NÚMERO TEMÁTICO
“Formação
e revisão do cânone”
UEMS – UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE CAMPO GRANDE
REITOR
Fábio Edir dos Santos Costa
VICE-REITOR
Eleuza Ferreira Lima
GERENTE DA UUCG
José Carlos Barreto dos Santos
COORDENADORES DA REVELL
Danglei de Castro Pereira
Daniel Abrão
Editores do Número
Danglei de Castro Pereira
Daniel Abrão
Ravel Giordano Paz
COMITÊ CIENTíFICO
Aparecida Arguelho de Souza (UEMS)
Antonio Rodrigues Belon (UFMS)
Benjamin Abdala Junior (USP)
Cilaine Alves (USP)
Danglei de Castro Pereira (UEMS)
Daniel Abrão (UEMS)
Fabio Akcelrud Durão (UNICAMP)
Fábio Dobashi Furuzato (UEMS)
Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL)
Gregório Foganholi Dantas (UFGD)
José Batista Sales (UFMS)
Lucilo Antonio Rodrigues (UEMS)
Milena Magalhães (UNIR)
Paulo Custódio de Oliveira (UFGD)
Rauer Rodrigues (UFMS)
Regina Zilberman (UFRGS)
Rogério da Silva Pereira (UFGD)
Rosana Nunes Alencar (UNIR)
Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS)
Sandra A. F. Lopes Ferrari (IFRO)
Susanna Busato (UNESP)
Susylene Dias Araújo (UEMS)
DIAGRAMAÇÃO E FORMATAÇÃO
Danglei de Castro Pereira e Ravel Giordano Paz
O conteúdo dos artigos e a revisão linguística e ortográfica dos textos são de responsabilidade dos
autores.
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO....................................................................................04
DIMENSÕES DA POÉTICA E A DESCANONIZAÇÃO DA
VERDADE NA LITERATURA BRASILEIRA
João Carlos de Souza Ribeiro (UFAC).......................................................05
A COMPOSIÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO E AS MARGENS
INCONSTANTES DA LITERATURA OCIDENTAL
Juliana Bezerra de Oliveira Sachinski (PG-UEMS)....................................20
O CÂNONE LITERÁRIO E AS EXPRESSÕES DE MINORIAS:
IMPLICAÇÕES E SIGNIFICAÇÕES HISTÓRICAS
Lizandro Carlos Calegari (URI-FW/RS).....................................................29
JOSEFINA PLÁ: UM EXPOENTE FEMININO NA LITERATURA
HISPANO-AMERICANA
Andre Rezende Benatti (PG-UFMS/Capes)................................................49
JOSELY V. BAPTISTA – UM EXEMPLO DE POESIA
CONTEMPORÂNEA
Adriano R. Smaniotto (PG-UFPR)..............................................................56
UM INCÔMODO ROMANCE DE JOSÉ DO PATROCÍNIO
A SER REDESCOBERTO
Marcos Teixeira de Souza (PG-IUPERJ).....................................................62
SEDUTORA E SEDUZIDA: UMA LEITURA DO TRÁGICO
DESTINO DAS PERSONAGENS GRETCHEN, DA OBRA FAUSTO,
E MARGARIDA, DE O SEMINARISTA
Elisangela Redel (PG-UNIOEST)
Stéfano Paschoal (UNIOEST).....................................................................80
OS PREFÁCIOS DOS ROMANCES DE JOÃO MARQUES DE
CARVALHO EM FOLHETINS BELENENSES OITOCENTISTAS
Alan Victor Flor da Silva (PG-UFPA)
Germana Maria Araújo Sales (UFPA).........................................................99
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APRESENTAÇÃO
A REVELL edita seu 5º número, o 2º temático. A proposta que congrega os
trabalhos aqui publicados é discutir a formação e revisão do cânone, objeto temático que
resulta de atividades desenvolvidas dentro do Programa de Pós-Graduação em Letras da
UEMS e nos grupos de pesquisa “Literatura, História e Sociedade” e “Historiografia,
Cânone e Ensino”. Esta 5ª edição da REVELL traz contribuições de autores de várias
IES do Brasil.
Tão polêmica quanto atual, a questão do cânone recebe aqui abordagens
diversas, que vão das revisões bibliográficas mais gerais a reivindicações/discussões
canonizantes específicas, tratando, por vezes, de obras ou autores poucos conhecidos.
Abre a edição um ensaio livre de João Carlos de Souza Ribeiro, que aborda de
frente a questão da verdade (e/ou das verdades) como critério de formação do cânone.
Em estilo rebuscado, o texto parte de uma reflexão ampla, reportando a Aristóteles, para
em seguida discutir os problemas referentes à formação do cânone no Brasil, como a
dependência da historiografia e a transplantação cultural; questões cujos efeitos se
fazem sentir de formas diversas – e com consequências decisivas – nos diversos
períodos de nossa história literária, conduzindo, na visão do autor, à necessidade de uma
descanonização programática, centrada não na desqualificação dos cânones instituídos,
mas na suprassingularidade dos objetos poéticos.
Segue-se o artigo de Juliana Bezerra de Oliveira Sachinski, de visada igualmente
ampla: partindo da etimologia da palavra “cânone”, a autora expõe e contrasta as
posições sobre o tema de autores fulcrais como Borges, Bloom, Compagnon e Ítalo
Calvino.
Em seu artigo, Lizandro Carlos Calegari aborda a presença de mulheres, negros
e gays como objetos de representação e sujeitos da escrita na literatura brasileira.
Abordando narrativas de Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu e Luis Silva, o autor
busca demonstrar a imbricação dos processos de seleção canônicos com as posições de
poder, problemática que os escritores referidos transporiam para o âmbito da criação
literária ao criar espaços de representação transgressivos.
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No artigo seguinte, Andre Benatti debruça-se sobre a escritora paraguaia
Josefina Plá e discute os critérios de configuração canônica na literatura hispanoamericana, incluindo aí – em vista do privilégio concedido aos escritores homens no
âmbito desse cânone – as questões de gênero.
Já Adriano Smaniotto tenta intervir diretamente na composição do cânone
brasileiro contemporâneo, reivindicando, implícita mas incisivamente, um lugar no
mesmo para a poesia de Josely V. Baptista, marcada por estruturas e procedimentos
originais como o “bloco aerado”, cujas finalidades se ligariam diretamente a produções
de efeitos no leitor de nosso tempo.
Em seguida, Marcos Teixeira de Souza traz à cena um romance de José do
Patrocínio, para o qual reivindica, quando menos, um “expressivo valor histórico e
literário”, e cujo virtual desconhecimento por críticos e leitores se deveria à incômoda
abordagem de temas sociais, sobretudo o mito da democracia racial brasileira. Ele
próprio incômodo, o artigo de Souza é uma inquirição direta à formação do estudioso de
literatura brasileira, quiçá marcada por uma lacuna a ser preenchida com urgência.
No penúltimo artigo, Elisangela Redel e Stéfano Paschoal estudam o diálogo do
romance O seminarista de Bernardo Guimarães com o Fausto de Goethe, por meio de
suas personagens Margarida e Gretchen. Novamente se coloca, aí, a questão da
representação do feminino, mas trata-se também, sem dúvida, de afirmar – ou reafirmar
– um lugar canônico para o romance de Guimarães.
Finalmente, Alan Victor Flor da Silva e Germana Araújo Sales estudam os
prefácios do escritor paraense João Marques de Carvalho. Prefácios estes que se
prestariam a embates explícitos ou implícitos não apenas com certo leitor ideal como
entre o escritor – arvorado em suas pretensões canônicas – e seus pares, sobretudo os
adeptos da escola romântica e, no âmbito de uma disputa específica em torno do
Naturalismo, o conterrâneo Inglês de Sousa.
Trazendo a público sua 5ª edição, a REVELL tem a convicção de apresentar
uma contribuição modesta mas efetiva para as discussões em torno do cânone,
principalmente na literatura brasileira, mas também com interessantes voos
extraterritoriais.
A todos, uma boa leitura.
Editores do Número 05 da REVELL
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ENSAIO
DIMENSÕES DA POÉTICA E A DESCANONIZAÇÃO DA
VERDADE NA LITERATURA BRASILEIRA
POETICS DIMENSIONS AND DISCANONIZATION OF VERITY
IN BRAZILIAN LITERATURE
João Carlos de Souza Ribeiro – UFAC
RESUMO: A questão da poética e sua verdade como construção do cânone. Dimensões
do elemento literário e sua configuração no turno da Historiografia. Discurso histórico e
texto artístico em disjunções epistemológicas. Formulação do pensamento canônico e o
canonismo em Literatura. Falhas sistêmicas e o problema da periodização em Literatura.
A literatura consagrada e o desvio das linguagens representativas. Descanonização das
correntes históricas e a verdade na literatura brasileira. O embate entre a verdade
imposta da canonização e a emergência do discurso das poéticas no decurso do
criticismo – perspectivas.
Palavras-chave: poética, cânone, representação, descanonização, criticismo.
ABSTRACT: The poetical matter and its verity as a canon building. Literay component
dimension and its configuration in the Historiography. Historical speech and artistic text
featuring epistemological disjunctions. Canonical thinking formulation and the
canonism in Literature. Sistemic failures and the Literature periodization problem. The
consecrated literature and the deflection of representative languages. Discanonizaton of
historical currents and brazilian literature‟s verity. The clashing between canonization
established verity and speech emergency of poetics in the criticism succession –
perspectives.
Keywords: poetics, canon, representation, discanonization, criticism.
Introdução
A questão do cânone em Literatura constitui-se uma rede de complexidade, que
ancora suas premissas pari passu aos postulados seculares acerca da razão de ser do que
se apresenta como literário e sua origem no campo da Arte. Tal reflexão, portanto,
remonta à visão helênica, clarificada por Aristóteles, que a tornou um baluarte para os
estudos desta ciência ímpar, que é a Literatura; e, outrossim, por tratá-la não como
manifestação divina, através do poeta, cuja representação sempre fora mal
compreendida pelos leitores, de todos os níveis, que jamais conseguiram interpretar, a
contento, a obra de expressão literária, a mensagem cifrada no texto artístico e o
portador desta escrita, vislumbrado, muitas vezes, como um ser em transe a serviço dos
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espasmos insanos das deidades. Antes, e amplificando a problemática em tela, um
veículo único, que faz do artista mais do que uma deidade, mas um ser sensível, que
percebe e filtra todas as realidades existentes nas camadas infinitas do Real,
transportando-as para o tecido textual, alçado à condição de objeto eminentemente
artístico; um corpo estético, por excelência.
1.
O abstracionismo da problemática, acima referido, concorreu, por muitos
séculos, desde a construção de um possível edifício teórico sobre o universo da arte
escrita e sua função exeqüível, no mundo, às tentativas de teorizar o processo de criação
da obra de arte, em si, para o desmantelamento de um pensamento, que projetou o
constructo de uma verdade quase natimorta. Esse paradoxismo, com efeito, marcou as
discussões ora apresentadas, encerrando-as, todas, sem exceção, em um labirinto sem
saída e com direito à companhia bestial de um certo Minotauro, mítico, mas
essencialmente mortal. Círculo vicioso, que, em sua vertente fundadora, determinara o
traço distintivo de uma linguagem artística, incabível em postulados rígidos e
cristalizados, dada a origem daquela, que, em análise primária, emerge do turno modelar
da Poética. A Poética, neste sentido, consubstancia-se no portal único para todos os
leitores compreenderem a poiesis, que confere ao texto literário a verdade percebida
pelo artista, e que, por sua vez, transforma a linguagem ordinária em discurso singular,
para, por fim, revelar ao mundo a escrita artística: exemplar, atraente, misteriosa e
eterna.
A substância, aparentemente disforme e sem margens significativas, apresentase como corpo móvel na esfera do literário, em seu porto originário, aponta para um
horizonte, que destoa das visões estabelecidas, conduzindo os saberes edificados na
realidade objetiva para compostos teóricos, com eixos transversais e aparelhados
metafisicamente, e, finalmente, desemboca em leitos de profundidades imensuráveis.
Desse modo, apartada desse tipo de abordagem, a Literatura, que eclode no Real como
linguagem poética, desreferencializa, integralmente, o que é proclamado pelas diversas
doxas em atuação, cada uma em seu tempo, e busca, em seu corpo/corpus, o ponto de
partida para suas flexões, reflexões e inflexões. Ao desreferencializar o que está posto
como lei pétrea, a linguagem poética referencializa-se, pois aquela é desarraigada das
equações temporais e livre das amarras históricas. A despeito disto, portanto, não se
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pode canonizar o que, per si, emerge como entidade (con)sagrada, pois as leis regentes
são, irrefutavelmente, as forças vetoriais, que emergem, fenomenologicamente, do
interior da malha textual, mobilizando, dessa forma, a substância poética em seu vigor
imanente para, então, transcender – movimento exógeno –, e não o seu contrário –
movimento endógeno –, que converge para a matéria poética postulados e/ou regras
que, em essência, não se coadunam com a verdade em Literatura. A Literatura, um
corpo mais do que móvel, é, de modo ambivalente, a imagem plasmada no universo,
sem princípio e sem fim; flexionando-se a si mesma e refletindo a realidade sobre a qual
pairam os elementos de um mundo suprassensível, segundo as tradições helênicas, e que
sustentam, ainda, os pilares filosóficos daquela.
Destarte, o que se conclui, a priori, é que a Literatura, ao modular-se na
realidade objetiva como corpo (mais do que) móvel, navegando no tempo e no espaço,
de forma arbitrária, libertária e autônoma, opera, distintamente, vários níveis de atuação
sobre os quais os ditames convencionais não têm quaisquer validades, pois a mensagem
poética, a posteriori, constitui-se no caminho exemplar a ser (per)seguido a fim de
depurar a verdade, que, radicalizada na tessitura textual, revela a substância da poiesis,
propriamente dita, em seus graus mais profundos; e promove o fenômeno da Arte, que
acede ao mundo estranho e enigmático do Inefável. Inefável que transmuta a realidade e
legitima no Logos fundante a Luz que os deuses, miseravelmente, tentaram ocultar dos
homens, mas que, de forma indelével, desceu dos céus como chama roubada das
entidades supremas. O que era, irrevogavelmente, da ordem dos deuses tornara-se,
mítica e definitivamente, o emblema dos mortais: a verdade que não pode se destruída,
desaparecida ou delida. Antes, através do duo presença – ausência, a voz decifrada do
enigma, para a felicidade da Humanidade, acidenta esfinges, que saltam para a morte
hedionda, heroiciza mancebos, que se transformam em reis, e rainhas que cumprem seus
destinos no decurso dos mistérios, que são velados e desvelados, contínua e
infinitamente.
Ora, se o elemento de fundação da poiesis é o componente essencial, que
resguarda a verdade das corrosões, de toda ordem, e que poderiam deformar o corpo
sublimado, em sua expressão artística, as determinantes intrínsecas, que validam,
valoram e revaloram o texto literário, transformando-o em lume de ascendência própria
e fôlego peculiar, são variáveis excepcionais e separadas dos modelos impostos às letras
que se revelam como reflexo duma realidade transfigurada pela íris multicolorida do
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artista. Grosso modo, o elemento poético, portanto, é o ponto nodal a constituir, em
escala não – dimensionável, o antimodelo. Antimodelo que se apresenta
imagisticamente como algo que não pode ser definido por sentenças ou axiomas
cristalizados, o que ratifica a condição da Literatura como este bólido de aparência
hologramática e de essência fluídica, e que está acima das esferas invisíveis, onde as
deidades habitam. Morada do Ser; morada da Linguagem; reduto unívoco da poiesis.
Assim, não é a forma que determina a substância, mas, afirmativamente, é a substância
que confere à forma o traço essencial e marcante do conjunto estético, em sua expressão
máxima. Neste sentido, todas as teses erigidas sobre os corpos canônicos em Literatura
tendem, invariavelmente, à erosão de suas proposições, que nascem inclinadas à
falibilidade; todas baseadas em conceitos parcamente sedimentados, e que estão em
constante desvio a partir de sua realidade de fundação; i.e., o fluxo intenso e
incorruptível da Poética. Impõe-se, por este turno, uma reflexão: o ato de canonizar um
texto literário é compatível com a sua natureza e função?
O tema da canonização ou dos modelos canônicos em Literatura não é novidade
nos estudos de teoria e crítica literárias, respectivamente. Entretanto, vale notar que,
apesar dessa problemática integrar o ideário reflexivo sobre as questões epistemológicas
da própria Literatura, é consenso basilar, entre os estudiosos da área, de que os planos
ideológicos, que constituem as estruturas do cânon, são frágeis e, portanto, concorrentes
para o seu desfazimento completo, sem prazo de garantia ou de validade. A canonização
é uma prática e, simultaneamente, um vício; é uma ação metodológica marcada pela
imprecisão de sua verdade e didaticamente implausível, dada a sua ineficácia ao longo
de sua aplicabilidade. Assim, é factível imaginar que tal como acontecerá, um dia, na
Terra, segundo a visão nórdica sobre a criação do mundo, quando os céus – Asgard –,
pelo insidioso ato pecaminoso dos deuses primevos, desabarem sobre todos, matando
homens e divindades, as leis canônicas também ruirão sobre suas próprias bases, pois
suas forças são débeis diante da blindagem natural, que emana e envolve o corpo
poético.
2.
Por este equacionamento, cumpre ressaltar, a priori, que o reconhecimento dos
sistemas de canonização aponta para os indícios de uma falha sistêmica, que põe em
risco evidente as diretrizes, por exemplo, que norteiam determinadas produções
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poéticas, suas justificativas temporais, para figurarem como textos emblemáticos e
legitimados por um criticismo, bem como a importância dos referidos textos em
detrimento de outrem. A ruptura dos elos de sustentação dessas cadeias, aparentemente
lógicas, denuncia, em processo constante, o que, eufemicamente, os teóricos da
literatura batizam por renovação do pensamento sobre a literatura em decurso, nesta ou
naquela época. Aproveitam-se do fluxo dinâmico, imposto pela tessitura artística, que se
renova, segundo os vetores poéticos incidentes, para justificarem, por conseguinte, a
mudança dos rumos, que determinarão as regras do movimento da canonização, e que, a
meu ver, constitui-se, inequivocamente, em um canonismo – um fenômeno decorrente
dessa miopia, acometendo a todos que se apossam da verdade em Literatura como se
fosse uma realidade absoluta. Neste direcionamento, o canonismo, segundo a minha
visão poeticista, parece um corpo minúsculo e não – estranho no processo da dita
canonização a corroer os fundamentos do pensamento que se postula, como causa quase
pétrea, a posteriori, para estabelecer a linha temporal dos modelos de canonização e a
linhagem das obras literárias, que podem ou não podem, e/ou, que devem ou não devem
figurar como tomos artísticos, de ascendência ímpar, no rol dos textos representativos
de uma literatura panorâmica ou específica, de acordo com a visão científica dos
críticos, que buscam implementar um corpo canônico a contemplar os possíveis textos
literários, de relevância, para o pensamento teórico, em um determinado fluxo temporal
e em consonância com os modelos históricos e historiográficos vigentes.
A abordagem sobre o problema da canonização em Literatura atinge,
maciçamente, a questão em torno da periodização literária e do modus operandi da
Historiografia, que, por vezes, teve seu trabalho comprometido devido às configurações
nem sempre precisas em relação ao ambiente de uma produção literária vasta e sempre à
guisa de classificação. Este equacionamento, que não poderia ser pautado pela
logicidade, e, sim, pelo movimento oposto, concorreu, com efeito, para o desvio ou para
a corrosão epistemológica, que erodiu, duplamente, o pensamento crítico e o aporte
histórico. Reféns, portanto, de um descompasso acidentado por leituras equivocadas,
acerca do Real em Literatura, e da miopia crescente, que acometeu a Crítica, em várias
épocas, a História e a Historiografia, caminhando paralelamente, não lograram o êxito
almejado ao tentarem dar alicerces sólidos para a reflexão da e sobre a Literatura,
sobretudo quanto à discursividade científica. Não bastava, por esta via, classificar,
arrolar e/ou ordenar as obras literárias no decurso da investigação crítica; e, de forma
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simultânea, conhecer, com propriedade, o eruditismo em torno das escolas literárias, das
estéticas, dos movimentos e das tendências em Literatura, quer fosse no plano
diacrônico, quer fosse no plano sincrônico. Antes, era necessário que o empreendimento
crítico produzisse, sobremaneira, uma linguagem própria, distante dos modismos
epocais, que impingiram, nas diversas reflexões e nos vários criticismos, marcas
modelares, que não correspondiam à realidade contida nas poéticas existentes. No que
concerne ao aparato historiográfico, a pedra que derrubou um gigante, vinda
anonimamente de uma funda incrível, também não destoou do criticismo fadado a
equívocos clássicos. Davi sempre existiu e Golias sempre caiu. Assim, a ciência
historiográfica não dispunha de dados verossímeis, compatíveis com uma história
imparcial acerca das épocas nas quais os homens de literatura e suas obras emergiram
para representar, através de suas poéticas, a verdade que deveria dialogar com a
realidade vigente.
A pretensa e utópica canonização é a causa inequívoca do canonismo. E o
tratamento da questão científica da literatura, seja pelo viés da canonização, seja pelo
viés do canonismo, implica o tema da periodização da própria Literatura. A canonização
das obras de artes literárias, segundo os modelos historiográficos tradicionais, produz
seus efeitos a partir de uma planificação; uma amostragem horizontal para a observação
e o consequente estudo do tema e das obras eleitas, segundo tais diretrizes. A
periodização, neste sentido, parece deflagrar um desgaste abusivo de uma possível
canonização ou de um movimento para canonizar um grupo de obras literárias, e,
respectivamente, seus autores. Vale ressaltar que um conjunto de poéticas figura como
canônicas, na linhagem historiográfica, em detrimento de outras, que poderiam e/ou
deveriam estar arroladas pela Historiografia, mas que, nebulosamente, não estão. As
verdades impostas pelo movimento de canonização não eram críveis o suficiente para
sustentarem, no tempo e no espaço, uma ou várias sentenças, com densidade, solidez; e,
simultaneamente, serem cristalinas. Em última análise, tais sentenças demonstraram os
vários declives por que passaram as linhas metodológicas utilizadas pela Crítica, pela
Historiografia, e que, apoiadas em proposições históricas, desafortunadamente
elaboraram um conjunto de pseudoverdades – uma parte relacionada estritamente às
obras consideradas canônicas; e outra parte ligada simbioticamente à realidade objetiva,
que forjava teses exógenas com o intento de trazer à baila a verdade do texto literário,
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desconsiderando, de forma desastrosa, a natureza da escritura de torso eminentemente
poético.
A poeticidade, predicativo inerente ao texto literário, é a voz que não pode ser
emudecida, pois, amalgamada em um corpo reconhecidamente estético, decide, para o
bem ou para o mal, o itinerário a ser seguido. Não há nesta assertiva qualquer tentativa
de imposição de um encantamento ou de um pensamento absurdo, improvável, que não
possa ser delineado pela escrita científica. No entanto, considerando o ambiente
canônico, cujos vetores tentam esmagar o universo daquilo que, sensivelmente, paira em
dimensões inalcançáveis por olhos torpes, deformados, e até filhos da cegueira
irremediável, cumpre ressaltar que é flagrante o desnível entre o que é apresentado por
um conjunto de teorias quase perfeitas sobre a Literatura, o texto literário e a
literariedade, e, por fim, a obra de arte e o texto poético, que fundam e refundam a
verdade literária independentemente daquela corrente teórica, historiográfica ou da
rubrica crítica, que, vampirizando a letra artística, tenta, a todo custo, extrair a essência
de um líquido, que plasma a mensagem na contramão do referido canonismo, abordado
nesta reflexão e que permeia a minha presente reflexão. Assim, parece-me que há uma
corrida livre entre personagens díspares, cujo objetivo principal é atingir a linha de
chegada para se apropriarem, com triunfo, da obra de arte literária e sua verdade
universal. Neste empreendimento, existe lugar para apenas um vencedor; e o prêmio,
para além da obra de arte literária, é a verdade que ultrapassa a linha do humano para
revelar a linguagem universal – característica sublime da Arte, qualquer que seja a sua
manifestação nas várias esferas que compõem o Real.
A discussão em torno do temário em foco não é contemporânea. Ao contrário:
arrasta-se por gerações desde que os pensadores sobre a Literatura, movidos por
múltiplas subjetividades, concentraram seus esforços para conferir àquela uma
vestimenta científica, de tonalidade própria e capaz de revelar a natureza da obra de arte
literária e sua função representativa na realidade objetiva. Além disso, os estudiosos
sempre buscaram compreender o criador da obra de arte literária – o Artista. Este
último, um verdadeiro enigma para filósofos e teóricos. Assim, tocar esta chaga aberta é
rememorar a posição tirânica de Platão, em seu texto clássico – A República –, ao
vaticinar, impiedosamente, a expulsão do poeta do ambiente social daquela com sua
bagagem, que incomodava, sobremaneira, o bom andamento da ordem: a obra de arte
literária. Ferida exposta, que nunca cedera à cura quando Aristóteles elevou o texto
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artístico e o poeta a planaltos invejáveis em sua obra modelar – Poética –, ao começar a
deslindar as dimensões deste intrincado universo, que, gradativamente, abandonaria as
esferas divinas para ser compreendido e integrado à atividade humana: a Techné, espaço
único, onde o artista e a sua arte operavam uma linguagem própria e distinta no mundo.
A trajetória da Literatura e sua representação na história ocidental parte,
efetivamente, desse confronto clássico, que fora quase um embate colossal entre os
deuses olimpianos, mas que, aparentemente, trouxera paz aos mortais na antiga Grécia,
e, posteriormente, nos panteões de Roma. Entretanto, os subjetivismos parecem não
somente ter acirrado posturas conflitantes como também provocaram sismos de outra
ordem no que tange à organização dos estudos de Literatura, os diversos modelos acerca
da investigação, e tudo aquilo que concernia às figurações daquela e as devidas
produções,
que
pudessem,
efetivamente,
desde
o
início
dos
respectivos
empreendimentos, no mundo helênico, registrar e legitimar um discurso próprio, e
alheio a outras espécies de conhecimento existente. Surge, então, um problema de
dimensões titânicas, pois a Literatura, no turno de sua linguagem artística, exigia de
seus preclaros investigadores a habilidade sutil para transitar em duas esferas
diferençadas entre si. Quais sejam: a realidade subjetiva e a realidade objetiva. Quanto à
primeira, cabe salientar que havia, ao tempo da ordenação ideológica, ainda, para a
compreensão da Literatura como discurso genuíno e manifestativo da Arte, uma linha
tênue e imperceptível para os teóricos pioneiros, que incidia, inequivocamente, sobre a
intersubjetividade do Ser da Literatura e do ser de quem imergia nas camadas mais
profundas do tecido de consistência literária. Desse modo, está claro que a essência
literária é o canal de eclosão da verdade textual, quer seja através da voz poemática – o
eu lírico na poesia – quer seja aquela plasmada nas personagens, mais do que vivas, na
prosa. O objetivo do estudioso em Literatura é, para além da conjugação, entre as
subjetividades em jogo – o ludismo –, a interpretação da verdade cifrada na tessitura em
processo contínuo de revelação. A consolidação monumental do interpretatio: adentrar
os corpos para capturar o pólen germinal, que dá forma, cor, odor, sentido e dimensão a
tudo que passa pelo crivo do ek-sistente – rubrica heideggeriana. Da subjetividade,
cumpre denotar, também, que há uma zona de penumbra sobre a qual não se tem
domínio; nem da parte de quem criou a obra de arte – o Artista – nem tampouco de
quem a recebe, qualquer que seja a gradação deste receptor no Real – o Leitor. A obra
de arte, em sua corporeidade móvel, responde a estímulos próprios; em sua constituição,
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um fôlego de vida similar à respiração dos deuses. Obra, artista e leitor confundem-se
em outra subjetividade, que jaz em um território indefinível, onde ninguém pode
acessar. Nesta recâmara, nem os clamores das divindades são ouvidos, pois lá a força
soberana e indevassável da poiesis habita silenciosa, magistral e eterna. Quem ousa
enfrentar a Quimera?
Quanto à realidade objetiva, cumpre ressaltar que a verdade construída sobre
máximas coordenadas e pensamentos riscados por um metafisicismo indelével tende a
ser uma camisa de força, que tenta sobrepujar o véu da Aletheia (verdade literária) que
está oculto na mensagem poética, mais precisamente no fluxo do desvelamento
ininterrupto. Esse entrechoque de forças antagônicas e oriundas de processos ímpares
forja o tensionamento da subjetividade a serviço de uma objetividade temporal,
estrutural e completamente inócua; o tendão de Aquiles do edifício, que representa, em
análise final, a canonização dos discursos, que não são subjugáveis por fórmulas modais
com valores perecíveis. A este processo deram a suave denominação de renovação, uma
vez que se constitui tabu, no campo maior dos estudos literários, a declaração de culpa,
por parte da plêiade de teóricos e críticos sobre o desnível existente entre a verdade que
está no outro lado da margem – a verdade poética – e a verdade proclamada pelos que
estão em terra firme, e que, imperiosamente, desejam dominar aquilo que floresce em
sua forma onipresente; transcendentalmente ubíquo.
A tarefa, portanto, resvala para a ineficácia e, por isso, parece não ter êxito. As
realidades dissonantes não são invalidadas pela inflexão imposta, pois cada uma tem seu
valor separadamente. A verdade contida no texto artístico, em sua modulação
atemporal, é superior à verdade elaborada, que intenta alcançar outras facetas da
verdade literária pelo viés da Crítica, que pretende elaborar um discurso cientificizante
da obra de arte literária. O fato de a Ciência da Literatura, compreendida como um
guarda-chuva gigantesco, que tenta abarcar todas as variáveis e não – variáveis
relacionadas ao texto poético tornar-se o conjunto de normas e instrumentos (que
buscam ser) adequados para os estudos relativos ao que é literário, não fornece garantias
sobre a permanência ou não de conceitos, de definições, e, em última análise, de
possíveis amostragens, nas quais o processo de canonização é elaborado e apresentado
como verdade lateral. Canonização não percebida como sagração ou santificação de um
texto como algo imutável; mas, antes, como correlação de forças e textos, que possam
corresponder às realidades histórica e historiográfica, respectivamente.
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Em verdade, o problema radical, abordado por este ensaio, está inserido na
tentativa de os teóricos conferirem à Literatura uma capa de ciência quando o elemento
literário, per si, é um herói que, destituído de asas ou forças mágicas, sobrevoa um
firmamento sem fim. No próprio esgarçamento das tensões, as que existem,
naturalmente, no embate da leitura, quando, no fenômeno da recepção, o efeito catártico
revela a atemporalidade da obra de arte literária, e as que existem, em sua modalidade
exógena, partindo das definições, que buscam, desenfreadamente, um estatuto científico
para o que navega livre, no intermezzo da própria realidade. O elemento poético sugere,
para além dos simbolismos, outro meridiano; outra tensão impossível de ser registrada.
Qual seja: ágrafa, em sua constituição vertical, a poiesis, ao portar em sua morfologia
invisível o som e a plasticidade do silêncio sem fronteiras, sem limites, revela o traço
imponderável de sua face, pois, a partir de suas leis indeterministas, determina o não –
determinável no espaço de todas as tensões; em seus gradientes inomináveis e
imensuráveis; postulações do quantum, que transforma aquela na própria antimatéria:
modulações atemporais no espaço infinito e ambíguo da Arte.
