelmente de
emergência – e admissão de parturientes. No hall da sala de espera há,
caminhando no sentido da ala dos partos, uma entrada para os sanitários, onde
há um bebedouro. Do outro lado da sala de espera há um telefone público. As
paredes são de um rosa claro, arrematadas junto ao teto por um aplique com
flores em tons de azul. Em frente à sala de admissão há dois quadros, um deles
é um certificado, assinado por José Serra, que confere ao hospital o Prêmio
Galba de Araújo; no outro, uma foto de uma mulher ao lado de uma freira com
o texto no quadro informando seu nome e que foi a primeira parturiente
atendida lá, diz a data e tem dois pezinhos de bebê carimbados embaixo, na
horizontal, um após o outro. Nos corredores, o chão é cinza, limpo e
encerrado, mas na sala de admissão e salas de parto ele é algo do tipo paviflex
rosa-salmão.
147
As portas que dão acesso às alas são portas duplas, com duas janelas de
vidros, em uma das quais, na entrada das duas alas, está afixada uma folha de
sulfite digitada, que avisa que não é permitida a entrada de pessoas sem
autorização. Não há nenhum agente de segurança ou algo do tipo nessas
portas. Na ala dos partos há um balcão – também rosa no tom da porta - da
enfermagem, logo à direita da porta, em frente ao posto há um quadro – do
tipo quadro branco com os números dos quartos – no qual estavam
registrados: o nome de quem está no quarto, o tipo de parto ou algum
problema como pressão alta – em código – para mulheres que já tiveram o
bebê; e o nome, idade gestacional, algum problema, para as mulheres que
estavam em trabalho de parto. Nesse mesmo quadro, havia um controle de
admissões e transferências para a outra ala, onde só constava o primeiro nome
da mulher.
Do lado esquerdo da porta há quatro cadeiras pretas estofadas, onde se
sentavam as mulheres que haviam sido encaminhadas antes de entrarem para
os quartos. À esquerda dessas cadeiras está um corredor com quartos e, ao
fundo, duas cadeiras de balanço em madeira clara. Nesse corredor à esquerda
ficam quartos de pós-parto, quatro quartos, destinados a gestantes de alto
risco. Do lado direito desse corredor, estão as salas de pré-parto e parto. São
cinco salas, uma ao lado da outra. A porta da última delas fica em frente ao
balcão da enfermagem. Nessa mesma parede estão, ainda, uma sala de
amamentação e outra de bebê-canguru. Ao lado direito do balcão de
enfermagem há uma outra sala utilizada para ouvir os batimentos cardíacos de
bebês. Ao final do corredor está o acesso aos berçários, que está cortado por
um corredor que dá acesso à ala de pós-parto.
148
Esse espaço de enfermaria foi transformado em ala de partos, fora do
centro cirúrgico32, diferentemente da escolha no serviço 2, que manteve os
partos dentro do centro obstétrico, que é um centro cirúrgico com todas as
suas características (paramentos, esterilização, equipamentos, etc.), onde se
fazem partos.
No serviço 2, foi feita uma reforma no centro obstétrico, por ocasião de
um problema hidráulico, que resultou na incorporação naquele espaço de duas
salas tipo PPP (pré-parto, parto e puerpério no mesmo leito). Descreveremos
abaixo o espaço do Centro Obstétrico no serviço 2. Saindo do saguão do
elevador, à esquerda, temos a sala de admissão, ao final desse corredor temos
um outro corredor que se abre para ambos os lados, e virando novamente à
esquerda temos, ao final do corredor, uma primeira porta grande do centro
obstétrico, duas folhas, com vidro fosco que permite apenas ver as sombras
das pessoas que estão do lado de fora. Antes de passar essa porta, à direita, a
porta de consultório imediatamente anterior é a da Chefia do Plantão, não há
identificação nessa. Passando essa primeira porta, à esquerda está a sala onde
ficam as roupas e do lado direito duas portas, uma delas é a sala de pré-parto,
que tem três leitos de um lado e o banheiro e mais um leito que fica em frente
à porta da sala.
No interior dessa sala de pré-parto toda mobília é velha. As camas não
são levantadas, mas sim na posição horizontal. Os armários ao lado das camas
são de fórmica e estão todos lascados, deixando, em algumas partes, aparente
a madeira. Um banquinho baixo verde, com os pés de madeira, com desenho
em U, que permite parto sentado, estava largado naquela sala sem utilidade
32
Muitos profissionais defendem que o centro obstétrico não deve estar dentro do centro cirúrgico,
não apenas porque o parto vaginal não é um evento cirúrgico nem necessita ambiente asséptico,
como também porque acreditam que há uma margem de segurança de 30 minutos entre a indicação
de uma cesárea no caso de uma complicação de parto. (30’theory)
149
aparente. A sala foi toda pintada num tom de creme, como as salas de PPP,
mas tudo lá discrepava em relação às outras salas que ficam depois de uma
outra porta grande que dá entrada ao restante do setor. Passando essa outra
porta, à esquerda temos a primeira sala de PPP, uma suíte ampla, com quatro
janelas compridas através das quais se vê a linda paisagem dos Jardins da
Independência. Na parede que dá para a frente da porta foi feito um trabalho
de pintura que mistura tons de amarelo e encarnado com uma pátina em
movimentos circulares.
Nessa suíte existem vários equipamentos de parto humanizado: na
parede que dá de frente para a porta – a das janelas – fica uma cadeira de
balanço de encosto atrás e com apoio à frente (cavalinho de parto), o
banquinho do médico, uma cadeira preta estofada, que o diretor tinha citado
como “a cadeira do pai” no nosso segundo encontro, e um pufe grande cinza
(fotos 7 a 12) em material sintético, mas que tem costuras que impediram seu
uso por meses até sua recente impermeabilização. O diretor havia dito, na
nossa visita anterior, que foi um erro do fornecedor e que ele deveria ser
encapado para ser usado, pois o sangue ou secreções poderiam entrar pelas
costuras e danificá-lo, não podendo ser limpos. Notei que todos os móveis da
sala têm rodinhas ou, como a cadeira de balanço, são de fácil deslocamento, e
assim o pufe parece destoar do resto, talvez dificultando a limpeza do espaço,
que é sempre feita às pressas depois do parto.
A parede em frente à cama, tem uma porta que dá para o banheiro e
encostado nessa parede, à direita dessa porta fica um carrinho auxiliar de inox,
com rodinhas, onde são colocados os “instrumentos” para o parto. À esquerda
da porta fica uma escada com dois degraus. Na parede da porta de entrada, há
uma grande prateleira com rodinhas cheia de caixas de “equipamentos”, fios
de sutura, luvas de procedimento e outros materiais. Na última parede fica a
150
cama e ao lado esquerdo da cama, havia um berço aquecido velho. Dentro
dele, havia um colchãozinho revestido de plástico transparente que não tinha
nenhum forro.
Ao lado dessa sala há um posto de enfermagem. Desse mesmo lado do
corredor, há uma sala onde há um elevador, de onde vem o material
esterilizado, uma sala de parto com mesa para parto normal tradicional e outra
onde são feitas as cesáreas. Do outro lado do corredor há uma sala de
materiais, uma sala de PPP e uma sala vazia. Ao final do corredor, fechando-o
há uma pequena sala que parece uma sala de enfermagem. Nela há vários
armários e dois “berços”, onde são feitos os cuidados dos bebês logo após o
nascimento.
A segunda sala de PPP é menor, possui os mesmos objetos que descrevi
como fazendo parte do cenário da outra sala de PPP, exceto a estante com
materiais e não possui banheiro. O banheiro utilizado pelas mulheres
atendidas nessa sala é o banheiro da sala de pré-parto.
Na observação dos serviços, um aspecto chamou a nossa atenção: o que
parece mais inadequado da arquitetura das maternidades é a adaptação do
espaço a uma parturiente que se move (teria liberdade de movimentos durante
o trabalho de parto e parto, o que como vimos é associado a um parto mais
curto e menos desconfortável), em oposição a uma paciente que fica
imobilizada e assim imóvel é movida por terceiros a cada um dos leitos,
chegando finalmente ao parto vaginal na posição supina com as pernas semifletidas e fixadas às perneiras, tendo um ou os dois braços fixados pelo soro
(referida por uma participante do curso de doulas como “aquela posição que a
gente fica crucificada”). Essa movimentação ativa implica em pelo menos
duas mudanças significativas:
151
a) a demarcação do espaço de deambulação das parturientes durante a
fase ativa do trabalho de parto (e o convívio nos corredores, enfermarias e
quartos com as parturientes e seus acompanhantes e, no serviço 1, eventuais
doulas em movimento). Na prática, como vimos no serviço 1, há alguma
resistência mas há certa circulação dos novos sujeitos.
No serviço 2, há muito menos mobilidade, tanto da paciente em relação
aos equipamentos (quando ela é atada a algum deles, como o soro, a bomba de
infusão ou o cardiotocógrafo), quanto ao espaço em geral, pois não há espaço
de deambulação fora do quarto nem doulas para acompanhar sua
movimentação.
b) o oferecimento de alternativas de posição de parto (com o respectivo
mobiliário) durante a fase expulsiva, o que reorientaria a cena de parto com
base na conveniência fisiológica da parturiente, deslocando o profissional de
saúde de seu banquinho diante da mulher crucificada, pois este passa a ter que
se adaptar a uma gama de posições expulsivas
No serviço 2, o uso do equipamento apropriado esbarra tanto no
contexto de carência geral quanto na resistência ao modelo.
Antes que fosse aplicado o soro, entrou na sala um residente, que
Simone perguntou qual era o nome, ao que ele respondeu “Doutor
João”. Antes de ser apresentado a nós, ele resmungava com Leôncio que
aquilo era um absurdo, uma cama que havia custado 10.000 reais, que
estávamos num país de Terceiro Mundo, que aquilo não fazia o menor
sentido. Quando Simone se apresentou dizendo que era da pesquisa
sobre limites e possibilidades da humanização do parto, que o Cláudio
Tobias já devia ter contado a respeito, ele disse: “Então, já falei
demais”.
152
Vimos na observação que para de fato ocupar esse espaço, precisa haver
uma relação profissionais de saúde-paciente que seja compatível com o novo
modelo, num contexto em que a carência é a regra. É como se então o modelo
passasse a ser considerado inviável pela própria carência, como num círculo
vicioso:
Simone disse que não, que estávamos ali inclusive para perceber
as dificuldades. Aí ele comentou que não havia fio para sutura, que
estava faltando material. Até mostrou que guardava no bolso
determinado tipo de fio para um caso de cesárea. Simone e ele passaram
a conversar sobre o preço da cama e sobre o modelo, Simone questionou
que o modelo custasse tão caro e ele disse que não, que havia visto a
nota fiscal. A enfermeira Solange também havia nos comentado sobre as
dificuldades de trabalho, sobre a falta de material e sobre o fato de que a
autoclave estivesse quebrada. Serviço 2, Caderno de Campo, novembro
de 2000.
Porém, para fazer uso do espaço, há que ir na “contramão da
permanência”. Como todas essas modificações previstas no papel acontecem
na prática, frente a tantos constrangimentos e limites, sejam eles materiais ou
não? Há uma evidente desconexão do modelo de mudança com a
permanência, desencontrando os procedimentos de rotina em linha de
montagem:
A existência de uma única sala de parto para atender quatro leitos
de pré-parto parece ser um problema bastante sério, que parece
contribuir bastante para o mau uso das salas PPP. Notei irritação dos
profissionais em relação à forma como está organizado o centro
obstétrico, isso certamente não pode ser avaliado apenas como
resistência a uma proposta humanizada de parto. Uma neonatologista,
153
em algum momento do plantão, referiu-se às salas de PPP como “a sala
maldita” e referidas como ponto de estrangulamento do atendimento. Há
claramente uma rigidez de um modelo bastante medicalizado e cheio de
vícios, mas não ficou claro que a resistência é apenas para deixar esse
modelo. Pareceu-me bastante problemático conciliar o ambiente do
centro obstétrico, o uso de campos cirúrgicos e tudo o mais, com o fato
de haver um parto normal na sala de pré-parto ou até na sala de
cesárea, se é que isso é possível. (Serviço 2, Diário de Campo, novembro
de 2000).
A infra-estrutura disponível às vezes não incorpora em detalhes
mínimos as novas necessidades e recomendações, a exemplo da permissão de
a paciente ingerir líquidos, como nesta cena da busca de um copo.
Ela reclamou de sede e notei que, entre o seu leito e o do lado,
havia uma garrafa de água, mas não havia copo. Perguntei a João se eu
podia dar um pouco de água a ela. Ele disse que podia dar um pouco.
Perguntei a ele onde poderia conseguir um copo, ele me disse para pedir
para Carmen. Saí para o corredor e encontrei Carmen no posto de
enfermagem, pedi a ela um copo e ela teve que ir buscar numa sala no
corredor, num armário trancado a chave. Deu-me um copinho de café e
disse que copo lá era um artigo difícil. Voltei à sala de pré-parto e disse
que tinha arrumado um copinho pequeno, esperei passar as contrações e
ofereci a ela a água. (Serviço 2, Diário de Campo, novembro de 2000).
No serviço 2, o uso do espaço disponível para deambulação é limitado e
os profissionais justificam essa limitação pelas condições de trabalho: há
poucos profissionais para executarem o trabalho, os leitos têm que ser
desocupados para acomodar as pacientes que chegarão. A impressão que
temos é que a imobilização das pacientes é justificada exatamente pela falta de
154
pessoal: se as mulheres se moverem, inviabilizam o trabalho, pois quem vai
acompanhá-las?
(A residente) dizia que aquilo era um desperdício de espaço, que
aquele era um hospital de referência para alto risco, que eles não
podiam limitar a quantidade de atendimentos porque um leito de parto
estava ocupado durante todo o trabalho de parto de uma mulher, que,
por isso, eles tinham que induzir todos os partos. Serviço 2, Caderno de
campo, outubro
Como deve haver uma grande rotatividade nos leitos, torna-se
necessário induzir o parto de todas, portanto é preciso mantê-las presas ao
equipo de soro ou à bomba de infusão. Essa bomba tem o poder de inviabilizar
o modelo de humanização, tamanha a imobilidade que impõe.
Nas palavras do diretor do serviço 2:
Eu pergunto para o residente: quem botou esta bomba de infusão
aqui, na sala de PPP? Por que não botou logo uma bola de ferro com
uma corrente, se era para imobilizar, para prender a paciente na cama?
Vale registrar que praticamente todos os partos observados foram
acelerados, inclusive aqueles que ocorreram nas salas de PPP, inclusive o
parto de uma adolescente que chegou com 7 cm de dilatação; a expulsão se
deu dez minutos após a introdução do soro.
As recomendações feitas para as maternidades consideram que o espaço
físico, mesmo limitado, deveria ser adaptado com biombos para garantir uma
privacidade mínima às pacientes e seus acompanhantes. No serviço 2, a
privacidade das pacientes é pouco considerada, quer ela fique nas salas de
PPP, onde a porta muitas vezes fica aberta durante o trabalho de parto e parto;
a porta fechada indica o modelo de parto, como nos conta uma obstetra
simpática ao modelo humanizado:
155
Marcela entrou conosco na sala de PPP (primeira do corredor à
esquerda) e acabamos ficando lá conversando. Ela falou que existe uma
diferença entre o real e o ideal e se propôs a falar do que ela entende
como ideal. Falou que o ideal é fazer o parto estando só ela e uma
auxiliar na sala, com a porta fechada, sem barulho, com pouca luz.
Falou que o ideal é não usar soro ou ocitocina e nem pegar a veia da
mulher. Disse que se algo acontecer, você tem condições de pegar veia
rapidamente, que não é necessário manter a veia desde a entrada da
mulher no hospital. Enfatizou a importância da presença do
acompanhante, que pode deixar a mulher mais tranqüila e relaxada.
Falou que existem problemas com os pediatras nesse sentido, de que eles
queiram logo entrar e fazer a “reanimação”, mas que isso pode ser feito
depois. Criticou inclusive o uso do credê. [...] Mas que, geralmente,
quando eles vêem a porta fechada, eles já sabem que está sendo feito um
parto humanizado.
Parece haver um significado atribuído aí à porta fechada, como que uma
delimitação do espaço e do poder do próprio obstetra sobre o que está
acontecendo no interior da sala de parto.
Ainda sobre a privacidade no uso do espaço, no serviço 2 chamou nossa
atenção que, ao final de cada parto, terminada a chamada revisão do parto e a
episiorrafia, a mulher fica na mesa cirúrgica, sozinha e com as pernas abertas
e presas nas perneiras:
Eu permaneci com Alice enquanto a auxiliar não chegava.
Conversei um pouco com ela e ela me disse se não podia tirar as pernas
de lá (suas pernas ainda estavam nas perneiras). Disse que não tinha
onde apoiá-las. Depois de alguns minutos vieram duas auxiliares e lhe
deram um pano para pôr no meio das pernas e pediram para que ela
156
fosse escorregando para a maca que estava colocada ao lado da mesa,
cobriram-na com um lençol e a levaram para o corredor do centro
obstétrico. [...] Como as outras, Mércia reclamou que estava sentindo a
sutura e depois do parto reclamou de ficar na cama com as pernas
abertas. Passado algum tempo, foi retirada da cama e deixada no
corredor da mesma forma que as outras. Fiquei ainda conversando um
pouco com ela no corredor, até que as enfermeiras vieram para levá-la
para o quarto Serviço 2, Caderno de Campo, novembro de 2000.
Estar nua é, de certa forma, simbolicamente, estar vulnerável,
desempoderada, em especial com os genitais expostos e as pernas abertas. A
atenção a esse pequeno detalhe - após a episiorrafia retirar as pernas das
mulheres das perneiras e deixá-las juntas na horizontal, ajudando a mulher a
se recompor - não depende de nenhuma mudança em termos de infraestrutura. Sua demora e os minutos de exposição desnecessária da nudez e dos
genitais parece evidenciar a escassa consideração dos profissionais com o
sentimento de pudor das pacientes.
O manejo desse sentimento é muitas vezes agressivo por parte dos
profissionais, como mostra esta cena no serviço 2:
Élida tinha dezesseis anos e estava acompanhada pela mãe. Ele
falou para ela tirar a calça para examinar. Ela tirou a calça e se deitou,
a mãe continuou do outro lado do biombo. Ele esqueceu de puxar o rolo
de papel sobre a mesa ginecológica e ela acabou se deitando sobre o
papel usado. Quando ele entrou para o lado da sala onde é feito o
exame, ela ainda estava de calcinha. Ele disse que ela tinha que tirar a
calcinha para examinar. A mãe, do outro lado, disse que ela tinha
vergonha. Eduardo respondeu: “Vergonha, eu também morro de
vergonha, vou até botar uma venda nos olhos para atender vocês.”
157
Outro detalhe muito relevante é que a episiorrafia foi motivo de
evidente sofrimento para as mulheres, que sempre se queixam do início ao fim
do procedimento. Nos dois serviços, parece haver um diálogo padronizado
entre a paciente e quem faz a sutura, em que a paciente afirma sua dor e o
profissional questiona e desqualifica sua queixa. Comentando esse achado
com os diretores de serviço, eles nos explicaram que esse diálogo é aprendido
durante a formação, como voltaremos a discutir mais adiante.
3.4. Os mecanismos e estilos de gestão
Além dos incentivos financeiros ligados ao SUS, como vimos,
associados à necessidade da redução das taxas de cesárea e suas
conseqüências para o sistema, um dos motivos apontados para o sucesso de
iniciativas de humanização do parto tem sido o modelo de gestão de
Organização Social de Saúde (OSS), adotado pelo serviço 1 e pelo serviço que
ganhou o prêmio Galba de Araújo para São Paulo e região Sudeste do país em
2000, a Maternidade do Hospital Geral de Itapecerica da Serra. Esse modelo
de gestão implicaria em maior flexibilidade administrativa, em especial na
seleção e contratação de recursos humanos.
Na mesma direção, a rigidez do modelo tradicional de gestão do serviço
público é apontado como um obstáculo.
“Veja o caso do (serviço 1) e do Hospital de Itapecerica. Primeiro
eles contratam do zero, não tem que aproveitar profissional que está há
anos, já viciado, acostumado com uma rotina naquele serviço, só
esperando pra se aposentar, ou que veio parar no seu serviço porque
criou problema por aí e pediu pra ser transferido. Lá, na hora de
contratar eles já falam tudo, como é que a pessoa vai trabalhar, seja
obstetra, pediatra, anestesista, enfermeira, todo mundo. É claro que na
158
hora de conseguir o emprego o cara fala que concorda com tudo mesmo
sendo contra, mas aí a direção pode cobrar o compromisso dele, ele não
pode dizer que não concorda e pronto. Isso sem contar com a facilidade
muito maior de comprar as coisas.” (Diretor, serviço 2)
Outro dado muito relevante tem sido a vontade política local: o apoio
ou a iniciativa da direção dos serviços, pois é notável o papel dos indivíduos
nesse processo de mudança coletiva. Ainda que certamente haja, desde os
últimos dois anos, um contexto muito favorável às mudanças institucionais
que estamos estudando, seja pelo apoio dos formuladores de políticas (tanto
no nível federal quanto estadual, como já discutimos), chama a atenção como
a história das mudanças institucionais está relacionada às mudanças e
convencimentos pessoais e ao fato dessas pessoas “convencidas” estarem em
papéis de direção e assumirem uma “liderança visionária”. Quase sempre esse
papel é feito mesmo à revelia das figuras de autoridade e causa uma certa
estranheza inicial no conjunto da equipe.
Nas palavras dos diretores dos dois serviços públicos estudados:
Eu chegava na [faculdade de medicina] e comentava com o
pessoal (sobre as propostas de mudança). Nossa!... até o professor de
gineco geral me falou: “Olha, vocês podem até comprovar que
episiotomia não tem necessidade, que não precisa fazer na maioria dos
casos, mas nas minhas pacientes eu vou continuar fazendo”. Aquilo dali,
cada vez que falavam uma coisa dessa pra gente... a gente desanimava.
Mas logo retomava ” Dr. Paulo Murakami
Outra coisa também é...a minha estatística de cesárea varia de
26% a 38%, porque é um serviço que atende muita paciente de risco [...]
Os residentes, no começo, não entendem bem, mas já estão até se
159
acostumando, eles já sabem que quando passa de 32% eu começo a ficar
nervoso, eles dizem: “agora ele vai convulsionar”. Dr. J.A Jordão
“Então, nós procuramos ao máximo valorizar esse momento do
óbito, da perda fetal. Nós temos um projetinho onde nós colocamos
aquele corpinho numa caixa de bombom mesmo, enfeitada, e nós
fotografamos aquela criança, vestimos ela, damos a opção para o pai e
para a mãe para visitar aquele corpinho, ou se quiserem de vir buscar a
fotografia depois. [...] Muita gente no começo achou um terror isso [...]
“Ah, dr. Marcos, nem me peça que eu não vou fotografar defunto”. Dr.
Marcos Ymayo
Isso reflete de forma marcante quando vemos como e quanto os serviços
que melhor efetivam a mudança iniciaram seus processos antes desses
estímulos institucionais, e contaram com poucos recursos adicionais para
encaminhá-los, sendo esses recursos (financeiros, humanos e de informação)
virtualmente os mesmos de serviços em contextos semelhantes, que pouco ou
nada incorporaram de práticas orientadas à mudança.
Como vimos, esse fator pode ser essencial, mas não suficiente para a
mudança do serviço; é fundamental para iniciar o trabalho, mas não parece
capaz de se manter sozinho, dada a força da permanência do antigo modelo,
conforme buscamos mostrar.
Para nossa surpresa (e certamente um dado que precisamos explorar
melhor), a disponibilidade de recursos financeiros é citada como tendo uma
influência menor do que tínhamos inicialmente imaginado. Muitas vezes, pelo
menos no contexto de um serviço financiado pelo SUS, a mudança é efetivada
através do compromisso da direção dos serviços com a incorporação de
recursos baratos, ou a des-incorporação de recursos caros de eficácia ou
segurança duvidosas, significando, na prática, uma economia dos custos
160
hospitalares. Em um dos serviços (Santa Efigênia), calculou-se que a
humanização da maternidade implicou em uma redução de custos na ordem de
26%. No Hospital Independência, toda uma ala foi “humanizada” numa
reforma com recursos do próprio hospital, aproveitando a oportunidade da
interdição dessa ala. Esta é, sem dúvida, uma vertente: a dos estudos da
relação custo-benefício, a ser explorada em maior detalhe, sobretudo no nosso
contexto de carência.
161
Capítulo 4 - Discussão
Assistência ao parto e direitos:
a aproximação e a distância entre intenção e gesto
Neste capítulo, discutiremos os achados da pesquisa entretecendo as
reflexões que emergem tanto do trabalho de campo quanto da literatura.
Buscaremos discutir inicialmente como os serviços se organizam a partir da
convivência desses dois modelos contraditórios, o do parto típico e o da
humanização, e como buscam equacionar as contradições, as permanências e
rupturas dos modelos, em sua prática.
Em seguida, discutiremos como a noção de direitos permeia a
assistência e como esses direitos são ou deixam de ser percebidos pelos
sujeitos envolvidos. Aqui incluiremos essas noções de direitos em sua relação
com a ruptura ou a permanência dos modelos e com a construção das
possibilidades e limites da incorporação, da promoção e do respeito a esses
direitos no modelo de assistência e no fazer concreto dos serviços.
Queremos chamar a atenção, em primeiro lugar, para a coragem e o
pioneirismo das iniciativas de mudança institucional nos dois serviços
estudados, que de uma forma ou de outra souberam trazer ao seu cotidiano
conceitos novos e desafiadores, que necessariamente encontrariam muita
resistência, em um contexto adverso em que a permanência do antigo parecia
conveniente a todos os envolvidos. Essa questão deve iluminar todas as
demais, pois seria ingênuo acreditar que as mudanças propostas encontrariam
receptividade imediata e adesão incondicional. Queremos mostrar que se trata
de um diálogo, no qual há os que concordam e os que resistem à mudança e
cujas posições estão sempre transformando uma à outra.
162
4.1. A reorganização do modelo de assistência: características,
rupturas e permanências
Como vimos, nos serviços estudados a cena de parto está sendo
reorganizada com os mesmos sujeitos em novos papéis e ainda com a presença
de novos sujeitos, o que certamente não ocorre sem contradições.
Isto posto, vejamos agora as características dos modelos de assistência
nos serviços estudados. Um dos achados principais da observação foi a
distância entre o modelo humanizado prescrito e o cotidiano do serviço,
consideravelmente maior que aquela esperada. Chamamos a atenção para o
fato de que nos referimos a serviços que apontam claramente o modelo de
trabalho para seus funcionários e residentes quando de sua seleção e
contratação, sensibilizam e treinam naqueles procedimentos propostos, têm
programas de qualidade, têm rotinas de assistência escritas, além do
monitoramento mensal da prevalência de certos procedimentos, como cesárea
e episiotomia.
Ainda que a mudança que está sendo operada seja muito relevante, a
força da permanência do antigo está muito presente, tensionando o novo
modelo.
Partimos do suposto de que havia um deslocamento, menor ou maior,
do papel central do médico obstetra no parto normal; este passaria a ser um
profissional de quem se espera que se mantenha na retaguarda para a
assistência de patologias e complicações cirúrgicas (no serviço 1), ou numa
postura de expectação ativa, sem ter que seguir um protocolo de intervenções,
porém tendo seus procedimentos orientados pelas recomendações da OMS
(1996), nos dois serviços.
Para discutir o modelo de assistência nessa nova cena, mais uma vez, o
problema do acesso aos leitos é também identificado como o problema crucial
163
e que de certa forma “molda”, define, organiza os demais componentes do
modelo de assistência. Embora isso diga respeito ao sistema de saúde pública
mais globalmente e não a estes serviços em especial, há nas falas uma
referência freqüente de que “o dinheiro faz falta” quando se trata da
disponibilidade de leitos. O fechamento do serviço às usuárias, como vimos,
pode ocorrer por causa da superlotação dos leitos obstétricos ou neonatais –
pois os leitos de assistência ao parto estão condicionados à disponibilidade de
vagas na UTI neonatal, o que implica em haver eventualmente leitos
obstétricos ociosos porém não disponíveis.
Essa contradição é especialmente relevante, pois esses serviços têm
concentrado uma demanda de alto risco já prevista, como no caso do serviço 2
(que contará em breve com uma ampliação importante no número de leitos
para esses casos), ou maior que a inicialmente prevista, como no caso do
serviço 1, que chega a atender perto de 30% de gestantes sem pré-natal e cerca
de 20% de prematuridade em sua demanda.
Como referido anteriormente, o material de observação aponta para
algumas características centrais na mudança do modelo de assistência, que
discutiremos abaixo, ligadas ora às tendências de permanências, ora de
ruptura, como o modelo a ser superado, que chamamos de “assistência típica
ao parto” ou simplesmente de “parto típico” .
Quando falamos de parto típico no caso brasileiro, é importante fazer
referência a uma marca da assistência em nosso país: o uso da cesárea como
parto ideal. Temos a crença dominante entre profissionais, e possivelmente na
opinião pública, de que o parto vaginal é naturalmente arriscado e danoso para
a mãe e o bebê, levando a muita dor e seqüelas sexuais, uma vez que o parto é
considerado um agravo à saúde. Essa crença levou à criação de um modelo
164
“preventivo do parto” (Diniz, 1997) e à adoção da cesárea como parto ideal
(Mello e Souza, 1994), capaz de prevenir suas dores e suas seqüelas.
De certa forma, a cesárea eletiva no Brasil, na prática, pode ser
considerada como mais que um procedimento obstétrico, ela é um recurso
anestésico (de prevenção das dores do trabalho de parto e do parto) e uma
cirurgia urogenital, ginecológica, pois teria como finalidade prevenir o dano
genital resultante da passagem do feto pela vagina.
Ainda que a cesárea possa ser pensada como um não-parto (se
consideramos o parto como “a expulsão do feto vital, para o mundo exterior,
através das vias genitais", Rezende, 1998:286), ela é, de acordo com essa
crença, a modalidade de assistência que melhor atenderia às necessidades das
mulheres e respeitaria seus direitos de estar livres de dor e de viver a
maternidade sem comprometer sua “desejabilidade” sexual – seja com a
frouxidão da vagina, seja com cicatrizes evidentes.
O modelo que é oferecido aparece, em sua moderna previsibilidade, em
sua incorporação tecnológica intensiva, como muito superior à sangrenta e
ruidosa primitividade do parto vaginal típico. Não é de se estranhar, portanto,
que aquelas mulheres que têm mais poder para negociar, aquelas mais
escolarizadas e com maior renda, “optem” em massa pela cesárea.
Este não é o caso das mulheres atendidas nos serviços estudados. O
modelo oferecido seria aquele baseado na evidência, do parto normal, com
uma margem de opção da mulher bastante limitada. Porém a discussão que
polariza o “parto normal” versus “cesárea” nem sempre leva em conta que o
termo parto normal pode se referir a qualquer quantidade de intervenções
desnecessárias, arriscadas e dolorosas que compõem o parto típico no Brasil.
Na prática, no Brasil, temos o convívio de vários modelos de parto
típico “mais prevalente” e mais adequado a cada cenário: para as mulheres do
165
SUS em geral e dos convênios mais baratos, o modelo mais prevalente seria o
parto vaginal com os procedimentos do parto típico, sem o recurso à peridural,
e eventualmente a cesárea, indicada principalmente por alguma distocia;
enquanto nos serviços em que as mulheres podem negociar mais, os modelos
mais prevalentes seriam o da cesárea (eletiva, negociada no pré-natal, ou
indicada com menos ou mais critério no decorrer do parto) e, na minoria dos
casos, do parto vaginal típico com a peridural.
Temos assim modelos de assistência ao parto para as que pagam e outro
para as que dependem do SUS. Como o modelo de “melhor assistência” varia
menos em função de algum consenso científico sobre o que seria mais seguro
e c onfortável, e mais em função de fatores extra-científicos, existe um
conjunto de elementos que tensiona esses modelos em suas contradições.
Entre esses elementos, quatro parecem centralmente importantes:
1) Os critérios de acesso ao leito, de admissão da mulher no
sistema, refletidos nos requisitos de inclusão ou de exclusão das pacientes;
2) Os tempos e movimentos (cumprimento de uma duração préestabelecida) para cada etapa do parto e sua adequação através de um
roteiro de procedimentos (indução, aceleração, Kristeller, episiotomia,
etc.).
3) A dor do parto e seu manejo e a relação com as queixas e os
pedidos de ajuda da parturiente.
4) O estado genital e sua “correção” pela episiotomia.
A seguir, veremos como os serviços observados conseguem equacionar
essas contradições dos modelos de assistência e buscar suas mudanças em
direção a um modelo humanizado. Listaremos abaixo os principais padrões
encontrados na observação dos serviços.
166
Primeiro, há uma distância variável, já referida, entre intenção e gesto
no contexto das mudanças propostas. Há uma tensão no modelo de assistência,
também nesses serviços, em que interagem as forças da mudança e a tendência
à permanência, à retomada do modelo de assistência tradicional, ou o que
chamamos “parto típico”. Essa permanência se expressa nos diversos detalhes,
desde a manutenção dos procedimentos de rotina às crenças que os justificam,
na formação dos recursos humanos e nos termos utilizados, como
descreveremos abaixo.
Nos dois serviços, a crença na necessidade da estipulação de um
período de tempo específico para cada etapa do trabalho de parto persiste na
utilização constante de mecanismos para acelerar o parto, como vimos, através
do uso de ocitócito, da episiotomia e, no serviço 1, do Kristeller. Essa crença
é fortemente apoiada no argumento da necessidade da desocupar rapidamente
os leitos de forma a melhor atender a demanda.
Segundo, as mudanças que ocorrem, menos ou mais limitadas, muitas
vezes ficam obscurecidas para as mulheres frente à gravidade do problema do
acesso; ao que nos parece, acessar o leito é quase o desafio em si, quando nos
referimos a “dar à luz”. Pode-se dizer que se há um direito que é percebido
como tal e sua negação percebida como injusta, este é o direito de acesso ao
leito obstétrico - ainda que esse acesso possa ser apenas uma tradução, a única
disponível entre outras possíveis, da necessidade concreta de “parir com
segurança”.
Terceiro, a mudança mais notável parece ser aquela na relação pessoal.
Ainda que o tratamento infantilizador das mulheres como “mãezinha” persista,
há um certo acolhimento e “reconhecimento” da usuária pela instituição, que
dirige a palavra a ela e dialoga, conversa, preocupa-se com seu bem-estar e às
vezes a chama pelo nome. Isso foi observado nos dois serviços, embora com
167
menos freqüência no serviço 2, apesar de ali haver um programa de pré-natal
personalizado que estimula o residente a ter uma relação com a parturiente
desde o início da gravidez. Pareceu-nos que a demanda que acompanhamos
foi principalmente de parturientes “desvinculadas” do serviço, que são a
maioria das que ali procuram assistência.
Essa conduta de acolhimento e reconhecimento é muito valorizada
pelas usuárias com quem conversamos. Menos do que o conteúdo da
assistência e seus procedimentos, a mudança mais notável parece-nos ser na
qualidade da relação. É uma mudança sobretudo na forma de comunicação
entre provedor e usuária, que inclui até uma certa forma de manipulação
amigável33 entre os envolvidos, como nesta cena típica do serviço 1:
“Em algum momento depois da sutura, Fabíola puxou as pernas
de Amanda para baixo, cobriu-a com um lençol e depois pôs seus pés
sobre um carrinho auxiliar de metal que estava vazio. Logo depois da
sutura e das orientações a respeito do corte, Fabíola ainda fez alguns
comentários diferenciando o tipo de parto que se fazia lá, permitindo
acompanhantes, conversando com a mulher, sem esticar ou bater no
bebê, pondo o bebê na barriga da mãe após o parto, pondo pra
amamentar nas primeiras horas, mantendo a mulher no mesmo quarto
até ganhar o bebê, utilizando enfermeiras em vez de médicos, evitando
ao máximo o parto cesáreo, como sendo uma inovação chamada de
parto humanizado.”
Quarto, de fato, há uma formalização e uma renegociação da troca de
papéis dos sujeitos que realizam os procedimentos, no caso do serviço 1.
33
Aqui nos chama a atenção que a obstetriz que fez o parto teve o cuidado de fechar as pernas da
mulher e cobri-las, diferentemente de vários dos partos que observamos, em que as mulheres
ficaram pedindo para ter as pernas fechadas; em outras cenas, não cabia a quem “faz o parto”
acomodar a mulher depois dos procedimentos, sobretudo no caso dos médicos.
168
Aqui temos sem dúvida uma importante mudança, a da substituição do médico
pela enfermeira obstetriz, em procedimentos antes exclusivos dos primeiros.
Não há essa mudança no serviço 2, que conserva a divisão de trabalho
tradicional.
Quinto, temos a entrada de novos sujeitos em cena do parto: no serviço
2, temos a entrada do marido ou acompanhante; no serviço 1 temos, além
deste personagem, a doula. Essa é também uma mudança muito relevante,
ainda que encontre resistências. Como já vimos, essa parece uma mudança
que veio para ficar.
Sexto, há uma transferência de competências sem necessariamente uma
mudança de modelo; é que o modelo em si, em termos dos procedimentos de
rotina, em sua tendência à permanência, pode aproximar-se, no manejo da
parturiente, daquilo que se tem chamado de “parto típico” no sentido de
processamento tecnocrático, em oposição ao “parto normal”
fisiológico,
poupado de intervenções desnecessárias. No serviço 1, na prática, o que
vemos de maior diferença no modelo, como mencionamos, é mais de quem
“processa” ou orienta o processamento da mulher por aquele conjunto de
procedimentos, que podem ou não, em termos gerais, ser os mesmos do parto
típico. Pode-se dizer que apesar da condução do parto ser feita por mulheres
obstetrizes, não há necessariamente uma substituição do modelo médico e
masculino (Rothman, 1992) expresso no parto típico.
Neste serviço, vemos uma distinção importante entre o parto natural
(sem o conjunto de intervenções do parto típico no Brasil) e o parto normal
(mais próximo do parto típico, com sua cascata de intervenções). O que
observamos nos plantões foi que a episiotomia surgiu como o marcador mais
importante na diferenciação entre uma forma e outra de assistência; essa
impressão nos foi confirmada por informantes posteriormente.
169
No serviço 2, a prescrição para o processamento busca implementar
modificações que possam ser executadas pelos médicos mesmo, já que estes
são os protagonistas. Os procedimentos em si, como referimos sobre a
observação dos plantões, na prática tendem a reproduzir na maioria das vezes
o modelo típico, diferindo pouco do convencional. Outra característica desse
serviço foi a pequena mobilidade das pacientes, motivada em parte pelo uso
rotineiro do soro, muitas vezes acrescido da bomba de infusão, que imobiliza
ainda mais a paciente que o soro preso no seu suporte, pois este pode ser
levado – ainda que com alguma dificuldade – ao contrário da bomba. Nas
palavras do diretor daquele serviço:
Eu digo para o residente: por que não bota logo uma corrente com
uma bola de ferro, se é para prender a paciente no leito?
Esse padrão pareceu variar entre profissionais, havendo aqueles – na
impressão obtida na observação dos plantões, ainda uma minoria – bastante
comprometidos com o novo modelo e que buscam implementá-lo. Esses
profissionais desenvolvem marcadores próprios de seu estilo de assistência,
como nos conta esta médica da sua compreensão do modelo humanizado:
Ela falou que existe uma diferença entre o real e o ideal e se
propôs a falar do que ela entende como ideal. Falou que o ideal é fazer o
parto estando só ela e uma auxiliar na sala, com a porta fechada, sem
barulho, com pouca luz. Falou que o ideal é não usar soro ou ocitocina e
nem pegar a veia da mulher. Enfatizou a importância da presença do
acompanhante, que pode deixar a mulher mais tranqüila e relaxada.
Falou sobre a dor e sobre a necessidade de saber respeitar a dor da
mulher. (...) Falou da importância de manter o silêncio durante o parto,
do ambiente não estar excessivamente iluminado, de não cortar o cordão
imediatamente, de colocar o bebê sobre a barriga da mãe e esperar o
170
cordão parar de pulsar, falou sobre simular com as mãos nas costas do
bebê o movimento do útero e procurar não fazer do parto uma mudança
brusca de ambiente para o bebê, falou da importância de que a mãe fale
com o bebê nesse momento, porque a voz da mãe é um som que ele
conhece já desde que estava na barriga. Falou que existem problemas
com os pediatras nesse sentido, de que eles queiram logo entrar e fazer a
“reanimação”, o uso do credê . Mas que, geralmente, quando eles vêem
a porta fechada, eles já sabem que está sendo feito um parto
humanizado. (Depoimento em plantão, serviço 2)
Em um serviço onde os dois modelos convivem, menos ou mais
harmoniosamente, a criação de convenções como a porta fechada pode ajudar
a demarcação de espaços entre um e outro modelo, como no caso acima, e
pelo menos afirmar a autoridade do modelo alternativo, ainda que este não
conte com a adesão da maioria.
No que diz respeito ao processamento das pacientes nas duas
instituições, podemos dividir esses procedimentos efetuados em duas classes:
Primeiro, a entrada formal da paciente, via a sua passagem pelo setor de
admissão, a constatação do trabalho de parto (caracterizado pela dilatação de
três ou mais centímetros; presença, intensidade e ritmo das contrações
uterinas; ou a presença de patologia) pelos critérios do médico plantonista.