O criticismo, então proposto, denuncia, de forma lúcida, o anacronismo dos
modelos impostos, e que, com efeito, beiram à falência, em suas premissas pontuais,
temporais e espacialmente imprecisas. Isto vale para as literaturas ocidentais, que
planificaram suas letras artísticas, todas pautadas em verdades científicas, que
remontam à esfera renascentista; aprovadas e aplicadas pelos teóricos e críticos, nos
desdobramentos ideológicos do Romantismo, e agravadas, sobremaneira, pelos
cientistas da linguagem, nas ondas mortais que varreram o mundo da ciência ao tempo
áureo do Naturalismo e do Realismo, ao coexistirem historicamente. Tais alinhamentos
constituíram-se reflexos incontestes, à época, na literatura brasileira, que, por sua vez,
acomodada em uma diacronia longa e pesada, carece, em dias atuais, a meu ver, de uma
revisão substancial no que concerne à organização do pensamento, que versa sobre os
textos literários; e as paisagens históricas, que serviram, de fato e de direito, para o
acolhimento daqueles. A literatura brasileira, balizada pela canonização, que é, ainda,
reconhecida pelos circuitos acadêmicos como a verdade sobre a literatura em tela,
referenda textos artísticos, que emergiram das classes, ao representarem a terra brasilis,
desde os tempos da Colônia até a independência política, quando aquela alcançou o
status de nação livre. A elite cultural brasileira, que fomentou o nascimento da classe
dos intelectuais, cujo berço está na descendência europeia direta, concorreu para o
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surgimento de um problema, que tem perseguido, impiedosamente, a intelligentsia
brasileira, reconhecida como âncora de um pensamento nacional baseado na literatura
emergente. Qual seja: a legitimidade de uma amostragem periodológica e, portanto,
didática (canonização dos movimentos literários) face às poéticas que ascenderam ao
posto de letras representacionais brasileiras em função desta relação inequívoca com as
classes elitistas, que se formavam, natural e gradualmente no país, ao longo de meio
milênio de existência da nação brasileira.
O reconhecimento historiográfico, que elegeu os escritores brasileiros, da
maneira como estão relacionados na esteira da periodização literária e, por conseguinte,
canônica, e que privilegiou todas as correntes, os movimentos e as referidas estéticas,
nas quais aqueles e suas obras estão inseridos, está simbioticamente relacionado à
questão, de envergadura maior, que é o problema da transplantação cultural. Assim, a
língua e a sua tradição vindas para o Brasil, na condição de elementos prontos e
acabados do colonizador, historicamente forjaram o nascimento de uma classe pensante,
que, em verdade, oscilava entre um passado luxuoso, cimeiro e portentoso e um
presente rústico, incerto e completamente novo ao olhar da geração d‟além mar, que
fincou raízes na terra, tornando-se, indubitavelmente, a pérola da Coroa Portuguesa: a
terra brasilis. Desse modo, está claro que a concentração do poder, da economia, do
pensamento, e, principalmente, da cultura, que não era brasileira, ainda, e que, portanto,
pertencia à ordem lusa, determinou, inconscientemente, a formação de uma sociedade,
que privilegiava as sacadas das pseudoquintas, transplantadas para os ares quentes da
colônia em detrimento do chão batido, por onde passavam as gentes de toda sorte e que
plasmaram o que viria a ser o Homo brasiliensis – figura emblemática, ainda distante e
pouco cortejada nas narrativas nacionais.
O olhar do colonizador, desse modo, era e sempre fora um olhar de cima. Suas
leis e fundamentos consistiam em pesadas âncoras, que jogavam para baixo uma visão
patética de uma paisagem europeia, que cederia, mais cedo ou mais tarde, espaços a um
cenário verde, selvagem, virgem, promissor e ímpar, na cena histórica e cultural; nos
momentos cruciais por que passaram os estágios políticos em que a futura pátria
brasileira esteve ligada a Portugal. Assim, os vetores de atuação impunham, sob o pulso
violento da Coroa, as regras que vigoraram por muito tempo, e que foi, tão somente,
uma extensão da metrópole portuguesa no Atlântico Sul. Os colonizadores
desconheceram, de forma cabal, a realidade existente, e, por isso, não perceberam a
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climatização de sua própria língua, hábitos e tradições, que, paulatinamente,
afeiçoaram-se a outros modos de ser; abrasileirando-se, com efeito. A comprovação,
através da literatura nacional, sobre a referida imposição, em momento inicial, do poder
autoritário do colonizador, está registrada na literatura catequética e logo combatida
pelo corajoso Gregório de Matos, uma voz solitária a pregar (sua) uma verdade poética
para um número de pessoas, que mal sabia ler e escrever, em um mundo que mais
parecia uma terra sem leis. Ainda, assim, Gregório de Matos, chamado “Boca do
Inferno”,
sustenta,
pelas
rubricas
da
historiografia
e
da
crítica
literárias,
respectivamente, uma corrente grandiosa, que, no Brasil, fazia seu pouso absoluto,
porém já em seus passos derradeiros: o Barroco. Não é à toa, e sabiamente, que Alfredo
Bosi, em sua imprescindível obra História Concisa da Literatura Brasileira afirma,
com categoria, que no Brasil existiram somente ecos da corrente supracitada, pois o
Barroco estava expirando; seus últimos suspiros foram sentidos pelas terras verdes e
amarelas, sob o calor tropical da América do Sul.
A saga por uma amostragem, nem sempre convincente e/ou correspondente com
as realidades em voga, renderia à História da Literatura debêntures impagáveis, que
pesariam sobre os punhos da Crítica, e que, hodiernamente, deve buscar a atualização
dos títulos, que representam ainda o painel elucidativo da literatura nacional, além do
determinismo advindo da canonização historiográfica das obras, que foram arroladas
por leis convencionadas. Neste sentido, compreender a literatura nacional nos períodos
em que movimentos distintos conviveram, em princípio, pacificamente, sob ordem de
quem ou quando, é tarefa que causa um grande estranhamento como também incita
questões, que elevam o tom das contradições aparentes e calcadas sobre o mito da
consagração de um grupo de obras e artistas, que não pode ser tocado, pois estes últimos
foram transformados em legendas e tabus literários pelo criticismo. Criticismo que
sempre estivera em descompasso com uma realidade artística muito mais numerosa do
que os títulos classificados para representarem a identidade, o curso e a brasilidade de
uma cultura dita nacional.
A coexistência do Arcadismo amordaçado ao lado do Barroco grandiloquente,
que, findado seu tempo na literatura, ainda sobreviveu, com algum fôlego, nas
esculturas, mesclou um bucolismo nascente, que navegou entre as paisagens arcádicas e
a atmosfera pré-romântica. Os românticos, em processo de consolidação ideológica,
acirraram o tema da fuga dos árcades, que não conseguiram realizar o sonho de uma
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pátria libertada, pois a tentativa da construção de um herói, de carne e osso, fracassou
em nome de um poder ditatorial, sem limites, levando à morte um homem: Tiradentes.
Tal retomada, por parte dos românticos, do tema do herói, sob a tez do Índio, fabulou
um escape singular, e que potencializou o protesto contra um colonialismo, tendendo a
perpetuar-se no Brasil. Essas correntes, singulares, ímpares e entrelaçadas, formam um
mosaico de fatos, escritas, estórias e movimentos, que não referendam a realidade
existente em um país, que somente conheceria a sua verdadeira liberdade política em
1822.
O movimento romântico, quiçá o mais importante para a compreensão inicial de
uma nação, que apontaria para a dimensão de uma cultura polifônica, fora contemplado,
de forma exemplar, em várias poéticas. José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo,
Bernardo Guimarães, Manuel Antônio de Almeida, Gonçalves Dias, Castro Alves,
Álvares de Azevedo, dentre outros, ampliaram os temas e as visões sobre uma cultura
emergente, cujos atores deram não somente a densidade da corrente estética como
oportunizaram as questões que, definitivamente, marcariam o rumo da literatura
brasileira como letra-artística, diferenciada e ímpar no painel da escrita artística
ocidental, pois a letra canônica trazia à baila o instigante tema da identidade nacional:
tema questionado e criticado pelos realistas, que enxergaram o exagero das formas e da
substância na pena opulenta dos românticos, e que fora retomado, mais tarde, pelos
modernistas, em 1922, como plataforma principal para o descolamento ideológico de
uma cultura literária, que sofria, ainda, de um europeísmo nauseante.
O Realismo, por sua vez, inegavelmente, tornou-se a grande ponte para o salto
que elevaria, de fato e de direito, a literatura brasileira à universalidade, por mérito, por
qualidade e por decurso natural. O cientificismo e o positivismo não macularam a letra
realista no Brasil, e as paisagens urbanas de uma sociedade em formação e o
crescimento das futuras metrópoles no sudeste constituíram-se nas variáveis que criaram
o ambiente modernista, em um período curto, mas profícuo, através da genialidade de
Machado de Assis, cuja literatura deve ser apartada como corpo suspenso nas letras
nacionais por estar à frente de seu tempo e por reunir os elementos fundacionais e
necessários para a certificação legítima de uma literatura dita brasileira. A poética
machadiana, acima das categorizações periodológicas, é a prova cabal de que o modelo
da canonização das poéticas literárias brasileiras é inconsistente para demonstrar o quão
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imensurável é a substância da poiesis, que cifra, para além do nome, do tempo e do
espaço, uma letra-artística atemporal e universal, por excelência.
O Modernismo parece cerrar as cortinas e libertar, a despeito de um criticismo
discipular e em crescimento, das rédeas históricas, o Brasil; além de riscar, no Brasil, os
vários Brasis, que sempre existiram, mas que foram impedidos de expressar suas idéias
e emitir suas vozes. De Mario e Oswald, os Andrades, na liderança do movimento
modernista, passando, efetivamente, pelo regionalismo de Raquel de Queiroz e
Graciliano Ramos; pela poesia de João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de
Andrade; pelo ficcionalismo sulista de Érico Veríssimo; pela introspecção de Clarice
Lispector; pelo gigantismo indiscutível de Guimarães Rosa; ao grande contador de
estórias, que fora Jorge Amado, dentre outros, as poéticas modernistas libertaram-se do
movimento histórico oblíquo e da tentativa espúria de fazer da Literatura um reduto de
estudos sem qualquer valor artístico e/ou sem função na realidade objetiva.
O movimento de descanonização, neste sentido, não intenta derrubar o longo
caminho pelo qual as escritas elucidativas estão presentes para configurarem a arte
literária no Brasil e sua historiografia. Entretanto, é imperioso afirmar que a produção
poética nacional, desde os tempos da literatura nascente aos dias atuais, cresceu,
sobremaneira. É presumível salientar que há espaços para serem preenchidos e outros
para serem revistos, pois a importância desta ou daquela poética não está no fato de
representar esta ou aquela corrente literária, mas no vigor do texto literário, que revela a
verdade, para além do turno da história. Outrossim, a descanonização deve redispor as
sentenças que determinam o espaço adimensional da literatura nacional, através das
obras que não foram entabuladas na periodização literária, e que concorreram para a
falta de renovação do criticismo e do historiografismo – ambos amparados pela escrita
monumental do último grande crítico nas letras brasileiras, e que legou um estudo de
fôlego para as gerações vindouras. A saber: Afrânio Coutinho e sua obra magistral: A
Literatura no Brasil.
3.
A Crítica, na virada do século – XX – XXI – em conjunto com a Historiografia,
deve proceder à renovação profunda de seus postulados para investigar e desvelar a
verdade da literatura que decifra o Brasil, ao descobrir seus enigmas, suas mensagens;
todos sob o solo profundo como verdadeiros achados arqueológicos. Raízes que nascem
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de baixo para cima e não sentenças artificiais injetadas de cima para baixo. A
descanonização deve apontar seus vetores não para o desmonte historiográfico das obras
classicamente consagradas, mas para as poéticas como corpos mais do que singulares,
cujas linguagens entrecruzam-se, atemporalmente, para traduzirem, de forma indelével,
a verdade e as verdades na / da Literatura Brasileira.
Bibliografia
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1985.
CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Vols. I e
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COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Vols. III e IV. Rio de Janeiro: Eduff,
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HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência do fundamento, a determinação do ser do ente
segundo Leibniz & Hegel e os gregos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1971.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 4. ed. São Paulo: São Paulo, Companhia
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JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São
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RIBEIRO, João Carlos de Souza et al. A Poética das Cidades. Rio de Janeiro: Relume
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SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. Coimbra: Livraria Almedina,
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SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese de História da Cultura Brasileira. São Paulo:
Bertrand Brasil, 2003.
SUHAMY, Henry. A Poética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1986.
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A COMPOSIÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO E AS MARGENS
INCONSTANTES DA LITERATURA OCIDENTAL
THE COMPOSITION OF THE LITERARY CANON AND THE
SHIFTING MARGINS OF WESTERN LITERATURE
Juliana Bezerra de Oliveira Sachinski – PG-UEMS
RESUMO: Este artigo pretende tratar da composição do cânone literário ocidental, no que
se refere às questões relacionadas à leitura dos clássicos e não clássicos e discutir o universo
das preferências literárias, assim como valores e condições de produção em um período
histórico e social.
Palavras-chave: Cânone; literatura; leitura dos clássicos
ABSTRACT: This article aims to address the composition of the Western literary canon,
with regard to issues related to the reading of classic and non-classic and discuss the world
of literary preferences, as well as values and production conditions in a historical period and
social.
Keywords: Canon; literature; Reading the classics
Considerações iniciais
“Se vi mais longe foi por estar de pé sobre ombros de
gigantes.” Isaac Newton
O Cânone literário, tão falado em salas de aula dos cursos de letras e cursos afins, é
debatido comumente em congressos e eventos. Mas o que é o Cânone? O que o compõe? A
palavra cânone vem do grego Kañon, que significa medida, régua, instrumento de medir. A
palavra é usada para descrever vários objetos e situações, porém o cânone literário tem um
significado mais objetivo, que é o de listar as obras literárias tidas como mais valiosas ou
universais de acordo com alguns parâmetros.
A prática de estabelecer um parâmetro de valores na literatura não é um ato novo.
De acordo com Thomas Bonnici, tal atitude teve início no período helenístico. Sobre isso o
autor afirma:
A tradição de fabricar uma lista de livros considerados excelentes foi adotada em
Alexandria, Egito, durante o período helenístico (323 – 30 a.C.). Rose (1959) e
Howatson (2006) afirmam que os críticos alexandrianos tinham um „cânone‟ ou
lista autorizada, que incluía Homero, nove poetas líricos gregos (por exemplo,
Safo), dez oradores áticos (entre eles Demóstines), os cinco dramaturgos trágicos
(entre eles Ésquilo, Sófocles e Eurípedes), sete autores de comédia (entre eles
Aristófanes) e sete historiadores (por exemplo, Políbio). „Clássico‟ é um termo
alexandrino, já que classic é a representação latina do termo grego Kanõn aplicado
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às listas que as autoridades da biblioteca de Alexandria redigiam referentes aos
autores que consideravam serem os parâmetros nas classificações literárias
(BONNICI, 2011, p. 104).
Pode-se observar que os livros que compõem o cânone literário são os chamados
livros clássicos. E estes livros possuem algumas características que se concordar e se opõem.
Ele pode ser ao mesmo tempo uma leitura de descoberta e aprendizado quando causar
estranhamento e desconforto, como afirma o escritor Antoine Compagnon:
O clássico transcende todos os paradoxos e todas as tensões entre o indivíduo e o
universal, entre o atual e o eterno, entre o local e o global, entre a tradição e a
originalidade, entre a forma e o conteúdo. Essa apologia ao clássico é perfeita,
perfeitas demais para que suas costuras não cedam com o uso. (COMPAGNON,
1999, p. 235)
E pode exatamente ser pelo desconforto, estranhamento ou identificação que um
livro clássico entra para o cânone e lá permanece. Não obstante, é comum um adulto leitor
afirmar que está relendo uma obra clássica. O autor Italo Calvino posiciona-se sobre o
assunto da seguinte forma:
Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem
como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória,
mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual. Por isso, deveria existir
um tempo na vida adulta dedicada a revisitar as leituras mais importantes da
juventude. Se os livros permaneceram os mesmos (mas também eles mudam, à luz
de uma perspectiva histórica diferente), nós com certeza mudamos, e o encontro é
um acontecimento totalmente novo (CALVINO, 2007, p. 10-11).
Assim, Ítalo Calvino sugere que a leitura de um clássico é sempre uma descoberta,
e a releitura do clássico às sensações de descoberta se mantêm. É como se a obra não se
esgotasse no fator surpresa e despertar de emoções, ou porque surpreende ou ainda porque
não terminou de dizer o que o leitor tem de curiosidade, já que “o clássico tem a
peculiaridade de se fazer esquecer, ao mesmo tempo em que planta uma semente”1.
Mas a busca de quem escreve uma obra que pode ou não se tornar um clássico,
entrando assim para a seleta lista do cânone, pode ser uma busca pelo refúgio. Nietzsche
certa vez definiu a linguagem literária como uma vontade de figuração, ou mesmo o desejo
de ser diferente, podendo estar em outro lugar. Tal viagem é justamente possível pelas
páginas de uma narrativa literária. Para Harold Bloom, escrever significa não só ser
diferente, mas escrever magistralmente em outro tempo e lugar. Assim ele afirma:
1
Professora doutora Márcia Maria de Medeiros em sala de aula no dia 07/03/2012.
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Literatura não é simplesmente linguagem; é também vontade de figuração, [...]
isso significa em parte ser diferente de si mesmo, mas basicamente, creio, ser
diferente das metáforas e imagens das obras contingentes que são nossa herança: o
desejo de escrever grandiosamente é o desejo de estar em outra parte, num tempo e
lugar nossos, numa originalidade que deve combinar-se com a herança, com a
ansiedade da influência (BLOOM, 2010, p. 24,).
O Cânone e sua formação
O conjunto de características que podem provocar essa ânsia pelo diferente forma o
clássico e tradicionalmente o cânone literário é formado por clássicos. Assim o termo
cânone indica uma espécie de lista de obras “grandiosas” ou mesmo chamadas de
“universais”. Tais obras seriam então merecedoras da academia. Essa lista não é estanque,
mas geralmente sofre poucas modificações, ou ainda, as mudanças são lentas e poucas, se
considerarmos o numero de obras produzidas a cada ano ou século.
Sobre isso Bonnini afirma o seguinte:
Embora o cânone de nenhuma literatura moderna ou contemporânea tenha sido
formalizado, raro não é que vários autores específicos sejam, vez ou outra,
incluídos ou excluídos da lista. Por outro lado, Shakespeare, Cervantes, Flaubert,
Manzoni e Machado de Assis, por exemplo, são os mais sólidos nomes do cânone
inglês, espanhol, francês, italiano e brasileiro, respectivamente (BONNINI, 2011,
p. 105,).
Esta lista “informal” pode influenciar inclusive a academia no que diz respeito às
obras trabalhadas em pesquisas ou indicadas aos acadêmicos em sala de aula e até mesmo
em projetos de pesquisa agregados às universidades, uma vez que se há a eleição de alguns
livros e/ou autores como bons, valiosos, grandes ou dignos de leitura e pesquisa, em contra
partida, há uma gama de autores/obras que são excluídos do cânone e tidos como baixas
literaturas.
O leitor precisa escolher entre tudo o que existe para leitura, uma vez que seria
impossível, mesmo se uma pessoa se dedicasse única e inteiramente a isso, ler tudo o que é
produzido. Mallarmé popularizou a hipérbole “a carne é triste, ai, e eu li todos os livros”.
Cada leitor, independentemente de pertencer a uma instituição acadêmica ou não, precisa
optar pelo que lhe apetece. Assim, como toda escolha causa exclusões, quando se elege um
livro para ler, todos os outros ficam excluídos naquele momento.
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Sabendo-se dessa ânsia pela eleição e exclusão do leitor, autores investem em
chamar a atenção dos leitores. Com uma preocupação, que segundo Harold Bloom é
individual dos autores e não dos leitores, que é o fator estético.
Para Borges, independente do prestígio alcançado ou não pelo autor através de suas
obras literárias, a perfeição está longe de ser alcançada em qualquer obra, por melhor que
seja. Sobre esse assunto ele cita:
Não há poeta que seja a voz total do querer, do odiar, da morte ou do desespero.
Ou seja, os grandes versos da humanidade ainda não foram escritos. Essa é a
imperfeição com a qual deve alegrar-se nossa esperança (BORGES, p. 109. Apud,
PERRONE-MOISÉS, p. 42. 2009).
Esta literatura marginalizada, excluída do seleto grupo canônico por vezes preenche
um espaço nos estudos culturais. Usando pesos e medidas diferentes para avaliar as obras
julgadas como marginalizadas ou excluídas de uma lista maior, ou de maior valor literário.
Sobre esse julgamento de valor, a pesquisadora Leyla Perrone-Moisés se posiciona
da seguinte forma:
[...] Precisamos é de um ensino literário que julgue Teócrito e Yeats com uma só
balança, que julgue os mortos tão inexoravelmente quanto os escritores chatos de
hoje, e que elogie a beleza antes de se referir a um almanaque (PERRONEMOISÉS, 2009, p.32).
O cânone não é uma lista estanque ou até mesmo despótica. Ela pode agregar
nomes e excluí-los ao longo do tempo. Porém, isso não inclui justiça ou análise mais justa
de critérios de valores literários. Shakespeare, por exemplo, passou por uma trajetória de
muito sucesso, adentrando o cânone, e depois amargou em ostracismo e esquecimento, até
ser resgatado por Samuel Johnson e hoje permanece sendo referência em boa literatura,
recebendo os louros por ser o pai da língua inglesa, mesmo com pesquisas que provam que
quem criou a língua inglesa foi Geoffrey Chaucer, na segunda metade do século XIV.
Sobre este valor literário criado para o cânone e sobre ele, Antoine Compagnon
defende a seguinte ideia:
Evidentemente, identificar a literatura com o valor literário (os grandes escritores)
é, ao mesmo tempo, negar (de fato e de direito) o valor do resto dos romances,
dramas e poemas, e, de modo mais geral, de outros gêneros de verso e de prosa.
Todo julgamento de valor repousa num atestado de exclusão'; Dizer que um texto é
literário subentende sempre que um outro não é. O estreitamento institucional da
literatura no século XIX ignora que, para aquele que lê, o que ele lê é sempre
literatura, seja Proust ou uma foto-novela, e negligencia a complexidade dos níveis
de literatura (como há níveis de língua) numa sociedade. A literatura, no sentido
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restrito, seria somente a literatura culta, não a literatura popular (COMPAGNON,
1999, p. 33).
Nesta escala de valores disputadas por autores e suas obras, mormente, ninguém
quer estar em seu alicerce, e sim no todo da lista, como os mais celebres e geniais a
produzirem obras que ao mesmo tempo respondam as expectativas dos leitores e apresente
algo de novo, inovador e surpreendente.
Mas para que um seleto grupo ocupe a ponta dessa pirâmide editorial, um número
muito mais elevado precisa proporcionar uma base para sustentação. São obras avaliadas
pela crítica como menores, de valor literário inferior aos canônicos, e, portanto, devem
ficam em uma escala abaixo dos imortalizados pelo cânone.
Esse vasto grupo, segundo a pesquisadora Leyla Perrone-Moisés, é de larga
importância. Sobre este assunto ela afirma:
[...] Convém não esquecer que as grandes obras ocorrem tendo como chão e
húmus uma cadeira ininterrupta de obras menores, e que os produtores da literatura
presente são tão devedores das grandes obras do passado quanto dos milhares de
obras menores que prepararam terreno para as maiores. (PERRONE-MOISÉS,
2009, p. 24)
Além da escala de valores atribuída às obras, e consequentemente a seus autores, há
uma gama de autores que criticam a busca incansável de respostas através da literatura.
Segundo Harold Bloom, a função da literatura não é reparar injustiças sociais. E para Italo
Calvino, o clássico não tem compromisso com o ensino. O autor afirma:
Os clássicos não necessariamente nos ensinam algo que não sabíamos; às vezes
descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber) mas
descobríamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de
maneira particular). E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação como
sempre dá as descobertas de uma origem, de uma relação, de uma pertinência. De
tudo isso poderíamos derivar uma definição do tipo: Os clássicos são livros que,
quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais
revelam novos, inesperados, inéditos (CALVINO, 2009, p. 12.).
Embora a leitura de livros clássicos, canônicos, seja uma contradição ao ritmo de
vida da modernidade, tal leitura é ainda uma forma de descoberta e entendimento humano.
Quem somos? Onde chegamos? Qual o nosso espaço social? Tais questionamentos podem
ser respondidos através da literatura. Embora a literatura não tenha comprometimento em
trazer ao leitor nenhuma resposta às agruras sociais. Leyla Perrone-Moisés afirma sobre a
história literária que:
A história literária dos fatos gerais, baseada no princípio da casualidade, da
regularidade das leis, do desenvolvimento-progresso, caiu pouco a pouco em
descrédito. A busca da extensão dos efeitos desembocou no estudo sociológico,
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que por sua natureza se vê forçado a deixar de lado as questões propriamente
estéticas. Os escritores-críticos modernos, na qualidade de leitores mais
diretamente interessados nas questões estéticas, foram os que mais resolutamente
se desinteressaram desse tipo de história. A opção pela visada sincrônica
subentende uma concepção a-histórica da arte, da literatura. Leva a falta de
eternidade da poesia, de sua essência perene (PERRONE-MOISÉS, 2009, p. 49).
O ritmo da vida moderna, imposto e buscado pela sociedade mundial, tem refletido
também na literatura. O que ler, como ler, onde e quando ler podem trazer alterações, não só
no mercado editorial como no cânone.
Esta é uma eloquência de uma sociedade ocupada, com foco na tecnologia e velhas
novidades, apontando sua seta para outros tipos de entretenimento que tem maior relação
com as imagens em movimento, como a televisão, computadores, internet, celulares, dentre
outras tecnologias, que não estão próximas às caixinhas cheias de histórias e imagens
chamadas livros, mas que precisam mais que um passar de olhos para serem abertas.
Esta fragmentação do tempo é comentada por Leyla Perrone-Moisés:
Na segunda metade de nosso século, os teóricos da pós-modernidade viriam dar
um golpe mortal na narratividade baseada na cronologia, ao decretarem o fim das
“grandes narrativas”. A fragmentação de nossa percepção do tempo, correlata da
fragmentação da experiência em geral, tem feito com que a historiografia prefira
ultimamente as narrativas parciais, centradas em agentes particulares que não eram
levados em conta nos metarrelatos, e que interessam aos agentes de hoje, grupos
ou indivíduos (PERRONE-MOISÉS, 2009, p.29).
O fato é que de pequenas bibliotecas particulares às grandes bibliotecas públicas,
sejam elas de universidades, escolas, praças ou outros espaços, não tem nas suas leituras ou
mesmo empréstimos de livros uma simultaneidade ordenada. O leitor escolhe uma obra, lê e
posterior a isso escolhe outros livros sobre o mesmo tema, do mesmo autor ou simplesmente
abandona aquele tipo de leitura. Ou seja, as leituras não são feitas em ordem cronológica de
obras ou até mesmo de autores.
O consumidor de literaturas não está, mormente, preocupado com a relatividade
temporal das obras, mas com o prazer da leitura ou até com as informações nela obtidas. O
tempo é relativamente outro para o leitor. Ainda sobre o quesito tempo, Harold Bloom
defende que:
Infelizmente, nada será o mesmo, porque a arte e a paixão de ler bem e em
profundidade, que era a base de nossa empresa, dependia de pessoas que eram
leitoras fanáticas quando ainda crianças. Mesmo os leitores dedicados e solitários
se acham agora sitiados, porque não podem ter certeza de que vão surgir novas
gerações para proferir Shakespeare e Dante a todos os demais escritores. As
sombras se alongam sobre nossa terra crepuscular, e nos aproximamos do segundo
milênio esperando mais escuridão (BLOOM, 2010, p. 28).
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Esta sociedade ocupada e com muita pressa de tudo tem como opção de leitura
clássica nomes como Dante, Shakespeare, Cervantes, Flaubert dentre vários outros autores
literatos clássicos e canônicos do ocidente.
No entanto, mesmo sendo o cânone livre e acessível a autores e obras de valor
estético evidente, resistentes ao teste do tempo e à concorrência de seus pares, o cânone acaba
sendo influenciado por uma série de fatores. Dentre eles o ambiente universitário. Stelamaris
Coser, doutora capixaba e pesquisadora de estudos literários e culturais, afirma o seguinte:
O inimigo-mor em seus ataques acaba sendo o ambiente universitário dos Estados
Unidos, por oferecer guarida a tantas tendências contemporâneas indesejáveis que,
segundo Bloom, teria instaurado um domínio totalitário no país. O departamento e
professores de Letras, por muito tempo aliados do cânone, exibem agora
programas de publicações que acolhem escritores sem imaginação e abordagens
críticas que lhe parecem meras clonagens desfiguradas (BONNINI, 2011, p. 136).
O Cânone Ocidental
O crítico Harold Bloom, autor do livro O Cânone Ocidental, defende o mesmo
posicionamento e critica veementemente a postura de pesquisadores que defendam as linhas
de pesquisa “feministas”, “marxistas”, “culturalistas”, ou quaisquer outras que não partam
do objeto.
Nesta linha de raciocínio, o objeto deve ser analisado pela linha de pesquisa que
melhor lhe apetecer, e não o pesquisador utilizar-se de uma linha de pesquisa para enquadrar
todo e qualquer objeto naquela teoria ou vertente. Bloom afirma:
Fundamentalmente, o que ocorreu – e parece que agora impossível de ser
revertido – foi uma coalizão de, entre aspas, “feministas”, “marxistas”, “neohistoricistas”, “materialistas culturais” e teóricos da inclinação francesa – Lacan,
pseudo-Lacan, pseuso-Derrida, pseudo-Foucault. Essa coalizão apresenta hoje
cerca de 70% dos professores em meio de carreira, e mais da metade deles são
cultuadores fanáticos da Escola do Renascimento [...] a meu ver seu ressentimento
está dirigido, antes de mais nada, contra a própria ideia de literatura como força da
imaginação (BLOOM, 1995, p. 5).
Esta postura agressiva do crítico Harold Bloom não agrada acadêmicos e
pesquisadores que preferem posturas mais equilibradas. Até porque Bloom é radical em sua
atitude e vem na contramão das vertentes pesquisadas pela maioria dos profissionais no
ocidente nos dias atuais.
Sobretudo porque Bloom defende um espaço plausível para
esclarecimento da literatura. “Se a crítica está morta, ou quase morta, na academia
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americana [...] a próxima geração de bons leitores terá que vir de fora da universidade”
(BLOOM, 1995, p.5).
Juntamente a está proposta, Bloom sugere que agências de publicidade, a mídia em
geral, assim como agências de relações públicas dentre outras esferas, devem fomentar a
leitura e a divulgação da literatura de qualidade.
Tais manifestações e posicionamentos, tensos e acalorados ou até radicais como são
taxados certos posicionamentos de Harold Bloom polarizam, com certa frequência, o
posicionamento de estudos literários tradicionais.