Parece haver uma marcada diferença de estilo e eventuais conflitos entre os
profissionais nesse sentido, mas busca-se evitar a tendência à internação
precoce e suas conseqüências34, de forma mais acentuada, no serviço 1.
34
Vimos que, entre os serviços de uma região que referem pacientes entre si, para além de
idiossincrasias do tipo não aceitar pacientes à noite, há diferentes recomendações para justificar ou
não a internação; por um lado, há o risco da chamada admissão precoce, claramente associada a
mais intervenção; por outro, há também o fato de que é freqüente que o stress da institucionalização
“trave” a evolução do parto, com a parada das contrações. Para tornar o tema do acesso mais
171
Pode-se dizer que a chamada internação precoce faz parte do que se
poderia chamar um “parto típico” no Brasil, pelo que se pode depreender, por
exemplo, das informações dadas pelas maternidades em geral sobre quando a
gestante deve ir ao hospital. Esta orientação reflete a crença médica
dominante, que afirma que a “síndrome do trabalho de parto” caracteriza-se
por duas ou três contrações em dez minutos, dilatação cervical superior a dois
centímetros e eliminação do tampão mucoso (FEBRASGO, 2000:234).
A partir do diagnóstico do trabalho de parto, ou de “adequado para
internação”, viria a chamada preparação para o parto (procedimentos de
limpeza), que “marcam” a aceitação da mulher na instituição. Durante a
observação vimos que aqueles procedimentos marcadores da admissão no
parto típico, a lavagem intestinal (enema) e da raspagem (tricotomia) dos
pêlos pubianos, praticamente foram abandonados nesses dois serviços. Essa, a
nosso ver, é uma mudança importante, especialmente porque esses dois
procedimentos, de conteúdo meramente ritual, de des-poluição (Davis-Floyd,
1992), incômodos e eventualmente arriscados, são defendidos como rotina
pelas autoridades médicas brasileiras ainda hoje. Como vemos no Tratado de
Obstetrícia da FEBRASGO, no capítulo sobre assistência ao parto normal, em
sua recente edição:
Muito se discutiu sobre a real necessidade destes dois
procedimentos sob alegação de que os pêlos não contaminam e que o
parto ocorre inter faeces et urinae. No meu modo de ver, a discussão
cabe, mas não vale a pena. Apesar de dispensáveis, em tese, os dois
procedimentos tornam a assistência ao parto mais limpa e menos malcomplexo, há um problema conceitual sobre como distinguir o chamado período latente do trabalho
de parto e sua fase ativa (quando a paciente deveria ser internada), pois “O diagnóstico do início do
trabalho de parto recebeu relativamente pouca atenção em termos de pesquisa, e várias questões
práticas importantes permanecem sem resposta” (Enkin, 1995:199)
172
cheirosa, de modo que, se mais não fosse, somente por isso já estariam
indicados. (FEBRASGO, 2000:234).
Dessa forma, os procedimentos de inclusão nos serviços estudados estão
centrados naqueles dos critérios de acesso.
Uma vez que a mulher está internada, com freqüência, nos dois
serviços, seguem-se os procedimentos de controle dos tempos do parto e sua
aceleração. Inicia-se pela aceleração do período de dilatação por meio da
infusão de ocitocina (informalmente chamada “Pitô”, no serviço 1, onde
vimos seu uso freqüente; no serviço 2, o uso da ocitocina de rotina foi
justificado pela necessidade da rotatividade dos leitos. Vimos ainda a
recomendação de fazer força antes de completada a dilatação. Observamos
também com freqüência a aceleração do período expulsivo, através do uso da
manobra de Kristeller (no serviço 1) e do uso da episiotomia (mais acentuado
no serviço 2, onde foi feita em quase todos os partos observados). Veremos
esses procedimentos com mais detalhes a seguir.
4.2. Assistência e percepção de direitos
Vimos que as propostas de mudança da assistência ao parto com vistas à
sua humanização nascem de uma reflexão coletiva que considera, entre outras
questões, a inadequação dessa forma de cuidado do ponto de vista das relações
entre as pessoas, e entre as pessoas e as instituições. Tais relações seriam
pouco amigáveis, mediadas por uma comunicação precária e impositiva, na
qual a usuária teria poucas oportunidades, se alguma, de estar informada ou
ser participante de suas escolhas, quando estas eram oferecidas. Essa
assistência, entre outros problemas, não apenas não fortaleceria a mulher para
enfrentar seu novo e difícil papel de mãe, como poderia mesmo comprometer
173
e enfraquecer a parturiente, violando seus direitos, sejam estes direitos
formalmente constituídos ou não.
Mas em que medida a assistência ao ciclo gravídico-puerperal em geral,
e ao parto em especial, poderia contribuir para promover e ampliar os direitos
de usuárias? Essa pergunta pressupõe, antes de mais nada, que usuárias e suas
famílias tenham alguma noção desses direitos, que as faça perceber quando
esse é respeitado ou desrespeitado; sem essa noção, essa pergunta seria
supérflua. O tema de como os direitos são percebidos, violados, explicitados e
renegociados é, sem dúvida, um componente importante do discurso de
fortalecimento que a humanização da assistência nos coloca.
Esse sentimento ou consciência de ter direitos tem sido utilizado por
várias áreas do conhecimento para compreender os determinantes das ações de
agenciamento individual e da busca de resolução para problemas concretos
que envolvem conflitos e disputas.
Essa “percepção de ter direitos”, de
“sentir-se autorizada a”, de ter “consciência da autoridade” (IRRRAG, 1996)
ou “sense of entitlement”35, a percepção de ser titular de um direito, formal ou
não, é um pressuposto para compreender uma situação concreta como injusta,
como uma violação ou uma negação de um direito. Aqueles que não se
percebem como titulares de um direito, dificilmente podem se sentir
merecedores de sua proteção ou promoção ou mesmo achar injusto que esse
direito lhe seja negado.
35
O termo “entitlement” tem sido usado para se referir a uma “consciência de autoridade” sobre as
próprias decisões, que vai além daquilo definido como adequado por uma determinada cultura
(Petchesky e Judd, 1998); é referido também à defesa de uma inalienável esfera de autonomia e
competência própria a cada indivíduo (person’s agency), livre de ameaças e constrangimentos,
dentro dos limites impostos pelos direitos dos outros – para além das definições das ações e
condições a que as pessoas devam ter acesso (Anand, 1994; Ayres, 1999). Esse termo difícil de
traduzir para o português, que tem origem nos Direitos Humanos, tem tido várias traduções
tentativas, entre elas as citadas acima (IRRRAG, 1998).
174
Ainda que o conjunto de “reivindicações de justiça” expresso nos
documentos já referidos que pleiteiam os direitos das mulheres parturientes36,
tal como formulado, possa não ser conhecido das pessoas em geral, seu
conteúdo aparece em muitas falas dos vários sujeitos e das mais variadas
formas e intensidades.
Essas expressões de que há algo errado, algo ainda sem nome, mas que
mobiliza, racional ou emocionalmente, os sujeitos envolvidos serão
determinantes da busca de alternativas na assistência. Esses diferentes sujeitos
buscarão dar nomes e sentidos para o que vislumbram como alternativa futura
ao presente incômodo.
Este sentimento de injustiça encontra eco em um conjunto de
instrumentos internacionais de direitos humanos, e também na legislação
nacional. Entre os instrumentos internacionais que se aplicam às situações
que descrevemos e que listaremos abaixo, estão a própria Declaração
Universal dos Direitos Humanos, a Convenção pela Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra as Mulheres (Convenção da Mulher, CM), o
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PDCP), a Convenção dos
Direitos da Criança (CDC) e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, PDSEC, (WHO, 1998), além da Convenção contra a
Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (CCT), e a
Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a
Mulher (CLADEM, 98). Ainda entre os documentos internacionais, temos as
Declarações das Conferências das Nações Unidas, sobre Direitos Humanos
36
Como vimos, mais que alguma carta formal de direitos das parturientes, temos referidos, no caso,
os documentos técnicos que dizem respeito a direitos em geral e a uma boa assistência em especial,
como os já citados da OMS ou do Ministério da Saúde, ou ainda aqueles das Conferências de
Viena, Cairo e Pequim. Os direitos das parturientes aparecem formalizados em alguns documentos,
como a Carta dos Direitos da Parturiente (AIMS), mas que não são os referidos pelos informantes
175
(Viena, 1993), População e Desenvolvimento (Cairo, 1994) e Mulher e
Desenvolvimento (Beijing, 1995).
Para as mulheres, uma expressão privilegiada desses direitos humanos
se configuram, como vimos, naquilo que veio a se chamar direitos sexuais e
reprodutivos, expressos nas declarações de Viena, Cairo e Pequim,
impulsionados em grande medida, pelo movimento de mulheres em sua luta
por direitos nas esferas pública e privada (Correa e Petchesky, 1994).
Estes direitos ao exercício de uma vida sexual e reprodutiva saudável,
responsável, livre e prazerosa, propõem a integralidade, e a quebra da
hierarquia, entre os chamados os direitos civis e políticos (de primeira
geração) à eliminação da injustiça percebida, como citamos acima, como a
violação dos direitos à integridade corporal, à condição de pessoa, ao
tratamento desumano, nos serviços de saúde, e direitos sociais e econômicos,
como o acesso a serviços (de segunda geração) (Dora, 1998).
4.2.1. O direito à eqüidade e ao acesso ao leito
O direito ao acesso ao leito obstétrico para todas as parturiente está
inscrito na Constituição Brasileira e na legislação do Sistema Único de Saúde,
que definem saúde como direito de todos e dever do Estado. Está também
inscrito nos instrumentos de direitos humanos, entre os direitos relacionados à
vida, à liberdade e à segurança da pessoa; os relacionados ao cuidado com a
saúde e aos benefícios do progresso da ciência incluindo o direito à
informação e educação em saúde, e os relacionados à eqüidade e à nãodiscriminação.
Como já vimos, o acesso ao leito é um problema crônico e complexo,
em especial na cidade de São Paulo, onde há uma grande distorção na
distribuição de leitos entre as regiões. Um dos problemas relacionados ao
176
acesso que pudemos identificar na observação foi o de que, embora haja de
fato uma superlotação periódica dos leitos, muitas vezes esta superlotação
parece ser argumentada como recurso para interromper a entrada de pacientes
no serviço, como um mecanismo de regulação da carga de trabalho sobre os
profissionais.
Nos vários plantões observados no serviço 1 no segundo semestre de
2000, viu-se que diante da fila para a recepção havia um cartaz com os
dizeres: "A todas as usuárias. A maternidade não tem vagas. Está lotada"
O fato de estar assinado e datado sempre de alguns dias antes sugeriunos que o aviso ficava ali afixado por dias, independentemente da
disponibilidade de leitos, que podia flutuar em apenas algumas horas37. Em
um dos plantões, intrigada, a observadora perguntou se de fato a maternidade
estava lotada, o que foi confirmado pelo plantonista; então esta resolveu
contar os leitos e viu que sim, havia leitos disponíveis, tanto no pré-parto e
puerpério quanto na UTI neonatal, para além do limite de reserva de leitos,
como relatado em um diário de plantão:
Retornando ao quarto andar, encontrei o Dr. Lauro no corredor.
Apresentei-me a ele e pedi para ele por favor me explicar o motivo das
transferências, pois lhe disse que não estava entendendo. Ele disse que já
havia providenciado a transferência de quatro mães naquela manhã
para o Hospital Stella Maris, incluindo aquelas duas que tinham
acabado de descer pois não havia vagas no berçário e os hospitais não
aceitam transferências à noite, então era melhor tentar garanti-las
durante o dia. Disse-me que tinha acabado de internar uma mulher com
37
No planejamento dos leitos hospitalares, há uma reserva de leitos que devem estar disponíveis
para eventuais transferências, porém como confirmado com a direção do serviço, neste caso se
evidenciou uma diferença na disponibilidade de leitos, na dependência das características dos
plantonistas e de seus critérios de internação.
177
4 cm de dilatação e mecônio, pois os hospitais não aceitam transferência
de mulheres com mecônio. Disse-lhe então que tinha acabado de ver que
tinha uma vaga na UTI do berçário. Ele respondeu: "É mesmo?”. Em
seguida, disse que tinha ordens expressas da chefe do plantão de
transferir todas as parturientes, guardando as vagas apenas para as
mulheres em expulsivo ou as 'patológicas'. Em seguida, disse-me que
também transfere as patológicas "porque aqui não é um berçário de alto
risco”. [...]
Uma das questões que nos colocamos foi a da agilidade da comunicação
da disponibilidade de leitos entre os vários profissionais envolvidos na
assistência, desde a “porta” até as salas de parto. Como descrito em um
plantão:
[...]Fui até a ala do puerpério e de lá pra enfermaria, dei uma
olhada no quadro branco. Perguntei a uma das auxiliares que estava ali
se o quadro indicava que não havia vagas. Ela me respondeu que era
isso mesmo. Em frente à enfermaria havia uma porta entreaberta. Dava
para ver uma cama arrumada e desocupada de onde eu estava. Comentei
sobre essa cama com a auxiliar e ela me disse, "É mesmo. Acabaram de
dar algumas altas”. Perguntei quantas mulheres receberam altas,
quantas vagas havia e ela me disse quatro. Novamente, a primeira
resposta dela foi que não havia vagas.
Serviço 1. Caderno de campo de plantão, agosto
Conversando com os profissionais, estes sugeriram que muitas vezes a
porta fica fechada como estratégia preventiva de contenção da demanda,
sendo que apenas em certas circunstâncias os casos de partos patológicos ou
em período expulsivo eram recebidos. Sugeriram que essa medida não se
178
devia ao fato de haver superlotação, mas para preveni-la, pois isso poderia
levar a um comprometimento da qualidade do seu trabalho.
Como referido anteriormente, o trabalho das doulas no serviço 1,
principalmente aquelas originárias do Movimento de Saúde da Zona Leste,
incluía o “advocacy” pelo internamento, pela “inclusão” das pacientes no
serviço, interagindo e de certa forma tentando expandir os limites dos
parâmetros administrativos ou clínicos instituídos.
No caso do serviço 2, temos o manejo da porta também referida à
clássica “limpeza da área”. Como na cena abaixo:
Lídia comentava para Paula e Eduardo (residente): “Deixei a
porta limpa para vocês, mandei as que estavam ‘no bico do corvo’ para
outro hospital e não para casa, para que elas não voltassem.” Alguém
na sala comentou que aquela era a hora que dava desespero, “porque
você vê todo mundo indo embora e você fica sabendo que vai ficar
sozinho e tem que se virar com o que aparece” Caderno de Campo,
Serviço 2, novembro.
Na mesma direção, em uma recente etnografia de maternidades no
Nordeste do Brasil (Alves, Silva e cols, 2000), os autores descrevem duas
formas de negação de atendimento: a primeira claramente associada à falta de
estrutura material ou pessoal do serviço e a segunda, do próprio profissional,
“por negligência”. Entre as situações referidas como negligência estão a não
assistência pelo profissional quando este está presente no plantão, a delegação
de procedimentos a estudantes e outros profissionais não habilitados
(incluindo cesáreas) e a transferência da responsabilidade na assistência para
outros serviços.
É possível sugerir que há uma linha tênue separando, por um lado, a
negação da assistência e a contenção da demanda por falta de condições do
179
serviço (de pessoal ou de recursos materiais) e, por outro lado, o exercício de
uma cultura institucional de pouco cuidado com o direito ao acesso, que pode
vir a comprometer qualquer proposta de assistência, pois, pode ter como
conseqüência a peregrinação por leitos.
No caso do Município de São Paulo, conta-se com centrais de vagas que
referem a paciente para um outro serviço que disponha de um leito. Esse
recurso tem se mostrado útil sobretudo nos casos de pacientes de baixo e
médio risco, para as quais há leitos disponíveis, porém continua o grave
estrangulamento de vagas nos casos de alto-risco.
Como descrito por um profissional da área:
É porque falta a questão anterior que é de fato o mecanismo de
referência e contra referência, entendeu? E um mecanismo de
regionalização, e um mecanismo que faça com que a gente crie leitos, de
várias formas, lá onde são necessários. A gente começou com essa
historia de fazer uma sensibilização de pré-natal, uma regionalização de
Postos em relação ao Hospital, mas a proposta dançou porque na hora
que as mulheres que faziam o pré-natal nos Postos, não tinham vaga no
Hospital. Elas chegavam lá e o Hospital estava cheio de mulheres que
tinham vindo de outros mil lugares, de não sei onde. É um problema
grande. (Depoimento no Grupo de Trabalho, Seminário Violência e
Saúde, SES, 2000)
Para pensar o problema do acesso ao leito para dar à luz no Brasil, é
importante lembrar que, em termos desse direito, a sociedade brasileira se
divide entre os cerca de 30% da população que tem algum tipo de convênio ou
seguro privado – que garante algum arranjo, mais simples ou mais sofisticado,
menos ou mais seguro, à assistência médica hospitalar – e as demais pessoas,
que dependem do Sistema Único de Saúde.
A noção de direitos acima
180
discutida é ainda pouco palpável para as usuárias dos serviços de saúde em
geral, porém menos palpável ainda para aquelas dependentes do SUS, pois,
para as que pagam uma alternativa privada, esta inclui um contrato escrito, um
conjunto de serviços de referência e, em muitos deles, ainda se garante o
direito à escolha do profissional que atenderá o parto.
Essa forma de contrato permite uma variedade de arranjos da
assistência, como referido por nossos informantes. Esses incluem muitas
vezes, durante o pré-natal, o convencimento da paciente pelo médico (caso ela
já não esteja convencida) da superioridade da cesárea; a sugestão por parte dos
médicos da necessidade de cesárea ainda no pré-natal, ou da “transformação”
de um parto vaginal em uma cesárea no decorrer do trabalho de parto, como já
descrito.
Queremos aqui chamar a atenção de que não partilhamos a opinião de
que as mulheres brasileiras estão em sua maioria aderidas à noção de que a
cesárea seja uma alternativa superior. Vários estudos mostram (Hopkins,
1998; Carranza, 2000; Hotimsky e cols. 2001) que a maioria das mulheres, nas
várias camadas sociais, preferem o parto vaginal e buscam profissionais que se
comprometam com essa perspectiva, mas não conseguem necessariamente
viabilizar o seu desejo – em geral, não a seu pedido, mas por indicação do
profissional, menos ou mais apropriada, no decorrer do parto. Alguns dos
convênios mais baratos não dão à paciente a prerrogativa de escolher o
médico, devendo esta ser atendida pelo profissional de plantão, e alguns ainda
sequer dão o direito à escolha do hospital, estando a paciente dependente da
disponibilidade de leitos.
Essas são algumas das estratégias para equacionar o problema do acesso
na rede privada e otimizar o uso da rede instalada e dos recursos humanos. De
acordo com nossos informantes, mesmo entre os arranjos mais caros, pode
181
acontecer de uma mulher procurar o serviço escolhido em trabalho de parto
espontâneo e não encontrar leito pois ali estão todos ocupados com as cesáreas
agendadas. Todos esses fatores influenciam a escolha pela cesárea agendada
como estratégia de garantir a internação, seja como única alternativa de
garantir o leito diante de eventual superlotação, seja como estratégia para ser
atendida por um profissional conhecido,
de preferência aquele que
acompanhou o pré-natal, e num serviço de sua escolha. Segundo um de nossos
informantes, gineco-obstetra,
“A paciente tem dois medos: primeiro, a dor, e segundo, não ser
atendida pelo médico do pré-natal. Se ela não tiver ele lá, com quem ela
tem um vínculo, ela se sente muito abandonada emocionalmente.”
Podemos dizer que em nosso trabalho de campo, o direito ao acesso a
um leito para o parto é o direito mais claramente reconhecido e cuja negação
mais enfaticamente mobiliza sentimentos de injustiça, sobretudo quando
envolve a peregrinação pelo leito para o parto durante o trabalho de parto.
Essa peregrinação, tão velha em nossa cultura como a imagem de Maria mãe
de Jesus em busca de sua manjedoura, continua uma realidade tão dura quanto
comum, talvez por isso levando a um reconhecimento mais imediato e mais
óbvio pelas pessoas envolvidas.
Entre aquelas que dependem do SUS, ser admitida no serviço quase
equivale a resolver o problema em si, pois significa estar incluída em algum
sistema formal de assistência. Mais que o tipo ou a qualidade da assistência, o
problema muitas vezes parece reduzido a ter alguma assistência, qualquer
assistência. Em contexto de “inclusão excludente”, o acesso à internação
hospitalar para o parto parece funcionar como um “ritual de inclusão”. Como
uma metáfora, a internação permite à mulher dar à luz aquela pessoa que vai
nascer em um lugar socialmente sancionado, ritualizando sua inclusão
182
enquanto novo cidadão no seu contexto específico. Em grande medida, o tipo
de assistência ao parto instaura e explicita o lugar social tanto da mãe quanto
do filho. A primeira etapa dessa ritualização, aparentemente a mais crucial, é o
acesso ao leito.