A pesquisadora Stelamaris Coser traça um panorama desta realidade no Brasil e em
outros países como Portugal e outros países da América Latina. Ela afirma:
Em vários países se repete tanto o interesse pelas novas tendências críticas, quanto
a reação defensiva de disciplinas literárias estabelecidas à contaminação dos
estudos culturais (traduzidos e adaptados de várias maneiras). Em Portugal, por
exemplo, Machado (2001) observa que os Estudos Culturais emergem de maneira
“um tanto espetacular e frequentemente bem superficial”, espécie de moda que
ameaça substituir o enfoque literário com a “redução da estética à sua estrita
função de produção sócio-cultural e a uma codificação de caráter históricoideológico frequentemente moralizante” (COSER, 2011, p. 139).
Tanto reações favoráveis às novas tendências quanto a negação delas se repete em
vários países. No Brasil, desde 1990, cresce o interesse acadêmico pelo cruzamento da
literatura e cultura. Esta vertente inclui ainda expressões contemporâneas de cultura de
massa, ou cultura popular.
Temas relacionados a gênero, raça ou etnia e aos estudos culturais são bastante
comuns nos dias atuais na academia no Brasil. Acompanhando este crescimento, a
ANPOLL2 criou o GT “Mulher e Literatura”, e a Universidade Federal de Santa Catarina um
encontro interdisciplinar intitulado „Fazendo Gênero‟, são alguns exemplos da expansão
dessa vertente de pesquisa.
Considerações finais
A discussão sobre a composição do cânone literário é vasta e polêmica. Desta
forma, há muitos críticos literários e outros estudiosos da literatura que desejam sua
extinção. Porém a manutenção do cânone literário se faz necessária, tanto para os autores
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ANPOLL – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística. Informações
retidas do site http://www.anpoll.org.br/portal/
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que almejam um dia participar desse seleto grupo, quanto para os leitores que podem contar
com um parâmetro de valores.
Apesar de ser excludente, uma vez que a cada nome que é “eternizado” no rol do
cânone, tantos outros ficam descartados, o cânone é necessário para que haja um padrão. A
existência dele dá aos leitores uma espécie de plano de leitura, que pode ou não ser seguida,
e caso seja seguida pode e deve ser questionada. Há uma importância de valores muito
relevante no questionamento.
O crítico Harold Bloom, por exemplo, defende n7o apêndice do livro Cânone
Ocidental, uma lista chamada por ele de plano de leitura, que indica o cânone, na opinião
dele. Este rol de autores e títulos é destinado aos leitores anglo-americanos, como indicação
do que deve ou não ser lido por eles, caso desejem uma boa obra literária. A exclusão de
inúmeros autores considerados de grande valor literário pela academia não faz da lista de
Bloom inválida, como também não a faz obrigatória. Ela serve apenas de base para
indicação para leitores dentro e fora da academia, uma espécie de ideograma.
Referências
BONNICI, Thomas. FLORY, A. Villibor. PRADO. M. Roberto. Margens Instáveis.
Maringá. Eduem. 2011.
BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Rio de Janeiro. Objetiva. 2005.
_______. Literatura e Sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Companhia de Bolso. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso. Tradução de Cleonica
Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas Literaturas: escolha e valor das obras crítica de escritores
modernos. 2ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras. 2009.
QUEIROZ, Rachel. Dôra, Doralina. Rio de Janeiro. José Olimpio Editora. 1989.
QUEIROZ, Rachel. João Miguel. Rio de Janeiro. José Olimpio Editora. 1969.
QUEIROZ, Rachel. Memorial de Maria Moura. Rio de Janeiro. Media fashion. 2008.
QUEIROZ, Rachel. O Quinze. São Paulo. Editora Siciliano. 1993.
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O CÂNONE LITERÁRIO E AS EXPRESSÕES DE MINORIAS: IMPLICAÇÕES
E SIGNIFICAÇÕES HISTÓRICAS
THE LITERARY CANON AND THE EXPRESSIONS OF MINORITIES:
HISTORICAL IMPLICATIONS AND MEANINGS
Lizandro Carlos Calegari - URI-FW/RS
RESUMO: O objetivo deste trabalho consiste em tecer reflexões sobre o cânone
literário, levando-se em conta os processos de seleção e exclusão de determinados
grupos sociais. Considerou-se, nessa delimitação, a representação das mulheres, dos
gays e dos negros na literatura brasileira. A proposta que se pretende defender é a de
que tais grupos são marginalizados não apenas na sociedade, mas também figuram à
margem do cânone literário. Tal exclusão, quase sempre, se dá por uma elite intelectual
que procura assegurar valores conservadores. Nessa proposta, para efeito de análise,
tomou-se como corpus textos de autores como Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu
e Luis Silva.
Palavras-chave: Cânone. Minorias. Exclusão.
Abstract: This paper undertakes na approach to the literary canon, taking into account
the process os selection and exclusion of certain social groups. In this delimitation, it
was considered the representation of women, gays, and blacks in Brazilian literature.
The proposal being defended is that such groups are marginalized not only in society,
but also in literature. The exclusion, most of the times, occurs by an intellectual elite
that seeks to ensure conservative values. Texts by Clarice Lispector, Caio Fernando
Abreu, and Luis Silva undescore the present analysis.
KEYWORDS: Canon. Minorities. Exclusion.
As abordagens contemporâneas, calcadas ora nas premissas pós-estruturalistas,
ora naquelas teorias defendidas pelos estudiosos que integram a linha dos Estudos
Culturais, procuraram trazer para o centro das discussões acadêmicas aquelas produções
colocadas à margem da sociedade e da história. O primeiro paradigma, por assim dizer,
indagou a noção de “verdade” sustentada pelo estruturalismo e, com Michel Foucault,
formulou-se a ideia de que tal conceito estabelece relações com o poder, o qual, atrelado
ao conhecimento, dá acesso a modos de vigilância e controle subjetivamente
internalizados. Se esse espaço que aceita e concebe os sujeitos plurais, por um lado,
postulou que as identidades não podem mais ser definidas a partir das velhas
concepções essencialistas, por outro, abriu portas para uma miscelânea de visões às
vezes desencontradas. Os estudiosos da cultura, nesse viés, apostaram na
multidisciplinaridade, mas também perceberam que os produtos culturais a serem
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pesquisados não poderiam ser somente aqueles selecionados e celebrados por uma elite
intelectual e artística.
As implicações desses posicionamentos reverberaram num questionamento do
cânone, em particular com o surgimento das críticas marxistas e femininas nos anos
1960, mas também a partir das avaliações pós-coloniais. Nesse sentido, o cânone, aos
poucos, deixou de ser a expressão de valores universais e passou a se pautar na
expressão das relações de poder. Assim, se, num primeiro momento, esse cânone
excluía grupos minoritários e periféricos (não-brancos, mulheres, homossexuais,
pobres), em virtude da necessidade de atender aos interesses dos grupos dominantes,
agora, com a virada metodológica, não desancorada de condicionamentos sociais e
históricos, passou a abrigar vozes dissonantes. Nessa perspectiva, como complementa
Eduardo F. Coutinho (1996, p. 70), “discutir o cânone nada mais é do que pôr em xeque
um sistema de valores instituído por grupos detentores de poder, que legitimaram
decisões particulares com um discurso globalizante”. Ou seja, o modelo europeu,
confundido com o padrão de universalidade a ser seguido, sufocava aquelas produções
minoritárias situadas, muitas vezes, à margem da sociedade.
Roberto Reis (1992), nessa mesma linha argumentativa, explica que o conceito
de cânone se assenta num princípio de seleção e, por isso mesmo, de exclusão, não
podendo, consequentemente, desvincular-se da questão do poder, pois quem seleciona
e/ou exclui está investido de autoridade. O autor explica que os defensores do cânone
argumentam que o critério da qualidade intrínseca de uma obra é determinante para o
estabelecimento de seu valor estético – a sua “literariedade”. Nesse caso, o elemento
externo não desempenharia nenhum papel na escolha de uma obra em detrimento de
outra. Tal princípio, evidentemente, não se sustenta, pois mesmo aquele texto
aparentemente destituído de marcas da realidade factual foi concebido dentro de uma
determinada sociedade, história e época, logo formulado sob condicionamentos
culturais e ideológicos específicos. Nesse sentido, como destaca o crítico em questão, “o
significado de qual0quer juízo de valor sempre depende, entre outras coisas, do contexto
em que foi emitido e de sua relação com os potenciais destinatários e a sua capacidade
de afetá-los ou mesmo convencê-los” (REIS, 1992, p. 73).
Se é possível falar da existência de um cânone, é porque ele foi concebido em
algum momento. No caso da literatura ocidental, conforme observação de Reis,
prepondera a exclusão de diversos grupos sociais, étnicos e sexuais, prevalecendo
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autores europeus geralmente do sexo masculino, heterossexuais, brancos e pertencentes
às elites. Como expõe o estudioso, “a literatura tem sido usada para recalcar os escritos
(ou
as
manifestações
culturais
não-escritas)
dos
segmentos
culturalmente
marginalizados e politicamente reprimidos – mulheres, etnias não-brancas, as ditas
minorias sexuais, culturas do chamado Terceiro Mundo” (REIS, 1992, p. 73). Conforme
propõe o autor, não se questiona o cânone simplesmente incluindo um autor nãoocidental ou mais alguns livros escritos por mulheres, negros ou homossexuais, pois um
novo cânone “não lograria evitar a reduplicação das hierarquias sociais” (REIS, 1992, p.
73). Assim, provavelmente, o problema não reside no rol de obras canônicas, “mas na
própria canonização, que precisa ser destrinchada nos seus emaranhados vínculos com
as malhas do poder” (REIS, 1992, p. 73).
Em se tratando do conceito de literatura, é preciso pensá-lo dialeticamente. Ou
seja, a partir de um conjunto de obras consideradas canônicas, define-se o conceito de
literatura, e tal conceito, por sua vez, vai ditar o que é e o que não é literatura. Assim, se
a produção minoritária permaneceu excluída de um determinando cânone é porque não
figura ou não é concebida como literatura, logo não participa do conceito de literatura.
Flávio Kothe (2002) observa que, diferentemente do que se verifica dentro do modelo
acadêmico mais tradicional, a função da literatura deveria se antepor ao seu conceito.
No seu entendimento, ao se conceituar o termo, estão se propondo definições fechadas,
a-históricas, definitivas e, por vezes, excludentes. Do seu ponto de vista, é a função que
determina a forma e a natureza do objeto: “não há uma natureza a priori, que faça com
que o objeto seja de um modo ou de outro e determine a sua função. Pelo contrário, o
gesto semântico inerente à formação do objeto e determinante de sua natureza decorre
da relação entre elementos do real e intencionalidade humana” (KOTHE, 2002, p. 14).
Assim, num momento em que as minorias parecem estar sendo reverenciadas por
diversos setores da crítica, a função que tal produção desempenha na sociedade deveria
abrilhantar um novo conceito de literatura.
No âmbito da crítica literária, o processo de inclusão e/ou exclusão de produções
pertencentes a determinados segmentos sociais postos à margem da sociedade tem
implicações que atingem não somente as definições de cânone ou literatura. Conceitos
como literariedade, engajamento, juízo crítico e universalidade, só para ficar em alguns,
também são relativizados. Na esfera social e histórica, a rigor, esse esforço em se
redimensionar o alcance da literatura pode ter significações específicas. O objetivo deste
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capítulo, então, é percorrer a crítica e a produção de alguns grupos minoritários –
mulheres, homossexuais e negros, mais notadamente –, procurando extrair dessa análise
um sentido que justifique, em termos sociais e históricos, a emergência e a importância
da literatura de minorias ou que tematizam essas minorias para os grupos
marginalizados. Os textos comentados – contos, crônicas ou romances – servem de
exemplo, verificação, para a proposta interpretativa que se pretende traçar.
Em relação à história das mulheres, esta tem sido uma história de opressão, pelo
menos depois do quarto milênio antes da era cristã, quando os homens começaram a
estruturar o que se tornou o patriarcado. O esforço masculino, ao longo dos séculos,
conseguiu subtrair das mulheres quase todos os seus direitos: não tinham expressão
política, não eram proprietárias, não geriam negócio e não eram sequer donas de seus
próprios corpos. Embora, em muitos países do mundo, as mulheres trabalhem mais do
que os homens, o que, em princípio, garantiria a elas algum direito, suas capacidades
sexuais e reprodutoras eram propriedades dos maridos. No mundo ocidental, aliás,
exige-se que as mulheres criem seus filhos sozinhas nos limites isolados de um lar. Essa
exclusão da vida política é condição para que não figurem como agentes nos rumos da
história. Como se não bastasse isso, as religiões continuam corroborando a opressão
feminina. A bíblia é usada como instrumento que restringe os seus desejos: não podem
beber, fumar, vestir-se imodestamente ou mesmo manter relações sexuais fora do
casamento. Nesse sentido, não dá para ignorar o fato de o papa ter nomeado bispos
conservadores em todos os lugares do mundo. Como quer que seja, atualmente, em
vários países, as mulheres são brutal e covardemente torturadas.
No Irã, por exemplo, mulheres que lutam por sua preservação são mortas. Há, no
país, inclusive, polícia (estranhamente composta por mulheres) que vigia o vestuário e o
comportamento feminino. Na Argélia, a polícia registra, em seus arquivos, com tinta
vermelha, como se fosse um crime, o nome daquelas mulheres divorciadas. No
Afeganistão, elas devem vestir seus corpos com véus o tempo todo, não podem usar
perfumes, bijuterias ou roupas justas, não podem andar no meio da rua, conversar, rir ou
brincar com estranhos e estrangeiros. Em Israel, aumentou drasticamente o relato de
abuso sexual dentro de casa, incesto e violência sexual contra mulheres. Na China do
século XIX, a participação de mulheres em eventos sociais era condicionada ao uso de
roupas que ressaltassem os seios e as nádegas bem como de cintas específicas que
apertassem a cintura, dificultando a respiração, deformando o tórax e, em alguns casos,
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provocando a morte. Muitas mulheres ligadas ao mundo muçulmano têm o genital
mutilado. Todos os tipos de mutilação deformam seus órgãos, incapacitando-as ao
orgasmo e à excitação sexual. Na sua forma mais severa, acarreta relações sexuais e
partos dolorosos, doenças e morte. Em todos esses casos, a exigência pela virgindade,
fidelidade e supressão dos desejos significa, antes de qualquer coisa, submissão, abuso
de poder e violação dos direitos humanos (FRENCH, 1992).
Esse conjunto de acontecimentos explica a exclusão das mulheres da literatura e,
consequentemente, do cânone literário. É somente nos países ditos mais avançados da
Europa – Inglaterra e França – que, no século XVIII, surgem manifestos escritos por
mulheres que colocam em xeque a supremacia masculina. Assim, em virtude dessas
primeiras ondas de feminismo, muitas mulheres tornaram-se escritoras, profissão até
então eminentemente masculina. Entretanto, para não sofrerem retaliações, essas
escritoras assinavam seus textos com pseudônimos. É o caso de George Eliot,
pseudônimo da inglesa Mary Ann Evans, que publica The Mill on the Floss e
Middlemarch, e George Sand, pseudônimo da francesa Amandine Aurore Lucile Dupin,
autora de Valentine. No Brasil, muitas mulheres romperam o silêncio e publicaram
textos de alto valor literário, denunciadores da opressão feminina, mas a crítica parece
ignorar esse fato. Atualmente, reconhecem-se obras de escritoras como Adélia Prado,
Clarice Lispector, Helena Parente Cunha, Hilda Hilst, Lya Luft, Lygia Fagundes Telles,
Nélida Piñon, Patrícia Melo e Zulmira Ribeiro Tavares – só para citar algumas poucas –
que protestam contra valores e padrões patriarcais ou falam da autodescoberta feminina
e a busca de identidade própria (ZOLIN, 2003). Lispector é um dos nomes mais
aclamados pela crítica feminista quando o assunto é mulher.
Ao lado de João Guimarães Rosa, Clarice Lispector coloca-se num dos pontos
mais altos da moderna ficção brasileira de teor metafísico. Influenciada pelas tendências
renovadoras oriundas da Europa, nos rastos de Heidegger e Sartre, a autora propôs um
novo conhecimento do homem e do mundo. A sua produção está calcada na crise das
certezas do homem. Seu primeiro livro, Perto do coração selvagem (1944), aliás, vai
além disso e situa-se na introspecção psicológica de linha proustiana. A protagonista
desse seu romance de estreia, Joana, busca o conhecimento do real, propõe-se a
denunciar a superficialidade estéril da vida que aprisiona os indivíduos – em particular,
as mulheres – na rotina cotidiana. Esse aprisionamento do personagem deve ser visto
não como condição última, mas a ponta de um iceberg para se pensar a condição
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feminina. Em Clarice, o íntimo toca o universal, e desse amalgama brota a grandeza de
sua obra. As mulheres de Lispector vagueiam em seus textos, todas vivendo a mesmice
do dia-a-dia, totalmente alienadas de suas possíveis verdades.
Em Laços de família, livro de contos publicado em 1960, vários textos
denunciam essa violência contra a mulher. Em “Amor”, a dona-de-casa, esposa e mãe
Ana apenas percebe a mediocridade de sua existência quando, numa circunstância banal
de sua rotina, vê, num cego parado mascando chicletes, um ciclo sempre igual de sua
vida. Em “Uma galinha”, a condição feminina aparece alegorizada na própria figura da
galinha que, pelo fato de ter posto um ovo, é poupada de seu destino: ser o almoço de
domingo. O ovo representa, aqui, a capacidade reprodutiva da mulher, sendo esta
respeitada pelo fato de gerar mão-de-obra. A última frase do conto é extraordinária:
“[a]té que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se os anos” (LISPECTOR,
1998, p. 33). “A menor mulher do mundo” narra a história da descoberta, na África
Equatorial, de uma tribo de pigmeus de pequenez surpreendente. Dentro dessa tribo, a
menor das menores mulheres, de 45 cm, apelidada de Pequena Flor, torna-se objeto de
atenção dos pesquisadores, que publicam sua foto no jornal de domingo, onde coube em
tamanho natural. Essa mulher será ridicularizada pelas mulheres das grandes cidades.
No fundo, o conto quer chamar a atenção para a falta de união entre as mulheres, elo
este que foi rompido em virtude dos malogros históricos. “Preciosidade” é a história de
uma adolescente que receia os olhares dos homens. Esse medo denuncia a falta de
proteção e a fragilidade da mulher dentro do sistema patriarcal.
É importante atentar não somente para o conteúdo da produção clariceana, mas
também para o modo como a autora concebe a escrita dos seus textos. Conforme Sandra
R. G. Almeida (1998, p. 190), Lispector foi a única escritora que vislumbrou um
posicionamento crítico e indagador no que tange às questões de gênero. Embora
inicialmente ignorada, a análise crítica do lugar da mulher enquanto sujeito-autor
ganhou destaque nas vertentes modernizantes da ficção brasileira. Comparada a
Virginia Woolf, a escrita de Clarice foi definida como “feminina”. De acordo com
Almeida, “[e]m suas análises da situação da mulher em uma sociedade patriarcal,
Lispector, assim como Virginia Woolf, utiliza, o que se poderia delinear como uma
tendência modernizante em outros países, uma linguagem poética que lhe permite
expressar, não somente a condição marginal da mulher, mas também a possibilidade da
existência de uma escrita feminina” (ALMEIDA, 1998, p. 191). A escrita clariceana, tal
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como se observa em A paixão segundo G. H. (1964), é caracterizada pela fragmentação,
pela presença de monólogos, brechas e silêncios, traços esses que servem como
“impulso subversivo para a expressão de uma voz feminina” (ALMEIDA, 1998, p.
192). Como complementa a autora, “tal escrita se caracteriza por um desafio no sentido
que tem que enfrentar um dilema paradoxal: o desejo de subverter uma ordem imposta e
a consciência inevitável de que se encontra social e culturalmente inserida no mesmo
sistema que tenta transgredir” (ALMEIDA, 1998, p. 192).
Como se observa, trata-se de uma escrita marginal que encontra dificuldade em
tentar se expressar por meios representativos que não se encontram numa sociedade
ocidental. É uma escrita oriunda de um espaço de alteridade que escapa à representação,
definindo-se como uma “impossibilidade de acordo com os parâmetros lógicos e
objetivos” (ALMEIDA, 1998, p. 193). Essa escrita da alteridade, que não se define pela
logicidade, lida com aquilo que a sociedade patriarcal considera impossível, mas que
Clarice desafia como uma possibilidade e um potencial para expressão, concebendo,
assim, um espaço transgressivo. Nesse sentido, Lispector “desconstrói espaços
convencionais e negativos aos quais as mulheres têm sido relegadas e, ao mesmo tempo,
desestabiliza as oposições dicotômicas que reforçam a opressão feminina” (ALMEIDA,
1998, p. 193-194). Não só isso, o discurso feminino de sua prosa revisa, reescreve e
mesmo parodia as noções masculinas de um espaço tradicionalmente feminino. Como
complementa Almeida, é um discurso que “ataca o sistema dominante em sua própria
estrutura através de um texto densamente poético e fluido que destrói convenções
tradicionais – um escrita de ruptura e subversão” (ALMEIDA, 1998, p. 194).
As lutas das mulheres para se libertarem das amarras do patriarcado têm
contribuído muito para o desenvolvimento ético e moral das sociedades. Foram elas, e
não os homens, que ensinaram a falar do corpo e da sexualidade. Para as mulheres, a
sexualidade se concebe como algo salutar, que tem a ver com a ideia de uma utilização
correta, saudável e benéfica do corpo, diferentemente dos homens, que tratam a
sexualidade a partir de uma nomenclatura pornográfica. Com isso, os estudos feministas
foram determinantes para a busca de uma nova concepção de identidade e também
abriram caminho para que aquelas identidades marginais entrassem em cena. Os estudos
queer, a propósito, só foram possíveis graças aos esforços depreendidos pelas mulheres
para que deixassem de ser agentes do patriarcado masculino. Como a desconstrução e
outros movimentos contemporâneos, a teoria queer usa o marginal, o que foi posto de
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lado como perverso, para analisar a construção cultural do centro: normatividade
heterossexual. Nesse sentido, a teoria queer tornou-se o espaço de um questionamento
produtivo não apenas da construção cultural da sexualidade, mas da própria cultura, tal
como baseada numa negação das relações homossexuais. Assim como o feminismo e
versões dos estudos étnicos, ela obtém energia intelectual de sua ligação com os
movimentos sociais de libertação e dos debates no interior desses movimentos sobre
estratégias e conceitos apropriados.
A perspectiva queer consistiria numa reação à heteronormatividade compulsória,
não contra a heterossexualidade em si, pois esta não deixa de ser uma opção entre as
outras. A teoria queer inclui não somente questões sexuais ou de desejos sexuais, mas
principalmente um amplo quadro de dinâmicas sociais – maneiras de se vestir,
aparência corporal, discurso, profissão, formas de ser no mundo, classe social – que é
homologamente correlato à sexualidade enquanto discurso dominante na sociedade
contemporânea. Ademais, a perspectiva queer 1) se fundamenta numa epistemologia
aberta que repudia as definições fixas sobre as quais se firma o patriarcado e suas
definições de sexualidade; 2) não propõe a elaboração de uma narrativa mestra, já que
3) admite a mais ampla variedade possível de interpretações e de modelos de
conhecimento que podem romper com o autoritarismo (FOSTER, 2000). Em outros
termos, o queer vai contra um modelo de identidade simplista e redutora da diversidade,
representado, sobretudo, por uma experiência masculina, branca e de classe média. Com
isso, portanto, o queer não almeja um projeto cujo objetivo é estabelecer uma verdade
dos constructos sociais. Ele aceita todas as formas de identidade sexual, questionando as
forças sociais e históricas que subjazem a aceitação de um modelo em detrimento de
outro. Assim, o queer não condenaria as diversas atitudes dos sujeitos sociais no que
tange à sexualidade, mas indagaria as origens e a preponderância dos ideologemas
patriarcais.
Isso significa que o patriarcado reprimiu violentamente aqueles grupos que não
atendiam aos seus ideais, de forma que os homossexuais foram perseguidos e
condenados imperdoavelmente. Assim, um dos dilemas que mais repugna o queer diz
respeito ao fato de a homossexualidade ser tratada como doença, perversão ou um mal
que deve ser abolido. Em relação à palavra heterossexual, dentro da área médica,
implica o perfeito funcionamento do corpo, coincidindo, assim, com a ideia de saúde;
no campo jurídico, o casamento entre indivíduos de diferentes sexos é legal, o que
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garante direitos tanto para o homem quanto para a mulher; na instância religiosa, a
heterossexualidade é sustentada, pois é o meio para a constituição da família nuclear,
unidade social estimulada pela igreja. O homossexual, por se contrapor ao
heterossexual, implicaria, então, uma definição que seria correlata à doença, à
ilegalidade, ao pecado, à imoralidade. Ainda para o discurso médico e religioso,
somente a estimulação dos órgãos sexuais resultaria no prazer legítimo, já que está
atrelada à reprodução. Ademais, por exigir a presença de ambos os sexos, ter-se-ia a
figura do dominador e a do dominado, o subalterno. Para a crítica queer, o termo
homossexual não é correlato à doença, perversão, ilegalidade, pecado ou imoralidade. É
um grupo de pessoas que apresenta um desejo distinto a um padrão de gosto
convencional dominante, o que não seria uma condição suficiente para sofrer algum tipo
de discriminação ou restrição.
Nesse sentido, existe uma busca irrefreada para justificar as causas da
homossexualidade (mas não da heterossexualidade). Para alguns, a definição sexual
seria resultado de um gen dominante que conduz o indivíduo a uma aceitação do seu
destino biológico; outros propõem que a homossexualidade resulte de uma educação
familiar com um pai precário na consecução de seu papel ou então com uma mãe
dominante; outros ainda defendem que é consequência de uma dinâmica de poder, em
que há a lei do mais forte que impera sobre o mais fraco; há também os que acreditam
que a homossexualidade masculina é consequência de uma violência inerente a um
mundo homogeneamente masculino (o exército, o cárcere, o seminário, etc.) ou que o
lesbianismo é consequência da marginalidade de um mundo homogeneamente feminino
(os conventos, por exemplo). Em particular às causas da homossexualidade, talvez
nenhuma dessas premissas (que se enquadram em parâmetros biológicos, sociais ou
culturais) interferem em tal definição; talvez algumas delas sejam responsáveis; talvez
todas elas, conjugadas, contribuem para um perfil sexual. Independentemente disso, o
queer reage à ideia de anormalidade, inversão, ilegalidade dentro da qual a
homossexualidade se circunscreve modernamente.
Essas diferenças e preconceitos têm contribuído para o problema da homofobia,
que consiste basicamente na utilização da violência física e psicológica para que os
indivíduos cumpram com fidelidade ao heterossexismo compulsório, buscando punir
qualquer gesto que pode ser considerado uma falta de lealdade a esse último. A
homofobia serve tanto para legitimar as ideologias sociais que se circunscrevem em
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torno do heterossexismo compulsório quanto para excluir da sexualidade legítima todos
aqueles indivíduos sociais que não cumprem com as normas desse heterossexismo
compulsório. Nessa perspectiva, uma das formas mais visíveis de como a homofobia se
manifesta corresponde ao que pode ser chamado de aumento da metonímia. Entendendo
que metonímia consiste no reconhecimento de uma totalidade a partir de um detalhe que
define certo elemento – como, por exemplo, partir do detalhe de a mulher usar calças e
chegar à totalidade de ser lésbica, ou partir do detalhe de o homem usar brincos e chegar
à totalidade de ser gay –, a homofobia trabalha para identificar um detalhe, qualquer que
seja, para chegar a uma totalidade inquestionável. É justamente isso o que faz com que a
homofobia se torne perigosa: um homem usa brincos, logo ele é identificado como
homossexual; como consequência, está contaminado pelo vírus da AIDS; podendo,
inclusive, infectar outros. Por tudo isso, qualquer modo de extermínio desse sujeito se
torna legítimo. Esse tipo de violência pode não acontecer diariamente no tecido social,
mas está lá como uma ameaça constante que umedece a expressão dos direitos
humanos.
Na literatura brasileira, vários escritores têm dedicado atenção à temática do
homoerotismo e da homofobia. Alguns nomes que podem ser citados são: Lúcio
Cardoso, Gasparino Damata, Fernando Gabeira, Glauco Mattoso, Nelson Rodrigues,
João Guimarães Rosa, Silviano Santiago, Lygia Fagundes Telles, Nélida Pinõn e
mesmo Clarice Lispector. Caio Fernando Abreu escreveu contos e novelas em que o
problema da homofobia como resultado de um processo histórico de exclusão é
reiterado. O espaço narrativo dos seus escritos é povoado por subjetividades que
representam um amplo quadro em que questões relativas à sexualidade ou gênero
escapam dos modelos socialmente legitimados. O autor ataca qualquer sistema
ideológico que pode marginalizar as diferenças ou que pode excluir o sujeito que deseja
se realizar emocionalmente ou sexualmente conforme suas próprias escolhas. Os contos
“Terça-feira gorda” e “Aqueles dois”, da obra Morangos mofados (1982), são
exemplares nesse sentido.
O primeiro narra o envolvimento de dois homens num dia de carnaval e a sua
frustração perante as atitudes das pessoas que testemunham o acontecimento. Durante a
festa carnavalesca, os protagonistas se aproximam e estabelecem um contato erótico, o
que atrai a atenção do público à sua volta. Essa suposta desobediência às normas sociais
concorre para a manifestação de preconceitos, uma vez que o contato físico e erótico
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entre ambos acontece em ambiente público, onde a sociedade é testemunha das atitudes
e dos comportamentos que assumem. No conto, um importante fator que intensifica a
homofobia tem a ver com as circunstâncias em que tal discriminação acontece: durante
uma festa carnavalesca. Por definição, no carnaval, não haveria discriminação entre
atores e espectadores, todos participariam ativamente da ação carnavalesca, da vida às
avessas. Ele se caracterizaria, ainda, por proceder a uma inversão do cotidiano, por
corresponder à vida desviada de seu curso normal. Nesse sentido, se o carnaval aceita
tal inversão de valores, os sujeitos sociais deveriam, a princípio, ser condescendentes à
manifestação de práticas homoeróticas. No entanto, não é isso o que acontece: a
sociedade reconhece os limites e expulsa aqueles indivíduos que profanam as normas
heterossexuais. Isso significa que a homofobia, que dialoga com a violência
internalizada dos sujeitos, prepondera sobre regras estabelecidas por um festejo em
particular.
O título, aliás, é bastante sugestivo para a interpretação do conto. A terça-feira
gorda é o último dia do carnaval e antecede a quarta-feira de cinzas. O sentimento social
é, pois, de aproveitar ao máximo esse último dia. No texto, a alegria está na própria
festa, mas também na celebração alegre e coletiva da morte. O carnaval, nessas chaves,
serviria para camuflar o que há de violência e desrespeito no tecido cotidiano das
relações humanas. A violência contra os protagonistas, considerando-se que se deu
durante as festas carnavalescas, se traduz numa brincadeira a mais, algo que implica a
pouca importância ou o pouco valor dados aos indivíduos sociais de interesses
homoeróticos. Eles são vistos como subcategorias, reduzidos à condição de objetos de
bizarria e/ou de ridicularização. Todos esses episódios, em última instância, traduzem a
falta de espaço e de liberdade dada aos grupos homossexuais na sociedade
contemporânea.
Em Morangos mofados, outro conto que problematiza a exclusão social de
indivíduos que supostamente não atendem à heteronormatividade é “Aqueles dois”. Os
protagonistas são Raul, 31 anos, oriundo do norte, e Saul, 29, proveniente do sul. O
espaço onde acontece o encontro dos dois é uma firma. A natureza do conto é ambígua,
pois detalhes que apontam para a suposta homossexualidade dos dois encontram
argumentos contrários, logo não dá para afirmar com precisão a condição sexual deles.
De qualquer forma, o comportamento de Raul e Saul concorre para a demissão deles da
firma, a qual, por sua vez, é chefiada por um homem, um patriarca, que dita e observa as
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regras de conduta e de comportamento. No texto, o prédio onde a firma funciona é
adjetivado como “feio” e “parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica” (ABREU,
1984, p. 129). A sociedade onde os protagonistas vivem apresenta um comportamento
homólogo a uma prisão ou a uma clínica, uma vez que, nelas, os indivíduos são
vigiados e orientados a um comportamento que satisfaça às demandas sociais. A
demissão dos dois é a própria exclusão a que a sociedade – representada, aqui, por
homens e mulheres que obedecem a normas ditadas por um homem – os submete.
Existem indícios de que Raul e Saul são homossexuais, mas não há qualquer ratificação
dessa hipótese. Seja como for, aos olhos de uma sociedade preconceituosa, eles seriam
homossexuais, consequentemente, anormais e doentes.
“Aqueles dois” não é um conto que se volta prioritariamente à questão do
homossexualismo, porque a relação dos rapazes como amantes é apenas representada
obliquamente; é antes sobre homofobia, porque é essa dinâmica que é diretamente
enfatizada no texto. A homofobia ameaça as aspirações de felicidade das pessoas cujo
comportamento parece não atender às prerrogativas do heterossexismo compulsório e o
seu discurso é inquestionável e irrepreensível. Ou seja, a mera pressuposição de que os
dois indivíduos são homossexuais assegura a sua verdade. A homofobia não é generosa
em seus julgamentos. Em situações em que pode haver simplesmente uma forte amizade
entre sujeitos de mesmo sexo, existe a possibilidade de eles serem julgados
impiedosamente.
A exemplo das mulheres e dos homossexuais, a história dos negros também tem
sido marcada pela violência e pela exclusão. A presença negra, no Brasil, teve início por
volta de 1550 e, tanto na mineração quanto na agricultura, a mão-de-obra de escravos
africanos foi explorada por portugueses, espanhóis, ingleses ou holandeses. A expansão
da atividade açucareira no país favoreceu o comércio entre América, Europa e África.
Cerca de três milhões de africanos foram trazidos para o Brasil, sendo que muitos deles
morriam nas viagens dos navios negreiros. Os negros não eram considerados seres
humanos, mas mercadorias. Viviam na promiscuidade, de modo que a dureza do
trabalho e a precariedade da alimentação faziam com que a sua vida útil chegasse no
máximo a dez anos. Qualquer deslize implicava severos castigos: eram açoitados com
um chicote que abria fendas onde se punha sal; eram castigados com um instrumento de
ferro que prendia mãos e pés; e, em caso de faltas mais graves, podiam merecer penas
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mais cruéis como castração, amputação de seios, quebra de dentes a marteladas e
emparedamento vivo.
Apesar da enorme presença e contribuição dos negros em diversos âmbitos da
economia, da política, da literatura e da cultura brasileira, eles, na maioria das vezes,
foram avaliados sob uma ótica racista. No início do século XX, circularam em solo
nacional inúmeros pensamentos preconceituosos e autoritários oriundos de intelectuais
como Miguel Reale, Gustavo Barroso e Oliveira Vianna. Este último (1956), a rigor,
formulou a ideia de que o aperfeiçoamento social do país seria possível graças a um
processo de branqueamento. Com menos negros, o Brasil seria mais forte. Com tabelas
e estudos investigativos amparados na concepção de ciência de seu tempo, o autor
procurou demonstrar que a mestiçagem deveria caminhar no sentido de diminuição do
coeficiente de negritude do país, para que a nação fosse politicamente fortalecida.
Também em meio a este contexto em que circulavam ideias de intelectuais
conservadores, vem a público o pensamento de Gilberto Freyre. Em seu livro Casa
grande e senzala, de 1930, o autor tem um posicionamento contrário ao de Vianna. Se,
para este, a presença de negros é um fator de fragilidade, para aquele, a cultura
brasileira é enriquecida pela integração de elementos portugueses e africanos. Em sua
tese, está o princípio de uma integração da contribuição cultural dos negros como
necessidade interna da constituição da sociedade brasileira. Dito de outro modo: em vez
de excluir o elemento negro rumo à purificação ariana, propõe admitir e valorizar a sua
contribuição.
Não obstante essas ideias contrárias, a situação do negro no Brasil
contemporâneo é assunto cada vez mais presente em debates universitários que se ligam
frequentemente a movimentos sociais organizados. No campo das Letras, pesquisadores
de Literatura Comparada e Estudos Culturais têm avançado nas reflexões. Apesar de
prevalecer algum tipo de censura, alguns trabalhos têm se destacado no âmbito dos
estudos literários. Pesquisadores estrangeiros como David Brookshaw, Gregory Rabassa
e Raymond Sayers dedicaram suas atenções à questão do negro na literatura brasileira.
No Brasil, há pesquisas e ensaios de Eduardo de Assis Duarte, Elisa Larkin, Paulo
Leminski, Regis de Morais, Roger Batiste, Thales de Azevedo e Zilá Bernd, dentre
outros. Essa última (1987) cita como importante o papel do Centro de Estudos AfroOrientais da Universidade Federal da Bahia e do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da
Faculdade Cândido Mendes para este ramo de investigação. Este quadro não se
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restringe a esses nomes. Por exemplo, no início do século XX, em 1915, mais ou
menos, já surgia uma imprensa voltada para a questão do negro no Brasil.
Não se pretende, aqui, apresentar uma lista exaustiva de nomes de escritores que
se dedicaram à causa negra (os livros de Brookshaw [1983] e de Bernd [1987, 1988,
1992], dentre outros, o fazem muito bem); antes, busca-se demonstrar como um desses
autores, Luís Silva, conhecido como Cuti, contribui para a “redescoberta” e afirmação
do “eu-negro” em alguns de seus contos extraídos do livro Negros em contos, de 1996.
Cuti foi um dos fundadores e membros do Quilombhoje-Literatura de 1983 a 1994, e
um dos criadores e mantenedores da série Cadernos negros de 1978 a 1993. Publicou
várias obras (Batuque de tocais [1982], poemas; Suspensão [1983], teatro; A pelada
peluda no Largo da Bola [1988], novela juvenil; ...E disse o velho militante José
Correia Leite [1992], memórias, este em coautoria como o próprio José Correia Leite) e
tem textos em diversas antologias.
Assim, no conto “Boneca”, Cuti problematiza a relação entre brancos e negros e
tematiza o preconceito velado existente na sociedade brasileira. Trata da história de um
pai que, na véspera do natal, sai à procura de uma boneca negra para sua filha. Nas
várias lojas em que entra, escuta ironias finas a propósito das características do presente.
Quando finalmente encontra o produto, ocorre uma série de transtornos no armazém: ele
não é devidamente bem atendido, é confundido com um africano, e a moça que lhe
presta serviço sofre um acidente. Essas situações demonstram que, embora perpasse no
país uma ideia de democracia racial, a sociedade não está preparada para lidar com o
diferente. Outro texto que marca a tensão entre brancos e negros é “O batizado”. Um
casal de negros oferece o batizado de seu filho Pedrinho a um casal de brancos. Paulino,
irmão do pai da criança, fica indignado com a situação e, bêbado, faz um discurso de
desaprovação do gesto, algo que motiva uma desordem na festa. Em última instância, o
conto retrata o preconceito que há entre os próprios negros bem como destes para com
os brancos, novamente reforçando a premissa de que a igualdade racial não é tão plena
como certos discursos têm procurado sustentar. Em “Ah, esses jovens brancos de terno
e gravata!”, o racismo aparece de forma explícita. A fila para a entrada em um banco
está demorada, e um jovem culpa, sem um motivo convincente, os negros por isso: “O
Brasil não vai pra frente por causa desses preto e desses baiano. Essa gente é que é o
nosso atraso. O governo devia acabar com tudo eles...” (SILVA, 1996, p. 101). A fala
do rapaz chama atenção para o preconceito internalizado nas pessoas, mais
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especificamente para a política de branqueamento ou extermínio sistemático como
forma estratégica para solucionar os males brasileiros.
Esses contos tratam das relações entre brancos e negros, macropoder e
micropoder, violência pública e privada, discriminação e preconceitos. No livro de Cuti,
aliás, há outros textos em que esses elementos se fazem presentes. Em “Carreto”, a
disputa por algumas moedas leva meninos pobres a transportarem os carrinhos de
mercadorias das senhoras que saem das compras carregadas. Muitas vezes, o duelo pela
freguesia gera atrito entre os concorrentes: “Ô, macaco! Fora daqui, tição apagado!”
(SILVA, 1996, p. 27). Em “Preto no branco”, Betão, um negro, namora uma moça
branca, Marli, cuja família é contra o relacionamento. Depois de muitas dificuldades em
função da cor, ele é promovido pela empresa onde trabalha. Surpreendentemente, quem
vai até lá pedir emprego é Rubinho, o cunhado, irmão de sua companheira, mas, ao se
deparar com Betão como contratante, ele grita: “Enfia o emprego no cu. Nego nenhum
vai me dar ordem!” (SILVA, 1996, p. 38). Em “Vida em dívida”, um moleque é
acusado por um vendedor – talvez injustamente – de furtar dinheiro de sua loja. Manoel,
dono do estabelecimento, assim se refere ao garoto: “Filhos de rato! Fodo-os! Só
servem pra pedir. Ou então roubar. Fodo-os! Vão roubar o diabo, se quiserem”
(SILVA, 1996, p. 46). Aqui, tem-se uma metonímia, ou seja, a parte pelo todo, sendo
todos os negros julgados pela atitude de um.
Mulheres, gays e negros – esses grupos, ao lado de outros, por terem sido
colocados à margem da sociedade, da história e da literatura, denunciam sua condição
de exclusão, mas principalmente de sofrimento. Se, hoje, tais segmentos parecem surgir,
ainda que às vezes timidamente, no âmbito das discussões acadêmicas, porque
vinculados à produção artística, é devido ao fato de uma mudança de paradigmas e do
entendimento de que avultam como parcelas que detêm uma outra história, ou seja, são
indivíduos cujos relatos são portadores de uma acusação a um sistema de poder
autoritário. Além disso, o surgimento de escritos que retratam a condição de humilhação
das mulheres, dos homossexuais e dos negros ocorre pela necessidade de se agregarem
valores cujo intuito radica em torno da afirmação de uma identidade rasgada e
dilacerada pelas condições históricas. Ao que me parece, subjacente à busca dessa
integração identitária, tem-se um esforço por parte de muitos escritores de superar um
trauma imposto pelas circunstâncias históricas.
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JOSEFINA PLÁ: UM EXPOENTE FEMININO NA LITERATURA
HISPANO-AMERICANA
JOSEFINA PLÁ: THE EXPONENT WOMEN IN THE SPANISH
AMERICAN LITERATURE
Andre Rezende Benatti (PG-UFMS/Capes)
RESUMO: Este artigo tem como objetivo traçar um pequeno panorama da literatura
hispano-americana feminina, assim como sua formação. Para tal nos ateremos à obra de
Josefina Plá, uma artista espanhola, que com grande afinco desenvolveu suas artes no
Paraguai, obras estas que são um genuíno retrato de uma grandiosa literatura que para
além de hispano-americana possui projeções universais. Portanto, Josefina Plá, pode ser
marcadamente caracterizada como um dos expoentes da literatura hispano-americana,
assim como universal.
Palavras-chave: Literatura Hispano-Americana. Feminino. Josefina Plá.
ABSTRACT: This article aims to trace a small panorama of the female spanish
american literature, as well as its formation. For this we gone limit the overview, to talk
only about Josefina Plá, one spanish artist, who tenaciously developed his arts in
Paraguay, her work are a genuine portrait of a great literature, his work is not only latin
american but also universal. Therefore, Josefina Plá, can be notoriously call as one of
the exponents in the spanish american literature, as such in the universal literature.
Keywords: Spanish-American Literature. Female. Josefina Plá.
BIOGRAFIA
Seguí el camino al que me echaron
dormí en la cama que me dieron
me lavé la cara en las lluvias
de las tormentas que vinieron
comí un pan hecho con la harina
que mis propios huesos molieron
y bebí el agua de azul frío
del pozo vuelto que es el cielo.
Siguiendo el croquis del tesoro
En el baúl del bucanero
llegué al jardín de la ceniza
para saber que soy correo
de algún secreto ya borrado
de no sé cuál caduco pliego
polvoso mensajero errado
sin otra opción que su regreso.3
(PLÁ, Josefina,1996, p. 122)
3
Trad. nossa: “Segui o caminho ao qual me jogaram/ dormi na cama que me deram/ lavei o rosto nas
chuvas/ das tormentas que vieram/ comi um pão feito com a farinha/ que meus próprios ossos moeram/ e
bebi a água de azul frio/ do poço virado que é o céu / / Seguindo o esboço do tesouro/ no baú do corsário/
cheguei ao jardim de cinza/ para saber que sou correio/ de algum segredo já apagado/ de não sei qual
papel caduco/ poeirento mensageiro errado/ sem outra opção que seu regresso.”
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1. Considerações iniciais
De acordo com Thomas Bonnici, “Tradicionalmente o termo „cânone‟ refere-se a uma
seleta lista de obras literárias consideradas „grandes‟, „valiosas‟, „universais‟ e „duráveis‟ e,
consequentemente merecedoras de prestígio acadêmico permanente e de imprescindível
imitação” (BONNICI, 2011, p.105), no entanto, quais são os instrumentos escolhidos para que
esta ou aquela obra literária seja considerada canônica ou não? O que valoriza ou não uma obra
para que esta seja incluída ou excluída do cânone literário? E os bons autores que ficaram
esquecidos, onde colocá-los?
Frequentemente nossas opiniões sobre obras são formuladas com base em experiências
anteriores de julgamento, raramente lemos uma obra sem um prévio julgamento sobre esta, que
se dar por diversos fatores, local de produção, idioma, no caso de obras novas ou desconhecidas
ou críticas, indicações de amigos ou professores no caso de obras já conhecidas. Mas é a partir
da reflexão sobre história da literatura que se pode examinar como públicos leitores aprovam ou
reprovam autores e obras, com que fundamentos e critérios o fazem.
O conceito de valor pode ser verificado em tensão com a noção de cânone. A atribuição
de valor não se faz no vazio, mas em meio a um campo de referências historicamente firmadas,
encontramos obras e autores consagrados, enumerados nos mais diversos manuais de história
literária.
Roberto Reis (1992) ressalta, em relação à literatura brasileira, que é necessária uma
discussão a respeito do cânone literário, pois “há poucas mulheres, quase nenhum não-branco e
muito provavelmente escassos membros dos segmentos menos favorecidos da pirâmide social”
(REIS, 1992, p. 73), e esta não é uma realidade exclusiva da literatura brasileira, na literatura
hispano-americana também ocorre o mesmo, e impressão que fica é que tais classes nunca
produziram algo dito qualitativo, o que não se confirma, na literatura hispano-americana, por
exemplo, são inúmeros os autores esquecidos, pelas mais diversas razões nos cursos de Letras.
Nas universidades brasileiras, grande parte das pesquisas que tem como objetos de
estudos obras de literatura hispano-americana concentram-se em grandes nomes tais como
Gabriel García Marquéz, Júlio Cortázar, Mário Vargas Llosa, Pablo Neruda e Jorge Luis
Borges, deixando de lado escritores de grande qualidade, que são algumas vezes lembrados
outras não, e que por conta disso permaneces no esquecimento e na ignorância da maioria dos
alunos dos cursos de Letras. Josefina Plá, escritora paraguaia, se encontra neste meio, o meio
dos autores de qualidade que são esquecidos dentro dos cursos de Letras.
A proposição deste artigo é um pequeno panorama da literatura hispano-americana e as
contribuições de Josefina Plá para o desenvolvimento desta.
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2. Da literatura hipano-americana e Josefina Plá
O que se tem, hoje, por literatura hispano-americana vem se formando a partir do longo
processo histórico de colonização da América espanhola. No século XVI, começa o processo de
colonização da América pelos espanhóis, estes trazem da Europa toda sua cultura e a implantam
na América, fundam cidades, expandem seus territórios. Com isso, grande parte ou quase toda a
cultura de grandes civilizações indígenas, como os Astecas, os Maias e os Incas se perdem, no
entanto, suas essências são mantidas. A partir desse fato histórico, a mistura das essências das
culturas locais com a européia, se produz uma mestiçagem das culturas indígenas e européias. O
resultado dessa mistura de culturas não é nem uma cultura européia fortalecida, nem uma
cultura indígena fortalecida, mas sim uma síntese das duas culturas. A esta síntese se une outra
cultura, a africana, trazida pelas mãos dos escravos que vêm para a América como mão de obra
em alguns lugares do novo continente.
Lo que vino a realizarse en América no fue ni la permanencia del
mundo indígena, ni la prolongación de Europa. Lo que ocurrió fue
otra cosa y por eso fue Nuevo Mundo desde el comienzo. El mestizaje
comenzó de inmediato por la lengua, por la cocina, por las
costumbres. Entraron las nuevas palabras, los nuevos alimentos, los
nuevos usos.4 (USLAR PIETRI, A., 1990, p. 350)
Os poetas e escritores que aqui chegaram, vindos de uma Europa tradicionalíssima e
“culta”, depararam-se com uma explosão de cores, de cheiros, de sabores da cultura popular
americana. Logo a mestiçagem, também, esta presente na literatura produzida no Novo Mundo,
pois esta, a Literatura, como nos afirma Candido (2000), é projetada na realidade, o que já vem
sendo posto desde as concepções aristotélica da mimesis.
As primeiras manifestações literárias da América Hispânica são influenciadas pela
literatura da metrópole. Nessa época, a América Hispânica importava tudo, o que seria relativo à
cultura, da Espanha, porém com certo atraso. Por isso, segundo Octavio Paz (1979), não se pode
falar de uma literatura estritamente hispano-americana até a aparição dos modernistas. Afirmar
que é um estilo a parte da literatura espanhola é um erro. Os poetas e escritores, nessa época,
não tinham uma manifestação de valorização do “ser americano”. Em seus textos, eles se
referiam a lugares bucólicos e perfeitos. Somente depois do século XVII, houve uma
preocupação, por parte dos hispano-americanos, pela busca de uma identidade própria, algo que
não os deixassem em total dependência da Espanha, pois culturalmente não eram europeus, não
eram indígenas e tão pouco africanos, a “americanidade designa, em sua reflexão, as marcas que
4
Trad. nossa: “O que veio a realizar-se na América não foi nem a permanência do mundo indígena nem o
prolongamento da Europa. O que ocorreu foi outra coisa e por isso foi Novo Mundo desde o começo. A
mestiçagem começou de imediato pela língua, pela cozinha, pelos costumes. Entraram novas palavras,
novos alimentos, novos usos.”
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a cultura e o falar populares adquirem por distanciarem-se dos padrões da norma culta emanada
da Europa” (BERND, 2005, p. 21), distantes exatamente por incorporarem tudo o que está a seu
redor, toda a América à sua cultura. Os hispano-americanos eram e são, até hoje, uma síntese de
todos esses povos.
Comentando o processo de identificação, processo esse que é de íntima relação com o
assunto aqui abordado, Stuart Hall alude sobre os mecanismos de identificação que são
utilizados para que se veja unido por alguns traços em comum, ele comenta:
As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas
também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações
quanto a concepção que temos de nós mesmos [...]. As culturas nacionais ao
produzir sentido sobre a “nação”, sentidos com os quais podemos nos
identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias
que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com
seu passado e imagens que dela são construídas. (HALL, 2005, p. 50-51)
A construção desses significados também passa pelas manifestações artísticas culturais
que determinado povo se faz. A identidade enquanto produção de imaginário coletivo pode ser
assumida por uma nação a partir de uma série de discursos fundamentadores de mentalidades.
Isso quer dizer que ao longo de um processo identitário várias estratégias de significação no
sentido de reunir através dos símbolos tais como o hino, a bandeira, os heróis e os fracassos que
permeia a história de um estado-nação, são lançados a mão para dar ao sujeito uma noção de
pertencimento a algo maior que suas individualidades, o que não acontecia totalmente na
formação da América Hispânica, pois todos estes valores eram oriundos da península Ibérica.
Segue-se ainda em Hall:
[...] a nação não é apenas uma entidade política mas algo que produz sentidos
– um sitema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs
legais de uma nação; eles participam da idéia da nação tal como representada
em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica e é isso
que explica seu poder para gerar um sentimento de identidade e
lealdade.(HALL, 2005, p. 49)
A colaboração da literatura para construir esse conceito de identidade foi de grande
importância no decorrer da criação do valor identitário hispano-americano. Segundo Franco
(2001), os intelectuais hispano-americanos eram pessoas ligadas ao clero ou aos filhos de
proprietários rurais e empregados públicos. A tradição literária era clássica e espanhola, e ficava
às voltas dos temas pastoris, dos poemas de amor e dos de cunho religioso. Não havia uma
literatura feita a respeito das realidades que estavam postas na América, mas não por falta de
escritores de talento, e, sim, por conta da colonização sofrida. Não podiam eles absorver das
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experiências imediatas de suas vidas, pois viviam como parasitas intelectuais da grande
metrópole.
Y aunque los escritores españoles y los ya nacidos en América pero de
origen español hicieron grandes esfuerzos para encajar esta realidad dentro
de las categorías que les eran familiares, las circunstancias les obligaron a
menudo a seguir otros caminos.5 (FRANCO, 2001, p. 18)
Como literatura do século XVI, a mais predominante foi à épica e houve também
crônicas a respeito das façanhas dos conquistadores. Já, nesse século, há uma distinção entre as
poesias populares e as poesias acadêmicas, latinizadas, mas, segundo Franco (2001), foi à
poesia lírica a mais habitual das atividades cortesãs ao longo de todo o período colonial.
Em meio a toda essa mistura de culturas, essa contradição, nos modos de vida, surge,
segundo Franco (2001), a maior figura do período colonial; a monja mexicana Sóror Juana Inés
de la Cruz. Pelo fato de ser mulher, Sor Juana Inés de la Cruz estava em uma posição ainda mais
difícil que a de todos os outros escritores hispano-americanos, pois a mulher da época só tinha
dois destinos, ou servir ao matrimonio ou a vida religiosa. Inés de la Cruz opta pela vida
religiosa, depois de servir a corte, para poder permanecer o mais próximo possível do
conhecimento, já que a Igreja Católica era quem possuía os livros na época.
Nas palavras de Franco (2001), Inés de la Cruz, como poetisa, foi mais intelectual do
que lírica. Em seus poemas, os sentimentos parecem estar em contradição com o apaixonado
amor que sentia pelas ciências.
Para Franco, a poetisa foi um dos exemplos de escritores cuja imaginação estava
encadeada pelo ambiente da província que lhe oferecia horizontes muito pequenos para todo seu
talento. Ela não só viveu em um lugar afastado da corte espanhola, mas, também, dependia da
metrópole para sobreviver. No entanto, essa situação trouxe benefícios para Inés de la Cruz,
pois, “sin duda alguna el convento ofrecía el tipo de protección de justificación que Sor Juana
necesitaba para su vida solitaria y debía haber otras mujeres en situaciones semejantes.”6(
FRANCO, 2001, p. 27,28),
Historicamente, a maneira como estudamos a literatura vem privilegiando, como
afirma Lemaire (1994), os grandes escritores (homens), excluindo da historiografia literária as
mulheres e mostrando, por conta do patriarquismo, que “em assuntos de homem não há espaço
para mulheres „normais‟.” (LAMAIRE, 1994, p.58). Esta “exclusão” das mulheres não se dá
somente no meio literário, mas também em muitos outros como, por exemplo, nos discursos
usados dentro das ciências humanas, em que o homem representa a mulher, em seus escritos,
5
Trad. nossa: “E ainda que os escritores espanhóis e os já nascidos na América, mas de origem espanhola
fizeram grandes esforços para encaixar esta realidade dentro das categorias que lhes eram familiares, as
circunstancias lhes obrigaram com freqüência a seguir outros caminhos.”
6
Trad. nossa: “Sem duvida alguma o convento oferecia o tipo de proteção de justificação que Sor Juana
necessitava para sua vida solitária e devia haver outras mulheres em situações semelhantes.
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como o “sexo fraco”. Esta pode ser considerada umas das representações mais radicais do poder
patriarcal que desqualifica ou exclui indivíduos que, por qualquer razão, estejam fora do sistema
construído pelas sociedades machistas.
A presença feminina sempre foi vista como menos importante no espaço da cultura e da
literatura. Como afirma Schmidt (1995), a mulher sempre estava relegada ao papel de musa,
estando totalmente impossibilitada de reconhecer-se como uma autora e de se afirmar como
detentora de certos pensamentos que não condiziam com a realidade da grande maioria das
mulheres, especialmente as do século XIX, por exemplo. Embora tenham vivido num âmbito de
padrões culturais masculinos, algumas escritoras desafiaram tais padrões e nos deixaram uma
gama de obras genuinamente femininas. Apesar de desenvolvidas dentro dessa cultura
masculina dominante, essas obras forçam um desequilíbrio nas relações representativas
congeladas da cultura masculina.
O feminino como passividade e conformidade dramatizado na
“estética da renuncia”, na “temática da invisibilidade e do silêncio” ou
na “poética do abandono” se desdobra na prática representacional de
resistência cujo consciente que estilhaça o discurso das exclusões”.
(SCHMIDT, 1995, p.187)
Segundo Eduardo Frieiro (1941), para a crítica misógina, “a mulher que se entregava às
letras cometia dois enganos: aumentava o numero de maus livros e diminuía o numero de
mulheres”. Por causa de críticas como esta é que, no século XIX, por exemplo, as produções
literárias femininas se apresentavam de modo menos prestigioso e mais acanhado que as
produções masculinas.
De um modo geral, até fins do século XIX, como afirma Schmidt, as poucas mulheres,
que ousaram desafiar a hegemonia das sociedades patriarcais, escreveram suas obras e foram
ridicularizadas ou repudiadas na sociedade em que viviam. As mulheres nunca foram impedidas
de falar ou de escrever, mas a sociedade se recusava a ouvi-las ou lê-las de uma maneira
universal. Em qualquer tempo na história da literatura e na história da sociedade humana, o
feminino sempre mereceu um maior destaque, pois ele representa a mudança de como as
sociedades masculinas vêem o mundo.
Virginia Woolf, em uma de suas mais celebre obras Um teto todo seu, estava certa ao
dizer que “a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se pretende mesmo escrever ficção;
e isso, como vocês irão ver, deixa sem solução o grande problema da verdadeira natureza da
mulher e da verdadeira natureza da ficção.” (WOOLF, 1990, p. 8), para poder despreocupar-se
das imprecações de ser mulher que basicamente eram e pra muitas ainda são, cuidar dos filhos e
do lar. No entanto, como em uma sociedade machista patriarcal, uma sociedade que em muitos
aspectos ainda não se encontra em total desenvolvimento, o feminino se fez?
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Uma das respostas a este questionamento se encontra na esquecida produção literária de
Josefina Plá, intelectual, artista plástica, historiadora, jornalista, dramaturga, ensaísta,
catedrática e critica de arte e literatura, que de acordo com Rodríguez-Alcalá entre os
intelectuais hispano-americanos possui obras “cuyos ensayos de la historia del arte y de la
letras paraguayas constituyen una aportación de mérito singular.”7(RODRÍGUEZ-ALCALÁ,
1999, p. 91). Nascida nas ilhas Canárias, Espanha, em 1909, muda-se para o Paraguai, em 1926,
onde desenvolve toda sua magnífica obra literária.
No Paraguai, Josefina se estabelece na capital, Assunção. No mesmo ano em que se
muda para este país, destacam-se suas primeiras obras. Paraguai torna-se sua pátria por adoção.
‘Española de nacimiento y paraguaya por destino y apasionado amor
a la tierra de su esposo’ – dice Hugo Rodríguez-Alcalá en la primera
edición de esta Historia de la Literatura Paraguaya.8 (RODRÍGUEZALCALÁ, 1999, p, 324 )
Para o crítico, Josefina Plá deixou uma notável obra poética, bem como em prosa. No
âmbito da narrativa, Plá esteve em quase todas as vertentes; é também autora de vários contos
infantis que não são contos comuns, pueris, e, sim, contos densos, com profundidade. Seu
primeiro conto paraguaio, provavelmente, é “Ciegos a Caacupé”. A partir daí, toda sua
produção é ambientada no país que ela se aprofunda com assustadora percepção do povo.
Josefina Plá sempre deixou clara sua preocupação com as condições da mulher nos
meios sociais, em especial as paraguaias; protagonistas de inúmeras histórias suas. Com uma
intensa carreira como escritora, poeta e crítica literária e com mais de cinqüenta livros
publicados, Josefina Plá é, sem dúvida, um dos maiores nomes da literatura hispano-americana
produzida no Paraguai.
O retrato de denunciador feito dentro da literatura de Plá não se torna uma questão
sociológica, pois o objetivo do texto literário, assim como de qualquer arte, não é ser um texto
de crítica especificamente social, e sim um texto de crítica a algo ou alguém, pois de acordo
com Candido (2000) quando isso ocorre o externo foi internalizado, pois “a arte nos faz entrar
num domínio de conhecimentos absolutos” (CANDIDO, 2002, p.64). As personagens, em uma
obra de arte literária, têm maior coerência que as pessoas reais devido a sua limitação das
orações, segundo Rosenfeld (2002) a personagem tem,
(...) maior exemplaridade, maior significação; e paradoxalmente, também
maior riqueza – não por serem mais ricas do que as pessoas reais, e sim em
virtude da concentração, seleção, densidade e estilização do contexto
7
Trad. nossa: “cujos ensaios da história da arte e das letras paraguaias constituem um aporte de mérito
singular”.
8
Trad. nossa: “„Espanhola de nascimento e paraguaia por destino e apaixonado amor à terra de seus
esposo‟ – disse Hugo Rodríguez-Alcalá na primeira edição desta História da Literatura Paraguaia.”
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imaginário, que reúne os fios dispersos e esfarrapados da realidade num
padrão firme e consciente. Antes de tudo, porém, a ficção é o único lugar –
em termos epistemológico – em que os seres humanos se tornam
transparentes ànossa visão, por se tratar de seres puramente intencionais sem
referência a seres autônomos; de seres totalmente projetados por orações.