Essa etapa pode eventualmente incluir vários aspectos e passos, como a
dificuldade ou facilidade de encontrar o leito, o tratamento recebido dos
profissionais; as barreiras institucionais para ser incluída-internada, e sua
superação: o reconhecimento do “trabalho de parto verdadeiro” em oposição
ao “falso trabalho de parto”; a disponibilidade de leitos; a brevidade da
peregrinação, se esta ocorre; e por que não o direito ao acompanhante, como
as mulheres de classe média .
Apesar da hospitalização do parto nas áreas urbanas no Brasil estar
perto de 100%, o acesso ao leito pode implicar, antes da internação de fato, na
volta para casa ou na referência a outro serviço.
Como nesta cena observada num plantão:
Edson estava indignado e, ao mesmo tempo, se sentindo
desamparado - não sabia o que fazer àquela altura [tinham ido a um
hospital, diagnosticado o trabalho de parto e encaminhados a outro, por
falta de vagas; este segundo mandou para casa; eles voltam ao primeiro,
que de novo não interna e refere ao segundo]. Perguntou como ele e sua
mulher poderiam assinar um termo de responsabilidade pela saúde de
seu filho? [proposta pelo médico, caso ele insistisse na internação da
mulher] Ele não faria isso de jeito nenhum! Ele não era médico, não
tinha como cuidar do seu bebê! Comentou comigo que era um
trabalhador, pagava impostos, agora que precisava utilizar um serviço
não encontrava vaga! Um médico diz que sua esposa está com 4 dedos
de dilatação, o outro diz que não, que ela está com 2 e manda ela para
183
casa! Alguém tinha que se responsabilizar por arrumar vaga para ela.
Ele dizia que não sairia mais dali. Caderno de Campo, serviço 1, agosto
de 2000
Na observação de campo, a questão do acesso ao leito mostrou pelo
menos três questões complicadoras. A primeira questão é que há uma
considerável variabilidade dos critérios de internamento entre as instituições e
entre os profissionais. Como vimos, nem sequer há um consenso clínico sobre
o que é o trabalho de parto latente (que aparece em alguns textos como “falso
trabalho de parto”) e a fase ativa. Mesmo com relação aos subjetivos
parâmetros clínicos, no que se refere a considerar que a mulher está ou não em
trabalho de parto ativo, há diferenças entre o que seria considerado adequado
em termos de dilatação do colo, e o ritmo das contrações. Ou seja, uns
serviços internam mais precocemente, outros não, o que muitas vezes significa
a escolha entre mais intervenções, quando da internação precoce, ou mais
peregrinação por parte da paciente, quando da internação mais tardia.
Para além dos parâmetros daquela instituição, existe ainda uma
variabilidade entre os plantonistas; nossos informantes contam que isso muitas
vezes define a diferença entre um plantão “calmo” e um “cheio”. Como nos
conta um médico baseado na evidência:
O problema é que internam precocemente. No meu plantão era
tranqüilo, porque eu só internava com mais de quatro centímetros e uma
dinâmica boa, consistente, porque o pessoal interna muito pródromo,
trabalho de parto latente, porque não é fácil distinguir uma coisa da
outra. Aí o que dá? Tem que induzir, tem que acelerar, tem muita
cesárea, porque internou, tem que nascer. Aí tem que atropelar a
parturiente. (Paulo Murakami)
184
A segunda questão é que nem todo leito obstétrico que está vago está
disponível. Aí temos que considerar, como vimos, a disponibilidade dos
respectivos leitos perinatais e os de puerpério; sem a disponibilidade destes, a
internação não se efetua. Isso é especialmente importante para as chamadas
gestações “de risco”, que dependem de leitos especializados, de UTI neonatal.
A terceira questão é que a carência de leitos, em especial no SUS (mais
que a defesa mesmo do direito ao seu acesso), parece servir também para
justificar distorções na assistência, como a aceleração dos partos de rotina,
supostamente para permitir uma maior rotatividade de leitos, desconsiderando
o ritmo fisiológico do parto e exigindo a imposição de uma noção
inapropriada
de produtividade. Levado a um extremo, essa mesma
argumentação pode levar à defesa da cesárea como mais inclusiva, pois
permitiria o acesso programado e disciplinado de um maior número de
pacientes (OB-GYN Latina), livres da imprevisibilidade pré-tecnológica do
parto espontâneo.
4.2.2. O direito à segurança e à integridade corporal ou como a
sexualidade tensiona o modelo de assistência.
O direito à segurança e à integridade corporal está inscrito nos
instrumentos de direitos humanos, entre os direitos relacionados à vida, à
liberdade e à segurança da pessoa; os direitos relacionados ao cuidado com a
saúde e aos benefícios do progresso da ciência incluindo o direito à
informação e educação em saúde, e os direitos relacionados à eqüidade e à
não-discriminação. Aqui podemos acrescentar o direito do pai ou
acompanhante à sua presença no momento do parto, com base na já referida
lei estadual nº 10.241, assim como nos instrumentos internacionais que
afirmam os direitos humanos relacionados à formação da família e à vida
185
familiar (WHO, 1998:3.2), assim como aos direitos sexuais, o direito à
vivência da sexualidade como voluntária, segura e prazerosa, nas declarações
de Viena, Cairo e Beijing.
Ao nosso ver, a discussão sobre o direito à integridade corporal pode ser
extremamente útil na revisão das práticas obstétricas, sobretudo no que diz
respeito aos procedimentos invasivos. Uma vez que os procedimentos do
chamado parto típico são aceitos pelo senso comum como sofrimentos
necessários, tanto aqueles que os infligem quanto aquelas que os sofrem
tendem a percebê-los como um mal necessário. O sentimento de que esse
sofrimento é injusto, seja por parte de quem sofre a injustiça, seja por quem a
pratica, desenvolve-se com mais vigor a partir do reconhecimento de que, na
grande maioria das vezes, esse sofrimento é desnecessário e poderia ser
prevenido, como veremos.
Se pensarmos em termos do direito humano de estar livre de
tratamentos cruéis, humilhantes e degradantes, podemos tomar muitos
exemplos na assistência ao parto típico, em especial em contextos em que os
direitos dos pacientes, em geral, e das mulheres, em particular, são pouco
reconhecidos ou respeitados. Tomemos como exemplo a recorrência, no
material de campo, do sofrimento das mulheres durante a episiorrafia e
contrastemos essa realidade com o que nos conta um diretor de serviço sobre
sua formação. Em seu depoimento, esse diretor de maternidade contou como
aprendeu a negar a expressão da dor pela paciente e lidar com as suas queixas
quando da episiorrafia, dado que os profissionais reconhecem a ineficiência da
anestesia:
Na residência eu aprendi assim: a gente, quando faz a
episiorrafia, pega na transição cutâneo-mucosa (parte da vulva cortada
entre a pele e a entrada da vagina) da paciente e ela grita de dor, porque
186
ali dói mesmo, aí você diz pra ela que você está só pegando, é que dói
mesmo. Aí, quando você sutura, como dói muito e ela vai reclamar
muito, você diz “Mãe, eu estou só pegando, não estou costurando nada”.
Quando termina a sutura, aí você diz que acabou, uns ainda têm a cara
de pau de dizer: “Viu? Nem doeu” [...] Paulo Murakami
Depois de observar a cena se repetir tantas vezes, concluímos que a
anestesia para a episiorrafia é inadequada – ou a técnica em si, ou a sua
execução.
Parece ser aflitivo também para o profissional usar o recurso, ineficaz,
na tentativa de fazê-lo funcionar, sem resultados, como nesta cena entre
residentes no serviço 2:
Depois do parto, Adriana, a residente mais graduada, entra na
cena para ajudar na sutura da episiotomia. Como a mãe se queixasse da
dor, a outra residente se justificava, peguntando “A anestesia não pega,
né? Era pra pegar, eu já dei um monte de anestesia”
Se considerarmos que a episiotomia tem indicação de ser usada, de
acordo com as evidências científicas, em cerca de 10 a 15% dos casos e é
praticada em perto de 100% dos partos típicos, podemos imaginar o
desperdício daquilo que é quantificável, como litros de sangue, dias de
incapacidade, prejuízos na amamentação, material cirúrgico ou simplesmente
dinheiro público, nas milhões de episiotomias inúteis realizadas anualmente.
Além disso, temos o imponderável sofrimento físico e emocional das
mulheres.
O script citado acima, esse diálogo no qual a mulher diz para o
profissional que está sentindo muita dor com o que está sendo feito a ela e o
profissional nega à mulher que ela sofre, foi observado, com variações, tanto
com médicos como com enfermeiras, nos dois serviços:
187
[...] “Num momento em que Luciana introduziu um embrulho de
gaze energicamente dentro da vagina de Ana Luisa, essa soltou um 'ai!' e
perguntou o que Luciana havia colocado dentro dela. A resposta foi que
não tinha colocado nada dentro dela e que o que estava sentindo era sua
pele e tecidos sendo repuxados, conforme estava sendo costurada. A
sogra confirmou essa afirmação.” Diário de Campo, serviço 1, setembro
Acreditamos que esse tipo de diálogo de negação da dor seja uma
maneira dos profissionais, médicos e enfermeiras, lidarem com seu próprio
mal-estar por provocar a dor da outra pessoa – certamente uma forma
inadequada e ineficiente, mas aquela familiar. Não acreditamos que o
profissional goste dessa situação, e nos parece ser esta uma maneira de lidar
com sua aflição por provocar dor, com sua ineficiência em sedá-la. Até os
familiares, no intuito de ajudar ou de se mostrar leais à instituição, podem
reproduzir esse comportamento.
Vemos também que a negação das sensações físicas da mulher no parto
é uma das marcas do já referido parto tecnocrático, como mostrado no clássico
estudo de Brigitte Jordan sobre o conhecimento autorizado em obstetrícia, que
mostra como o que a mulher descreve da evolução do seu parto, como a
vontade de fazer força ou a dor da contração, pode ser totalmente negado, para
que a evolução do parto possa se adequar, possa caber, no modelo adotado
pelo serviço (Jordan, 1998: 57).
Mas, mesmo sem o conhecimento objetivo das evidências, esse
sentimento de injustiça por uma vivência de violência, seja ela física ou
emocional, surge em várias circunstâncias neste trabalho.
Nessas ocasiões, ainda que minoritárias, o reconhecimento da violação
dos direitos das mulheres é agudo e sofisticado, como nas falas do movimento
188
de saúde da Zona Leste e de sua comissão de saúde das mulheres, que
participam ativamente da comissão de doulas.
“É uma coisa absurda, as mulheres já vão com tanto medo quando
chega a hora de dar à luz que não tem prazer nenhum [...]Nós mulheres,
quando chega no hospital, a gente costuma fazer uma comparação muito
triste, que a gente se sente como carne no açougue [...]Tiram tudo da
gente, a roupa, a sacolinha com as coisas, os óculos, a dentadura quem
usa [...] A gente fica só com a alma da gente. Isto é muito triste, é um
sofrimento terrível” Fermina Lopes da Silva, Seminário Nascimento e
Parto, 1996
A expressão, por parte das usuárias, do horror sentido na assistência
pode levar os profissionais de saúde à reflexão sobre sua prática, como nos
conta um diretor de maternidade:
“Quando eu estava fazendo residência, atendi uma pessoa que
tinha feito um parto em Angola durante a Guerra Civil, outro em Paris e
estava fazendo o terceiro comigo no hospital-escola aqui no Brasil.
Quando acabou, a paciente falou: ‘Prefiro ser torturada a ter um parto
como esse que acabei de ter’. [...] Pensando que estava fazendo um
parto de alto nível, não dei opção para a paciente. Foi o momento em
que eu parei para rever que tipo de obstetrícia aprendemos.”
J. A Jordão. Ser médico, ano II, n. 5, p.22
A própria idéia de que o médico faz o parto, portanto a paciente é
dependente de que ele execute esses procedimentos sobre ela para que o parto
se processe, pode ser questionado quando o profissional é desafiado por
situações atípicas da assistência.
Às vezes, trata-se de um diálogo sem palavras entre provedor e mulher,
em que o que é expressado pode ter grande repercussão, possivelmente para
189
ambos. Como nos conta um médico que adotou o modelo humanizado, sobre
uma situação que o levou a pensar sua prática:
“Foi quando uma enfermeira chegou pra mim e disse que tinha
uma moça que ia ter um nenê. Como eu era o residente mais graduado,
fui até lá e vi a paciente de cócoras num canto da sala. Cheguei perto
dela e depois vi cinematograficamente todas as minhas atitudes que se
enquadravam na rotineira ritualística médica. Todas erradas e ruins.
Primeiro eu disse: ‘que foi?’ e ela não respondeu. Eu levantei o seu
vestido e o nenê já estava com a cabecinha saindo; então eu disse: ‘tá
minha filha, então te deita’. Então pensei melhor minha frase: Por que
‘minha filha?’. Porque essa é a forma que tu chamas as pessoas
subalternas a ti e pedi que ela se deitasse para que ficasse em uma
posição submetida a mim, médico. Ela me olhou como se eu fosse feito
de vidro e, na mesma posição, fazendo força, o nenê nasceu. Eu peguei o
nenê, cortei o cordão umbilical, entreguei pra enfermeira, olhei pra ela e
resmunguei. Ela levantou e saiu caminhando. Isso me deu uma
inconformidade, ela havia me ignorado. Será que as pacientes só ficam
na posição horizontal pra ter seus filhos porque eu mando?” Ricardo
Jones, lista Parto Natural
É importante entender que, em muitos casos, temos aquilo que
chamamos uma “consciência retrospectiva” de que certas atitudes, apesar de
terem nos parecido adequadas no passado, parecem inconcebíveis com os
olhos do presente, como nos conta um professor de obstetrícia sobre sua
experiência pessoal:
Estávamos na praia quando minha mulher, grávida na 39ª, entrou
em trabalho de parto. A bolsa rompeu e eu examinei-a para ver se já
estava na hora de ir para a maternidade (pois acreditávamos firmemente
190
que era o melhor local para termos nossa filha). Pelo exame, a neném
estava ótima e o colo estava muito fino e dilatado para 6 cm. Tudo
indicava um parto fácil e rápido. A maternidade estava a 70Km do local
onde estávamos. Pegamos o nosso carro e partimos pela estrada,
mantendo uma média de 150 Km/h, não respeitando os sinais de trânsito,
entrando em contra-mão, passando pela polícia rodoviária, arriscando
gravemente a vida de nós cinco no carro, sem contar a dos transeuntes e
ufa! conseguimos chegar ao hospital a tempo. Quando o obstetra foi
examiná-la, a neném nasceu, mas não sem antes ter feito a lavagem
intestinal e a raspagem dos pelos. E claro, na possibilidade da ruptura
do períneo, foi feito uma episiotomia para protegê-la! No pós-parto, a
episiotomia infeccionou. Com o períneo infectado, a ferida aberta, muita
dor, ela, pediatra, sequer conseguiu amamentar. Pior: como resultado
do aleitamento artificial, minha filha desenvolveu uma forte alergia à
proteína do leite de vaca, vocês sabem o que é isso? [...] E nós fomos
para a maternidade porque a Obstetrícia garante e a sociedade aceita
passivamente que desta forma estaríamos garantindo a saúde da minha
mulher e da minha filha. Optamos pela segurança! Marcos Leite, lista
Parto Natural
Essa consciência retrospectiva surge em muitas ocasiões quando os
profissionais relatam temas de sua formação, de um conteúdo que é ao mesmo
tempo técnico e ideológico, como as afirmações e as brincadeiras38, em certas
situações clínicas, e alguns diálogos padronizados ensinados na informalidade
38
Na formação da autora, uma brincadeira macabra ficou inesquecível: a paciente vinha para uma
curetagem, com um aborto incompleto que era sempre suspeito de ser provocado. Então o
profissional, sugerindo que ela estava prestes a morrer, dizia “Agora traz as velas” (no caso, seriam
os dilatadores do colo para a curetagem, chamados velas).
191
do espaço de aprendizado dos plantões, como a cena do manejo da dor da
episiorrafia.
Talvez esse tom jocoso usado pelos médicos sobre a assistência ao
parto, desrespeitoso com o sofrimento das mulheres, seja uma forma de lidar
com seu próprio sentimento de inadequação e incompetência, e mesmo com a
culpa profissional por causar danos funcionais e estéticos. Como nos conta um
médico:
Meu Deus, tem colega que faz cada uma, eles aleijam as mulheres.
Porque veja, tem episiotomia que a gente chama de hemibundectomia
lateral direita,
tamanha é a episiorrafia, entrando pela nádega da
paciente, que parece ter três nádegas. Fora aquelas episiotomias que
deixam a vulva e a vagina toda tortas, que a gente chama de AVC de
vulva, sabe quando a pessoa tem um derrame e fica com a boca e o rosto
torto, assimétrico? Cláudio Tobias.
Esses casos de aleijões genitais vão depois compor a demanda de mais
um tipo de profissional, o cirurgião plástico especialista em corrigir genitais
deformados por episiotomias (www.obsidiana.com).
Queremos aqui problematizar um pouco mais a episiotomia como
procedimento. Como vimos, esta é indicada para prevenir o suposto
afrouxamento vaginal provocado pela passagem do feto pelos genitais no
parto normal. Sabemos também que essa indicação não tem base na evidência,
mas sim na noção, profundamente arraigada na cultura sexual e reprodutiva
brasileira, do mito deste “afrouxamento vaginal” decorrente do uso da vagina,
sexual ou reprodutivo. Essa representação da vagina “usada”, “laceada”,
“frouxa”, é motivo de intensa desvalorização das mulheres e se sustenta tanto
na cultura técnica, médica, dos grandes autores brasileiros, como vimos,
quanto na cultura popular.
192
Na fala dos profissionais, sem essa sutura adicional que aperta a vagina,
o ponto do marido, o parceiro ficaria desinteressado sexualmente da mulher
ou, pelo menos, de sua vagina. Como nos mostra este depoimento em Ceres
(1981):
“Então ele dizia pra mim que todas as mulheres tinham que fazer
isso, que mulher depois que ela tem filho...ela fica assim muito
aberta...não presta mais. Ele queria então botar por trás (...) Eu pra ele
eu não era mais mulher” (1981:326)
A desvalorização sexual da vagina, e por decorrência da mulher, ou
vice-versa, depois do parto, tem muitas analogias com a sua desvalorização
depois do início da vida sexual. Depois do chamado defloramento, a mulher
ficaria desvirginada, aberta, frouxa. Por esse motivo, o apelo da episiotomia
para “devolver a mulher à sua condição virginal”, como proposto por DeLee e
outros autores, encontraria tanto eco na cultura brasileira (Diniz, 1997). A
necessidade masculina de um orifício devidamente continente e estimulante
para a penetração seria então resolvida por esse procedimento médico,
preservando o estatuto da vagina como órgão receptor do pênis, em oposição a
alternativas como o coito anal.
Como mostra este depoimento, no trabalho de Parker:
Principalmente para os adolescentes, comer bunda é um ato de
substituição do coito vaginal. Ele começa no início da puberdade. (...)
Algumas pessoas acham que é mais gostoso comer bunda que foder uma
boceta escancarada ou rodada.” (Parker, 1991:196)
Como vimos, do ponto de vista da evidência científica, o tônus vaginal
pode perfeitamente ser preservado independentemente da vida sexual ou de
partos vaginais, ou da necessidade de recursos cirúrgicos – mais uma vez, não
se trata do que seria “cientificamente correto”, mas de sua representação.
193
Vimos também que a episiotomia, de acordo com a evidência científica, é
associada não a uma vida sexual melhor, mas a uma substituição do tecido
esponjoso da vulva por fibrose, a um aumento da dor à penetração
(dispareunia), uma retomada mais lenta à vida sexual pós-parto, além das
freqüentes deformidades vulvares – isso quando não há complicações (Enkin,
2000).
O que queremos sugerir aqui é que a episiotomia e seu ponto do marido,
assim como a cesárea e sua “prevenção do parto”, no caso brasileiro, podem
funcionar, no imaginário de provedores, parturientes e seus parceiros, como
promotores de uma vagina medicamente sancionada, simbolicamente
condizente com essas exigências da cultura sexual, seja pela prevenção, seja
pelo tratamento. Nas palavras de Davis-Floyd (1992:129), os profissionais,
“como representantes da sociedade, podem desconstruir a vagina (e por
extensão, suas representações), e então reconstruí-la de acordo com nossas
crenças culturais e sistema de valores”. Ou ainda, construir um via
extravaginal, preventiva do parto, livre das representações disfuncionais e
poluidoras envolvidas no parto vaginal.