(ROSENFELD, 2002, p 35)
Segundo o autor, muitas vezes o leitor se depara com situações que já vivenciou ou quer
vivenciar, personagens parecidos com alguém que conhecem e,
Muitas vezes debatem-se com a necessidade de decidir-se em face da colisão
de valores, passam por terríveis conflitos e enfrentam as situações-limite em
que se revelam aspectos essenciais da vida humana: aspectos trágicos,
sublimes, demoníacos, grotesco ou luminosos. ” (ROSENFELD, 2002, p 45)
O próprio cotidiano quando se torna tema da ficção, adquire uma outra relevância e
condensa-se na situação-limite do tédio, da angustia e da náusea. Cotidiano esse que retrata os
sofrimentos e as angustias das personagens de Josefina Plá, e que retratam as mazelas que a
Hispano-América sofre.
Autran Dourado menciona que “o criador amassa e emprega a realidade para criar uma
outra realidade, uma realidade que obedece à complicada geometria literária, ao seu sistema de
forças, que nada tem a ver com as ciências física, naturais, ou sociais” (DOURADO, 1978,
p.98). Lembrando que a “personagem tem mais a ver com a forma do que com a vida, embora a
vida seja o seu alimento diário” (DOURADO, 1973, p.100), portanto não é espantoso que a
realidade, na literatura de Plá, seja cruel.
Realidades como a do conto “Siesta”, em que a sedução é transfigurada no corpo de
Maria, pobre menina de onze anos, que se desventura ao ser vítima de abusos à sua condição
infantil, quando é obrigada a fazer trabalhos domésticos e quando sofre assédio de seu pai. A
sedução é a palavra de ordem deste conto de Plá, e esta é dada pelo contexto de ambientação a
qual a primeira cena esta, e que desencadeia toda a ação posterior, “o seduzido não esta
simplesmente entregue a fantasia neurótica. Há nele, antes de tudo, o desejo de entrar em outra
linguagem, de sair daquele círculo em que está aprisionado (...)” (PERRONE-MOISÉS, 1998,
p.17), sendo assim, Ciriaco, pai da pequena Maria, que se fecha em seu quarto, sente a
necessidade, esta dada pela emanação da divina, como descrito no conto, luz solar que entra no
cômodo por meio de pequenas fendas na parede, de transgredir do “mundo” em que vive, e
encontra em Maria, a qual ele não reconhece por filha, um meio para tal transgressão, pois nele
vê o reflexo do corpo da mãe da menina. Na narrativa Ciriaco não reconhece Maria como filha,
nem ao mesmo fala com ela, no entanto ao ver a menina ele sem sente atraído fisicamente,
porém não por Maria propriamente dita, mas sim pelas semelhanças da mesma com a mãe, que
anteriormente foi casada com Ciriaco. O corpo de Maria passa a ser um símbolo do corpo da
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mãe da menina, o ato incestuoso, condenado e animalizado dentro de nossas sociedades,
somente não ocorre por que a animalização muda de lado, como em um instinto protetor da
pequena Maria, que volta a um estado selvagem do homem, “la chiquilina gime afónica de
terror, una reación puramente instintiva, primaria, la lleva de pronto a prender ciegamente sus
dientes en la mano que la amordaza. Y muerde con una desesperación de animalito en cepo”.
(PLÁ, 1996, p. 194) 9
Para Lins:
a violência define o meu semelhante como um monstro e lhe dá, em situações
limites, a possibilidade de subir os degraus da natureza humana e dignificá-la
através de ações extraordinária. É, assim, inimiga e aliada, combatida e
cultivada, um motivo de vergonha e um motivo de orgulho. (1990, p. 22)
A pequena Maria escapa de seu pai, por um ato puramente instintivo, mas cega pelo
mesmo ato, acaba por ser atropelada e morta em frente a sua casa, em sua última desventura
desesperada. A violência a salvou, matando-a.
De acordo com Miguel Angel Fernández
La literatura y el arte de Josefina Plá se constituyen como espacios
expresivos complejos, en el que convergen diversas rasgos culturales, dando
lugar a obras notables en su constitución semántica y en sus formas
expresivas10. (FERNÁNDEZ, 2011, p.1)
Como podemos perceber, a Literatura de Josefina Plá, se faz de modo crítico à
sociedade que a cercou durante sua vida, no entanto, com rasgos universais. Competências estas
que destacam uma literatura genuína, que infelizmente é pouco estudada no Brasil, mas que
merece uma maior atenção por parte dos pesquisadores de literaturas de língua espanhola, que
na grande maioria das vezes centra-se no cânone deixando de lado aquilo que está oculto e por
consequência esquecido.
3. Considerações finais
Ainda que pouco conhecida nos meios acadêmicos brasileiros, e mesmo estrangeiros,
qualquer que seja o nível de leitura que possua o leitor que se dignar a ler a obra de Josefina Plá,
perceberá que seus escritos não são uma mera satisfação do impulso de escrita e sim uma
literatura que estética, social e culturalmente não deixa em nada a desejar em relação aos já
consagrados nomes da Literatura Hispano-americana.
9
Trad. "A menina rouca gemidos de terror, uma reação em puramente instintiva, primária, de repente
prende cegamente seus dentes na mão que a mordaça. E morde com o desespero de um animalzinho sem
ação."(Pla, 1996, p. 194)
10
Trad. nossa: “A literatura e a arte de Josefina Plá constituem espaços expressivos complexos, no que
convergem diversos rasgos culturais, dando lugar a obras notáveis em sua constituição semântica e em
suas formas expressivas.”
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De acordo com Miguel Ángel Fernández:
El tratamiento de sus diversos textos narrativos es, naturalmente, variable de
acuerdo con su ámbito temático y su temple expresivo, pero en todos ellos se
advierte siempre la rigurosa coherencia de su composición. Los niveles de
lenguaje (el del narrador, el de los personajes, generalmente de pueblo) se
dan en un contrapunto discreto, que configura con naturalidad los universos
lingüísticos (fonético, sintáctico, semántico) de los cuentos, en su mayoría
de ambiente popular paraguayo y a menudo de contenido crítico-social.´
De este modo, la estructura externa de los textos soporta con eficiencia su
estructura semántica, rasgo de competencia que caracteriza toda creación
auténtica en el orden expresivo.11 (FERNÁNDEZ, 2011, p. 7-8)
E se o cânone literário representa obras „grandes‟, „valiosas‟, „universais‟ e „duráveis‟, o
que se precisa para que Josefina Plá entre para o holl dos autores canônicos hispano-americanos
é que a leiam.
4. Referências bilbiográficas
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de literatura e cultura. Juiz de Fora: UFJF, 2005.
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instáveis: tensões entre teoria, crítica e história da literatura. Maringá: Eduem, 2011.
CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In:______. A personagem de ficção. 10ª ed.
São Paulo: Perspectiva, 2002.
_______. Literatura e Sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.
DOURADO, Autran. Personagem, composição, estrutura. In: _____. Uma poética do
romance. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 94-109.
FRIEIRO, Eduardo. A Ilusão Literária. Nova Edição. Belo Horizonte: Paulo Bluhm, 1941.
FRANCO, Jean. Historia de la literatura hispanoamericana. Barcelona: Editora Ariel, 2001.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
LEMAIRE, Ria. Repensando a história literária. In: BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa.
(org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro:
Rocco,1994.
11
Trad. nossa: “O tratamento de seus diversos textos narrativos é, naturalmente, variável de acordo com
seu âmbito temático e sua têmpera expressiva, mas em todos eles se adverte sempre a rigorosa coerência
de sua composição. Os níveis de linguagem (o do narrador, o das personagens, geralmente do povo) se
dão no contraponto discreto, que configura com naturalidade os universos lingüísticos (fonético, sintático,
semântico) dos contos em sua maioria de ambiente popular paraguaio e sempre de conteúdo críticosocial.”
Deste modo, a estrutura externa dos textos suporta com eficiência sua estrutura semântica, traço de
competência que caracteriza toda a criação autêntica de ordem expressiva.
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PAZ, Octavio. Alrededores de la literatura hispanoamericana. Barcelona: Editorial Seix Barral,
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1996
REIS, Roberto. Cânon. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago,
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RODRÍGUEZ-ALCALA, Hugo. História de la literatura paraguaya. Assunción: Editorial El
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ROSENFELD, Anatol. Literatura e personage. In: CANDIDO, Antonio. A personagem de
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http://www.nelool.ufsc.br/simposio2011/interculturalidad_%20y_transculturalidad.pdf.
Acessado em 31 de agosto de 2012.
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JOSELY V. BAPTISTA – UM EXEMPLO DE POESIA
CONTEMPORÂNEA
JOSELY V. BAPTISTA – A EXAMPLE OF CONTEMPORARY
POETRY
Adriano R. Smaniotto – PG-UFPR
RESUMO: Este artigo procura investigar as possíveis relações do livro Ar de Josely
Vianna Baptista – publicado em Curitiba na década de 1990 – com o ensaio A recente
poesia brasileira: expressão e forma, do professor Benedito Nunes, publicado em 1991.
No ensaio, o autor define algumas linhas mais visíveis para se demarcar a poesia da
década de 1980, como a poesia epigramática, a poesia do fragmento, a poesia
neorretórica e a metapoesia. De certa forma, os poemas de Josely V. Baptista, blocos
aerados, permitem encontrar pontos de contato com o ensaio referido, além de aspectos
experimentais e relações particulares com a leitura. Após a análise de alguns de seus
textos é pensada a relação desta forma de poesia com a cultura Guarani, com o
Neobarroco, o gênero ensaio e a velocidade midiática.
Palavras-chave: Poesia Brasileira Contemporânea. Poesia paranaense. Década de 1990.
Blocos aerados.
ABSTRACT: This paper shows the possible relations between the book Ar of Josely
Vianna Baptista - published in Curitiba, in decade of 1990 - and the essay The recent
brazilian poetry: expression and form, of professor Benedito Nunes, published in 1991.
In essay, the author define some lines more visible to delimit the 80‟s poetry, such as
the epigrammatic, the fragment poetry, the new rethoric poetry and the matapoetry.
Somehow the poems of Josely, aerated blocks, allow to find point of contact with o
essay, beyond experimental aspects and particular relations with act of reading.After the
analyses of some texts, is seen the relation of this form of poetry with the Guarani
culture, the NeoBarroco, the essay genre and the velocity of media.
Keyworks: Contemporary Brazilian poetry. Paranaense poetry. 1990 decade. Aerated
blocks.
1. Introdução
A poesia brasileira recente inscreve-se num terreno híbrido, propício às
manifestações artísticas que conjugam seu objeto poético conforme maior assimilação e
aptidão às linhas já demarcadas no decorrer da evolução da Literatura. Entretanto, ao
longo dos anos, tais manifestações, que se moldam segundo as experiências e
conquistas modernistas desde a semana de 22, primam ora por atitudes históricolineares, ora por “saltos sincrônicos”12.
12
Por “saltos sincrônicos” entendo as manifestações artísticas de poetas como Rubens Torres Filho, Paulo
Henriques Britto, entre outros, que retomam o verso, mesmo produzindo suas obras depois da Poesia
Concreta, a qual o aboliu.
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Em ensaio sobre a poesia da década de 1980, o professor Benedito
Nunes(1991, 171-183) demarcou o quadro referido, apontando quatro possíveis
direções: a linha neo-retórica, a poesia do fragmento, a linha epigramática e a
metapoesia. Dentro de tais perspectivas é plausível, dada a relevância do ensaio, remeter
determinada obra que se queira analisar às linhas propostas, na tentativa de maior
apreensão estética e cultural.
O intuito desta exposição centra-se em relacionar a poética da paranaense
Josely Vianna Baptista com àquelas linhas, explicitando seus pontos de contato, bem
como seus afastamentos estéticos, propiciando, desse modo, um olhar mais cuidadoso
para uma poesia que não comunga com só uma das linhas, e que, a exemplo do
concretismo, pode ser admirada à luz das artes visuais.
2. O bloco aerado enquanto elemento norteador do ritmo e destruidor da estrofe
convencional
O aspecto formal de maior destaque na póetica de Josely concentra-se na
disposição visual de cada poema, na qual as palavras possuem espaçamentos que dão ao
poema a aparência de bloco com poros, ou no dizer da autora, blocos aerados 13. Tal
disposição confere ao poema outra estrofação que não a linearmente conhecida e, por
consequência, outro ritmo:
um dia eufórica outro
s por fora um dia eng
agée outro remtombée a
puro um dia outro rig
ore o dia urzes e alca
çuzes vezes que bruxa o
utras que musa se um d
ia blanco os outros sa
lvos um dia desfeita ou
tros perfeita um outro
em dia um dia um out
r o d i a s e m d n e m v o c ê (BAPTISTA, 1991, p. 13)
Desse modo, o primeiro encontro com o texto de Josely impõe ao seu leitor
uma barreira na sequência lógica de leitura que lhe é peculiar, pois o processo de
compreensão e interpretação é barrado pela incapacidade advinda dessa presença
“aérea” que interfere sensoriamente no leitor, impedindo-o de apreender toda a palavra,
tanto morfológica quanto semanticamente:
13
A definição bloco aerado pode ser encontrada em uma das entrevistas concedidas pela autora à UFPR.
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utras que musa se um d
ia blanco os outros sa
lvos um dia desfeita ou
t r o s p e r f e i t a u m o u t r o (BAPTISTA, 1991, p. 13)
No fragmento acima ia é parte de d do verso anterior, formando num
primeiro momento o substantivo dia,mas pode ser lido como o verbo ir no pretérito,
pertencendo a outra sentença, o que influi no aspecto semântico e numa leitura
fragmentada. O mesmo ocorre com ou que pode ser lido como conjunção ou parte do
pronome outros, permitindo várias leituras e sentidos.
Não custa mencionar a constante presença da poesia Concreta, enquanto
escola que ensinou a ver as palavras semântica, sonora e graficamente; nesse sentido o
termo salvos pode ser lido s alvos, ou ainda, sem alvos, como oposição à sentença se um
dia blanco.
Desse modo, a interrupção à leitura é inerente à disposição estrófica,
norteadora da práxis poética da autora. Trazendo à tona as noções de estética da
recepção (ISER, 1999) e de leitor-modelo (ECO, 1999) que prezam pela singularidade
interpretativa por parte do leitor, os blocos aerados podem ser pensados como “estratos
impositivos de leituras singulares”14, cujas sínteses dependerão não só da capacidade
cognitiva (intelectual), mas também da capacidade sensorial (perceptiva e respiratória).
Há, portanto, um apelo para que o leitor crie seu ritmo, enquanto sua
respiração, visão, percepção e intelecto conseguirem estar conciliados, não adiantando
aqui a intenção primordial de ler o que o autor intentou que fosse lido. Ou seja, um
procedimento formal que afasta de vez qualquer estatuto que a palavra Autor ainda ouse
conter.
A autora chama de “estrofação sensível” a esse seu procedimento formal,
pois acredita que “aí a poesia funciona com pneuma, ciência da respiração, na qual os
blocos aerados combinam-se ao ritmo de cada leitor”15.
Todavia, passados estes primeiros encontros com o poema através da
respiração, ao se retomar a leitura é possível lê-los de acordo com uma sintaxe retóricodiscursiva, pois também estão estruturados dessa maneira:
“Um dia eufórica outros por fora / um dia engagée outro retombée / apuro um
dia outro rigor / e o dia urzes e alcaçuzes / vezes que bruxa outras que musa”
14
15
O termo é meu.
Entrevista já citada.
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(BAPTISTA, 1991, p. 11).
Este caráter de leitura híbrida funciona como a pedra de toque para a
confluência de duas linhas poéticas marcadas por Benedito Nunes: a linha neo-retórica e
a linha da poesia do fragmento, mas a estas acrescenta aspectos herdeiros da trato visual
legado pela poesia Concreta devido à constante objetivação experimental que cada texto
propõe.
2.1. Outros aspectos formais
O cuidado formal revela-se também através de jogos paranomásticos,
assonâncias, espelhamentos rítmicos, choques sonoros que intentam uma sensualização
da linguagem, uma babel feliz, “O prazer do texto é Babel feliz” (BARTHES, 1999, p.
8), que comunga a verbivocovisualidade da poesia concreta.
i s s o
t u d o
j á
p a s s a
d e
a r t
i f í c i o :
s e
r i
a
f ó
s s i l ,
n ã o
f o s s e
i n í c i
o , s e r i a
t r a ç
a , n ã o
f o s s e
m
í
s
s
i
l (BAPTISTA, 1991, p. 22)
No entanto, o não prescindir ao verso remete tal poética para uma lírica
descoberta sob o experimentalismo, conciliando as lições concretas às lições
metapoéticas e sagradas:
d
d
h
d
d
o
u
e
á
e
e
e l o
s o l
l i t o
s o l
s o l
a r
e
s o l o
a s o l
et halo
a
s o l
a s o u l
m a r s (BAPTISTA, 1991, p. 46)
Os trocadilhos com a sonoridade, a forma e o sentido trazem inferido o labor
do poeta, seu fazer poético de sol a soul.
Também há espaço para a brevidade, como nesse haikai aerado:
n a
m a d r
u g a d a
a
g u d a
q u
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a l
a d a g
a
a
á g u
a
p i n g a (BAPTISTA, 1991, p.30)
3. A temática neo-barroca
Em tempos de relativização, nos quais vêm abaixo conceitos outrora sólidos
como Autor, Sujeito, Nação, Identidade, entre outros, é comum o estabelecimento de
tensões, de situações híbridas que obrigam um constante espelhamento, um olhar para a
alteridade implícita nos valores que norteiam a sociedade mercadológica. Nesse sentido,
a antítese torna-se uma alegoria indispensável à reflexão, um instrumento que relativiza
o discurso, seja ele qual for. É ponto comum entre a intelectualidade pensar no oposto,
revitalizando qualquer questionamento dogmático. Admitida a possibilidade de
transferência do jogo de contrários, da esfera cultural para a estética, os poemas de
Josely podem ser encontrados nesse ambiente claro-escuro, de opostos, e em relação
àqueles temas, como “lápides barrocas”16 suplantadas pela voz lírica que não só opõe
contrários, mas questiona o próprio fazer poético:
q u e r i a e t r e v e r o s e q u i m e r a s, v á r i
o s r i g o r e s e r i m a s r a r a s, q u e r i a m
enires e quireras, que o que desde
ra se reouvera. queria trevos e r
isos feros, leros serenos, querela
s b e l a s, r e l a r d e p e l e s a r r e p i a d a
s, c h o r a r c o m u m o l h o e r i r c o m
o o u t r o. q u e r i a e s p e r a s e n ã o d e m
o r a s, s e o l e s t e e s c u r o o s u l s e g
u r o, q u e r i a g u e r r a, c a ç a e a m o r e s, e
p o r u m p r a z e r , s e m d o r e s . ( n o i t e ) (BAPTISTA, 1991, p.5)
Transita na maioria dos poemas, entre as antíteses, um lirismo questionador da
experiência com a palavra, da sensualidade, do metafísico, do cotidiano, do existencial.
4. Uma poética ensaística
Cada vez mais, dada a conjuntura cultural norteada principalmente pelo
fenômeno da globalização, parece firmar-se a proposta de viver-se ensaisticamente,
como sugere de maneira implícita, Richard Forster, que analisa, entre outros assuntos, o
legado do filósofo alemão Walter Benjamin, o qual , para o autor, só foi possível devido
à miscelânea cultural, social, intelectual e existencial que marcou a vida de Benjamin.
(FORSTER, 1991). Nesse sentido a poesia de Ar pode ser entendida
16
O termo é do poeta Régis Bonvincino.
60
como a
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necessidade de conjugar diferentes práticas rumo a uma maior apreensão da realidade.
Dentro deste prisma, Josely consegue conciliar diferentes “mundos” (estéticos,
mitológicos, históricos) no pequeno grande mundo do poema. Assim, a influência dos
simbolistas franceses - como Rimbaud e Mallarmé – e da poesia Concreta, visível na
experimentação da linguagem, alia-se à tradição sacralizante das peças de literatura oral
guarani, tudo isso possível graças à ponte que a temática neo-barroca proporciona.
Da mesma forma que o ensaio admite aberturas metodológicas e textuais
impensáveis no paper, racional e sistemático, os poemas de AR confluem um leque de
influências e leituras que os impossibilitam de serem olhados à luz de uma única exegese.
Talvez aí esteja a grande conquista da poética dos nossos dias: a comunhão
ao invés da exclusão de signos.
5. O bloco aerado e a velocidade midiática
Admitida a necessidade de se percorrer um caminho sacro rumo à exegese
dos poemas de AR, deve-se considerar que tal direcionamento metodológico supõe um
certo tempo, o qual não se resolve de forma breve. De fato, as lápides necessitam sofrer
a erosão do tempo, a qual na arte está a cargo da reflexão e contra o tecnicismo
dromológico, que é a ditadura da velocidade a que estão submetidos os sistemas
culturais por intermédio da mídia. ( FURTADO, 1999. p.113-125.)
O simulacro comum da mídia impele a ditadura da velocidade, na qual a
brevidade e a representação facilmente substituível tornam-se as forças reguladoras de
tal discurso. O que se lê, o que se come, o que se vê, o que se ouve deve condizer com o
efêmero e incompleto, para que a ânsia aumente, como nos diz Bauman:
Para abrir caminho na mata densa, escura, espalhada e “desregulamentada”
da competitividade global e chegar a ribalta da atenção pública, os bens,
serviços e sinais devem despertar desejo e, para isso, devem seduzir os
possíveis consumidores e afastar seus competidores. Mas, assim que o
conseguirem, devem abrir espaço rapidamente para outros objetos de desejo,
do contrário a caça global de lucros e mais lucros (rebatizada de crescimento
econômico) irá parar. (BAUMAN, 1996, p. 86)
Nesse sentido, a poética de Josely ou qualquer outra que não compactue com tais
simulacros pode ser mencionada como uma resistência em nome da reflexão, uma vez que
poemas que exigem respiração, releitura, entre outras aptidões, certamente não condizem
com a falta de tempo dos nossos dias, nem podem ser avaliados por sistemas excludentes.
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6. Conclusão
Com base nas implicações expostas até agora, a poética de Josely ganha
melhor contorno se olhada como um produto híbrido das linhas propostas pelo professor
Benedito Nunes, incorporando, ainda, aspectos mais atuais que contradizem a relação
mercadológica que nos rodeia, por exemplo, a não-brevidade e a necessidade de
releitura e apreensão sensorial.
Desse modo, trata-se de uma poesia que traz através de si muito do
modernismo brasileiro, mas sem cair no lugar-comum da diluição, pois propõe outros
estratos como o corte estrófico e a constante experimentação objetivo-reflexiva.
Por tudo isso, o livro AR é representativo de uma poética contemporânea.
Referências bibliográficas
BALMAN, Zigmunt. Turistas e Vagabundos. In: BALMAN, Z. Globalização: As
Consequências Humanas. 3a ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. 5a ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.
BAPTISTA, Josely V. Ar . 1a ed. São Paulo: Iluminuras, 1991.
ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Trad. P. de Carvalho. São Paulo:
Perspectiva, 1999.
FORSTER, Richard. La Deriva como Aprendizaje. In: FORSTER, R. El Ensayo como
Filosofia. Buenos Aires: Ediciones Nueva Vision, 1991.
FURTADO, Fábio. A literatura na cena finissecular. In: Globalização e Literatura. Rio
de Janeiro: Relume-Dumará, 1999. p.113-125.
ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. J. Krestschmer.
São Paulo:ED. 34, 1999.
NUNES, Benedito. Expressão e Forma. In: Novos estudos. Pará: CEBRAP, 1991. n° 31.
p. 171 – 183.
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UM INCÔMODO ROMANCE DE JOSÉ DO PATROCÍNIO
A SER REDESCOBERTO
A NUISANCE NOVEL BY JOSÉ DO PATROCÍNIO
TO BE REDISCOVERED
Marcos Teixeira de Souza – PG-IUPERJ
RESUMO: Muitas vezes o cânone explicita um pensamento hegemônico em uma
sociedade. Assim, autores e obras referentes a questões contrárias ao pensamento
dominante tendem a ser renegadas ou esquecidas intencionalmente. O romance Motta
Coqueiro ou a pena de morte (1877), de José do Patrocínio, salienta este debate sobre o
cânone, na medida em que, a despeito de suas qualidades intrínsecas, é virtualmente
desconhecido ou ignorado pela crítica brasileira.
Palavras-chaves: José do Patrocínio. Literatura. cânone.
ABSTRACT: Often the canon explains explicitly one hegemonic thinking in a society.
Thus, authors and works concerning matters contrary to dominant thinking tend to be
denied or forgotten intentionally. The novel Motta Coqueiro ou a pena de morte (1877),
by José do Patrocínio, reinforces this debate about the canon, since, despite its inherent
qualities, is virtually unknown or ignored by Brazilian critics.
Keywords: José do Patrocínio – Literature – canon.
Os estudos sobre Memória social têm ofertado aos pesquisadores das ciências
humanas e sociais olhares novos sobre o cânone. Não que em outros momentos este não
fosse questionado, mas que, por meio das concepções sobre Memória e Silêncio, como
marcas reveladoras de poder político, social e cultural, têm motivado alguns
pesquisadores da área de Literatura a remexer nos arquivos públicos e privados, nas
bibliotecas e em outros locais guardiões de Memória social, nomes e obras literárias
que, ora esquecidos, podem e devem ser retomados pelas historiografias para que se
espelhe assim com mais completude a riqueza da Literatura Brasileira. Tanto para
historiadores quanto para pesquisadores da área de Literatura, a existência de
determinados autores e obras esquecidas ou omitidas na Literatura Brasileira, ao serem
postas a lume, fornecem pistas ou esclarecem pormenores encobertos pela História dita
oficial, e oportunizam para que se ouçam atores e falas que foram outrora impostas ao
silêncio pelas historiografias, preenchendo deste modo lacunas outrora tidas como
inexistentes. Neste sentido, o presente artigo visa a discutir o esquecimento de José do
Patrocínio como um romancista digno de ser revisto na historiografia literária brasileira.
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Paradoxalmente, lembrado pela História como um dos mais eminentes
abolicionistas, oradores e jornalistas do século XIX, e esquecido na Literatura, José do
Patrocínio foi uma das figuras políticas centrais nas últimas décadas do século XIX.
Como romancista, permanece ainda muito desconhecido pela crítica literária e
pelas gerações de leitores de brasileiros que o sucederam, embora tenha sido um dos
membros fundadores da Academia Brasileira de Letras, tenha escrito inúmeros artigos
nos grandes jornais de sua época; e tenha escrito três romances, dentre estes, Motta
Coqueiro ou a pena de morte (1877), cuja obra fora concebida em um momento de
transição entre escolas literárias, isto é, do Romantismo para o Realismo-Naturalismo, o
que, pela circunstância, necessitaria de um olhar cauteloso no que se refere a alocar o
romance nesta ou naquela escola literária.
Motta Coqueiro ou a pena de morte (1877) figura como um romance em que é
visível notar a desenvoltura literária de Patrocínio. Tendo como base em um fato
verídico, ocorrido em 1853, numa província de Campos dos Goycatazes, no Rio de
Janeiro, o romance narra a história de Motta Coqueiro, influente político e fazendeiro do
norte-fluminense que é acusado pelo bárbaro homicídio, com requintes de crueldade, de
uma família de agregados que vivia em suas terras, na província de Macabu. A família
de agregados, formada por Francisco Benedito, sua esposa, suas três filhas moças, seu
filho moço, chamado Juca, e mais duas crianças, viera de outras terras e, num primeiro
momento, conquista a simpatia da família de Coqueiro, excetuando somente o vício de
Francisco Benedito pela bebida alcoólica.
No enredo, as três filhas do casal de agregados – Antonica, Mariquinhas e
Chiquinhas – despertavam, por serem lindas, a atenção masculina da localidade, em
especial, o interesse de três homens: Oliveira Viana, Manuel João e Sebastião, os quais,
ao longo do romance, procurarão, cada um a seu modo, conquistar uma das filhas do
agregado.
Entre os três referidos rapazes, um deles se destaca na narrativa de Patrocínio:
Manuel João, que se questiona, por ser mestiço (ou negro), sobre possibilidade de uma
moça branca e bela, como Mariquinhas, desejá-lo. No íntimo, Manuel João desconfia de
uma suposta afronta de Motta Coqueiro contra a virgindade da moça. Essa suspeita é
também alimentada pelos dois companheiros de Manuel João, que veem muita
liberdade das filhas do agregado com o fazendeiro, o qual, em sua propriedade,
mantinha também vários escravos.
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Uma das escravas, chamada Balbina, é singular no romance. Após ser expulsa da
Casa grande, onde cuidava do filho do patrão, e ser lançada à senzala e ao trabalho no
eito, ela se torna uma pessoa consciente, na própria pele, da aflição e da condição
imposta à etnia negra, sendo a principal voz dissonante diante do status quo colonial.
O trágico assassinato da família de agregados e suspeita da autoria de Motta
Coqueiro criam uma atenção propícia ao romance. Motta é condenado à pena capital,
isto é, ao enforcamento aparentemente sem um julgamento adequado e com ares de
conotação política, pois sua morte abra a terceiros o controle político da cidade. Além
disso, o romance conta com a suspeita viável em torno de outros personagens, entre
elas, da esposa de Coqueiro, que desconfiava da fidelidade do marido. Há ainda outras
tensões secundárias, que são bem exploradas por Patrocínio, como o dilema racial.
Neste primeiro romance, os discursos e memórias dos personagens alçam
importância, pois emolduram como a memória e o silêncio (e a quebra deste) reavivam
ou silenciam as tensões raciais e sociais, clarividentes na sociedade da época do escritor,
que repartira os louros do sucesso literário e a atenção da imprensa e do público com o
já então consagrado Machado de Assis que, na ocasião, acabara de publicar o romance
Iaiá Garcia, conforme salienta Magalhães Junior (1969:55).
Não se trata obviamente de elevar o nome de Patrocínio ao de Machado de Assis,
o que seria incabível. Mas de reconhecer, em Patrocínio, um literato que legou uma obra
de expressivo valor histórico e literário, obra esta esquecida por certamente levantar
assuntos incômodos para a nação, colidindo fortemente contra as teses da suposta
democracia racial no Brasil, que seria uma das bases da formação identitária brasileira.
Logo, não se estranha que Motta Coqueiro ou a pena de morte tenha sido pouco
reeditado, a exemplo de uma das obras de Monteiro Lobato, O choque das raças
presidente negro, de 1926, redescoberta apenas, e muito reeditada, após Barack Obama
vencer as eleições nos Estados Unidos e entrar para a História como o primeiro
presidente negro daquele país.
A despeito da diversidade e magnitude de poetas e prosadores brasileiros na
História da Literatura Brasileira, lidos e reconhecidos internacionalmente, como
Machado de Assis, Cruz e Souza, Jorge Amado, só para citar alguns, são escassas obras
de crítica literária de envergadura semelhante a estes autores citados, bem como de
reintrodução de nomes e obras esquecidas, mas que foram e são relevantes para o estudo
literário. Salvo raras exceções, não se encontram muitas obras capazes de refletir com
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maestria a historiografia literária brasileira. Neste aspecto, um dos primeiros e mais
renomados críticos brasileiros, Sílvio Romero, já em 1888, Romero (1980), dizia àquela
época que:
As pátrias letras, entre outras muitas lacunas, mostram bem claramente a
grande falha causada pela ausência de trabalhos históricos. Se não existe uma
história universal escrita por brasileiro, se a nossa própria história política,
social e econômica tem sido apenas esboçada e foi mister que estrangeiros
no-la ensinassem a escrever, no terreno da literatura propriamente dita a
pobreza nacional ostenta-se ainda maior. (ROMERO, 1980, 1980, p. 51)
O que dissera Romero (1980) naquele momento ainda parece prevalecer, ao se
debruçar sobre muitas obras de crítica e historiografia literária brasileira, produzidas
depois da obra de Patrocínio até algumas críticas literárias produzidas no século XX. No
entanto, alguns historiógrafos da Literatura Brasileira têm contribuído para o
conhecimento de diversos poetas e prosadores. Assim, partindo de algumas das
principais historiografias literárias brasileiras escritas depois da primeira edição da obra
Motta Coqueiro, uma pergunta se torna crucial para situar José do Patrocínio na
historiografia brasileira: até que ponto o nome e a obra literária de Patrocínio são
lembrados na Literatura Brasileira?