4.2.3.O direito a estar livre de sofrimentos desnecessários, ou a dor do
parto e seu manejo como estruturantes do modelo de assistência
O direito a estar livre de sofrimentos desnecessários está inscrito nos
mesmos instrumentos já citados, em especial aos direitos relacionados ao
cuidado com a saúde e aos benefícios do progresso da ciência, incluindo o
direito à informação e educação em saúde, pois se aplicados, as parturientes
poderiam se beneficiar sendo poupadas de procedimentos inúteis, arriscados e
dolorosos. Além destes se aplicam também os direitos relacionados à eqüidade
194
e à não-discriminação, e os direitos relacionados à vida, à liberdade e à
segurança da pessoa.
Cabe aqui apenas mencionar a distinção entre a dor física, e a dor
emocional ou moral, a humilhação, o sentimento de desamparo, o desespero, a
aflição. A dor física pode até ter um sentido diferente e positivo, mesmo
associado à vitória e a conquista, como em rituais de iniciação, ou mesmo em
nossa cultura ocidental, como nos feitos atléticos – não se espera que um
campeão se supere sem enfrentar desconforto físico extremo, seja ele um
maratonista ou um alpinista.
Mas a dor do parto no modelo tecnocrático aparece como uma ameaça a
todo um sistema de crenças:
Parece ser uma afirmação fundamental da cultura ocidental que a
dor é ruim. [...] Talvez desvalorizemos tanto a dor porque, como o parto,
ela nos lembra de nossa vulnerabilidade humana – nossa natureza, nossa
dependência. As máquinas não sentem dor, e se temos que funcionar à
semelhança delas, nem nós. A experiência do parto tecnológico e sem
dor [...] nos aproxima do objetivo final da transcendência pela
tecnologia” (Davis-Floyd, 1992:102)
O tema da dor do parto é amplo o suficiente para justificar seu estudo
por diversas disciplinas, que poderiam ir da fisiologia obstétrica à psicanálise.
Não nos compete aqui esgotar ou mesmo nos aprofundar no tema, mas sim
chamar a atenção para sua recorrência no material empírico e tentar explorar
alguns dos seus significados nos limites deste trabalho.
É importante lembrar que a dor do parto é interpretada de maneira
muito diversa por diferentes culturas e que a obstetrícia médica veio a
identificá-la como uma patologia e tratá-la de forma mais enfática na segunda
metade do século XX (Diniz, 1997). Como vimos, a MPBEC trouxe um
195
conjunto de questionamentos a essa compreensão, inclusive a distinção entre
quais seriam as formas mais eficientes para suprimir a dor do parto; quais os
recursos que as mulheres reputam como lhes trazendo mais satisfação com a
experiência do parto, e a ponderação entre a eficácia anestésica dos
procedimentos e seus possíveis efeitos colaterais e riscos para mãe e bebê,
tanto no trabalho de parto e parto, quanto no período perinatal, no puerpério e
no aleitamento.
A reflexão sobre a evidência científica trouxe também a polêmica sobre
a chamada dor iatrogênica do parto, provocada por procedimentos dolorosos,
muitos dos quais desnecessários e mesmo possivelmente danosos. Esse é um
dos motivos pelos quais acredita-se que um parto com menos intervenções
desnecessárias seria menos doloroso e mais suportável.
No caso do modelo do parto conduzido por enfermeiras, adotado no
serviço 2, temos uma assistência com nível variado de uso daqueles
procedimentos de processamento do parto dirigido. Uma diferença marcante
entre esse modelo de processamento do parto “dirigido” (conduzido
ativamente por intermédio de procedimentos de regulação dos tempos do
parto), quando feito por médicos nos contextos privados e por enfermeiras
nestes serviços, é exatamente o manejo da dor.
De acordo com nossos informantes, nos serviços privados e em parte
dos convênios, como vimos, o parto vaginal inclui a anestesia peridural de
rotina, virtualmente em todas as parturientes, o que certamente facilita a
execução de cada um dos procedimentos dolorosos acima sem que a mulher
sofra tanto.
No parto típico nos contextos estudados, temos uma situação diferente:
a contradição de ter a dor adicional dos procedimentos sem o alívio adicional
da peridural. Tão bem reconhecida é essa dor adicional que, como vimos, os
196
profissionais consideram que a peridural seja uma pré-condição para a
humanização da assistência.
Muitos estudos apontam para o fato de que a anestesia peridural altera
em menor ou maior medida o andamento do parto, sendo associada com uma
redução da atividade uterina. Teremos então o difícil equilíbrio entre
estimulação artificial do útero, com a ocitocina,
aumentando a dor, e a
redução da dor pela peridural, alterando a contratilidade. Isso pode levar a
riscos para o bebê e é associado a um aumento de intervenções e de cesárea
(Enkin, 2000).
O aumento da dor resultante do aumento da intensidade das contrações
pelo uso da ocitocina é tão intenso que é descrito como um dos mecanismos
de
“transformação de um parto normal em uma cesárea”. No caso,
claramente, a cesárea aparece como “recurso anestésico”, um modo de
interromper a dor. Como descrito por um informante:
“Tem colega que diz que vai fazer um parto normal, que é a favor,
concorda em ir para aquelas salas bonitas de parto normal que tem nos
hospitais caros, e tal. Mas quando chega lá, bota um soro bem firme na
paciente e diz: quero ver, aposto que da segunda dor já vai sair pedindo
cesárea. Pior, saem contando isso como uma vantagem.”
A indicação de cesárea em certos contextos, como a maioria dos
hospitais do SUS, segundo informantes, aparece também como a única
maneira de conseguir alívio eficaz para a dor provocada pelos procedimentos
de rotina. Desta forma, quando as mulheres chegam ao limite da
insuportabilidade da dor, elas em geral pedem uma cesárea.
Não raro, acontece da mulher ter já uma episiotomia para seu parto
vaginal, eventualmente uma episotomia alargada para o uso de fórceps, e
197
posteriormente ter uma indicação de cesárea, sendo neste caso “cortada em
cima e cortada em baixo”.
No caso do serviço 1, a rigor há anestesista disponível, que está no
centro cirúrgico e dá cobertura às cirurgias. Há um investimento nos
chamados métodos não-farmacológicos de manejo da dor, que são associados
tanto à maior satisfação no parto, como a partos mais breves e menor demanda
por anestésicos (Enkin, 1995): acesso a chuveiro quente, liberdade de posição,
presença de acompanhantes e doulas, bola de parto, além da dieta livre.
O uso dos recursos não-farmacológicos pode mesmo ser percebido
pelos profissionais não como um recurso a ser oferecido, mas como uma
rotina a ser imposta autoritariamente, como nesta cena no serviço 1:
Eu recebi a queixa formal da paciente, por escrito, ela ficou muito
brava porque a enfermeira obrigou ela ao banho. Ela não queria ficar
no chuveiro, a enfermeira cismou que tinha que ficar meia hora. Ela saiu
do banho, a enfermeira perguntou: “Quanto tempo você ficou?” Ela
disse, “Vinte cinco minutos”. Aí a enfermeira disse que tinha que ficar
meia hora e fez ela voltar pro chuveiro!
No caso do serviço 2, além de alguns recursos não farmacológicos
como o banho, acompanhante, “cavalo” de parto e pufes, há anestesistas
disponíveis também “teoricamente”, pois na prática estes raramente estão
disponíveis para os partos vaginais, mas sim no caso das cesáreas e naquilo
que é chamado por um informante de “anestesia de misericórdia”, sendo uma
de suas indicações principais as “adolescentes descompensadas”, conforme os
depoimentos.
Como vimos, a “descompensação” da paciente pela dor impõe uma
tensão a toda equipe e às demais pacientes, devendo ser prevenida ou
corrigida (Tornquist, 20001).
198
Isso mostra uma contradição importante entre o que é considerada a
“boa prática” e o que se pratica com os recursos que estão de fato disponíveis.
Para os médicos entrevistados, em sua prática privada, a anestesia é um
procedimento de rotina, considerado imprescindível para a boa condução do
trabalho, sobretudo as novas técnicas de analgesia peridural combinada que,
segundo os entrevistados, permitem que a paciente mantenha alguma
mobilidade e sensibilidade e mesmo que possa caminhar durante o parto.
Na prática, nestes serviços, é considerável a dificuldade de viabilizar
esses recursos, mesmo os não-farmacológicos, fazendo com que os
procedimentos dolorosos sejam executados sem que haja um alívio efetivo da
dor, como mostra a cena a seguir:
“Antes que saíssemos, em algum momento, vi Fabíola no quarto
da mulher que estava sendo acompanhada por Sonia, ela se sentou na
beirada da cama, fez um toque, e como a mulher se queixasse de dor e
pedisse para tirar o soro, Fabíola disse que não tem como o nenê nascer
sem dor, que aquele era um caminho sem volta e ela iria mesmo sentir
dor até que o bebê nascesse e que ela deveria agüentar.” Caderno de
Campo, serviço 1, setembro.
Apesar da dor ser evidentemente provocada pelo procedimento, ela é
naturalizada a ponto de seu caráter infligido ser considerado como parte
inevitável do processo, diante do qual só resta a passividade e o sofrimento
resignado, descrito como algo intrínseco ao processo:
“Enquanto Luciana estava suturando, Ana Luisa lhe perguntou
quantos pontos levaria. Luciana respondeu que levaria uns 20 pontos
dizendo,
-‘ É, como você não colaborou muito, né, tive que fazer um corte
grande’. (Caderno de Campo, serviço 1, setembro).
199
Cabe notar que no discurso das profissionais de saúde, a
responsabilidade pelos procedimentos em geral e pela episiotomia em especial
e, nesse caso, até mesmo pelo tamanho do corte, é da própria parturiente e de
sua atuação 'inepta' no trabalho de parto e parto. Isso é afirmado pelos
profissionais em várias ocasiões, inclusive em relação à utilização da manobra
de Kristeller. Esse achado aparece em outros estudos sobre a assistência no
Brasil (Dalsgard, 2000, Alves e cols, 2000) e parece compor também um
script de comunicação entre provedor e usuária.
A dor relacionada a esses procedimentos e sua aceitação sem queixas é
a tal ponto considerada parte “natural” e adequada do processo que os
profissionais a subestimam para tentar fazer a parturiente acreditar que sua
sensação dolorosa não se justifica ou é exagerada ou infundada:
“Ana Luisa deu uns gritos durante a sutura e comentou algumas
vezes que estava 'dando gastura' e, mais tarde, disse 'agora está doendo
mesmo!' A certa altura Luciana lhe respondeu, 'Mas tudo lhe dá
gastura!’ e depois, 'Você não quer ficar assim com esse corte, não é?
(Caderno de Campo, serviço 1, setembro).
No caso da episiorrafia, como é muito dolorosa e a anestesia ineficiente
na maioria das vezes, a negação da dor da paciente e mesmo de que ela está
sendo suturada é aprendida na formação dos recursos humanos, como vimos,
como estratégia de lidar com as usuárias.
Essa culpabilização da mulher, a naturalização e desconsideração da
dor, que é evidentemente motivada por um procedimento muitas vezes
desnecessário e arriscado, é encontrada em outros estudos etnográficos no
Brasil, aparece de forma crua também nestas cenas no já citado trabalho de
Alves, Silva e colaboradores (2000), em maternidades no Maranhão:
200
“A paciente disse que estava com vontade de vomitar, a
anestesista virou-a bruscamente e disse: “quis ter um filho, então vai ter
que sofrer” repetindo várias vezes a frase: “a entrada do céu é estreita,
tem que sofrer, é assim mesmo.”
“[...] O médico fez o parto e houve laceração do períneo [como
sabemos, a episiotomia, aqui feita de rotina, aumenta o risco da
laceração]. Ao fazer a sutura, a paciente gritou do primeiro ao último
ponto” [...]
“Em outra situação, durante a episiorrafia em que a paciente se
queixava de dores, [...] a pediatra reclamava e pedia à paciente que
prestasse atenção nas perguntas [da ficha], não levando em
consideração a queixa de dor durante a realização de episiorrafia.”
O problema da dor e seu manejo parece ter um papel crucial
na
organização das práticas obstétricas, inclusive nas diferenças entre os modelos
de assistência em serviços privados e públicos, como também na percepção
de que direitos as mulheres têm , quando se trata da maternidade.
Mas podemos também nos referir a uma “produção social da dor do
parto”, pois tanto do ponto de vista ideológico como da perspectiva muito
concreta da imposição dos procedimentos dolorosos, essa dor, em muitos
sentidos, vai muito além do que possa explicar a fisiologia do parto.
Neste contexto em que receber assistência é sinônimo de sofrer, como
pensar o direito a estar livre de sofrimento e ainda receber a assistência
adequada? Se considerarmos que pelo menos parte desse sofrimento é
evitável, portanto prevenível, poderemos imaginar uma “prevenção dos
procedimentos desnecessários” também como prevenção do sofrimento
desnecessário.
201
Isso só é possível se consideramos a busca de uma assistência menos
sofrida, mais amigável com quem dela precisa, como um valor importante e
compartilhado. Por amigável estamos nos referindo a uma assistência que não
oponha os interesses de provedor e usuária, como inimigos, mas que busque
uma relação de parceria, no que for possível, simétrica. Isso é diferente da
noção, já mencionada, que para os profissionais, a boa assistência, privada,
inclui necessariamente a analgesia peridural.
Queremos deixar claro que consideramos que a anestesia peridural é um
recurso muito eficaz para o manejo da dor e que deve estar disponível,
idealmente para todas que a solicitem. Mas lembramos que os estudos
mostram que este não é necessariamente aquele recurso que traz maior
satisfação à mulher com a sua experiência de parir (Enkin, 2000).
É importante separar, na medida do possível e pelo menos
conceitualmente, as dores fisiológicas do parto e as dores infligidas pelas
formas de assistência. Essas últimas são socialmente construídas e inseridas
em um contexto cultural mais amplo e complexo. Queremos convidar a um
exame, ainda que muito preliminar, desse componente socialmente construído,
e sancionado como conhecimento autorizado apesar de sua falta de evidência
científica, que são as intervenções que multiplicam a dor no parto.
No modelo típico de assistência, as expressões de sofrimento da mulher
e seus pedidos de ajuda e alívio da dor são muitas vezes desmoralizadas pela
acusação de sua culpa sexual na gravidez. Essas acusações sexuais na
assistência ao parto, comuns a muitas culturas ao redor do mundo (Petchesky
e Judd, 1998), parecem ter como finalidade colocar a mulher num lugar de
defensiva moral, sem autoridade para pedir clemência pela sua pena, e manter
o profissional com total controle da situação, como nos conta este diretor de
maternidade sobre sua formação:
202
“Eu, semi-analfabeto em obstetrícia, achava fantástico aqueles
residentes que tinham tudo sob controle, controlavam a mulher
totalmente, diziam as coisas do tipo “Na hora de fazer você gostou! Você
soube! Não chora! Agora cala a boca e faz força”. Eu achava aquilo o
certo. Acho que todo mundo.” Paulo Murakami
No modelo em transição que observamos essa forma de humilhação
sexual não foi observada, o que é um dado muito positivo. Porém a dor,
inclusive seu componente prevenível, é considerada como uma etapa natural a
atravessar; se a mulher sente dor, o profissional pode entender que precisa
intensificar a dor para ela parir mais rápido. A demanda por alívio da dor é
compreendida muitas vezes como uma demanda para apressar o parto,
sobretudo por meio da aceleração do parto com ocitócitos ou com a manobra
de Kristeller, ainda que isso vá provocar mais dor e mais riscos.
É interessante notar que a partir do conhecimento das evidências
científicas e do caráter iatrogênico da dor e das lesões impostas, muitos
profissionais, em uma consciência retrospectiva, espantam-se com a gravidade
da situação e com a sua aceitação passiva por parte das mulheres, como na
fala do professor de medicina sobre as mulheres serem perseguidas com uma
faca na maternidade (relatado na introdução deste trabalho), ou no depoimento
abaixo, de um obstetra:
“Eu fico pensando [...] a vagina é um órgão que a mulher vai
parir por ele, mas é um órgão sexual. Pô, fazer um corte ali é uma
tremenda sacanagem. É a mesma coisa de pegar o pênis e ‘ah, vamos
cortar, depois sutura’ [...] eu acho que a mulher brasileira permite que
façam esta...não digo atrocidade...este procedimento, mas ela não se
toca que esta é uma área muito, sei lá, que ela deveria prezar mais”
Diretor de maternidade
203
É este movimento, o de pelo menos cobrar dos serviços de saúde a
coerência com a sua própria lógica, que tem sido o argumento principal para a
mudança. Podemos também, nessa direção, argumentar o direito humano a
usufruir do progresso da ciência, pois em certa medida, é disso que se trata.
Acreditamos, e esperamos, que o material aqui discutido nos ajude a
convencer mais interlocutores, que a argumentação dos direitos humanos
daqueles envolvidos na cena do parto possa ser um recurso decisivo para o
convencimento à mudança e para novas bases para um diálogo mais produtivo
entre os vários sujeitos.
204
Capítulo 5
Considerações finais
Ao final do trabalho, cabe-nos fazer um balanço do percurso realizado,
daquilo que se pode enriquecer na compreensão do objeto proposto e do que
se percebe de lacunas; o que confirma as impressões iniciais do estudo e as
surpresas e os novos estranhamentos trazidos pelo caminho percorrido.
Nesta discussão sobre os alcances e limites do percurso feito neste
trabalho, discutiremos, em primeiro lugar, quais os fatores identificados como
limites e obstáculos às propostas de humanização, e quais aqueles que se
mostraram como facilitadores de sua implementação.
E, finalmente, indicaremos algumas das lacunas do percurso e questões
para novas pesquisas, assim como os temas que emergiram como questões
fundamentais, mas que não foram tratadas ou foram abordadas muito
superficialmente no âmbito deste trabalho.
Para a discussão sobre possibilidades e limites que se segue, lembramos
que em cada um dos aspectos tratados há uma polaridade, na qual o possível e
suas limitações estão sempre se encontrando; é na interação humana que cada
um desses pólos assume sua concretude. A ordem dos itens abaixo não
corresponde a uma hierarquia de importância, uma vez que todos os itens
estão interligados; alguns deles estão acompanhados de recomendações
discutidas no trabalho de campo.
205
Possibilidades e limites e humanização
5.1. Limites às propostas de humanização
5.1.1. O obstáculo do modelo tecnocrático: gênero e modelos de
assistência
O modelo tecnocrático, profundamente incorporado às práticas, é um
dos mais importantes obstáculos à humanização da assistência. Seu
questionamento e superação parece ser uma tarefa essencial na construção das
propostas de humanização.
Como vimos, essa humanização, não é compreendida pelos diferentes
atores sociais envolvidos no debate de forma homogênea, mas se apresenta
com um conteúdo amplo de procedimentos – ainda que possa girar em torno
de dois conceitos, ou pólos, fundamentais: aqueles da medicina perinatal
baseada na evidência científica e o dos direitos das mulheres.
Entre esses conceitos que apóiam o modelo humanizado há também
alguma tensão, pois partem de paradigmas diferentes, ainda que se encontrem
na prática em muitas oportunidades, como vimos. Esses dois pólos têm em
comum a crítica ao modelo tecnocrático de assistência, que postula a
necessidade de um papel passivo da mulher na cena, onde ela será
processada tecnicamente pelo profissional e pela instituição.
Esse modelo tecnocrático encontra um terreno fértil na cultura sexual e
reprodutiva brasileira. Até certo ponto, há uma superposição, uma interação,
destas duas dimensões. A cultura reprodutiva e sexual tem se caracterizado,
entre outros aspectos, por sua cirurgificação, ou seja, por seu constante recurso
à “solução cirúrgica das relações de gênero”. No Brasil, para viver a
sexualidade e evitar filhos, o principal recurso para as mulheres é a
206
esterilização cirúrgica; e para ter filhos, o recurso ao parto cirúrgico não
encontra paralelo em nenhum outro país (Mello e Souza, 1997; Diniz et al,
1998). Essa cultura se reflete também nas intervenções cirúrgicas como a
episiotomia de rotina sobre o parto vaginal típico, e na afirmação, de maneira
cada vez mais enfática, da superioridade técnica do caminho cirúrgico sobre o
fisiológico na parturição (“Sem dor...”,2001).
Do ponto de vista da técnica, vemos na observação dos serviços a
constante tensão entre a mudança e a permanência, entre dois paradigmas
conflitantes, um pólo de humanização e outro tecnocrático, de cirurgificação.
Por um lado, temos a permanência, em várias cenas, da idéia de que a
parturiente precisa de um processamento para parir. Acredita-se que os
procedimentos dolorosos devem ser executados, que a mulher precisa suportálos para que possa dar à luz e que o profissional fará o parto. Parece haver
também uma certa expectativa das mulheres de serem processadas, como se
ter acesso à assistência fosse equivalente a ter acesso ao consumo de certos
procedimentos.