Partindo de Ronald Carvalho (1953), Lúcia Miguel-Pereira (1973), Gregory
Rabassa (1965), Alfredo Bosi (2006), Sílvio Romero (1980), José Guilherme Merquior
(1996), Afrânio Coutinho (2002) e Nilo de Freitas Bruzzi (1959), pode-se perceber as
disparidades e as semelhanças das visões acerca de Patrocínio na historiografia literária
brasileira. A opção por verificar nestas obras citadas varia: ou pela relevância ou
temática sugestiva da obra; ou pela abundância de prosadores citados e estudados na
obra escolhida; entre outras motivações. Obviamente existem outras obras de
historiografia literária brasileira que poderiam ser fontes de pesquisa, no entanto, em
razão da dimensão e proposta deste artigo, acredita-se que, examinadas as sugeridas, é
possível que a questão crucial formulada no tocante à relevância do nome e da obra de
Patrocínio na Literatura brasileira pode, se não completa, pelo menos, ser
satisfatoriamente respondida, uma vez que estas obras sugeridas para verificação
gozam, a maioria, se não todas, de boa reputação no meio literário.
Ronald Carvalho (1953), em sua Pequena História da Literatura Brasileira, na
qual concebe a historiografia literária mediante a subdivisão dela em três períodos
distintos (1500 a 1750), (1750 a 1830) e (1830 em diante), nominando-os
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respectivamente em período de formação, de transformação e autonômico, em
momento nenhum cita Patrocínio como um literato, um romancista. Carvalho (1953) o
inclui na galeria dos oradores e publicistas:
Na prosa, o último período apresenta muitos escritores consideráveis. Entre
os romancistas e dramaturgos, sobressaem Martins Pena, Manuel Macedo,
José de Alencar, Bernardo Guimarães, Escragnolle Taunay, Franklin Távola,
Agrário de Souza Menezes, Artur Azevedo e Machado de Assis, que é, sem
favor, o maior romancista da língua portuguesa; entre os críticos literários e
historiadores distinguem-se Francisco Adolfo, Varnhagen, José Manuel
Pereira da Silva, João Francisco Lisboa, Alexandre José de Melo Morais,
Joaquim Noberto de Souza Silva, Joaquim Caetano da Silva, Tobias Barreto,
Silvio Romero, Euclides da Cunha, Capistriano Abreu, Rocha Pombo, José
Verissimo; entre os oradores e publicistas, são dignos de nota Bernardo
Pereira de Vasconcelos, Maciel Monteiro, José Maria do Amaral, José
Bonifácio de Andrada e Silva, Antônio Ferreira Viana, Francisco Otaviano de
Almeida Rosa, Tôrres Homem, Tavares Bastos, Alcindo Guanabara, José do
Patrocínio, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, cujo estilo é dos mais apurados e
elegantes, não pela correção da linguagem senão também pela formosura das
imagens e dos tropos. (CARVALHO, 1953, p. 51)
Não há também vestígio na historiografia de Carvalho (1953) concernente a
Patrocínio como jornalista, profissão que o abolicionista campista exerceu
prodigiosamente. Carvalho insiste em abrigar Patrocínio mais uma vez como um orador,
desta vez, porém, destacando seu papel político:
No Brasil, com uma ou outra exceção de maior ou menor monta, não se tem
praticado a oratória com o relevo de uma arte verdadeiramente literária.
Desde os pregadores dos séculos XVI e XVII, os Nóbrega, os Anchieta, os
Eusébio de Matos, os Antônio de Sá, até os Souzas Caldas, os Mont‟Alverne,
no alvorecer do século XIX; desde os oradores políticos dos primeiros
embates da independência, e da Constituinte, de 1823, como Antônio Carlos
Ribeiro de Andrada Machado e Silva, até os propagandistas do abolicionismo
e da República, como José do Patrocínio, Silveira Martins, Tobias Barreto, e
muitos outros, que a eloqüência, neste país de oradores, não tem mostrado a
força e o prestígio que era lícito esperar da sua exuberância realmente
notável. (CARVALHO, 1953, p. 333).
Outra historiografia literária que desprestigia Patrocínio é a de José Guilherme
Merquior, em De Anchieta a Euclides Breve História da Literatura Brasileira I (1996).
Nela, embora haja uma competente exposição de literatos e uma caracterização usual
dos períodos literários, fica muito evidente que Merquior (1996) não reconheceu, quer
por ignorância ou por critério próprio, Patrocínio como um romancista. As duas citações
contidas nesta obra de Merquior (1996) sobre Patrocínio destacam-no como
abolicionista: “Seu corpo foi trasladado para o Rio num veículo de transporte de
cavalos, mas o grande abolicionista José do Patrocínio custeou-lhe e enterro em São
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Francisco Xavier.” (MERQUIOR, 1996, p. 192). Patrocínio, como descrito em outras
obras historiográficas da Literatura Brasileira, permaneceria notadamente à sombra de
Joaquim Nabuco: “Durante dez anos, no Parlamento e na praça pública, “Quincas o
belo” discursará contra o regime servil, tornando-se, com Patrocínio, o mais ardente dos
tribunos abolicionistas e um dos maiores paladinos da idéia federalista.” (MERQUIOR,
1996, p. 253)
Podendo ser listada no mesmo grupo de Carvalho (1953) e Merquior (1996), em
razão de três características comuns – a de ser uma obra que se diz concisa, semelhante
aos termos pequena e breve respectivamente das obras dos historiadores citados; a de
citar apenas por duas vezes o nome de Patrocínio; e a de ver nele um abolicionista e não
um romancista – a História concisa da Literatura Brasileira (2006), de Alfredo Bosi,
detém uma marca de mais de quarenta edições, ocupando o posto de uma das mais lidas
pelos estudiosos da Literatura Brasileira. Embora o título da obra de Bosi carregue o
termo de concisa, há nela uma expressiva quantidade de literatos e obras, renomados e
não tão conhecidos, comentados. Entretanto, Bosi não cataloga o nome de Patrocínio
entre os literatos, o que se supõe pelo fato de possivelmente vê-lo tão-somente um como
um abolicionista, e não exatamente um romancista, ou pelo desconhecimento da
produção literária deste. A primeira referência de Bosi a Patrocínio é a presença e
influência do abolicionista na obra A conquista (1899), de Coelho Neto. Nesta primeira
referência percebe-se que o nome de Patrocínio figura entre tantos outros, e não
desfrutando de qualquer proeminência, como se observa:
Em 1899, Coelho Neto escreve mais um romance documento, desta vez
fortemente autobiográfico: A Conquista. A memória da sua juventude
boêmia, que coincidiu com as lutas finais da Abolição e da República, achase presente em muitíssimos passos da sua obra, mas domina soberana dois de
seus romances: A Conquista e Fogo-Fátuo. Avultam as figuras de Patrocínio,
Paula Ney (Neiva), Pardal Mallet (Pardal), Guimarães Passos (Fortúnio),
Aluísio Azevedo (Ruy Vaz), Olavo Bilac (Olavo Bivar), Muniz Barreto,
(Montezuma), além do próprio autor (Anselmo), envoltos em uma aura de
panache que, no entanto, não chega a ofuscar verossímil da reminiscência.
(BOSI, 2006, p. 202).
A segunda referência situa Patrocínio no capítulo intitulado As letras como
instrumento de ação:
Iniciado ao tempo das campanhas pela Abolição (v. Joaquim Nabuco) e pela
República, e coincidindo com a mudança do regime e as agitações dos seus
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primeiros anos, o período realista conheceu amplamente o uso da palavra
como forma de ação política. O que, em alguns casos, interessa à história
literária, conforme a maneira pela qual se comunicam e se configuram os
materiais ideológicos.
A linha mestra de toda essa fase foi a luta pela liberdade. Em nome dela
discutiam e escreveram líderes antiescravocatas como Nabuco, José do
Patrocínio e André Rebouças. (BOSI, 2006, p. 255).
Há mais referências a Nabuco do que a Patrocínio na historiografia realizada por
Bosi, ainda que Nabuco, como disse o próprio Bosi, “não foi um espírito original”
(BOSI, 2006, p. 164). É curioso que, uma vez que Bosi comenta que as campanhas
abolicionistas e o período realista suscitaram a Palavra como uma ação política, não
tenha citado o primeiro romance de Patrocínio como um exemplo desta ação política
através do uso da palavra, nem, ainda mais, tenha-se lembrado de mencionar a intensa
ação de Patrocínio nos artigos políticos publicados neste período em jornais
fluminenses. Neste sentido, Bosi (2006) descuida, portanto, em sua historiografia
literária de elencar o nome de Patrocínio não só como um romancista, mas também na
qualidade de um jornalista relevante na campanha abolicionista. Fica em suspenso se
Bosi tinha ciência de Patrocínio como romancista, que escrevera três romances; ou se
fora opção própria de não se delongar em citar as obras literárias de Patrocínio.
Provavelmente a segunda opção parece ser a mais indicada, uma vez que cita Nabuco,
cuja obra literária tivesse sido menos expressiva do que a do jovem campista. Não resta
dúvida, porém, que Bosi (2006) segue o pensamento dominante ao enxergar Patrocínio
como abolicionista, e não como romancista.
Diante deste quadro até então visto em Carvalho (1953), Merquior (1996) e Bosi
(2006), no qual se tem um Patrocínio abolicionista, e não um Patrocínio enxergado
como romancista, percebe-se, a fim de se convencer com mais segurança de como é
visto Patrocínio na Literatura Brasileira, a necessidade de adentrar nas páginas de obras
de maior vulto literário, nas quais a historiografia, os literatos e as obras literárias
tenham sido objeto de mais densa e demorada pesquisa. Duas obras se enquadram neste
patamar: a História da Literatura Brasileira (1980), de Sílvio Romero; e a Literatura
no Brasil, organizada por Afrânio Coutinho.
Sílvio Romero acredita que o século XIX tenha sido o período mais fértil, ou nas
palavras dele, “o mais brilhante de nossa literatura” (ROMERO, 1980, p. 1819). Seu
entusiasmo referente a esta consideração se deve principalmente aos nomes de dezesseis
prosadores que, segundo Romero, figuram como “reis da palavra escrita no Brasil”
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(1980:1819). Nesta lista empreendida por Romero (1980), na qual se encontram, dentre
outros, os nomes de Gonçalves Dias, José de Alencar, Machado de Assis, Rui Barbosa;
Romero inscreve o nome de Patrocínio como um dos dezesseis maiores prosadores do
século XIX no Brasil. Ao citar um a um dos dezesseis prosadores concernente à sua ou
às suas características que os particularizam e lhes davam o status de gozar tal glória,
Romero sobre Patrocínio: “José do Patrocínio, a vibração das palavras, a eloqüência dos
reptos.” (ROMERO, 1980, p. 1820). Ainda falando sobre os prosadores, Romero não
economiza palavras, e diz sobre os dezesseis prosadores: “Tais são os reis da palavra
escrita no Brasil.” (ROMERO, 1980, p. 1821).
Como outros historiógrafos, Romero reconhece Patrocínio como um eloqüente
orador. Distingue-o como uma eloqüência forense, tribunícia e acadêmica. (ROMERO,
1980, p. 1810). E considera Patrocínio como um dos prosadores pelo meio-naturalismo
tradicionalista e campesino. (ROMERO, 1980, p. 1806)
Além disso, Romero dedica um capítulo para contextualizar e historiografar
Patrocínio. Inicia com uma observação-chave: “José do Patrocínio é duplamente
reclamado pela história: a história literária e a história política.” (ROMERO, 1980,
p.1748). Ao contrário de Carvalho (1953), Merquior (1996) e Bosi (2006), que vêem em
Patrocínio um abolicionista e/ou orador, Romero avança em relação aos historiógrafos
citados ao reconhecer Patrocínio como um romancista e um jornalista. De acordo com
Romero, o que credencia a um lugar de destaque como romancista na Literatura
Brasileira:
(...) entre os romancistas, porque foi um dos primeiros que mais afoitamente
levaram para a novelística as questões sociais entre os brasileiros, estudando
em Motta Coqueiro – um caso singularíssimo do modo de julgar em nossas
justiças locais; em Pedro Espanhol, um exemplo de banditismo existente
ainda hoje em todo o Brasil e nos começos do século passado existente na
capital da Colônia; em Os Retirantes – a pintura terrível do fenômeno das
secas no Ceará e das cenas pungentíssimas que as determinam; finalmente,
no capítulo dos jornalistas – sua presença se imporá.
Tinha razão Romero ao afirmar que a condição de jornalista é a que teve mais
peso na carreira profissional de Patrocínio, já que o jornal, como escreve Romero, era “a
arena predileta de suas lutas, foi o laço que prendia o homem de letras ao político.”
(1980:1748). Fica no ar se este posicionamento de Romero (1980) realmente é
dissonante entre os historiógrafos, uma vez que entre os pesquisados, Romero se
singulariza ao ver Patrocínio como um importante romancista do século XIX. Assim, é
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recomendável observar como é visto Patrocínio em outra obra historiográfica de renome
e relevância: A Literatura no Brasil (2002), organizada por Afrânio Coutinho.
Esta obra distingue-se dentre outras historiografias citadas por conter um volume
maior de informações, por ser uma obra realizada por um coletivo de críticos literários,
e por apresentar um trabalho muito meticuloso, excetuando a de Romero, tornando-se,
portanto, imprescindível seu espaço entre as grandes obras da historiografia literária
brasileira. Patrocínio, nesta obra, é visto como um romancista. Para Coutinho (2002), o
nome de Patrocínio e sua obra não floresceram, não exatamente pela qualidade do autor
campista, mas pelo declínio do Naturalismo no Brasil:
Não será fora de propósito lembrar alguns nomes de romancistas, muitos
deles de vocação autêntica, que foram sacrificados pelo crepúsculo do
Naturalismo. Horácio de Carvalho, Pardal Mallet, Papi Júnior, Rodolfo
Teófilo, José do Patrocínio, Marques de Carvalho, Antônio de Oliveira.
(COUTINHO, 2002, p. 89).
Outra menção digna de nota é o fato de Coutinho situar Patrocínio entre os
pioneiros da Literatura regionalista no Brasil, o que reveste o autor de mais importância.
Observando as historiografias mencionadas – Carvalho (1953), Merquior (1996), Bosi
(2006), Romero (1980) e Coutinho (2002) – vê-se um Patrocínio que varia entre ao
quase anonimato no âmbito literário até ao posto, para Romero (1980), de um dos mais
importantes prosadores do século XIX. Em comum, todas estas obras de historiografias
tentam dar conta de, pelo menos, três séculos de Literatura Brasileira, desde a literatura
produzida pelos primeiros portugueses no Brasil, passando pelas mais diversas
expressões literárias, como o Arcadismo, o Romantismo (com toda uma variedade de
particularidades), até as escolas literárias do século do fim do século XIX, e, em
algumas das obras citadas, até as tendências literárias contemporâneas. Tal empreitada
destas obras, passível de argumentação, fica inviabilizada de tratar um literato e uma
obra determinada com mais atenção, o que justificaria, em tese, a ausência ou ligeireza
do nome e da obra de Patrocínio.
Recorrendo-se então a uma obra de Lúcia Miguel-Pereira (1973), pelo recorte
temático que a obra pressupõe oferecer; a uma de Gregory Rabassa (1965), pela
perspectiva praticamente singular entre as historiografias literárias brasileiras; e uma de
Nilo de Freitas Bruzzi (1959), pelo reconhecimento de José do Patrocínio como
romancista, novas considerações acerca de Patrocínio são tecidas, além das comumente
encontradas nos compêndios já vistos.
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Em História da Literatura Brasileira – Prosa de Ficção – de 1870 a 1920,
(1973), Lúcia Miguel-Pereira faz um considerável apanhado de autores do período
citado no subtítulo, destrinchando a contribuição, sobretudo, dos grandes autores da
Literatura Brasileira naquela ocasião. Adotando uma linha de pensamento semelhante a
outros compêndios e manuais sobre a história da Literatura Brasileira, em que se busca
amoldar os autores e obras literárias segundo uma periodização literária, esta obra de
Miguel-Pereira (1973) teve entre os méritos o de trazer e perfilar os nomes dos
prosadores Lindolfo Rocha, Alcides Maya, entre alguns outros, que desconhecidos e/ou
desprezados em outros compêndios literários, podem então ser passíveis de
conhecimento e exame pelo leitor.
Sobre Patrocínio na obra de Miguel-Pereira (1973), persegue a constância em têlo num patamar inferior entre os principais prosadores do século XIX. O nome do
abolicionista na obra é citado poucas vezes. Na primeira das citações, abordando as
características presentes nos romances brasileiros, no tocante ao apreço por trazer para a
narrativa os costumes, o amor como um elemento centralizador, a moral, etc.; e
afirmando que o romance brasileiro foi uma narrativa mais sujeita à liberdade de
criação, há um reconhecimento, por parte da autora em situar Patrocínio entre os
pioneiros do romance histórico na Literatura Brasileira:
Em suma, embora já deixasse, aqui e ali, perceber novas tendências, embora
fizesse excursões pela história, com Franklin Távora e José do Patrocínio,
pelo regionalismo com Inglês de Souza e Apolinário Porto Alegre, o romance
foi então sobretudo sentimental. (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 25)
Mais à frente em seu texto, ao falar dos autores que empreenderam romances
históricos, Miguel-Pereira (1973) caracteriza a obra Mota Coqueiro ou a pena de morte
como novela, e não como um romance, se diferenciando neste aspecto de muitos outros
críticos literários, que classificam a obra como um romance. É verdade que a distinção
entre o que seja um romance ou uma novela normalmente seja imprecisa entre os
estudiosos da Literatura, devido a semelhanças entre ambas, mas, pelo conjunto de
características presentes, como enredo complexo, diversidade de personagens, etc. a
primeira obra literária em prosa de Patrocínio se encaixaria melhor perfilada como
romance.
A proposição de Miguel-Pereira (1973) de definir Mota Coqueiro ou a pena de
morte como novela chama relativa atenção, mas não surpreende de tal maneira quanto a
essas percepções:
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Entre os senhores e escravos, que aparecem em seu livro, o jornalista da
Abolição, soube manter o equilíbrio, não pondo de um lado a virtude e de
outro a maldade. Esse seu feitio, aliado à naturalidade dos diálogos,
classifica-os entre os ficcionistas que reagiram contra as deformações
românticas. (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 37)
Ao equilíbrio entendido pela autora, o mais adequado seria pensar em aparente
equilíbrio. Perpassa no primeiro romance de Patrocínio um jogo muito bem articulado
entre as características psicológicas e os papéis sociais dos personagens, que misturadas
entre si, fogem do lugar-comum do senhor branco perverso e do negro vitimizado, em
razão disso haver um Motta Coqueiro como um senhor branco de boa índole num papel
social de carregado de crueldade, ou ainda, uma tia Balbina que ora abdica do papel de
vítima da escravidão para alçar papéis de confronto contra o sistema escravocrata, sendo
esta oscilante ao longo da trama entre a condição de vítima e a de vilã. No entanto, fica
para o leitor a sensação de aparente equilíbrio, quando não a de dúvida entre saber ao
certo se determinado personagem ocupa na trama o papel de antagonista ou
protagonista, de saber ao certo quem fora mais vitimizado pelo sistema econômico e
político: os escravos, Motta Coqueiro, a família de Francisco Benedito, etc.
Em relação ao fato de Miguel-Pereira (1973) alocar Patrocínio entre os que
reagiram as deformações românticas, traz à torna um debate – só não mais intenso
devido ao restrito número de críticas literárias realizadas sobre o autor e sua obra – de
situar o primeiro romance de Patrocínio no Romantismo, no Realismo ou no
Naturalismo. Esta constatação de Miguel-Pereira (1973) só corrobora a tese de que
Motta Coqueiro ou a pena de morte, de certo modo, particulariza-se em relação a
muitas obras na Literatura Brasileira e, se não se encontra entre uma ou outra escola
literária, deve-se possivelmente a razão do ano em que foi escrita, sendo uma obra de
transição, quiçá inaugural da escola realista ou naturalista. Tal peculiaridade, além da
natureza e do conteúdo em si, deveria e deve ser um dos motivos a mais para se estudar
a fundo esta obra literária.
Além do equilíbrio entre os personagens defendido por Miguel-Pereira (1973) e
da classificação do romance na periodização literária, há outro comentário gerador de
polêmica, e suscetível de ser uma sutil contradição de Miguel-Pereira (1973:37). Num
primeiro momento classifica a obra como: “Esta novela sem muito importância, escrita
à maneira de folhetim, com lances dramáticos visivelmente destinados a deixar o leitor
em suspenso, revela entretanto uma qualidade pouco comum: a isenção objetiva...” e no
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mesmo parágrafo desta citação, alça Patrocínio, por meio desta obra, dita por ela
mesma, „sem maior importância’, como um dos precursores contra as deformações
românticas.
A desconsideração de Miguel-Pereira com a obra de Patrocínio se desfaz com a
própria menção que ela faz da capacidade que o primeiro romance de Patrocínio tem de
manter o leitor em suspenso. Para um romance escrito em folhetim como o Motta
Coqueiro ou a pena de morte conter em si esta possibilidade de manter o leitor em
suspenso constitui praticamente uma via segura para o sucesso, como de fato se deu
com a obra citada à época, como expressa Renato César Möller (2007), em sua tese de
doutorado A fera de Macabu: memórias de um crime, uma pena de morte e uma
maldição:
Os fatos viriam mostrar que Patrocínio fizera um bom investimento. Suas
crônicas sobre a tragédia de Motta Coqueiro, difundidas pela imprensa
carioca, tornaram-se um sucesso, comprovado pelo aumento das vendas da
Gazeta de Notícias, jornal que as editara. Em 1878, o autor publica o drama
retratado nas crônicas em um romance intitulado “Mota Coqueiro ou a pena
de morte”, impresso na Tipografia da Gazeta de Notícias. (MÖLLER, 2007,
p. 11)
A sina, porém, de descaso ou desapreço pelas obras literárias de Patrocínio por
parte intelectualidade brasileira fica mais uma vez evidente numa nota de rodapé em
que Miguel-Pereira (1973), em sua pesquisa, comprova a escassez de exemplares de
outra obra de Patrocínio:
(27) Também José do Patrocínio e Araripe Júnior devem ter abordado o tema
da seca, já que escreveram livros com o título de Os retirantes. Do primeiro
não foi possível descobrir um único exemplar, e do segundo consta ter ficado
nos dois capítulos publicados na revista O Vulgarizador. (MIGUELPEREIRA, 1973, p. 36)
Como a primeira edição desta obra de Miguel-Pereira data de 1950, é provável
que ela a tenha escrita nos fins da década de 40. Ou seja, a autora escreve sua história da
Literatura Brasileira entre 65 a 70 após a publicação da primeira edição de Os
retirantes, em 1879, logo era, em tese, para se encontrar alguns exemplares, até porque
esta segunda obra literária de Patrocínio figurava como inaugural, ao tratar com
expressividade o drama do nordestino. Além disso, a autora vivia no estado do Rio de
Janeiro, o que leva a supor que teria mais chances de adquirir um exemplar do segundo
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romance de Patrocínio, se não fosse, é claro, a real escassez de exemplares de Os
retirantes. Esta nota de rodapé é importante para confirmar novamente o esquecimento
de que a obra de Patrocínio padece na Literatura Brasileira.
Explicitando inclusive o esquecimento em relação a Patrocínio na Literatura
Brasileira, Gregory Rabassa, em O negro na ficção brasileira (1965), depois de abrir
um capítulo sobre o negro na literatura universal, dedica-se a discorrer sobre o negro na
Literatura Brasileira, seja ele – negro – no papel de autor ou de personagem, na poesia e
na prosa, enfatizando o legado e a importância destes autores e obras para a ficção
brasileira. Ao analisar as contribuições em poesia e em prosa de autores brasileiros,
Rabassa (1965) sentencia:
O romance é, sem dúvida alguma, o gênero literário que produziu a mais
clara caracterização dos negros na literatura brasileira do século XIX. Isso se
deve ao fato de que a poesia, por suas próprias limitações, não pode analisar a
fundo um personagem literário em detalhes menores, enquanto que o ensaio
no século XIX estava intrinsecamente envolvido com a questão da Abolição
e, assim, tendia a ser bastante especializado em seu tratamento aos negros.
(RABASSA, 1965, p. 91)
Não só a Abolição centraliza a temática sobre o negro no século XIX.
Indubitavelmente a Abolição – e a busca por ela – permeia grande parcela dos
personagens e autores negros, tanto na prosa quanto na poesia sobre a denúncia do
sofrimento do negro no ambiente social (principalmente rural), de sua posição
subalterna e humilhante na sociedade, do atraso social da escravidão ante ao
desenvolvimento econômico, enfim, norteia as problematizações sobre o negro em
muitas obras literárias escritas no século XIX.
Embora o romance, como bem frisa Rabassa (1965), seja um campo de expressão
fértil sobre as caracterizações, ou ainda, as representações sociais do negro na literatura,
a poesia de Castro Alves inaugurou, numa perspectiva de combate ao sofrimento do
negro, uma insistente denúncia anti-escravocata, e um prenúncio de campanha, com
tons emotivos, pró-abolição, o que leva a perfilar a poesia também, ao lado do romance,
como um importante canal de expressão da temática do negro e da Abolição, ainda que
o romance irrompesse com mais vigor as temáticas Escravidão e Abolição.
Tal irrupção se devia porque, além ter havido mais prosadores negros do que
poetas negros, estes prosadores escrevem nas últimas décadas do século XIX, se não
todos, a ampla maioria, nos moldes do Realismo e do Naturalismo, o que lhes garantiam
mais proximidade com temais sociais e inquietantes, socialmente falando, e, portanto,
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mais favoráveis a pensar, por meio da Literatura, o negro diante da conjuntura social e
política formada neste período.
Contemplando o romance Motta Coqueiro ou a pena de morte, Rabassa (1965)
estranha o esquecimento (ou distração) dos críticos literários de até então, que não
conheciam ou reconheciam esse romance na historiografia literária brasileira.
Um dos lutadores mais ativos contra a escravidão no século XIX foi José do
Patrocínio. É estranho, portando, que um romance que ele escreveu como
protesto contra a escravidão tenha caído no esquecimento. Chama-se Motta
Coqueiro e é uma descrição da vida de fazenda do século XIX. É uma
oportunidade para que se compare a vida daquele tempo e a vida que é vista
hoje pelos romancistas contemporâneos da vida nas plantações. (RABASSA,
1965, p. 95).
A estranheza de Rabassa (1965) não é solitária. Modesta, porém, não menos digna
de observação, a obra José do Patrocínio, romancista (1959), de edição única, rara, e de
autoria de um poeta mineiro, estabelecido no Rio de Janeiro, por nome Nilo de Freitas
Bruzzi, figura entre as obras descontentes com a descaso com a produção literária do
tigre da Abolição.
Além de ocupante de cargos como de Procurador Geral do Estado do Espírito
Santo, de Procurador da Fazenda do Estado do Rio de Janeiro, dentre outros de natureza
alheia à Literatura, Bruzzi era poeta, tendo publicado diversas obras Luar de Verona
(1920), O Antunes (1920), Livro de Amor (1926), Dona Lua (1938), Flor de Silvestre
(1953), entre outras, totalizando mais de duas dezenas de obras, compostas em prosa,
poesia, conto, etc., porém, todas elas de menor expressão diante das produzidas por seus
contemporâneos como Clarice Lispector, Érico Veríssimo, Guimarães Rosa, etc.
Entusiasta da Literatura Brasileira, talvez sua maior contribuição a ela tenha sido suas
obras Casimiro de Abreu (1949) que, aliás, teve uma segunda edição, em 1957, a
referente a José do Patrocínio (1959) e Literatura Histórica (1930).
Em José do Patrocínio, romancista (1959), Bruzzi analisa os três romances de
Patrocínio, esboçando linearmente os pontos marcantes de cada um dos romances do
abolicionista, sem se ater a uma metodologia específica. Ao abordar cada um dos
romances, argumenta a favor de Patrocínio, evidenciando ao leitor a estilística e
criatividade do autor campista em certas passagens dos romances.
Mais importante do que a obra em si, cuja análise pode até ser considerada
sinóptica, por trazer de forma sucinta os três romances de Patrocínio, são as
informações pessoais e as memórias trazidas ao lume por Bruzzi (1959), perfilando
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assim muita relevância para a compreensão de aspectos importantes ligados à obra
literária de Patrocínio. Estas informações e memórias pessoais de Bruzzi estão
carregadas de um tom confessional, em que o autor despeja nas páginas de sua obra suas
percepções sobre a distorção do lugar real e o ideal ocupado por Patrocínio e pelas obras
dele no cenário da Literatura Brasileira.
Em sua obra concernente a Patrocínio, a seção Dedicatória e as primeiras linhas
do Pórtico mostram que Bruzzi tinha contato com, pelo menos, alguns acadêmicos da
Academia Brasileira de Letras (ABL), o que leva a crer que seu apreço para a Literatura
ultrapassava a produção pessoal. São ainda nas primeiras linhas que Bruzzi revela ao
leitor o motivo ou um dos motivos de sua obra referente a Patrocínio: a ocasião
favorável, por se tratar do centenário do nascimento do escritor abolicionista,
publicando-a primeiramente, em 1953, durante três domingos no Jornal do Comércio, e
alguns anos depois em livro (1959). Bruzzi expõe ao leitor que o acadêmico da ABL
Múcio Leão chegou a cogitar uma publicação da obra de Bruzzi, concernente a
Patrocínio, na Revista da Academia Brasileira de Letras:
Múcio Leão teve a iniciativa de propor fosse meu trabalho recolhido às
páginas da Revista da Academia Brasileira de Letras, fornecendo os recortes
do jornal. Cheguei a ver as provas relativas aos dois primeiros capítulos, mas
a cousa parou aí e nunca mais foi cogitado o assunto. (BRUZZI, 1959, p. 05)
Este comentário de Bruzzi acentua o nível de descrédito ou esquecimento,
imposto aos romances de Patrocínio, bem como ao próprio abolicionista. Ou então,
deixa nas entrelinhas um questionamento sobre a qualidade do material produzido por
Bruzzi, por não ter sido aceito por um membro da ABL. A segunda hipótese pode ser
possível e verdadeira, mas de alguma forma não anula consideravelmente a primeira, já
que, embora houvesse notícias de menções e comemorações feitas pela ABL no tocante
ao centenário de nascimento ou morte de Patrocínio, não se realizou a republicação dos
romances do abolicionista naquelas ocasiões.