Essa humanização apresenta um desafio ao modelo tecnocrático por
afirmar o parto como evento potencialmente positivo e saudável, para o qual o
corpo feminino – mesmo das sedentárias urbanas – estaria perfeitamente
adequado. É um convite a acreditar – pois se trata também de um crença - que,
como outros eventos da vida, a maternidade e o nascimento podem ser vividos
tanto como experiência de opressão como de transcendência. Trata-se de
vislumbrar a
assistência submetida às necessidades humanas e não o
contrário.
5.1.2. O obstáculo do essencialismo: pessimismo sexual, descrições do
corpo feminino e humanização
207
Colocada essa polaridade, esbarramos em um impasse: corre-se o risco
de que essa defesa do corpo feminino e a crença em sua perfeição fisiológica
reproduzam o essencialismo que reforça a concepção da maternidade como
função primordial das mulheres, sem a qual estas não seriam normais nem
completas; ou ainda, da concepção de que, já que as mulheres estão
fisicamente aptas a dar à luz, deveriam fazê-lo a qualquer custo, pessoal,
físico, emocional ou de saúde. Nessa direção, a dor e as possíveis seqüelas do
parto não seriam mais que o preço “normal” a pagar pela feminilidade
completa e adulta de ser mãe, ou pior, por alguma pena ancestral da base
religiosa, como prevista no Gênesis.
Como vimos, no discurso médico, a transição “fisiológica” para a
maternidade exige das mulheres dois “preços”: por um lado, o sofrimento do
parto, e por outro, a perda da desejabilidade sexual, da capacidade da vagina
conter e estimular o pênis durante a penetração, pois, conforme a crença, o
parto irá “lesar a integridade dos tecidos maternos, com lacerações e roturas as
mais variadas, a condicionarem frouxidão irreversível do assoalho pélvico”
(Rezende, 1974:295).
O que a proposta de assistência humanizada pode trazer como
contribuição para lidar com essa contradição de “oferecer assistência (ajudar)
versus provocar dor e seqüela (fazer sofrer)”, são dois elementos derivados da
crítica à assistência ao parto, em oposição a uma visão esssencialista, que
reduziria a mulher à sua dimensão biológica. O primeiro elemento é a
reintrodução da discussão da sexualidade na reflexão sobre a parturição –
trata-se de sexualizar a reprodução e não o contrário. O outro elemento é uma
redescrição da dor do parto e de seu manejo.
Aqui nos referimos tanto à visão essencialista, que condena a mulher ao
sofrimento em troca da própria condição feminina “completa” e adequada,
208
quanto àquele “outro essencialismo”39, que propõe que a mulher aceite
acriticamente quaisquer formas de alívio a essas dores e custos impostos como
naturais ao seu corpo imperfeito.
5.1.3. Os obstáculos do acesso
Os problemas de acesso ao leito obstétrico, dos quais dependem em
grande medida, como vimos, as distorções da assistência, podem ser
equacionados pelo aumento do número de leitos, sua melhor distribuição
geográfica e a sua organização através da central de vagas, de forma a reduzir
ou eliminar a peregrinação por leitos, obstétricos ou neonatais, principalmente
nos casos de alto risco.
Este aumento em número e melhora da distribuição dos leitos pode ser
potencializado pela revisão do modelo medicocêntrico e hospitalocênctrico,
através da criação de um sistema de referência e contra-referência
hierarquizado, que inclua o atendimento aos parto de baixo risco por
enfermeiras obstetrizes ou outras profissionais qualificadas, em hospitais ou
nas casas de parto. Temos em São Paulo experiências bem sucedidas neste
sentido, como a da Casa de Parto de Sapopemba, que poderia ser multiplicada.
Os critérios de internação, como vimos, são extremamente variáveis,
implicando no risco da admissão precoce e do aumento da intervenção
decorrente. Estes critérios merecem uma revisão e uma padronização que
busque evitar tanto a admissão precoce quanto a peregrinação.
39
Szurek (1998) traz a discussão sobre como o discurso da mudança nas formas de assistência ao
parto pode recuperar modelos essencialistas de explicação da mulher e da parturição, para além da
crítica social que essas propostas de mudança possam conter. Queremos aqui chamar a atenção
para a permanência desses modelos explicativos nos discursos dos vários personagens, ainda que
referidos a essencialismos distintos dos daquela autora.
209
5.1.4. O obstáculo da imposição dos tempos e movimentos
Um dos maiores desafios das propostas de humanização aos serviços é
aquele de compatibilizar as necessidades institucionais de produtividade e de
rotinas com o desencadear fisiológico do trabalho de parto e parto. Como a
assistência é organizada em um linha de montagem, com suas respectivas
estações de trabalho e tempos estabelecidos, cabe aos serviços se reorganizar
para aceitar a evidência científica de que o estabelecimento de tempos rígidos
para cada etapa do parto é inadequado.
Isto implica em evitar o atropelamento dos tempos da dilatação com a
amniotomia e a infusão de ocitocina de rotina, assim como evitar a aceleração
do período expulsivo sem motivos clínicos através da manobra de Kristeller e
da episiotomia.
Cabe aos serviços des-formatar os espaços e reorganizar os tempos, de
modo a desrespeitar a fisiologia o mínimo possível, rompendo com a
concepção de que a melhor assistência é aquela que consome mais insumos.
Isto implica também em evitar a admissão precoce, uma vez que o tempo de
duração do parto começa a contar, na prática, quando a mulher é internada
(Enkin, 2000).
5.1.4. O obstáculo do manejo da dor e da dor iatrogênica.
Como vimos neste trabalho, a dimensão da dor como pena, como preço
a ser pago, continua presente, em menor ou maior medida, também nas
propostas de humanização da assistência, em especial naquelas situações em
que as mulheres se queixam de dores provocadas pelos procedimentos típicos
(como nos casos de aceleração com ocitocina e da episiotomia e sua sutura).
Nessas cenas permanece em certa medida a crença da inevitabilidade da dor, e
210
de que o sofrimento deve ser abreviado às custas de mais procedimentos
aceleradores do parto e, conseqüentemente, de mais dor.
Vimos também que os profissionais, nesse modelo, têm que lidar com a
contradição de ver o alívio da dor ser uma rotina para aquelas que podem
pagar e não ser usada no contexto das propostas de humanização.
Especialmente no discurso das doulas, há o reconhecimento de uma distinção
de classe com relação ao direito ao alívio da dor, como se fossem dois
modelos de assistência, cada um legítimo para uma faixa de renda.
O manejo da dor, o poder sentir-se bem, protegida do sofrimento,
aparece fortemente como marcador da boa assistência no discurso de vários
profissionais. A cesárea eletiva aparece como um recurso anestésico superior,
pois preveniria a dor do trabalho de parto e do parto, oferecendo segurança e
conforto.
Alguns profissionais, ainda que aplicando os diferentes modelos a sua
respectiva clientela, pública e privada, reconhecem essa diferença técnica de
forma distinta e não imaginam assistência humanizada sem a anestesia
peridural. Vemos que para esses profissionais, a anestesia funciona como um
marcador da assistência humanizada, em contradição tanto com o modelo
prescrito (a peridural como rotina não é considerada como parte dos
procedimentos da OMS, que orientariam o modelo humanizado), quanto com
a realidade dos serviços, pois como vimos, esse recurso anestésico muito
raramente está disponível no SUS – apesar da propaganda em contrário feita
pelo Ministério da Saúde.
A crítica trazida pelas propostas de humanização veio evidenciar que
uma parte considerável do que hoje conhecemos como a “dor do parto” é o
que se pode chamar de dor iatrogênica, aquela produzida por procedimentos
que, além de dolorosos, são muitas vezes inúteis, arriscados e eventualmente
211
danosos. Esta redescrição da dor do parto busca distinguir, neste sofrimento
das mulheres, o que é de fato inevitável, o que é aliviável e como as mulheres
podem tomar decisões informadas sobre o assunto40, ao invés de aceitarem
qualquer caminho “a priori” como mais adequado para ela como indivíduo.
Como vimos, a evidência aponta para o fato de que as mulheres
esperam e aceitam sentir alguma dor, porém não aceitam lidar com uma dor
avassaladora. Mas qual o limite do insuportável, e quem decide por isso? Aqui
reside uma questão de poder, de quem está a serviço de quem.
5.1.5. O obstáculo da formação dos recursos humanos
O aparelho formador, em especial o da medicina e da ginecologia e
obstetrícia, continua sendo um dos grandes obstáculos às mudanças, como
vimos. Estes ainda se mantém aderidos ao modelo tecnocrático e pouco
incorporaram das evidências até agora. Pode-se dizer que contribuem para
deixar os profissionais como reféns do modelo de assistência, pois a cada ano
aumento o distanciamento entre as evidências científica e a prática,
complicando o atual paradoxo da prática.
As escolas de enfermagem por sua vez já iniciaram uma importante
mudança de adequação aos novos paradigmas, em especial na recuperação da
figura da enfermeira obstetra.
É necessário um esforço conjunto de entidades representativas das
diversas categorias e da sociedade civil para que o quadro possa ser revertido,
pois o profissional “baseado na evidência” no campo da medicina perinatal,
40
Vemos que em muitas situações, principalmente na prática privada, quando a mulher recusa um
procedimento como a anestesia – em geral o faz por ser suficientemente informada de vantagens e
desvantagens –ela pode neste caso ser também considerada inadequada, masoquista e
potencialmente problemática.
212
não é ainda encontrado no mercado – como vimos, ele ainda tem que ser
formado pelos serviços.
5.1.6. O obstáculo do “pessimismo sexual”41 no parto
A dimensão sexual está fortemente presente na organização da
assistência, seja nos procedimentos técnicos e sua argumentação, como no
caso da episiotomia e da cesárea, seja na informalidade das piadas e
brincadeiras feitas durante os plantões, desde aquelas falas supostamente mais
amigáveis (“vou costurar a senhora de maneira que fique igual uma
mocinha”), até as acusações sexuais – essas não foram observadas nos
serviços estudados, é importante reforçar - quando a mulher se queixa de dor
(“na hora de fazer achou bom, agora cale a boca e agüente”).
Esses mecanismos de imposição do silêncio e de “contenção” das
mulheres, por meio da sua desmoralização por terem atividade sexual, é uma
constante cultural encontrada em muitos países e em várias modalidades de
assistência à saúde reprodutiva, utilizadas para a deslegitimação das suas
queixas, de dor ou de oposição a qualquer procedimento.
5.1.7. O obstáculo da concepção de que a tecnologia apropriada e a
humanização sejam “medicina para pobre”
Uma contribuição trazida pelas propostas de humanização está na
possibilidade de superação da dicotomia que instaura e explicita dois padrões
diferentes de boa técnica obstétrica, não apenas de manejo da dor. No material
empírico parece haver dois diferentes modelos de assistência adequada,
41
Por pessimismo sexual chamamos o crença, herdada do maniqueísmo e muito influente no
cristianismo, de que a sexualidade é intrinsecamente má, portanto trará conseqüências igualmente
más como punição por seu exercício, entre elas a dor do parto e a própria maternidade (RankeHeineman, 1996).
213
grosseiramente, um para as pobres e dependentes do SUS e um para as ricas,
que podem pagar outro padrão de consumo. Aqui há uma equivalência entre
“ter acesso a boa assistência” e “consumir tecnologia, independente de sua
adequação”.
Assim, temos uma contradição que fratura o modelo assistência, que
questiona o modelo de um corpo feminino na explicação essencialista: sua
fisiologia e anatomia são definidas, re-descritas, por seu padrão de consumo.
Por um lado, temos as mulheres de classe média, para as quais a dor do parto é
insuportável e cujos genitais não suportariam a passagem dos seus filhos, sob
risco de deformação irreparável; por outro, temos as mulheres de baixa
renda42, mais adequadas a suportar o sofrimento e o dano genital, reais ou
supostos, e o seu reparo, a episiotomia.
Mais recentemente, temos um movimento de assumir a cesárea como
parto típico, descolada de indicação clínica, argumentada como uma forma de
melhor atender às necessidades de conforto e segurança das mulheres. Esse
modelo, reconhecidamente marcado pelo padrão de consumo, não seria
aplicável à maioria da população. Como afirma o professor Marcelo Zugaib,
em uma matéria intitulada “Sem dor e sem culpa”, a opção é restrita:
“Também não considero a cirurgia a opção ideal para a saúde
pública porque, além de ser mais cara, não temos qualidade suficiente,
em termos de médicos e hospitais, para garantir a taxa mínima de risco
42
A reflexão feminista, desde o início da década de setenta trouxe a idéia de que, para além da
dimensão constitutiva do gênero implicada na descrição da fisiologia e da anatomia, há também,
inscritos nestas descrições, atributos de classe e raça. Estes atributos justificariam uma assistência à
saúde distinta por classe social, pois buscam explicar a fragilidade sexual e reprodutiva das
mulheres brancas, abastadas e sedentárias por um lado, e por outro, a noção de que o sofrimento
fortalece as mulheres pobres e não-brancas, mais habituadas ao esforço e à dor física (Ehrenreich e
English, 1973).
214
de um parto normal. Mas quem tem acesso a serviços e atendimento de
primeira linha pode se sentir muito melhor fazendo uma cesárea”
Os profissionais têm que equacionar o manejo técnico dessa
contradição: para as pacientes do SUS, a assistência deve ser suportável; mas
qual é o limite de suportabilidade e quem decide sobre ele? Esse paradoxo se
expressa também na crença de vários dos profissionais, sobretudo médicos,
para os quais a humanização do parto vaginal só é possível com a anestesia
peridural; e ainda pela adesão, mais voluntária ou mais coagida, em massa das
mulheres de classe média pela cesárea, considerada um procedimento, como
vimos, mais anestésico do que propriamente obstétrico.
5.2. Fatores que contribuem para a implantação das propostas de
humanização
5.2.1 A diminuição dos procedimentos inadequados e dolorosos, ou a
adesão às recomendações da OMS
Vimos que no caso brasileiro, a superposição entre as idéias de
assistência humanizada e recomendações da OMS, baseadas na evidência
científica, levou a uma relativa fusão de paradigmas diferentes porém
convergentes. Este paradigma “misto” se expressa de maneira mais concreta
na redução de procedimentos invasivos, em especial a aceleração do parto e da
episiotomia, a ponto destes dois procedimentos, em especial o segundo,
funcionarem como marcadores da diferença feita nos serviços entre o que
chamam “parto normal”, com os procedimentos, e parto “natural”, sem eles.
O desenvolvimento de uma cultura institucional de desapego aos
procedimentos de rotina, de criação e discussão dos critérios clínicos para seu
215
uso, é um dos importantes méritos dos serviços estudados. Nos dois serviços,
as taxas mensais de episiotomia estão abaixo de 50%, tendo chegado a um
mínimo de 19% no serviço 1, possivelmente pela presença de obstetrizes.
Ainda que pareça uma mudança tímida se comparamos com outros países –
que estimam que as taxas ideais estejam entre 5 e 15% - para a realidade
brasileira é um fato muito significativo, principalmente pela prevalência de
períneos rígidos como seqüela de episiotomias anteriores.
A aceleração do parto como rotina também teve uma diminuição
significativa, embora se mantenha em grande medida pela já referida pressão
pela rotatividade dos leitos.
5.2.2. O oferecimento dos métodos não farmacológicos de facilitação da
fisiologia e de manejo da dor.
As iniciativas estudadas buscaram oferecer, na medida de suas
possibilidades, com menos ou mais sucesso, as chamadas alternativas nãofarmacológicas de manejo da dor baseadas nas evidências, como a presença de
acompanhantes (maridos, mães, amigas, etc.) e de doulas, o uso de banhos de
chuveiro, bolas de parto, de pufes, e um mínimo de privacidade em salas onde
as mulheres possam passar o pré-parto e o parto no mesmo leito.
Como vimos, a disponibilidade física desses recursos e de ambientes
adequados é fundamental, pois além de viabilizar seu uso, funciona como um
marcador da legitimidade desse modelo de assistência humanizado - ainda
que seu uso possa não ser a regra apenas pelo fato do material estar
disponível. O custo destes recurso é considerado baixo, e muitos deles podem
ser adaptados a partir do que os serviços já tem, como as camas comuns para
os partos em ambiente PPP.
216
Como os profissionais não estão habituados ao seu uso, corre-se o risco,
como vimos, de que esses recursos deixem de ser opcionais, alternativas a
serem oferecidas, para ser uma rotina imposta à mulher, independentemente
de sua adequação àquela situação em particular. O monitoramento do seu uso,
como dos demais procedimentos, deve estar incluído entre as preocupações do
serviço.
O uso desses recursos encontra na prática alguns limites, tais como uma
resistência, menor ou maior, por parte dos profissionais, que não
necessariamente têm experiência com o seu uso, e que reconhecem nesses
recursos não farmacológicos uma demanda extra de tempo e um menor
controle dos espaços e tempos do seu trabalho.
A presença desses recursos também parece sinalizar a evitabilidade da
cascata de intervenções e do processamento ritual das mulheres em uma linha
de montagem, contribuindo na introdução de uma cultura institucional de
reconhecimento das usuárias, e de seus bebês, como pessoa e seu tratamento
individualizado. Esta é uma “vantagem discursiva”, um aumento do capital
lingüístico dessas novas possibilidades (Treichler, 1990)
5.2.3.A entrada de acompanhantes no trabalho de parto e parto (parentes
e doulas)
A admissão dos maridos como acompanhantes, agora também em
serviços públicos, é uma mudança poderosa e que já faz parte da cultura das
duas instituições. É importante notar o suporte legal desta medida, com lei
estadual. A presença destes novos sujeitos provoca reações positivas e
negativas nos profissionais; alguns são mais receptivos, outros parecem se
sentir invadidos e questionados, “contaminados” pela presença dos leigos.
217
A entrada na cena do parto dos acompanhantes, pais, mães, amigas, vem
trazer um conjunto de questões novas para esses sujeitos, como vimos,
relativamente despreparados e sem referências do seu papel na cena. Os
serviços ainda não conseguiram equacionar uma orientação mais estruturada
para esse personagem, porém têm uma avaliação muito positiva da sua
incorporação, assim como as parturientes.
5.2.4. A extinção dos procedimentos de limpeza ritual
Os procedimentos de despoluição ritual das mulheres (Jordan, 1997;
Davis-Floyd, 1997), como a tricotomia e a lavagem intestinal, virtualmente
foram extintos nos dois serviços. Essa não é uma mudança pequena, dada seu
caráter simbólico e a adesão de outros serviços e do aparelho formador a essas
rotinas.
Esta é uma mudança considerada fácil de implementar, segundo os
informantes, por ser realizada pelas auxiliares de enfermagem, que por seu
lugar na hierarquia, se recusariam menos a obedecem essas recomendações.
Vale a pena lembrar também que o parto normal não necessita de
ambiente cirúrgico, nem do seu aparato, e que a exigência do uso de roupas
especiais para a parturientes e acompanhantes serve principalmente a
umafinalidade ritual (Wagner, 1994).
5.2.5 O acolhimento e reconhecimento da usuária, sua inclusão no
diálogo da assistência e o fim das humilhações de caráter sexual
Essa é uma mudança muito valorizada pelas mulheres, aquela do
tratamento pessoal, de ser chamada pelo nome, de ser acolhida, reconhecida
como pessoa, ser perguntada e consultada para os procedimentos, participar de
um diálogo, enfim, ter alguém que “olha na sua cara”. Esse tipo de tratamento
218
é associado ao contrato privado de assistência e sua vigência no serviço
público é tida como um grande diferencial do serviço.
É um tipo de mudança que em nada envolve insumos, apenas a
sensibilização e o treinamento dos profissionais. Mas de forma alguma é por
isso uma mudança fácil, dada a cultura prevalente de “des-reconhecimento” e
coisificação das pacientes, sobretudo no serviço público.
O uso de abuso verbal como recurso disciplinar para as pacientes, do
tipo “na hora de fazer foi bom agora não venha chorar”, é reconhecido como
algo a ser abolido no modelo humanizado, e substituído por outras formas de
comunicação mais saudáveis e solidárias.
5.2.6. Sensibilizar, treinar e monitorar os recursos humanos: “pegar na
mão” dos profissionais
Os recursos humanos e o seu convencimento para a proposta são
descritos como o fator mais decisivo para a mudança. Como não há ainda
profissionais adequados a esse novo modelo saídos do aparelho formador –
considerado um pólo de resistência à humanização e ao baseado na evidência
– é preciso treinar os profissionais. Isso implica em enfrentar as dificuldades
de tirar os profissionais e substituí-los nos plantões, e na medida do possível
remunerar ou compensar ou tempo investido na formação.
Faz-se necessária a clareza, quando da seleção, quanto ao modelo a ser
adotado pelo profissional, além de sensibilização e treinamento em serviço,
antes, durante e depois da implantação das propostas.
O monitoramento de procedimentos como a indução, a episiotomia e a
cesárea mostrou-se um dado muito importante para a avaliação do andamento
das propostas e da adesão a elas pelos profissionais, ainda que se considere
219
que o subregistro é um problema concreto, principalmente nos plantões
noturnos e no final de semana.