O posicionamento de Bruzzi (1959) sobre o descuido da sociedade brasileira e,
sobretudo, da Casa, a qual Patrocínio ajudou a fundar se torna passível de validade, à
medida que se percebe que as referências que se encontram sobre Patrocínio na
intelectualidade e na sociedade lhe reservam quase sempre a figura de abolicionista e
jornalista, e raramente de romancista.
No entender de Bruzzi (1959:08), o reconhecimento de Patrocínio, como
primeiramente um romancista em detrimento de uma abolicionista ou jornalista
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colaboraria muito para perpetuar a memória de Patrocínio na sociedade brasileira. Tal
pensamento encontra respaldo ao pensar na capacidade, em geral, que obras literárias
clássicas têm consigo de se perdurarem no tempo, em comparação a artigos pontuais, a
títulos de nobreza, a escritos em folhetins, a outros meios de registro escrito nãocanônico. “Acentuo tais pormenores querendo salientar a pouca sorte que sempre
acompanhou o romancista José do Patrocínio, ora fazendo perder-se no esquecimento os
seus livros, ora entravando as tentativas para lembrá-lo, como foi a minha.” (BRUZZI,
1959, p. 06).
Neste desabafo de Bruzzi, há uma particularidade que chama atenção: o termo
‘tentativas’, que se encontra pluralizado e insinua que houve talvez por parte do próprio
Bruzzi e de conhecidos seus algumas tentativas de evocar a memória de Patrocínio no
cenário brasileiro. Não se sabe se foi um quê de hipérbole de Bruzzi ou se realmente
muitas tentativas foram empreendidas para que se fizesse uma comemoração ou
lembrança relativas ao centenário de nascimento de Patrocínio. A certeza que Bruzzi
menciona é esta: “O certo é que meu entusiasmo pelo romancista não teve eco e ele
continua ignorado, com seus romances esquecidos, apenas caídos no domínio público.”
(BRUZZI, 1959, p. 06).
Esta certeza incomoda não só Bruzzi, mas a muitos outros pesquisadores e
entusiastas das Letras brasileiras. O esquecimento de autores e obras literárias
significativos como Patrocínio para a construção e fortalecimento da Literatura
brasileira causa a sensação de uma perda muito grande não só para as Letras, mas
também para o povo brasileiro, ainda que esta sensação não seja visível pela maioria
dos membros da sociedade brasileira.
Neste sentido, Bruzzi (1959) levanta uma crítica interessante dirigida ao povo
fluminense (e por extensão ao brasileiro): a de ser um povo que sabe só citar nomes.
O Rio de tornou-se uma cidade só de nomes apenas. Ruas e ruas com placas
contendo nomes que ninguém sabe de quem são. No fim esses nomes só
vivem do crime. Aparecem nos jornais, no noticiário policial, quando alguém
dá um tiro ou mete uma facada em outro ali naquela rua que tem aquela placa
com nome de homem... (BRUZZI, 1959, p. 07).
Esta crítica, que também indiretamente se dirige aos jornais que se ocupam em
rechear suas páginas com tragédias, aborda o problema de o povo brasileiro ser
considerado um povo sem memória. Não se evidencia uma preocupação clara e
consistente, do ponto de vista historiográfico, em legar aos filhos da pátria uma
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memória nacional coletiva, cujo conteúdo mencione e reverencie grandes nomes de
brasileiros que se opuseram ao status quo de opressão ao povo, já que deter uma
memória de luta e vitórias, como a de Patrocínio, significa deter conhecimentos e
mobilizá-los a lutar em busca de desfazer os interesses de uma minoria que explora uma
massa de cidadãos, como preconizava Patrocínio em suas poesias e prosas.
Desse modo, ao verificar as historiografias mencionadas, tem-se uma dívida com
Patrocínio, uma dívida que só aumenta à medida que não se repense a obra-prima do
romancista Patrocínio ante ao cânone nas Letras brasileiras.
Referências bibliográficas
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 43ª Ed. São Paulo: Editora
Cultrix, 2006.
BRUZZI, Nilo. José do Patrocínio, romancista. Rio de Janeiro: Editora Aurora, 1959.
CARVALHO, Ronald de. Pequena História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: F.
Briguiet & Cia Editores, 1953.
COUTINHO, Afrânio (org.) A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.
MAGALHÃES JUNIOR, Raimundo. A vida turbulenta de José do Patrocínio. Rio de
Janeiro: Editora Sabiá, 1969.
MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: Breve história da literatura
brasileira I. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996.
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a 1920. Rio de Janeiro: Livraria J. Olympia Editora/MEC, 1973.
MÖLLER, Renato César. A fera de Macabu: memórias de um crime, uma pena de
morte e uma maldição. Rio de Janeiro: UERJ, Tese de Doutorado, 2007.
RABASSA, Gregory. O negro na ficção brasileira. Rio de Janeiro: Edições Tempo
Brasileiro, 1965.
ROMERO, Silvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio,
1980.
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SEDUTORA E SEDUZIDA: UMA LEITURA DO TRÁGICO DESTINO DAS
PERSONAGENS GRETCHEN, DA OBRA FAUSTO, E MARGARIDA, DE O
SEMINARISTA
CIRCE AND SEDUCED: A READING OF THE TRAGIG DESTINY OF THE
CHARACTERS GRETCHEN, FROM WORK FAUST, AND MARGARIDA,
FROM O SEMINARISTA
Elisangela Redel – PG-UNIOEST
Stéfano Paschoal – UNIOEST
RESUMO: Este trabalho se aterá a uma leitura comparativa da trajetória das
personagens Gretchen, da obra alemã Fausto (1808), de Johann Wolfgang von Goethe,
e Margarida, da obra brasileira O Seminarista (1872), de Bernardo Guimarães. Existe,
no entrecruzamento dos enredos, um elemento comum – dentre outros – que permite a
comparação entre as personagens citadas: o amor como caminho à destruição, para o
qual convergem questões como o risco e atributo da beleza e as condições sociais e
religiosas que delinearam a identidade e atuação da mulher na sociedade. O destino
trágico está inscrito no corpo das personagens, e se anuncia, por um lado, como lição da
igreja àquelas que se desviam dos preceitos morais por ela estabelecidos, e por outro
lado, se revela como a confirmação da sina daquela que outrora nascera mulher, bela,
mas sem dote, resignada aos códigos sociais e a tutoria do homem.
PALAVRAS-CHAVE: Fausto; O Seminarista; amor; tragicidade.
ABSTRACT: This work stick to a comparative reading of the trajectory of the
characters Gretchen, from the German work Faust (1808), by Johann Wolfgang von
Goethe, and Margarida, from the Brazilian work O Seminarista (1872), by Bernardo
Guimarães. There is, in the lathing of the plots, a common elemente – among others –
which allows the comparison between these two characters: the love as a path to
destruction, to which issues converge, as the risk and beauty attribute and the social and
religious conditions that outlined the woman‟s identity and acting in society. The tragic
destiny is in the characters‟ dimension, and it is announced, on one hand, as church‟s
lesson to those who divert from the moral precepts established by it, and confers the
woman the label of the original sin, of Eva‟s offense. On the other hand, it reveals as a
confirmation of the destiny of the one who once was born woman, beautiful, but with no
marriage portion, resigned to the social code and to a man‟s tutoring.
KEYWORDS: Faust; O Seminarista; love; tragedy.
Das personagens
Este trabalho se aterá ao estudo comparativo da trajetória de duas personagens da
literatura alemã e da brasileira, a saber, Gretchen, da obra Fausto, de Johann Wolfgang
von Goethe, e Margarida, da obra O Seminarista, de Bernardo Guimarães. Após a
composição do esboço Urfaust (Proto-Fausto, ou Fausto Zero), publicado,
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postumamente, em 1887, em 1791 Goethe escreveu Faust, ein Fragment (Fausto, um
fragmento), cuja versão definitiva, publicada pela primeira vez em 1808, ficou intitulada
Faust, eine Tragödie (Fausto, uma tragédia). Neste trabalho, será utilizada apenas esta
primeira parte da obra, editada em 1981, traduzida por Jenny Klabin Segall e publicada
conjuntamente pela editora Itatiaia e a editora da Universidade de São Paulo.
O
romance O Seminarista, do escritor mineiro Bernardo Guimarães, foi publicado pela
primeira vez em 1872, mas a edição utilizada para a presente análise data de 1999,
lançada pela editora Ática.
Embora as obras tenham sido concebidas em diferentes épocas e culturas, a
análise aqui proposta pode ser justificada pela pretensão, segundo os pressupostos
teóricos de Walter Benjamin, de libertar o objeto histórico do fluxo da história contínua
(BENJAMIN, 1984 p.19)17, linear, homogênea e, por conseguinte, canônica, para
concebê-lo sob um universo constelar.
Para que um novo fenômeno seja originado, é necessário restaurar e reproduzir o
passado, que, por conseguinte, se encontra incompleto e inacabado para o futuro. Temse, aqui, o eterno processo que Benjamin chama de “vir-a-ser”, na medida em que se
constrói o presente por meio do processo de rememoração do passado, e permite,
consequentemente, a construção do futuro por ele estar em potência no presente.
Nesse sentido, a metáfora da constelação é eficaz para entender o trabalho do
comparatista, que originará novas leituras a partir das infinitas possibilidades de realizar
um traçado entre os fenômenos, fazendo emergir, como elucida Gagnebin (2007, p. 15),
momentos privilegiados para fora da cronologia: “graças a esta ligação, dois elementos,
(ou mais) adquirem um novo sentido e desenham um novo objeto histórico, até aí
insuspeitado, mais verdadeiro e mais consistente que a cronologia linear [...]” (grifo
nosso).
Com isso, e pensando-se nas teorias literárias pós-coloniais, tem-se a tarefa de
revisitar e questionar o passado, o cânone, a hierarquia, a cronologia, o etnocentrismo e
o eurocentrismo, não no propósito da inversão de valores, e sim na inclusão de
literaturas marginais, e de novas propostas de leituras e interpretações.
De acordo com Compagnon (1999, p.123), “se o fato de a literatura falar da
literatura não impede que ela fale também do mundo”, volta-se ao regime do mais ou
menos, da ponderação e do aproximadamente, como diz o autor. Não se trata de
17
A origem do drama barroco alemão, de Walter Benjamin, foi publicada pela primeira vez em 1928, em
Berlim. Neste trabalho, estaremos utilizando da edição de 1984.
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escolher entre o Eu ou o Outro, de substituir valores, mas, sim, de entender a natureza
híbrida que perpassa a humanidade.
Embora as obras estejam abrigadas em épocas e culturas distintas, existe em seus
enredos um tertium comparationis: o amor como caminho à destruição, para o qual
convergem questões como o risco e atributo da beleza e as condições sociais e religiosas
que delinearam a identidade e atuação da mulher na sociedade. Além disso, é
indiscutível o fato de que o romance de Bernardo Guimarães, estando inserido na
estética romântica, dialoga de modo subliminar com o trabalho de Goethe, embora este
não seja um “romântico no sentido restrito”.
Há um entrecruzamento das duas trajetórias. A obra O Seminarista (1999) narra a
trágica história de amor entre Eugênio e Margarida, no interior de Minas Gerais. Ambos
cresceram em íntima convivência, até o momento em que o senhor Antunes, pai de
Eugênio, resolve tornar o filho padre, enviando-o ao seminário.
Embora distantes, Margarida e Eugênio, o amor entre eles tornou-se mais forte
com o passar do tempo e, em função desse sentimento, Margarida sofreu as maiores
desgraças de sua vida. Bela, porém desamparada e pobre, a jovem e sua mãe foram
expulsas das terras dos Antunes e passaram a viver, miseravelmente, à mercê dos
perigos do mundo.
A alegria e o sossego, antes presentes na vida de Margarida, deram espaço à
saudade e ao sofrimento. Repudiada pelos pais de Eugênio, a frágil criatura ficou
exposta a todos os embates de um destino cruel e a todas as seduções e azares de um
mundo libertino.
Mais tarde, com a morte de sua mãe, sua situação tornou-se ainda mais agravante
diante dos esforços de sedutores em arrastá-la à prostituição. Ordenado padre, Eugênio
volta à sua terra natal para celebrar sua primeira missa, na qual se encontra o cadáver de
Margarida.
A trajetória de Gretchen, na primeira parte de Fausto (1981), apresenta
características semelhantes às de Margarida. Encantada por suas promessas e presentes,
Gretchen entrega-se a Fausto, indivíduo que, desiludido com o conhecimento de seu
tempo, faz um pacto com Mefistófeles.
Assim como Margarida, Gretchen chamava atenção por sua beleza. Órfã de pai,
ela morava com a mãe e o irmão, que estava no exército. Desprotegida pela ausência da
figura masculina, Gretchen aceita se encontrar às escondidas com Fausto.
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O local dos encontros é a casa de Marta, sua vizinha. Para tanto, o casal dá uma
dose exagerada de soporífero para a mãe de Gretchen. Seu irmão, Valentin, tentando
defendê-la da perdição, é morto por Fausto.
A partir de então, Gretchen, que era um exemplo de devoção a Deus, é perseguida
por espíritos do mal e lançada à perdição. Diante de uma gravidez inesperada, e julgada
pela morte de sua mãe e de seu filho, sofre alucinações e começa a definhar na loucura.
No entanto, Gretchen se arrepende e recebe a salvação, livrando-se, assim, do
sofrimento.
Ou seja, o destino trágico das personagens se anuncia, por um lado, como lição
moral da igreja àquelas que se desviam dos preceitos morais por ela estabelecidos, e
propaga à imagem da mulher o selo do pecado original, e do mal inscrito em se corpo.
Por outro lado, revela-se como a confirmação da sina daquela que outrora nascera
mulher, bela, mas sem dote, resignada aos códigos sociais e à tutoria do homem, como
destacou Beauvoir (1980).
Nesse sentido, a morte de Margarida representa e, duplamente, critica o poder
centralizado e dominante da sociedade burguesa e do clérigo. Com a personagem
Gretchen, tem-se a mesma crítica, no entanto, ela se dá por meio do perdão e da
salvação da mulher pecadora. Quem a perdoa, vale ressaltar, é Fausto, enquanto
representação da existência do bem e do mal no ser humano, e do profundo poder do
perdão, da reconciliação e do amor na alma do homem.
Atração e repreensão: o paradoxo da beleza
Nahoum-Grappe (1990) assevera que a beleza feminina é considerada um
elemento que prenuncia o destino da mulher. É ameaça de ruína e de condenação,
sobretudo àquelas que nasceram sem dote, mas marcadas pela beleza.
“[...] A rapariga bonita e pobre está destinada a ser presa da sua beleza visível:
quando aparece, os vis sedutores seguem-na com o olhar” (NAHOUM-GRAPPE, 1990,
p. 121-122) e, este olhar alheio, ao passo que é repreendido pela dignidade da moça, é
paradoxalmente atraído pela beleza inscrita em seu corpo.
A pobreza é a falta, o elemento que faz da mulher bonita o alvo indefeso, que
atrai e define o sedutor e a conduz ao pecado original, cometido por Eva, personagem
bíblica que, seduzida pela serpente, comeu do fruto proibido. Ela fraqueja diante da
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tentação, ora uma maçã, ora uma jóia ou promessa, para “depois cair, numa queda
definitiva, inscrita no seu próprio corpo” (NAHOUM-GRAPPE, 1990, p. 127).
É nesse sentido que se pretende configurar, inicialmente, as personagens Gretchen
e Margarida, ou seja, sob o viés da beleza como fator decisivo do destino trágico de
ambas, aliado a outro fator agravante de suas condenações, a situação econômica e
social.
Paradoxalmente, como já citado, a aparência física das personagens é o atributo e
o risco que possuem, é o dote que atrai os olhares para o objeto desejável, e as conduz
aos desejos carnais.
Na obra O Seminarista, Margarida é descrita por Eugênio como ser tentador e
desejável:
A tez era de um moreno delicado e polido, como resvalando uns reflexos de
matiz de ouro. Os olhos grandes e escuros tinham essa luz suave e
aveludada, que não se irradia, mas parece querer recolher dentro da alma
todos os seus fulgores à sombra das negras e compridas pestanas, como
tímidas rolas, que se encolhem, escondendo a cabeça debaixo da asa
acetinada; as sobrancelhas pretas e compactas davam ainda mais realce ao
mavioso da luz que os inundava, como lâmpadas misteriosas de um
santuário. Os cabelos, uma porção dos quais trazia soltos por trás da cabeça,
lhe rolavam negros e luzidios sobre os ombros como as catadupas
enoveladas de uma cachoeira. Ao mais leve sorriso, que lhe entreabria os
lábios, cavam-se-lhe nas duas mimosas faces com uma graça indefinível
essas feiticeiras covinhas, que o vulgo chama com tanta propriedade – grutas
de Vênus. A boca onde o lábio inferior cheio e voluptuoso dobrava-se
graciosamente sobre um queixo redondo e divinamente esculturado, a boca
era vermelha, fresca e úmida como uma rosa orvalhada. O colo, os ombros,
os braços, eram de uma morbidez e lavor admiráveis. Sua fala era uma
vibração de amor que alvoroçava os corações, o olhar como luz de lâmpada
encantada que fascina e desvaira, o sorriso era um lampejo de volúpia que
fazia sonhar com as delícias do Éden. Era, enfim, o tipo mais esmerado da
beleza sensual, mas habitado por uma alma virgem, cândida e sensível. Era
uma estátua de Vênus animada por um espírito angélico [...]
(GUIMARÃES, 1999, p. 39 - grifo nosso).
De modo semelhante, foi a beleza de Gretchen que atraiu o olhar de Fausto:
[...] Por Deus, essa menina é linda!
Igual não tenho visto ainda
Tanta virtude e graça tem
A par do arzinho de desdém
A boca rubra, a luz da face
Lembrá-las-ei até o trespasse!
O modo por que abaixa a vista
Fundo em minha alma se registra.
Sua aspereza e pudicícia
Aquilo então é uma delícia [...] (GOETHE, 1981, p.147).
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À mulher feia nada se pede, comenta Nahoum-Grappe (1990, p. 132), pois ela não
interessa nem ao romancista, e nem à sociedade, ou seja, sua falta de beleza não incide
no desvio dos olhares.
No entanto, deve-se lembrar de que a questão da beleza está associada à ordem do
tempo, uma vez que, esquecido o seu efeito, ela desaparece: “a beleza feminina é
suspeita: o corpo da mulher bela está ligado à morte, cujo esqueleto grotesco e
assexuado a abraça, a fixa por detrás do espelho, e enlaça o seu corpo, já desnudado,
mas ainda ornamentado” (NAHOUM-GRAPPE, 1990, p. 137).
Ou seja, a beleza, não sendo eternamente duradoura, tende a seguir sua ordem
natural, estabelecida pelos efeitos do tempo. Enquanto belas, Gretchen e Margarida são
o alvo dos olhares da sociedade. Entretanto, se desprovidas dessa beleza, seu corpo
metaforiza a morte, que cresce em seu âmago. E, essa morte anunciada, pode-se dizer,
está inscrita na mulher como objeto simbólico do pecado original que a leva à
condenação, à queda.
Essa tentação se apresenta para Margarida pela promessa de amor eterno entre ela
e Eugênio, concedida furtivamente à sombra do silêncio da noite, sem testemunhas nem
constrangimentos:
Os dois amantes, pondo de parte toda a reserva e timidez, deram livre
expansão aos seus afetos, e pela primeira vez falaram sem rebuço de amor,
casamento, de felicidade futura nos braços um do outro, e os beijos, aqueles
beijos, que à luz do sol apenas esvoaçavam tímidos à flor dos lábios e
morriam no limbo dos desejos, soltaram o vôo, encontraram-se através das
grades, e imprimiram-se férvidos e trementes nos lábios de um e de outro
amante (GUIMARÃES, 1999, p. 51).
A jovem acreditava no amor e nas promessas de Eugênio, “mas não tinha fé no
destino, nesse poder implacável, e tirânico, que zomba dos mais firmes protestos e das
juras mais leais” (GUIMARÃES, 1999, p. 70).
A tentação de Gretchen se revela ora pelas promessas de amor de Fausto, ora
pelas joias que recebe para a ele se entregar. Por ser extremamente temente a Deus, foi
esta a tática encontrada por Fausto e Mefistófeles para seduzi-la:
Que linda caixa! Como veio ter cá?
O cofre não fechei, quiçá?
É esquisito! dentro, que haverá?
Talvez a dessem em penhor
A minha mãe. A chave oscila
No laço do cordão de cor,
Não sei se posso ... vou abri-la!
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Que é isso? Deus do céu! À fé,
Em minha mão não vi cousa igual!
Que adorno! A uma fidalga, até,
Não ficaria em festas santas mal!
Ornar-me-ia o colar? que tal?
De quem tanto esplendor, meu Deus? (GOETHE, 1981, p. 130 - grifo
nosso).
As duas personagens se entregam às promessas de Fausto e de Eugênio.
Margarida, apesar de provida de muitas virtudes, era humilde. Agregada a fazenda do
Sr. Antunes, auxiliava sua mãe, Umbelina, nas tarefas:
Entre esses agregados contava-se dona Umbelina, que com sua filha
Margarida e uma velha escrava, ocupava a casinha [...]. Umbelina vivia de
sua pequena bitácula à beira da estrada vendendo aguardente e quitandas aos
viandantes, cultivando seu quintal, vendendo frutas, hortaliças e leite para
tirar um sofrível rendimento (GUIMARÃES, 1999, p.14).
Na obra Fausto (1981), Gretchen também se configura como moça humilde,
responsável por todos os afazeres domésticos e cuidados com a casa:
Sim, nossa casa é miúda, um nada,
Contudo tem de ser tratada.
Não temos serva; eu coso, eu lavo, e corro à miúdo.
E esfrego cada nicho;
E tem a minha mãe em tudo
Tanto capricho! (GOETHE, 1981, p.114 - grifo nosso).
Haja vista que a mãe de ambas as personagens assume, pela ausência da figura
paterna, seu lugar, são as filhas Margarida e Gretchen que compartilham do trabalho
legado à mãe, à dona de casa. Este descompasso familiar, ou seja, a ausência da figura
paterna como elemento protetor do sexo feminino – sobretudo quando se refere a um
contexto patriarcal – constitui-se em fator que contribui para a perdição das personagens.
É a invisibilidade da mulher dentro da sociedade, a fragilidade e inferioridade
delegada ao sexo feminino, que não permite que a mãe das personagens garanta a
segurança e destino das filhas. Este quadro social se agrava com a morte de Umbelina,
mãe de Margarida, e a morte do irmão e da mãe de Gretchen, e mostra a situação de
limitação e dependência da mulher, ao tentar construir seu espaço numa sociedade
estigmatizada como é aquela do século XVIII alemão e do século XIX brasileiro.
Cisão e ambivalência do sagrado e do profano
Embora se incorra na tentativa de conciliar o sagrado e o profano, na trajetória de
Gretchen e de Margarida, a prática do pecado torna irremediável a perdição das
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personagens. Na obra Fausto (1981), é a falta de cristianismo do personagem
homônimo que se apresenta como obstáculo para o amor entre ele e Gretchen:
Dize-me pois, como é com a religião?
És tão bom homem, mas será mister
Ver que tens pouca devoção [...]
[...] Ouvindo-o assim, soa a razão;
Mas mesmo assim erro, ao que cismo
Porque te falta o cristianismo (GOETHE, 1981, p. 157).
Na obra O Seminarista (1999), é a carreira clerical, desejada pelos pais de
Eugênio, o empecilho para a concretização do amor entre ele e Margarida: “E pensas tu
que eu hei de consentir que deixes de seguir uma carreira tão bela e honrosa, para o que não
tenho poupado dinheiro nem cuidados, por amor de uma ... miserável?” (GUIMARÃES, 1999,
p.60).
Nesse sentido, é a falta de cristianismo de Fausto, e a “vocação” de Eugênio para
com a religião, um dos aspectos que rompe com a possibilidade de união entre
Margarida e Eugênio, Gretchen e Fausto. As duas personagens analisadas praticam atos
considerados profanos pela moral social da época, o que aponta para uma profunda
dialética que subjaz ao homem: sua essência revela a cisão entre o bem e o mal, inerente
ao ser humano, ao passo que a sociedade busca conscientizá-lo de sua incapacidade em
servir a duas forças antagônicas. O homem, dessa forma, deverá adorar apenas parte do
mundo, e não o seu todo, pois, a partir do momento em que Gretchen e Margarida
optam pelo princípio do prazer e do amor, projetam suas próprias desgraças.
A relação entre o homem e a mulher, não consagrada pelo ritual do casamento,
dos códigos sociais e religiosos, configurou-se como ato perverso, pois, como
BEAUVOIR explica,
A civilização patriarcal votou a mulher à castidade: reconhece-se mais ou
menos abertamente ao homem o direito a satisfazer seus desejos carnais, ao
passo que a mulher é confinada no casamento: para ela o ato carnal, em não
sendo santificado pelo código, pelo sacramento, é falta, queda, derrota,
fraqueza; ela tem o dever de defender sua virtude, sua honra; se ‘cede’, se
18
‘cai’, suscita o desprezo [...] (BEAUVOIR, 1980 , p. 112 - grifo nosso).
À luz destas convenções, os encontros de Gretchen com Fausto, e de Margarida
com Eugênio, incidem no desprezo, na desonra e na punição das moças, pois estas, ao
invés de tentar defender sua virtude, se deixaram seduzir pelos instintos profanos.
18
O Segundo Sexo, I e II, de Beauvoir, foi publicado pela primeira vez em 1949. Utiliza-se neste trabalho
da edição de 1980, traduzida por Sérgio Milliet.
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Paralelamente, há outro fator que transforma essa “derrota” da mulher em grave
perigo: a ameaça de um filho. É o obstáculo que, definitivamente, obstrui o retorno da
rua para a casa.
Um filho. Um filho ilegítimo é, na maioria das civilizações, um tal handicap
social e econômico para a mulher não casada, que há jovens que se suicidam
em se sabendo grávidas, e mães solteiras que esganam o recém-nascido;
semelhante risco constitui um freio sexual bastante forte para que muitas
jovens observem a castidade pré-nupcial exigida pelos costumes
(BEAUVOIR, 1980, p. 125).
Esta castidade, tão exigida pelos costumes, rompe-se para Gretchen no momento
em que percebe que espera um filho de Fausto. É a prova de sua derrota e destino.
Embora Margarida também tenha infringido a moral social e religiosa da época, a
consumação do ato sexual, que sempre traz à mulher o risco da gravidez, não ocorre,
com vistas aos indícios oferecidos pelo romance.
A ilusão do amor como caminho à felicidade
Precocemente a menina acredita ter atingido a idade do amor. Ela projeta no
homem características míticas e perfeccionistas, na tentativa de convencer a si mesma
da felicidade ao lado de seu “libertador”, como afirma Beauvoir (1980, p. 34). Isto se
explica pelo fato de que,
Desde a infância, tendo querido realizar-se como mulher ou superar as
limitações de sua feminilidade, a menina esperou do homem realização e
evasão: ele tem o semblante deslumbrante de Perseu, de São Jorge, é o
libertador, é tão rico e poderoso que detém em suas mãos as chaves da
felicidade: é o príncipe encantado (BEAUVOIR, 1980, p. 61).
Assim, desde cedo, a menina prevê seu destino ao lado do homem, ela “adivinha
sua dependência que a destina ao homem, ao filho, ao túmulo” (BEAUVOIR, 1980, p.
48), como aponta a autora. Metaforizado pelo túmulo, esse destino se explica pelo fato
de a mulher renunciar a si mesma, a seus desejos e sentimentos para, paradoxalmente,
renascer como esposa e mãe, e ter sua morte anunciada por essa transição.
Seu fim é certeiro e a passagem do universo infantil para o de esposa ocorre de
modo brusco. Interrompe “a evolução harmônica de uma evolução contínua”
(BEAUVOIR, 1980, p.110) para dar início a um novo ciclo, uma nova experiência, cujo
retorno é irreversível.
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A ilusão do amor, como caminho à felicidade, diz respeito a um profundo
sentimento que opera sobre as mulheres, essência que as diferencia, por exemplo, do
sexo oposto. Buscando se libertar das ordens do seu primeiro protetor, o pai, e construir
seu futuro, a jovem projeta sua vida na figura masculina. O destino da mulher depende
do homem, mas, paradoxalmente, a presença e/ou a ausência dele define, do mesmo
modo, o fim da mulher: a sua morte. Em outras palavras, “lavar, passar, coser, descobrir
os flocos de poeira escondidos sob a noite dos armários, é recusar a vida, embora
detendo a morte” (BEAUVOIR, 1980, p. 201).
Há, entretanto, uma relação dialética entre o homem e a mulher quando se trata de
amor, uma vez que,
Em certos momentos de sua existência, alguns homens puderam ser amantes
apaixonados, mas nenhum há que possa definir como “um grande
apaixonado”; nunca abdicam totalmente, mesmo em seus mais violentos
transportes; ainda que caiam de joelhos diante de sua amada, o que desejam
afinal é possuí-la, anexá-la; permanecem no coração de sua vida como
sujeitos soberanos; a mulher amada não passa de um valor entre outros;
querem integrá-la em sua existência, e não afundar nela uma existência
inteira. Para a mulher, ao contrário, o amor é uma demissão total em
proveito de um senhor (BEAUVOIR, 1980, p. 411 - grifo nosso).
Todavia, as personagens Margarida e Gretchen desconstroem a ordem “natural”
pré-concebida para a mulher, de ceder e se casar, sem amor, em virtude de um rito
institucional e social. Malograda a felicidade desejada, elas optam pela solidão. Sobre o
destino feminino tradicional:
Quase todas as mulheres sonharam com “o grande amor”: conheceram
sucedâneos deste, aproximaram-se dele; sob aspectos de figuras inacabadas,
magoadas, irrisórias, imperfeitas, mentirosas ele as visitou; mas muito poucas
lhes consagraram realmente a existência. As grandes amorosas são, o mais
das vezes, mulheres que não usaram o coração nos amores juvenis;
aceitaram primeiramente o destino feminino tradicional: marido, casa,
filhos; ou conheceram uma dura solidão; ou confiaram em alguma empresa
que malogrou [...] (BEAUVOIR, 1980, p. 413 - grifo nosso).
O amor que Gretchen e Margarida buscavam não se consagrou. Ele apenas as
visitou sob a máscara de mágoas e mentiras. Ambas preferem conhecer a solidão à
possibilidade de aceitar o destino tradicional imposto à mulher, modelo arquetípico que
se introjeta como objeto do homem, e que renuncia aos seus desejos e sentimentos.
Abdicam, assim, do casamento, como contrato social, simulacro da união pelo amor.
Tal escolha implicará na expulsão de Margarida, bem como de sua mãe, das terras
do senhor Antunes: “Um belo dia, pois, Umbelina e sua filha tiveram de arrumar a sua
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trouxa e de dizer eterno adeus à sua linda casinha, ao risonho e pitoresco vale, ao
córrego e às paineiras que por tantos anos tinham sido o abrigo e a companhia de sua
feliz e pacífica existência” (GUIMARÃES, 1999, p.71).