A presença constante dos gerentes dos serviços nos plantões é descrita
como essencial, pois é preciso “pegar na mão dos profissionais”, uma vez que
estes não têm experiência cultural ou segurança clínica com o modelo
proposto e vêm de um treinamento formal e do trabalho em outros serviços,
onde o modelo tecnocrático é o único legítimo.
No conteúdo da sensibilização e do treinamento técnico, devem estar
incluídas tanto as discussões sobre a medicina baseada na evidência, quanto
sobre os direitos humanos dos sujeitos envolvidos na cena do parto – em
especial os direitos reprodutivos. O papel dos provedores como indivíduos,
seus valores, atitudes e dificuldades devem ser contemplados no processo,
idealmente através de metodologias e dinâmicas adequadas ao tratamento
destas dimensões.
Também vimos que outro fator muito importante para a mudança é a
liderança visionária dos gerentes dos serviços, que busca convencer os seus
pares apesar do estranhamento inicial destes. Esses sujeitos parecem fazer
toda a diferença.
5.2.7. O apoio logístico, institucional e financeiro: redimensionando
valores
Cabe-nos marcar que houve um considerável reconhecimento
institucional – incluindo novas possibilidades de apoio logístico e financeiro –
das propostas de humanização da assistência ao parto, nos últimos três anos,
nos níveis local e federal. Entre as iniciativas do próprio SUS, destaca-se o
prêmio Galba Araújo. Vemos também várias iniciativas de organismos
corporativos – não sem contradição, como vimos – de médicos e enfermeiras.
220
Outro dado fundamental é o pagamento, ou a legitimidade financeira, de
certos procedimentos, como o parto assistido por enfermeira43, o que confere a
esta profissional, e ao serviço que a autoriza, um recurso inovador e
formalizado na organização da assistência.
É possível que isso aponte uma tendência, ainda bastante incipiente, do
pagamento de procedimentos com menor incorporação tecnológica e mais
relação humana. Este é o caso da presença de doulas, de massagistas, da
remuneração de procedimentos educativos, como os grupos de grávidas, ou de
informação para a montagem de um plano de parto. Essa tendência parece
fazer confluir o atendimento a várias necessidades: o de oferecer assistência
mais humanizada, mais efetiva e a custo mais aceitável.
5.2.8. O controle social – o papel das doulas e de outros recursos.
O monitoramento dos profissionais por agentes externos ao serviço,
como doulas e acompanhantes, pareceu um dos recursos mais promissores,
embora possa vir a trazer uma série de novas questões a serem manejadas,
como vimos. As doulas têm um papel duplo, de acompanhantes no parto,
melhorando a satisfação das mulheres com a experiência e diminuindo o
consumo de procedimentos, e de advocacy dos direitos da parturiente.
Isso não exclui, ao contrário, pode ser um processo sinérgico, com
outras formas de controle social, como os comitês de mortalidade materna e os
conselhos gestores.
43
É importante contrastar essa situação com a dos serviços privados, onde a cesárea é o padrão, o
típico, o normal, se nos referimos à norma estatística, mesmo do parto sem complicações. Esse
procedimento ou mesmo o parto vaginal típico com peridural exigem a presença de dois médicos e
seus auxiliares, enquanto o parto normal sem complicações assistido por enfermeira exige apenas
esta profissional, ainda que tenha profissionais médicos na retaguarda para complicações. Em
termos de adequação técnica e de custos, essa pode ser uma diferença fundamental para equacionar
o problema do acesso. Como vimos, essa mudança não se dá sem muitas contradições.
221
5.2.9. Redescrever o parto humanizado como alternativa de mulheres
poderosas, como expressão de respeito aos direitos das mulheres
Vimos que as propostas de humanização trazem inscritas novas
possibilidades de promoção e defesa dos direitos das mulheres, e muitas
dessas possibilidades estão inseridas na maneira mesma como as rotinas de
assistência se organizam. Podemos ter como exemplo o respeito à condição de
pessoa contido nas recomendações de chamar a parturiente por seu nome
próprio e incluí-la no diálogo da assistência; o respeito a seu direito à
integridade física e a estar livre de tratamento degradante ou cruel, quando se
pratica a prevenção de procedimentos evitáveis (como a episiotomia e a
manobra de Kristeller), a preservação da privacidade das pacientes e a
abolição das expressões agressivas e humilhantes dos profissionais na hora do
parto. O direito à eqüidade é promovido quando se busca organizar e melhorar
o acesso aos leitos obstétricos, assim como oferecer às mulheres a melhor
assistência baseada nas evidências científicas.
Nessa perspectiva, ao invés de se organizar a assistência com base na
prevenção ou no tratamento da patologia (o parto), propõe-se organizar os
serviços na perspectiva da promoção e da facilitação de um parto saudável,
fisiológico e da prevenção de possíveis intervenções e agravos no parto,
inclusive aqueles resultantes da assistência, como a dor iatrogênica e a lesão
genital da episiotomia desnecessária, entre outros. Pode-se imaginar, nessa
direção, “programas de promoção do parto sem intervenções” e de “prevenção
dos agravos iatrogênicos”.
Na direção oposta, a obstetrícia tem oferecido para a classe pagante a
maternidade livre do preço cultural de sofrimento, livre daquela contabilidade
222
de dores44 que confere o título de mãe sofredora e a respectiva autoridade
social que a maternidade traz - desde que aceitando os termos médicos do
acordo.
Nessa aliança terapêutica entre médico e mulher, em sua versão
reeditada para a atualidade, as mulheres também se vêem “coagidas a usar o
corpo e o sexo como meio de obter favores e direitos sociais” (Freire Costa,
1983:272). Trata-se de uma troca, de uma negociação, em que aparentemente
as mulheres brasileiras seriam as mais poderosas e mais beneficiadas pelos
médicos do que as mulheres de qualquer outro país, conseguindo negociar
menos seqüela e mais alívio da dor.
Um parto seguro, moderno, indolor, conveniente em horários e datas,
planejável, sem genitais sangrentos ou gemidos. Como nos vídeos de parto45
tão em moda atualmente em São Paulo, a imagem moderna do parto conta
com a mãe maquiada e penteada, nenhum gemido, mas o som new age ao
fundo; sem qualquer sangue, voz ou pele exposta, com o surgimento mais ou
menos súbito do bebê nas imagens registradas, que são praticamente as
mesmas, seja nas cesáreas, seja nos raros partos normais. A imagem é aquela
em que o esforço, as secreções, os cheiros, os gemidos, o inesperado, o
imprevisível, tudo mais que possa haver de humano está abolido. As mulheres
estão redimidas também de qualquer culpa, pois escapam do sofrimento pelo
44
A idéia de uma contabilidade de dores físicas e emocionais é uma constante em várias culturas,
aparecendo em muitos discursos como se fosse uma moeda com as quais as mulheres “compram”
sua autoridade, seu entitlement, junto à família e à sociedade (IRRRAG, 1998).
45
Os vídeos de parto são uma tradição na assistência ao parto no Brasil da última década. Em um
dos hospitais privados conhecidos da autora, o serviço de vídeo é oferecido como parte do pacote de
hotelaria do hospital e só pode ser comprado à empresa ligada à instituição; o uso de câmara
filmadora ou fotográfica é proibido, numa apropriação indébita das imagens dos clientes. O vídeo
do parto oferecido pelo serviço é transmitido a um telão localizado em um salão do hospital, em
tempo real, para parentes e amigos. A imagem do bebê também fica disponível, com dados sobre o
seu nascimento, em um berçário virtual.
223
qual deveriam pagar sua condição e sua autoridade de mãe, e com a bênção
médica.
Numa interpretação oposta do mesmo fenômeno, se poderia descrever a
mulher que escolhe a cesárea agendada como aquela vulnerável, mal
informada, submetida aos desejos alheios – de profissionais, de maridos –,
obediente a autoridades e capaz de qualquer sacrifício por amor, como se
submeter à cesárea ou aceitar sem questionamentos a episiotomia para
preservar sua desejabilidade sexual, preservando a vagina, no primeiro caso,
ou permitindo seu corte e reparo no segundo (sem o qual, como vimos, diz-se
que os maridos voltam ao serviço de saúde para reclamar). Essa não seria a
mulher que adere a uma situação vantajosa para ela na negociação de poder
social relativo à maternidade, mas a que confisca, que cede a sua integridade
corporal e pessoal, iludida por um discurso que a deprecia e exige que se
submeta a um ritual de mutilação, seja cortada “por cima ou por baixo”, como
forma de se ver socialmente sancionada no papel de mater dolorosa moderna
que escapou da dor46.
As propostas de humanização do parto vêm oferecer uma alternativa
positiva de imagem da parturiente, a daquela que enfrenta com sucesso,
coragem, saúde e dignidade o parto vaginal. Nesse novo imaginário, ao invés
de se submeter a procedimentos dolorosos e obsoletos, decide sobre os
procedimentos, tem uma participação central e ativa no processo, enfrenta a
dor com coragem e auto-confiança, pare a criança com os recursos do seu
próprio corpo e emerge da experiência como poderosa, auto-suficiente e sem
nenhum corte, sutura ou efeito colateral de drogas. Ela emerge do Éden com
46
A busca e a adesão ao parto indolor pelas mulheres vem desde a antiguidade clássica. Mas como
adesão ao modelo médico de alívio da dor, ganha impulso a partir da década de 10 do século XX,
com a invenção do sono crepuscular (twilight sleep), uma mistura de morfina e escopolamina. Esta
foi uma reivindicação das sufragistas, e nos EUA chegou a haver uma Associação Feminina pelo
Sono Crepuscular (Diniz, 1997).
224
sua vagina poderosa, ilesa. Essa imagem é diferente daquela mulher vítima de
sua biologia, a mater dolorosa cortada e remendada do modelo de parto
vaginal típico, tecnocrático.
Em oposição à imagem da mulher poderosa e socialmente amparada,
que por sua autoridade pode convencer o médico a respeitar sua decisão sobre
sua forma de parto e por isso escolhe a cesárea como alternativa que mais a
beneficia e preserva, restava a imagem da mulher masoquista, conservadora,
essencialista, vitimizada ou incapaz de fazer valer o seu direito a proteção e
amparo. Entre essas mulheres vitimizadas estariam aquelas muitas mulheres,
como mostram vários estudos, que querem o parto normal, porém este é
inviabilizado pela assistência.
Agora surge a imagem da mulher que, por seu poder e suporte social,
consegue adequar a assistência às suas necessidades e não o contrário:
orientada pelas evidências científicas, ela escolhe o caminho de parir
ativamente e exige dos serviços que se organizem em função de sua escolha e
não o contrário. Ela exerce o direito à escolha mas sem se deixar levar pela
propaganda enganosa dos “sem-evidências”.
Entre essa imagem estereotipada de mulher parideira moderna, forte e
corajosa, baseada na evidência e consciente dos seus direitos, por um lado, e o
estereótipo oposto da mulher alienada, obsoleta, desinformada e vitimizada,
que se submete à cesárea coagida e enganada ou para fugir do parto típico, por
outro lado, existe todo um espectro de possibilidades. Aqui, o mérito das
propostas de humanização é justamente criar um pólo alternativo de exercício
de direitos, onde antes existia pouca escolha além da cesárea como parto ideal.
5.3. Lacunas do percurso e questões para a pesquisa
225
Cada escolha feita no decorrer do estudo, daquilo o que abordar e o que
descartar, resultou no quadro final que ora apresentamos, em seus alcances e
limites. O percurso do trabalho descortinou um conjunto de questões
inexploradas, naquilo que poderia ter sido escolhido como foco para a análise,
que descreveremos abaixo. Não nos arrependemos das escolhas feitas, porém
reconhecemos, com uma certa pena, a atração das demais possibilidades,
aquelas descartadas pelos limites do tempo e pelos limites da própria autora.
Uma das lacunas a ser mais bem explorada é o universo das propostas
de humanização da assistência dirigidas à classe média, que têm sido
implementadas nos últimos cinco anos na rede privada, em parte devida à
reação frente a taxas de cesárea consistentemente acima de 80% naqueles
serviços. Toda uma gama de serviços chamados humanizados está sendo
desenvolvida com o objetivo, nas palavras dos profissionais daqueles serviços,
da fidelização da clientela, incluindo desde novas formas de relação com os
usuários, novas instalações de parto com salas de parto normal luxuosas, ainda
que ociosas, e o uso de tecnologia digital para aproximar o paciente internado
de seus familiares. Esse é todo um novo campo de apropriação do termo, com
uma lógica aparentemente distinta da aqui trabalhada, com repercussões sobre
a prática ainda pouco conhecidas, apesar de ser esse o setor “formador de
opinião” e de grande impacto potencial na opinião pública especializada e
leiga.
Outra lacuna importante é o que pensam as mulheres com relação ao
parto. Quais têm preferência pelo parto vaginal ou pela cesárea, e por que?
Como elas avaliam as suas experiências, qual a sua satisfação ou insatisfação
com a experiência? Muito tem se falado em nome delas, mas os poucos
226
estudos disponíveis mostram uma vasta preferência pelo parto vaginal – num
paradoxo com a realidade que merece ser melhor explorado.
Outro campo que teria merecido uma maior exploração, mesmo nos
limites deste trabalho, é o crescente papel das enfermeiras obstétricas na
assistência, que tem sido estimulado, em alguns casos como o de São Paulo,
pelo aparelho formador e recebido considerável incentivo público federal, com
as políticas recentes do Ministério da Saúde de remunerar o parto feito por
obstetriz.
Entre os temas a serem explorado por sua novidade e impacto está o da
presença do acompanhante no parto, garantido por lei estadual, em especial o
estudo da presença do pai no parto em especial e no ciclo gravídico puerperal
em geral. Este é um tema fascinante para os estudos de gênero, o da chamada
“nova paternidade” (Medrado, 1999).
Os fatores financeiros e sua influência nos modelos de assistência
mereceram uma atenção restrita neste trabalho, dada à variedade das formas
de financiamento nos vários contextos e a falta de informação mais
sistemática. Tais mecanismos funcionam de forma distinta no setor público e
no privado – no qual aparentemente é um fator de grande peso na definição do
modelo. No setor público, trabalha-se com o relativo consenso de que o parto
vaginal “baseado na evidência” é o modelo a ser seguido e apoiado logística e
financeiramente. Esses fatores merecem estudos em profundidade no campo
da administração de serviços de saúde, incluindo aqueles da relação custobenefício da assistência, pois esses argumentos podem ser decisivos para
incorporação ou não do modelo tanto no âmbito privado quanto no público.
Os poucos trabalhos que identificamos apontam para resultados bastante
promissores sobre a legitimidade financeira do modelo (Ymayo, 2000;
Eberhard, 2000).
227
Outro campo que merece uma atenção cada vez maior é aquele da busca
de evidências que apóiem a prática. Mesmo com o enorme avanço que
significa a sistematização e divulgação pela Biblioteca Cochrane e suas
publicações, muitos dos procedimentos na assistência ao parto que
observamos carecem de avaliação adequada, mesmo aqueles mais comuns.
Citaremos aqui dois dos que mais nos chamaram a atenção. Primeiro, como
vimos, a manobra de Kristeller, que apesar de proscrita, continua muito
presente no dia-a-dia dos serviços, porém “invisível” ao prontuário, pois
sequer é registrada, uma vez que não deveria ser realizada. No estudo de Chor
e cols (2000) em duas maternidades no Rio de Janeiro, identificou-se a
realização dessa manobra em 46% dos partos numa maternidade pública e em
53% em uma conveniada, o que reflete a disseminação dessa manobra na
cultura obstétrica brasileira, sem que haja qualquer estudo do seu impacto.
Uma segunda questão que chamou a nossa atenção sobre a falta de
evidências claras foi a anestesia utilizada para a episiotomia e sua sutura
(episiorrafia); como em todos os casos observados as mulheres se queixam
muito do procedimento, fomos levadas a questionar a eficácia do
procedimento anestésico. O que é adequado para a dor que a mulher sente
quando tem sua vulva cortada e suturada? Sequer encontramos evidências
conclusivas sobre o tema. Fomos informadas que, de fato, a anestesia feita por
bloqueio do nervo pudendo é inadequada, seja por ser simplesmente ineficaz,
seja por ser uma técnica sofisticada para a qual os profissionais são mal
treinados e raramente a sabem utilizar. Dois dos nossos informantes
descreveram a anestesia da episiotomia e da episiorrafia como “hipocrisia”. A
conseqüência é um procedimento – a episiotomia – que deveria ter uso restrito
(acredita-se que entre 5 e 15%) usado em um grande número de mulheres, que
228
dele não se beneficiariam, mas que, além das conhecidas seqüelas, sofrerão
um procedimento muito doloroso e virtualmente sem anestesia.
Mais uma vez, nas questões relativas à sexualidade e à cultura sexual e
reprodutiva brasileira, em sua relação com a cultura médica, há todo um
campo a ser explorado pelas pesquisas, tanto mais propriamente das ciências
sociais quanto mesmo da saúde coletiva, exigindo um tipo de abordagem e
análise que façam justiça à complexidade do tema. O campo da saúde coletiva
em muito se beneficiará de uma ampliação dessa temática, mesmo para a
compreensão dos paradoxos da organização de serviços e práticas.
Por fim, duas questões emergem como muito relevantes, para pesquisas
posteriores, as duas relacionadas ao quadro de mudanças na relação
profissionais e usuárias e o papel da informação. A primeira delas é a
experiência brasileira na utilização dos chamados planos de parto. Estes são
instrumentos educativos através dos quais a gestante ou o casal passa a
conhecer todas as alternativas disponíveis na assistência ao parto,
considerando aquele sem intercorrências, ou mesmo em situações especiais,
nas quais procedimentos invasivos estejam indicados. A partir desse
conhecimento, a mulher desenha seu projeto de assistência e o negocia com o
profissional ou o serviço. Essa concepção “liberal” de assistência parte do
suposto de uma relativa simetria entre a usuária e o provedor, em que ela tem
um relativo direito a decidir, com base na chamada “escolha informada”.
Acreditamos que esse possa ser um instrumento importante de mudança nas
práticas, tanto nos contextos privados em que, acreditamos, a maioria escolhe
uma cesárea por ter acesso a informações muito parciais e pouco orientadas
pelas evidências de segurança e satisfação, quanto mesmo no setor público.
Qual
seria
o
papel
da
informação
e
da
educação
dos
consumidores/usuárias nesse novo modelo de trabalho, inclusive na
229
formulação dos planos de parto e do desenvolvimento de novas formas de
comunicação entre provedores e usuárias? Aqui podemos incluir os estudos
sobre como prevenir os agravos iatrogênicos e promover a saúde e a satisfação
com o parto (Renfrew e cols, 1998), como mais um importante campo para a
Medicina Preventiva.
Nessa mesma direção, a do papel que a informação passa a ter no
momento atual e suas conseqüências na assistência, temos o recente
surgimento de sites e listas eletrônicas de usuárias, de profissionais e mistas,
que estimulam alternativas humanizadas, criando uma comunidade virtual
crescente e promissora.
Os resultados dessas novas formas de ativismo já começam a se
mostrar, contribuindo para inaugurar uma nova etapa desse debate: o
deslocamento da discussão meramente técnica para a da negociação de
necessidades e direitos daqueles sujeitos humanos envolvidos na cena do
parto.
230
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SUS terá “casas de parto” – “Só faz sentido onde não há médico” – Jornal do
Cremesp – p. 11. Ano XVIII – n. 144 Agosto 1999.
A humanização de hospitais - Jornal do Cremesp – p. 11. Ano XVIII – n. 148
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Considerações a respeito da nova Lei da Laqueadura - Krikor Boyaciyan – Opinião
- Jornal da Sogesp – n. 3– 1998.
“Perdemos a capacidade de nos indignar”. Entrevista com Marcelo Zugaib - Jornal
da Sogesp – n. 3– 1998.
Não se fazem mais parteiros como antigamente – Entrevista com Bussâmara Neme Jornal da Sogesp - n. 5 – 1999.
Maternidade do Hospital Ipiranga – Modelo de atendimento Humanizado - Jornal
da Sogesp - n. 5 – 1999.
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O melhor seguro é a boa relação médico-paciente - Roberto Junqueira Torquato –
Sogesp em Ação - Jornal da Sogesp - n. 5 - 1999.
Também para o recém-nascido, natural é o parto normal – Jornal da Sogesp - n. 6 1999
Como Reduzir a Mortalidade Materna – Krikor Boyaciyan e Nilson Roberto de
Melo - Jornal da Sogesp – n. 7 – 1999.
Defesa profissional em debate – Congresso Sudeste - Jornal da Sogesp - n. 9 – 1999.
O falso erro médico – William Abrão Saad - Debate - Jornal da Sogesp - n. 9
1999.
O “absurdo do abuso” na arte e ciência obstétrica – Índice abusivo de cesáreas
pode ser contornado com a volta do professor na sala de parto. Luiz Camano Jornal da Sogesp - n. 9 – 1999.
O círculo vicioso na prática da Medicina – Sérgio Roucourt - Zoom - Jornal da
Sogesp - n. 11 – 1999.
Casas de parto – Firmeza e certeza no grande engano – Saúde Pública - Jornal da
Sogesp - n. 12 – 1999.
Marketing em Saúde – Modelo Perverso leva atividade médica ao absurdo –
Entrevista com Mário Afonso Maluf - Jornal da Sogesp - n. 12 – 1999.
Os problemas do limite de 37% de cesárea pelo SUS – Jornal da Sogesp – n. 13 1999.
Congresso do Guarujá – Solução em vez de erudição - Jornal da Sogesp – n. 13 –
1999.
Casa de Saúde Santa Marcelina - A Paciente como ser humano integral - Jornal da
Sogesp n. 14 – 2000.
Congresso do Guarujá – Soluções dependem da união dos ginecologistas e
obstetras - Jornal da Sogesp – n. 14 – 2000.
Tragédia Ignorada – Editorial - Jornal da Sogesp – n. 18 – 2000.
FEMINA
A Consciência da Moderna Paternidade - César Pereira Lima - FEMINA n. 1 –
Janeiro 2000.
Breve Histórico da Maternidade da santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro –
Jorge de Rezende - FEMINA n. 1 – Janeiro 2000.
242
De atores a Inquisidores – ou o outro lado da meia-noite - César Pereira Lima,
Cláudia Pereira Lima - FEMINA n. 2 – Março 2000
Mortalidade Materna no Ceará – César Pereira Lima - FEMINA n. 4 – Maio 2000.
Os Porquê – Um deles é para vocês responderem – Moysés Paciornik - FEMINA n.
7 –1999.
Calibrando a Medicina - César Pereira Lima - FEMINA n. 5 –1999.
O código de ética e a Tocoginecologia – Amadeu P. da Silva Filho – Jayme Moysés
Burlá. – FEMINA n. 4 – 1999.
243
Anexo 1
Roteiro piloto para entrevista 1
Profissional de saúde
Explico que se trata de um de questionário para uma pesquisa sobre a percepção de
profissionais e pacientes sobre a assistência ao parto, se se dispõe a contribuir. A
entrevista durará cerca de 40-60 minutos.
Como veio a tornar-se obstetra/pediatra/enfermeiro/a. Motivações. Como escolheu a
especialidade, já na graduação. Fez residência? Esta correspondeu ao que idealizava?
O que acha da profissão tal como exerce atualmente? Profissão tal como idealizada e
situação concreta. Tipo de vínculos com clientela e instituições.
Como avalia seu trabalho, do que mais e o que menos gratifica/gosta.
(Pedir situações concretas depois da descrição abstrata)
Do que consiste seu “estilo” de assistência: como conduz um parto normal, sem
intercorrências. Contar do último parto que acompanhou. Se há diferenças do modelo
proposto, explorar como o profissional as explica.
Para obstetra: Perguntar especificamente, depois da descrição, indicações de: a)
enteroclisma; b) tricotomia c) indução; d) analgesia; e) fórceps; f) posição de trabalho de
parto e parto; g) episiotomia; h) orientações para puxos; i) manejo do puerpério imediato j)
presença de acompanhantes.
Para pediatra e enfermeira/o: listagem de condutas
Há diferença de procedimentos relativa a diferentes inserções profissionais (pacientes
privadas X institucionais/”de plantão”; em diferentes serviços, etc.)?
Se você pudesse mudar algo da maneira como você trabalha, o que você mudaria? Pense
numa situação idealizada, em termos das pacientes e das instituições.
Você já enfrentou alguma situação no seu trabalho (com relação às pacientes, às condições
de trabalho, à relação com colegas, etc.) que você considerou injusta/ que deixou você
revoltado/a? (Com relação à violação de sua dignidade como pessoa e/ou profissional e de
outros, pacientes ou colegas)
Você tem tomado conhecimento propostas para a assistência, feita pela assim chamada
medicina baseada na evidência (explorar especificamente as recomendações da OMS/96)?
Se sim, qual a sua opinião sobre estas propostas?
Você tem tomado conhecimento das propostas sobre humanização do parto?
Se sim, qual a sua opinião sobre estas propostas?
Quais seriam os “adiantos”/possibilidades/vantagens, e limites/obstáculos/desvantagens/
problemas que estas propostas colocam para o trabalho do obstetra/pediatra/enfermeiro/a?
Que mais você gostaria de comentar?
Agradecimento pela participação.
244
Anexo 2
Roteiro piloto para entrevista 2
Paciente
Explico que se trata de um de questionário para uma pesquisa sobre a percepção de
profissionais e pacientes sobre a assistência ao parto, se se dispõe a contribuir. A
entrevista durará cerca de 40-60 minutos.
Como esta gravidez chegou na sua vida? Foi planejada/ desejada/aceita? Como foi a
experiência da gravidez (impressão geral). Mapear condições especiais de risco.
Como e quando iniciou o pré-natal?
O que achou da assistência
-
facilidade de acesso a serviço – tipo de inserção: público, privado, convênio (explorar
tempo de espera para consulta e exames)
-
comunicação com o profissional : explicação sobre exames e andamento da gravidez
-
dúvidas na gravidez e como lidou com elas
-
eventuais complicações: como foram manejadas
-
plano de parto: informações no pré-natal sobre procedimentos ou acesso.
Acesso ao serviço quando do trabalho de parto ou indicação de cesárea
Recepção. Condutas no internamento.
Verificar em cada conduta: comunicação de sua realização, pedido de cooperação ou
autorização. Reação dos profissionais em caso de queixa/conflito. Perguntar
especificamente, depois da descrição espontânea: a) enteroclisma; b) tricotomia c) indução;
d) analgesia; e) fórceps; f) posição de trabalho de parto e parto; g) episiotomia; h)
orientações para puxos; i) manejo do puerpério imediato j) presença de acompanhantes.
Você enfrentou alguma situação no seu parto que você considerou injusta/ que deixou você
revoltada? (Com relação à violação de sua dignidade como pessoa)
Você já ouviu falar das propostas sobre humanização do parto?
Se sim, qual a sua opinião sobre estas propostas?
Que mais você gostaria de comentar?
Agradecimento pela participação.
245
Anexo 3
De: Dra. Simone G. Diniz
Para: Ilmo Dr.
Diretor Técnico de Divisão Médica
Hospital Independência
Fax: 2156449
São Paulo, 4 de outubro de 2000
Prezado Dr.Fulano,
Venho através desta informar do andamento da pesquisa que estamos desenvolvendo e da
participação do hospital no referido estudo. Estamos formalizando os contatos que temos
feito com o dr. Cláudio Tobias desde julho do corrente ano, com relação à realização de
entrevistas e de observação de plantões neste hospital, como parte do projeto de “Entre a
Técnica e os Direitos Humanos – Limites e Possibilidades das Propostas de Humanização
do Parto” .
Como discutido anteriormente nas visitas a este hospital, esta pesquisa faz parte do projeto
de doutorado em Medicina Preventiva, na Faculdade de Medicina da USP, sob a orientação
do Prof. Dr. José Ricardo de Mesquita Ayres, apoiado pela FAPESP. O estudo parte da
constatação de que a assistência ao parto tem sido avaliada como uma das áreas da prática
médica menos orientada pela evidência científica sobre a segurança e eficácia dos seus
procedimentos, e também mais permeável a influências não-técnicas, sobretudo aquelas
relativas às relações sociais de gênero e às necessidades institucionais e financeiras dos
sistemas de saúde.
No caso brasileiro, os vários problemas que enfrentamos (uma tendência de substituição do
parto vaginal pela cesárea como rotina em muitos serviços; as dificuldades do acesso a
leitos; a permanência de muitos procedimentos de rotina já abandonados em outros países,
etc.) têm levado a uma crítica sobre a desumanização e mesmo sobre a violência nesta
forma de assistência. Apesar da evidência em contrário, estas distorções são
freqüentemente justificadas pelos profissionais com argumentos considerados científicos e
ainda reproduzidos na formação dos recursos humanos.
No sentido de transformar esta realidade, tem havido importantes esforços internacionais
para sistematizar a evidência científica acumulada e organizá-la em recomendações
práticas, expressas por documentos da Organização Mundial da Saúde (1985;1996). Estes
novos paradigmas têm sido recentemente incorporado por organismos nacionais, como o
Ministério da Saúde, levando à criação de incentivos como o Prêmio Galba de Araújo.
No decorrer do estudo, vimos que a observação participante de serviços poderia ser um
recurso valioso, e nospropusemos a observar serviços que se dispuseram à mudança, como
foi o caso das duas maternidades melhor classificadas no Prêmio Galba de Araújo de 1999
em São Paulo, o Maternidade do Hospital Santa Efigênia e a Maternidade do Hospital
Independência. Assim nós os procuramos para este trabalho, que pretendemos possa
contribuir com a missão do serviço de oferecer uma assistência humanizada e segura ao
246
parto, partilhando o resultado de nosso trabalho de forma crítica, como convém a um estudo
científico, porém preservando a confidencialidade da informação e o compromisso com o
bom desenvolvimento da proposta. Para isso, estamos utilizando um formulário de
consentimento informado para o acompanhamento dos partos, eventuais fotografias e
eventual acesso ao prontuário, como é usual atualmente nos estudos desta natureza.
O trabalho usará uma combinação de metodologias qualitativas e quantitativas, incluindo
entrevistas com profissionais e parturientes de serviços públicos na cidade de São Paulo;
assim como a análise de dados quantitativos secundários resultantes de pesquisas recentes
sobre o tema, e de documentos nacionais e internacionais pertinentes.
Como estudo orientado à ação, este trabalho inclui a organização de um seminário sobre as
referidas mudanças, de forma a promover um diálogo mais produtivo entre os vários atores
sociais envolvidos no problema. A pedido do dr. Cláudio Tobias, estaremos à disposição
para a apresentação do trabalho em reuniões clínicas e/ou com os residentes.
Além do meu trabalho em visitas e entrevistas, a observação estará sendo conduzida pela
antropóloga Regina Facchini, colaboradora deste trabalho; solicitamos que para ela sejam
facilitados o acesso ao serviço através do porte de um crachá adequado a este papel.
Vimos também agradecer a confiança e a abertura da direção do hospital a esta proposta e
nos colocamos à disposição para quaisquer informações adicionais,
Atenciosamente,
Carmen Simone Grilo Diniz
Coordenadora da Pesquisa
Seguem originais pelo correio
CC para dr. Cláudio Tobias
Contatos
Endereços:
- Residência: Rua João Ramalho, 586/61-C Perdizes, São Paulo – SP CEP 05008-000
- Departamento de Medicina Preventiva – Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo – Rua Dr. Arnaldo, 455, 2º andar. (Prof. Dr. José Ricardo M. C. Ayres)
e-mail [email protected]
Tel/fax 3673 4027
247
Anexo 4
FORMULÁRIO DE CONSENTIMENTO INFORMADO
Bom dia / boa tarde / boa noite, meu nome é _______________________.
Junto com minhas colegas, estamos fazendo uma pesquisa aqui na
Maternidade do Hospital Santa Marcelina do Itaim Paulista/Ipiranga sobre
como melhorar o atendimento ao parto, e para saber mais sobre o que as
mulheres, as famílias e os profissionais de saúde pensam a respeito das
experiências de assistência humanizada ao parto. A pesquisa faz parte de um
programa de doutorado em Medicina Preventiva na Faculdade de Medicina da
USP.
Para isso, estamos acompanhando o parto de algumas mulheres aqui no
hospital, e se você permitir, gostaria de estar presente no seu parto. Sua
participação é totalmente voluntária (só se você quiser), mas suas experiências
podem ser uma grande ajuda para outras mulheres aqui no Brasil. Se você
aceitar fazer parte da pesquisa, eu vou anotar seu nome aqui, mas ele não vai
aparecer em nenhum lugar, pois você vai escolher um outro nome (um nome
falso).
Se você não quiser participar da pesquisa, isto não tem nenhum problema para
você, que será atendida com o mesmo carinho e atenção pelo hospital.
Você tem alguma dúvida? (Anotar e responder as dúvidas, eventualmente
incluí-la como esclarecimento, por escrito)
Consentimento para a observação do parto
(
) SIM, consinto
(
) NÃO consinto
Como você que seu nome apareça (escolha um nome falso)_______________
_______________________________________________________________
Estamos também perguntando às mulheres/famílias, se elas querem ser
fotografadas no seu parto. Mesmo que você autorize as fotos, elas só serão
feitas QUANDO você concordar – você tem todo o direito de dizer “AGORA
eu não quero”. Se você autorizar, você terá cópia das fotos, que ficarão ao seu
dispor aqui no hospital.
248
Você tem alguma dúvida? (Anotar e responder as dúvidas, eventualmente
incluí-la como esclarecimento, por escrito)
Consentimento para fotografar o parto
(
) SIM, consinto
(
) NÃO consinto
Como você sabe, hoje em dia se considera que a ficha médica (o prontuário,
onde anotam tudo sobre o seu atendimento), é da paciente, ou seja, você tem
todo o direito a ler a ficha e entender as anotações. Se eu necessitar consultar a
sua ficha para entender melhor o seu parto, você me autoriza a olhá-lo?
Você tem alguma dúvida? (Anotar e responder as dúvidas, eventualmente
incluí-la como esclarecimento, por escrito)
Consentimento para acesso ao prontuário
(
) SIM, consinto
(
) NÃO consinto
Nome da paciente por extenso
_______________________________________________________________
Assinatura da paciente
_______________________________________________________________
Assinatura pesquisadora
São Paulo, ______de _______________de 2000.
249
Anexo 5
Assistência ao Parto Normal – Um Guia Prático –
Organização Mundial de Saúde, 1996
(World Health Organization. Care in Normal Birth: A Practical Guide. Maternal and
Newborn Health/ Safe Motherhood Unit. Geneva: WHO, 1996)
Cap. 6 - CLASSIFICAÇÃO DE CONDUTAS NO NASCIMENTO NORMAL
Este capítulo classifica as práticas comuns e as condutas na categorias de
partos normais, dependendo da utilidade delas, efetividade e complicação. A
classificação reflete a visão do Grupo de Trabalho Técnico em Nascimento
Normal. Argumentos para esta classificação não são determinados aqui. O
leitor tem a referencia do capítulo precedente que é o resultado da reflexão e o
debate do Grupo de Funcionamento baseada na melhor evidência disponível
(números de capítulos entre parênteses).
CATEGORIA A:
6.1. Condutas que são claramente úteis e que deveriam ser encorajadas
1. Realizar um plano pessoal que determine onde e por quem será
assistido o nascimento: se será feito com a pessoa que atendeu a mulher
durante a gravidez e se conhece marido ou companheiro dela e, se
aplicável, para a família (1.3).
2. Avaliar os fatores de risco da gravidez durante o cuidado pré-natal,
reavaliado a cada contato com o sistema de saúde e durante todo o tempo
desde o primeiro contato com o obstetra durante o trabalho de parto e
parto (1.3).
3. Monitorar o bem-estar físico e emocional da mulher ao longo do
trabalho de parto e parto, assim como o desfecho do processo do
nascimento (2.1).
4. Oferecer líquidos orais durante o trabalho de parto e parto (2.3).
250
5. Respeitar a escolha informada pelas mulheres do local do nascimento
(2.4).
6. Prever cuidados durante o trabalho de parto e parto onde o nascimento
será possivelmente realizado com segurança e confiança para a mulher
(2.4, 2.5).
7. Respeitar o direito de isolamento das mulheres no local do nascimento
(2.5).
8. Enfatizar o apoio através dos obstetras durante o trabalho de parto e
parto (2.5).
9. Respeitar a escolha de companhia durante o trabalho de parto e parto
(2.5).
10. Oferecer às mulheres muita informação e explicações sobre o que
elas desejarem (2.5).
11. Não utilizar métodos invasivos nem métodos farmacológicos para
alívio da dor durante o trabalho de parto e parto e sim métodos como
massagem e técnicas de relaxamento (2.6).
12. Fazer monitorização fetal com ausculta intermitente (2.7).
13. Usar materiais descartáveis ou realizar desinfeção apropriada de
materiais reutilizáveis ao longo do trabalho de parto e parto (2.8).
14. Usar luvas no exame vaginal durante o nascimento do bebê e na
dequitação da placenta (2.8).
15. Dar liberdade na seleção da posição e movimento durante o trabalho
do parto (3.2).
16. Encorajar posição não supina no parto (3.2; 4.6).
17. Monitorar cuidadosamente o progresso do trabalho do parto, por
exemplo pelo uso do partograma da OMS (3.4).
251
18. Utilizar ocitocina profilática na terceira fase do trabalho de parto em
mulheres com um risco de hemorragia pós-parto, ou com risco em
constante, ainda que pequena perda de sangue (5.2; 5.4).
19. Esterilizar adequadamente o corte do cordão (5.6).
20. Prevenir hipotermia do bebê (5.6).
21. Realizar precocemente contato pele a pele, entre mãe e filho, dando
apoio na iniciação de alimentação ao peito dentro de 1 hora do pós-parto,
conforme diretrizes da OMS sobre alimentação ao peito (5.6).
22. Examinar rotineiramente a placenta e as membranas (5.7).
CATEGORIA B:
6.2. Condutas claramente prejudiciais ou ineficazes e que deveriam ser
eliminadas
1. Uso rotineiro de enema (2.2).
2. Uso rotineiro de raspagem dos pelos púbicos (2.2).
3. Infusão intravenosa rotineira em trabalho de parto (2.3).
4. Inserção profilática rotineira de cânula intravenosa (2.3).
5. Uso rotineiro da posição supina durante o trabalho de parto (3.2, 4.6).
6. Exame retal (3.3).
7. Uso de pelvimetria radiográfica (3.4).
8. Administração de ocitócicos a qualquer hora antes do parto de tal
modo que o efeito delas não possa ser controlado (3.5).
252
9. Uso rotineiro de posição de litotomia com ou sem estribos durante o
parto (4.6).
10. Contínuo uso de puxos dirigidos (manobra de Valsalva) durante o
período expulsivo (4.4).
11. Massagens ou estiramento do períneo durante o parto (4.7).
12. Uso de tabletes orais de ergometrina na dequitação para prevenir ou
controlar hemorragias (5.2; 5.4).
13. Uso rotineiro de ergometrina parenteral na dequitação (5.2).
14. Lavagem rotineira do útero depois do parto (5.7).
15. Revisão rotineira (exploração manual) do útero depois do parto (5.7).
CATEGORIA C:
6.3. Condutas sem evidência suficiente para apoiar uma recomendação e que,
deveriam ser usadas com precaução, enquanto pesquisas adicionais
comprovem o assunto.
1. Método não farmacológico de alívio da dor durante o trabalho de
parto, como ervas, imersão em água e estimulação nervosa (2.6).
2. Uso rotineiro de amniotomia precoce durante o início do trabalho de
parto (3.5).
3. Pressão do fundo do útero durante o parto (4.4).
4. Manobra relatada para proteger o períneo e retenção da cabeça do feto
no momento do nascimento (4.7).
5. Manipulação ativa do feto no momento de nascimento (4.7).
253
6. Utilização de ocitocina rotineira, tração controlada do cordão ou
combinação de ambas durante a dequitação (5.2; 5.3; 5.4).
7. Clampeamento precoce do cordão umbilical (5.5).
8. Excitação do mamilo para aumentar contrações uterinas durante a
dequitação (5.6).
CATEGORIA D:
6.4. Condutas freqüentemente utilizadas de forma inapropriadas
1. Restrição de comida e líquidos durante o trabalho de parto (2.3).
2. Controle da dor por agentes sistêmicos (2.6).
3. Controle da dor através de analgesia peridural (2.6).
4. Monitorização fetal eletrônica (2.7).
5. Utilização de máscaras e vestidos estéreis durante o atendimento do
parto (2.8).
6. Exames vaginais freqüentes e repetidos especialmente por mais de um
assistente (3.3).
7. Aumento de ocitocina (3.5).
8. Movimentar rotineiramente a parturiente para um quarto diferente para
ser atendido o parto (4.2).
9. Cateterização da bexiga (4.3).
10. Encorajamento à mulher para realizar puxos quando a dilatação ainda
que completa ou quase completa do colo forem diagnosticadas, antes que
a mulher sinta o desejo para puxar (4.3).
254
11. Aderência rígida para uma duração estipulada do trabalho de parto
como 1 hora, se as condições maternas e do feto forem boas e se houver
progresso do trabalho de parto (4.5).
12. Parto operatório (4.5).
13. Uso liberal ou rotineiro de episiotomia (4.7).
14. Exploração manual do útero depois do parto (5.7).
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Papers by the authors in PDF - Coletivo Feminista Sexualidade e