Pobre e frágil, a moça estava totalmente exposta aos embates de um destino cruel,
às seduções e azares de um mundo libertino. Não faltaram sedutores que, dispondo de
dinheiro, empregassem grandes esforços para arrastá-la ao caminho da prostituição:
“Atraídos pela beleza de Margarida, como dissemos, alguns rapazes freqüentavam a
casa de Umbelina, e lhe requestavam a filha. Esta, porém, não lhes dava a mínima
atenção, e em sua cândida inocência nem mesmo suspeitava o verdadeiro motivo, por
que tanto a festejavam” (GUIMARÃES, 1999, p. 54).
No entanto, outra desgraça estava por vir: “[...] Umbelina, afrontada de desgosto,
velhice e enfermidades, faleceu deixando a pobre órfã mais desvalida e angustiada que
nunca. Um feroz destino como que se comprazia em recalcá-la cada vez mais na
erragem do infortúnio” (GUIMARÃES, 1999, p.86).
Margarida, mesmo depois de reencontrar Eugênio, sabia que não viveria por
muito tempo: “Sofro muito, muito! ... parece que a cada momento se me rebenta o
coração – mas agora ... como o senhor veio, sinto-me feliz; já não morro tão sozinha...
tão desamparada!” (GUIMARÃES, 1999, p.92). Depois da morte da mãe, ela apenas
aguardava rever Eugênio e, passivamente, resigna-se ao seu destino: a morte.
De modo distinto, a morte assolou a vida de Gretchen sob outros limiares. A
primeira delas é a morte de seu irmão Valentin, em uma discussão com Fausto, por sua
irmã, que tanto defendia, ter arruinado sua honra:
Valentim: quando, de início, a infâmia nasce,
Trazem-na ocultamente ao mundo,
E põem-lhe o manto mais profundo
Da noite sobre o ouvido e a face;
Matar-na-iam, até, com gosto.
Mas, quando fica alta e crescida,
Também de dia anda despida,
Sem que lhe embeleze o rosto.
E quanto mais cresce em feiúra,
A luz do dia mais procura.
Já vejo o tempo, francamente,
Em que todo burguês decente,
Qual de um cadáver roto e infecto,
Fugir-te-á, marafona, o aspecto!
Vai se gelar teu coração,
Quando encontrares seu olhar!
Na igreja não te deixarão
Chegar aos pés do santo altar!
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Com colar de ouro e flor na trança,
Já não te alegrarás na dança!
Em negros antros e jazigos
Hás de ocultar-te mendigos;
E se o Céu te outorgar mercê,
Maldita sobre a terra sê! (GOETHE, 1981, p. 171).
Nesta citação, Valentim condena os atos de Gretchen, que se igualam aos de uma
prostituta. Roga o desprezo com que todos os olhares a cercarão, e as portas dos céus e
da igreja que para ela não mais serão abertas.
Após este acontecimento, a fim de se encontrarem às escondidas, Fausto exagera
na dose de soporífero que dá para a mãe de Gretchen, levando-a a morte:
Margarida: Dormisse eu só! Com que abandono
Deixar-te-ia hoje o trinco aberto;
Mas minha mãe! Tão leve tem o sono:
E se nos surpreendesse, é certo
Que eu morreria de mil mortes!
Fausto: Meu coração, com isso não te importes.
Eis um vidrinho! Junta-lhe à poção
Três gotas só, dentro da taça,
Que em fundo sono a envolverão (GOETHE, 1981, p. 161).
Além disso, Gretchen também acusava Fausto de ter matado seu filho. Os
espíritos do mal a perseguiam e, levada à perdição, foi julgada ao inferno por ter cedido
aos desejos profanos:
Quão outra, Gretchen, te sentias
Quão ainda plena de inocência
Deste altar santo te acercavas
A balbuciar do livre gasto
As orações
Em parte folgas infantis
Em parte deus no coração!
Gretchen!
Tua cabeça, onde anda?
No coração, tens que delito?
Pela alma de tua mão oras
Que adormeceu por ti a interminável pena?
De quem o sangue em teu umbral?
E borbulhante, já não se move algo sob o teu coração,
E te angustia, a ti e a si,
Com existência pressagiosa? (GOETHE, 1981, p.172).
Há um simbólico desencontro, portanto, no desfecho da trajetória das
personagens. Margarida foi rejeitada e destinada às margens da sociedade brasileira do
século XIX, renunciada como símbolo da tentação do diabo e do pecado original, foi
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“malvista e repudiada por eles, pobre e frágil criatura exposta a todos os embates de um
destino cruel e a todas as seduções e azares de um mundo corrupto e libertino”
(GUIMARÃES, 1999, p. 75).
Em Margarida há uma dimensão mítica, que a associa à simbologia que a serpente
conferiu à humanidade:
A pequena Margarida, apenas na idade de dois anos, estando a brincar no
quintal, desgarrou-se por um momento da companhia da rapariga que a
vigiava, e da de seu camarada de infância. Quando este deu pela falta e foi
procurá-la, encontrou-a assentada na relva junto de uma fonte a brincar ...
com que, Santo Deus! ... a brincar com uma formidável e truculenta jararaca.
A cobra enrolava-se em anéis em volta da criança, lambia-lhe os pés e as
mãos com a rubra e farpada língua, e dava-lhe beijos nas faces. A menina a
afagava sorrindo, e dava-lhe pequenas pancadas com um pauzinho que tinha
na mão, sem que o hediondo animal se irritasse e lhe fizesse a mínima
ofensa (GUIMARÃES, 1999, p. 15).
Será, portanto, em analogia a Eva pecadora que Margarida será lembrada pela
família Antunes, e mesmo por Eugênio no seminário, que encontrava exata relação do
incidente da infância de Margarida e o episódio do livro de Gênesis: “Já para ele não
havia dúvida: aquele acontecimento era um aviso do céu; aquela serpente fatídica era o
demônio; e Margarida, nova Eva por ele seduzida, lhe oferecia o ponto fatal, e o leva ao
caminho do exílio e da perdição eterna” (GUIMARÃES, 1999, p. 79).
Tais imagens, a propósito da serpente, são asseguradas no tempo por uma
revelação histórica, “é a manifestação de Deus no Tempo que assegura, aos olhos dos
cristãos, a validade das imagens e dos símbolos” (ELIADE, 1991, p. 161). E, além
disso, essas imagens, segundo o autor, permitem a passagem para um mundo transhistórico, uma abertura para o transcendente que engendra e decifra os sinais da
presença divina.
A dimensão mítica e arquetípica, aliás, é necessária à alma do ser humano, pois “o
que importa é a significação da existência humana, e essa significação é de ordem
espiritual” (ELIADE, 1999, p. 168). Também é de ordem complexa e dialética, visto
que sua essência compreende duas forças antagônicas, o bem e o mal e, ao se falar em
deus, fala-se também no diabo, e vice-versa.
À igreja cabia relembrar à sociedade o terrível mito do Éden, como explica Araújo
(2000). O Estado e a Igreja, juntamente com a vigilância do sexo masculino, confluíam
para um mesmo objeto que, segundo o autor, era “abafar a sexualidade feminina que, ao
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rebentar as amarras, ameaçava o equilíbrio doméstico, a segurança do grupo social e a
própria ordem das instituições civis e eclesiásticas” (ARAÚJO, 2000, p.45).
Sobretudo, era a igreja que exercia maior poder sobre o destino e adestramento
das mulheres, o que era justificado pelo fato de o homem ser superior, e se as mulheres
eram sujeitas a Cristo, também o deveriam ser aos seus maridos. Dessa forma:
[...] a mulher estava condenada, por definição, a pagar eternamente pelo
erro de Eva, a primeira fêmea, que levou Adão ao pecado e tirou da
humanidade futura a possibilidade de gozar da inocência paradisíaca. Já que
a mulher partilhava da essência de Eva, tinha de ser permanentemente
controlada (ARAÚJO, 2000, p.46 - grifo nosso).
Nesse sentido, Margarida é a metonímia da mulher de seu tempo que, reprimida e
controlada, tinha seu destino traçado pelas leis da igreja e da sociedade. Sobre este
último aspecto, Freyre (2000, p. 125) explica que o homem tinha “todas as liberdades
de gozo físico do amor e limitando o da mulher a ir para a cama com o marido, toda a
santa noite que ele estiver disposto a procriar. Gozo acompanhado da obrigação, para
a mulher, de conceber, parir, ter filho, criar menino” (grifo nosso).
Ao perfil da moralidade patriarcal também se acrescentava limitar “as
oportunidades da mulher ao serviço e às artes domésticas, ao contato com os filhos, a
parentela, às amas, às velhas e aos escravos. E, uma vez por outra, num tipo de
sociedade católica como a brasileira, ao contato com o confessor” (FREYRE, 2000, p.
125 - grifo nosso).
Em contramão aos ditames católicos e puritanos, Margarida não compartilha do
casamento como contrato social, uma vez que “reconciliar o casamento com o amor é
uma tal façanha que se faz preciso nada menos do que uma intervenção divina para
consegui-lo” (BEAUVOIR, 1980, p. 181). Ao se casar e se tornar mãe, Margarida teria
a chance de se afastar da imagem de Eva pecadora, e se aproximar da Virgem Maria –
uma vez que a sociedade associou a mãe a um ser santo, sagrado e sem impulsos
sexuais, por exemplo. Julgada às margens da sociedade, Margarida é desprezada e
punida, tendo como fim trágico a morte. À sua transgressão “Deus” não lhe concede o
perdão.
Como explica Araújo,
O ideal de adestramento completo, definitivo, perfeito, jamais foi alcançado
por inteiro. A igreja bem que tentava domar os pensamentos e sentimentos,
muitas vezes até com algum sucesso, mas nem todo mundo aceitava
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passivamente tamanha interferência quando o fogo do desejo ardia pelo
corpo ou quando as proibições passavam dos limites aceitáveis em
determinadas circunstâncias. Contudo, parece que o normal era a introjeção,
por parte das próprias mulheres, dos valores misóginos predominantes no
meio social; introjeção imposta pela Igreja e pelo ambiente doméstico, mas
também por diversos mecanismos informais de coerção, a exemplo da
tagarelice dos vizinhos, da aceitação em certos círculos, da imagem a ser
mantida neste ou naquele ambiente [...] (ARAÚJO, 2000, p. 53 - grifo
nosso).
De acordo com a citação acima, sublinha-se a influência devastadora que a moral
da igreja exercia, e que se alastrava e se introjetava na consciência e no modo de viver
do homem. No capítulo Mulheres nas Minas Gerais, Figueiredo (2000) trata da política
familiar em Minas, e revela a importância que o modelo cristão de organização familiar
assumia, bem como “cabia disciplinar não apenas os papéis sociais, mas também os
afetos e o uso do corpo. No entanto, a vida cotidiana das comunidades mineiras pareceu
resistir a tanta coerência” (FIGUEIREDO, 2000, p. 167).
Assim, considerando-se que o casamento, no qual o ato sexual “era um dever a
ser cumprido com serenidade e pureza na alma para que os prazeres da carne não
contaminassem o espírito, afastando o homem de Deus. A presença do ardor no ato
significava incorrer no mortal pecado da luxúria, onde a paixão rompia a domesticação”
(FIGUEIREDO, 2000, p. 176) estava inerente a essa organização social, é possível
afirmar que Margarida se encontra ao avesso da moral cristã.
Em contraposição, Gretchen é liberta da prisão e da loucura, perdoada ao rogar a
Deus pela salvação e misericórdia de sua alma. Apesar de seu delito, ela recebe uma
segunda chance, como a figura bíblica Maria Madalena que, conforme o evangelho de
João, capítulo oito e versículo sete, é apedrejada pela sociedade, mas salva pelas
palavras de Jesus: “Que aquele de vós que estiver sem pecado seja o primeiro a atirarlhe uma pedra”.
No entanto, não será Eugênio ou Fausto que condenarão Margarida e Gretchen,
uma vez que Eugênio enlouquece com a morte de Margarida e Fausto se desespera pelo
destino terrível de Gretchen:
FAUSTO: Na desventura, em desespero! Miseravelmente errante sobre a
terra e finalmente prisioneira! Encarcerada como criminosa, entregue a
sofrimentos cruéis, a meiga, infausta criatura! Até este ponto! – e mo
ocultaste tu, traiçoeiro, infame Gênio – Pois sim, queda-te ali! Resolve em
fúria os olhos demoníacos dentro da fronte! Provoca-me com teu aspecto
odioso! Encarcerada! Em infortúnio irremediável! Entregue a gênios maus e
à humanidade justiceira e impiedosa! - E a mim, no entanto, embalas com
insultas diversões, dela me ocultas o crescente desespero e a entregas,
indefesa, à perdição! (GOETHE, 1981, p.194).
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É a igreja e a sociedade que as entregam a um destino cruel e irremediável, como
a típica lição de moral, presente nos contos de fadas tradicionais.
Desse prisma, chama-se a atenção para o fato de que a figuração cristã das obras
oscila entre um Deus castigador, semelhante à fúria dos titãs, que severamente pune a
mulher seduzida, que “mordeu a maçã proibida”, “abrira a caixa de Pandora” ou
“cortara os cabelos de Sansão”; e outro que, apesar do pecado cometido, a perdoa e a
salva. Sobre a crítica à salvação, ou não, da mulher seduzida, comenta Silva (1984), em
Fausto na obra Europeia, obra organizada por João Barrento:
Todavia, apesar desse milagre de amor inebriante, Fausto toma o partido da
ingenuidade e da paixão da jovem que não consegue resistir à adulação
atrevida de um senhor fidalgo e bem mais velho do que ela, para se ver
envolvido numa trama que nunca desejaria (Fausto é responsável pelas
mortes da mãe, do irmão e até do filho de Margarida e pelo abandono desta
ao seu terrível destino). Sabemos que Goethe queria, através do amor, da
culpa e do suplício de Margarida, combater a moral austera e os
preconceitos rígidos de uma burguesia atrasada, moralista e intolerante, que
castigava com impiedade a mulher seduzida, ao ponto de a levar ao
infanticídio (SILVA, 1984, p. 74-75 - grifo nosso).
Portanto, Goethe realiza contundente crítica à burguesia, à igreja e à sociedade,
que denegava à mulher seduzida uma segunda chance, pois sua queda, seu fracasso,
deveria suscitar o desprezo, a morte.
Semelhante crítica é realizada por Bernardo Guimarães contra a burguesia e o
clérigo. Margarida tem como fim a solidão e a morte, porque foi vítima da opressão
social, e da severa moral propagada pelo clérigo. A esta não foi concebida salvação. Ao
contrário, ela se tornou símbolo do mau, da tentação do diabo e do pecado original.
A desonra é experimentada por ambas as personagens analisadas, pois são
julgadas como mulheres indecentes que se entregaram aos desejos carnais e se
expuseram às tentações do prazer. O sofrimento de Gretchen e de Margarida é a lição
que os dogmas da igreja e da sociedade anunciam àquelas que ousam afrontar suas
regras.
Além disso, Gretchen e Margarida se constituem como metáfora da mulher que,
sabendo-se condenada, desde a infância, a depender e servir ao homem, prefere servir a
Deus – que, ressalta-se, segundo a cultura judaico cristã, não deixa de ser um Homem.
E, paradoxalmente, essa sua escravidão é transfigurada como liberdade. BEAUVOIR
afirma:
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Encerrada na esfera do relativo, destinada ao macho desde a infância,
habituada a ver nele um soberano a quem não lhe é dado igualar-se, a mulher
que não sufocou sua reivindicação de ser humano sonhará em ultrapassar-se
para um desses seres superiores, em unir-se, confundir-se com o sujeito
soberano. Não há para ela outra saída senão perder-se de corpo e alma em
quem lhe designam como o absoluto, o essencial. Como de qualquer maneira
se acha condenada à dependência, a obedecer a tiranos – pais, marido,
protetor – prefere servir um Deus; escolhe querer tão ardosamente sua
escravidão que esta se apresentará a ela como a expressão de sua liberdade;
esforçar-se-á por superar sua situação de objeto inessencial assumindo-a
radicalmente; através de sua carne, de seus sentimentos, de suas condutas
exaltará soberanamente o amado, pô-lo-á como a realidade e o valor
supremos; aniquilar-se-á diante dele. O amor para ela torna-se uma religião
(BEAUVOIR, 1980, p. 412).
A citação se exemplifica ora com Margarida que, no embate com a sociedade,
renuncia ao caminho da prostituição, e permanece temente a Deus até seus últimos dias,
ora com Gretchen, que se entrega à fé. Ou seja, a escravidão ao homem transfigura-se
em obediência a Deus.
Considerações finais
Este trabalho mostrou a possibilidade de comparar literaturas tão distintas e,
paradoxalmente, perceber a semelhança entre a trajetória das personagens Gretchen e
Margarida, que se distinguem, no entanto, pelo final diverso: a morte de Margarida e a
escravidão transfigurada como liberdade de Gretchen, desdobramento este que se
conecta, novamente, no desaguar final de cada obra: a crítica à moral cristã e burguesa,
que condena à morte a mulher seduzida.
Assim, a imagem de Gretchen e de Margarida oscila entre a concepção de
inferioridade da mulher e sua necessidade por orientação masculina, e a constante
reprodução de Eva pecadora, que tem o poder de seduzir e arruinar o homem. Centrada
numa mentalidade puritana, sobressai a visão negativa do sexo, e a ênfase na salvação
da alma, de modo que pecar contra a castidade implica ser julgado ao inferno. A mulher,
desta perspectiva, deve manter uma vida espiritual de pureza, renunciando ao prazer
sexual, que deve ser restrito à reprodução humana. Ou seja, o corpo é pensado como
lugar do pecado original.
Todavia, ninguém nasce mulher, diz Beauvoir (1980, p. 9), mas torna-se mulher:
“nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana
assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto [...].
Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro”. Nesse
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sentido, como já destacado, a morte de Margarida representa e, duplamente, critica o
poder centralizado e dominante da sociedade burguesa e do clérigo. Com a personagem
Gretchen, tem-se a mesma crítica, no entanto, ela se dá por meio do perdão e da
salvação da mulher pecadora.
É a essência humana, contraditória, que transcende as gerações, que foge às
palavras, aos conceitos e às convenções.
Referências bibliográficas
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OS PREFÁCIOS DOS ROMANCES DE JOÃO MARQUES DE
CARVALHO EM FOLHETINS BELENENSES OITOCENTISTAS
THE PREFACES OF JOÃO MARQUES DE CARVALHO IN
SERIAL NOVELS FROM BELEM IN NINETEENTH-CENTURY
Alan Victor Flor da Silva – PG-UFPA
Germana Maria Araújo Sales- UFPA
RESUMO: João Marques de Carvalho nasceu no dia 6 de novembro de 1866, em
Belém, no estado do Pará, e morreu no dia 11 de abril de 1910, em Nice, na França, aos
43 anos. Durante sua vida, foi diplomata, político, jornalista e escritor. Atuou não
apenas como colaborador de jornais que fizeram parte da constituição da história da
imprensa paraense, como Diário de Belém, A Província do Pará e A República, como
também ajudou a fundar jornais de pequeno porte e vida efêmera, como A Arena e
Comércio do Pará. Nessas folhas periódicas, deixou grande parte de sua produção
ficcional, como poemas, contos e romances. A partir dos prefácios dos romances em
folhetim A leviana: história de um coração (1885) e O Pagé (1887), publicados,
respectivamente, nos jornais A Província do Pará e A República, objetivamos, com este
trabalho, traçar o perfil do leitor idealizado por Marques de Carvalho e a construção que
o autor faz de si mesmo em relação a seu papel de escritor nos prólogos dessas
narrativas.
Palavras-chave: Marques de Carvalho; prefácios; público-leitor; folhetim; jornais.
ABSTRACT: João Marques de Carvalho was born on November 6th, 1866, in Belém,
Pará State, and died on April 11th, 1910, in Nice, France, at the age of 43. During his
lifetime, he worked as a diplomat, politician, journalist and writer. He served not only
as a contributor to the newspapers that were part of the history constitution of Pará
press, such as Diário de Belém (Belém Daily News), A Provincia do Pará (Pará
Province), and A República (Republic), but also helped to found small newspapers
whose lifetime was very short, such as A Arena (Arena) and Comércio do Pará (Pará
Trade). In such newspapers, he published most of his fictional productions, such as
poems, short stories and novels. In the present work, from the prefaces of the serialized
novels A leviana: história de um coração (The flighty: story of a heart [1885]) and O
Pagé (The Healer [1887]), which were published respectively in A Província do Pará
and A República, we aim to draw the profile of the reader idealized by Marques de
Carvalho and the construction that the author makes of himself towards his role as a
writer in the prologues of these narratives.
Keywords: Marques de Carvalho; prefaces; the reader; serials; newspapers.
1. Para início de conversa...
Os prefácios, quando escritos pelos próprios romancistas, funcionam como um
espaço reservado ao diálogo entre autores e leitores. Nesse texto introdutório ao
romance, os escritores, em tom de conversa, expõem suas opiniões, suas confissões,
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suas queixas e seus pensamentos aos possíveis leitores de sua obra, justamente com a
finalidade de envolvê-los e seduzi-los.
É por essa razão que os prefácios nos permitem compreender qual seria o leitor
pretendido ou idealizado pelo romancista, quais seriam as estratégias empreendidas pelo
escritor para atrair o público-leitor e quais eram as discussões empreendidas em torno
do próprio gênero romance ou do movimento literário em vigor.
No Brasil, algumas pesquisas que tomam os prefácios escritos pelos próprios
romancistas como objeto de estudo já foram desenvolvidas. No livro Formação do
romance inglês: ensaios teóricos (2007), Sandra Vasconcelos reuniu os prólogos de
romances ingleses do século XVIII para discutir as definições e as características do
romance moderno, a figura do leitor e o papel do romancista na Inglaterra setecentista.
Na Tese de doutoramento Palavra e sedução: uma leitura dos prefácios oitocentistas
(2003), Germana Sales, por sua vez, compilou os prefácios de romances brasileiros
durante o Romantismo, especificamente desde 1826 até 1881, com a finalidade de
analisar a imagem que o romancista constrói do leitor, do gênero romance e de si
mesmo.
Inspirado nessas pesquisas, este trabalho pretende considerar apenas os
prefácios dos romances de Marques de Carvalho publicados na coluna folhetim dos
jornais belenenses oitocentistas.19 Porém, antes de avaliar os prólogos propostos para
este estudo, são necessárias algumas informações biográficas a respeito do romancista
paraense para situar o leitor.
Marques de Carvalho dedicou grande parte de sua vida ao jornalismo e
colaborou tanto para jornais que fizeram parte da história da imprensa periódica
paraense, como Diário de Belém, A Província do Pará e A República, quanto para
jornais de pequeno porte e vida efêmera, como A Arena e Comércio do Pará. Assim, o
romancista aliou sua carreira jornalística à de escritor e utilizou-se de um espaço
específico dos jornais oitocentistas, muito usado por escritores estrangeiros e nacionais
para divulgação de parte de sua produção ficcional. Este espaço era a coluna Folhetim20.
19
Esses periódicos encontram-se acessíveis ao público em rolos de microfilme, disponíveis no Setor de
Microfilmagem da Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves (FCPTN), localizada em Belém, capital do
estado do Pará.
20
A coluna folhetim foi uma seção específica da imprensa periódica de quase todo século XIX e do início
do século XX, passando por um período de ascensão, de auge, de declínio e de desaparecimento.
Originária da imprensa jornalística francesa oitocentista, essa coluna tinha uma peculiaridade em relação
às outras: localizava-se precisamente no rodapé das primeiras páginas dos jornais, sendo separada das
demais por uma linha horizontal. Essa coluna era dedicada especialmente à publicação de diversos
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Nessa seção do jornal A Província do Pará, por exemplo, Marques de
Carvalho publicou quatro textos em prosa de ficção no ano de 1885, como o romance
A leviana: história de um coração 21 e os contos “A Cereja”22, “A comédia do amor”23
e “Que bom marido!..”24. No rodapé do jornal A República, divulgou, em 1887, o
romance O Pagé25.
Na coluna Parte Literária do jornal Diário de Belém, ocupando quase
totalmente a primeira página, o escritor lançou, em 1889, o conto “O preço das pazes”26.
No periódico literário A Arena, destinado apenas à publicação de textos assinados
apenas por autores paraenses, publicou, em 1887, os contos “Ao soprar da vela”27,
“História incongruente”28 e “A medalha do soldado”29.
Desses textos ficcionais, apenas os romances em folhetim – A leviana: história
de um coração e O Pagé – serão considerados para avaliação, pois são os únicos textos
em prosa de ficção que apresentam prefácios. Sobre esses romances, é importante saber
que, no dia 25 de março de 1885, Marques de Carvalho divulgou na coluna Folhetim do
jornal A Província do Pará, em trinta e oito fascículos, o romance A leviana: história de
um coração. Após sua trigésima oitava publicação, no dia 4 de agosto de 1885, a
narrativa, sem nenhum aviso prévio, foi inesperadamente suspensa, embora seu enredo
ainda não tivesse chegado ao fim. Do mesmo modo, no dia 18 de janeiro de 1887, o
sortimentos de textos considerados frívolos: artigos críticos; crônicas; comentários sobre acontecimentos
mundanos; piadas; receitas de beleza e de culinária; boletins de moda; resenhas de teatro, de literatura e
de artes plásticas, além de outros gêneros relacionados ao entretenimento. Interessados no sucesso que a
coluna fazia naquela época entre o público-leitor francês, Émile de Girardin, proprietário do jornal
francês La Presse, e seu ex-sócio e pirateador Dutacq, proprietário do jornal Le Siècle, lançaram pela
primeira vez nesse rodapé ficções em fatias seriadas, principalmente os romances, os quais, mais tarde,
ficaram conhecidos no Brasil pelo nome romance-folhetim. O resultado foi um grande sucesso. A fórmula
“continua amanhã” ou “continua no próximo número”, que a ficção em série proporcionava ao folhetim,
alimentava paulatinamente o apetite e a curiosidade do leitor diário do jornal e, obviamente, como
resposta, fazia aumentar a procura pelo gênero, proporcionando-lhe maior tiragem e, consequentemente,
barateando seus custos. O reinado do romance-folhetim estendeu-se na França até o começo do século
XX. Vários escritores e obras levaram o público ao delírio da expectativa e, às vezes, ao exagero da
comoção. Em razão do sucesso que fazia na França, o novo gênero rompeu os limites geográficos de sua
produção e conquistou adeptos, plagiadores, tradutores e fiéis leitores no mundo inteiro (Cf. MEYER,
1996).
21
Esse romance foi publicado entre os dias 25 de março e 4 de agosto de 1885, em trinta e oito fascículos.
22
Esse conto foi publicado entre os dias 15 e 23 de agosto de 1885, em sete fascículos.
23
Esse conto foi publicado entre os dias 6 e 15 de setembro de 1885, em seis fascículos.
24
Esse conto foi publicado no dia 25 de dezembro de 1885, em um único fascículo.
25
Esse romance foi publicado entre os dias 18 de janeiro e 20 de fevereiro de 1887, em 23 fascículos.
26
Esse conto foi publicado no dia 2 de fevereiro de 1889, em único fascículo.
27
Esse conto foi publicado nos dias 17 de abril e 1º de maio de 1887, em dois fascículos.
28
Esse conto foi publicado no dia 22 de maio de 1887, em um único fascículo.
29
Esse conto foi publicado no dia 9 de junho de 1887, e sua continuação, anunciada para a semana
seguinte, não foi encontrada.
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autor paraense lançou na coluna Folhetim do jornal A República o romance naturalista
O Pagé. No dia 20 de fevereiro de 1887, após sua vigésima terceira aparição, também
sem nenhuma explicação antecipada, a narrativa foi interrompida.
É por essa e outras razões que pretendemos suscitar algumas questões e tentar
respondê-las: a qual categoria de leitores Marques de Carvalho se dirigia nos prefácios
de seus romances? Qual era o perfil ou a construção do leitor idealizado por Marques de
Carvalho nos prólogos de seus romances? Quais são as hipóteses que podem ser
levantadas para inferir por que os romances em folhetim do autor paraense foram
inesperadamente interrompidos?30
2. A leviana: história de um coração: um romance baseado em fatos verídicos?
Desde quando o romance tornou-se o gênero mais bem aceito, como também o
mais lido no mundo ocidental, os romancistas passaram a se utilizar de inúmeros
estratagemas e artimanhas para afiançar a confiança dos leitores e para garantir elogios.
Entre essas estratégias, Márcia Abreu cita uma que causava muitos debates entre os
detratores e os defensores dos romances: a atribuição de veracidade aos enredos:
A narrativa de Altina sintetiza os mais sérios perigos percebidos pelos
detratores do gênero: a confusão entre realidade e ficção, favorecida pelo fato
de os romances insistentemente declararem-se verídicos; a frustração com
relação à própria vida, julgada interessante quando comparada às narrativas;
o desejo de fazer, na vida real, o mesmo que fazem os personagens. No caso
de Altina, o problema dizia respeito às origens e ao pertencimento à nobreza.
Em outros textos, a questão é de natureza amoroso-sexual, o que torna ainda
mais complicado o desejo de transpor para a vida o que se lê nos textos.
(ABREU, 2003, p. 284-285)
***
A dificuldade em distinguir realidade e ficção pode ser creditada à
ingenuidade dos leitores, mas também contribuíram as estratégias
empregadas pelos romancistas para conferir veracidade aos enredos. Até
mesmo as mais fantásticas histórias sobrenaturais podiam ser apresentadas
como extraídas diretamente da realidade, como o fez Daniel Defoe em um
dos prefácios às suas “True Ghost Stories”. (ABREU, 2003, p. 298-299)
30
Considerando-se que os textos introdutórios foram escritos no século XIX seguindo a ortografia
vigente na época, optamos por fazer a atualização ortográfica de todos os excertos que utilizamos neste
artigo para facilitar a compreensão do leitor.
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Atribuir veracidade aos enredos constituiu uma prática muito comum entre os
romancistas nos séculos XVIII e XIX. Assim como Daniel Defoe e diversos outros
romancistas, Marques de Carvalho adotou essa técnica. De forma engenhosa e
perspicaz, no prólogo do romance A leviana: história de um coração, publicado na
coluna folhetim do jornal A Província do Pará, o escritor paraense induz o leitor a
acreditar que a trama dessa narrativa foi baseada em fatos verídicos. Se não fosse pela
presença do vocábulo “Prólogo” antes do texto em si, seria possível acreditar que o
público-leitor pensaria que a história foi iniciada sem preâmbulos, pois os elementos da
narração – enredo, tempo, espaço, foco narrativo e personagens – aparecem logo no
começo, como ilustra o excerto a seguir:
Eram dez horas da noite de 18 de março de 18...
As salas do Café Carneiro regurgitavam de habitues que, ou jogavam bilhar,
ou passeavam pacatamente de um para outro lado, desfilando por junto à
mesa onde eu me achava saboreando o conteúdo de uma chávena de café, em
companhia de um amigo.
Íamo-nos já a retirar, quando se acercou de nós um rapaz bem trajado, –
posto que com algum desalinho, – muito pálido e magro, andando a custo. À
primeira vista conhecia-se logo que estava quase ébrio. (CARVALHO, A
Província do Pará, 25 mar. 1885, p. 2)
Na história narrada no prólogo, Marques de Carvalho é o narrador-personagem
que conta ao leitor como conheceu Carlos de Medeiros. Sentado no Café Carneiro às
dez horas da noite com um amigo que se chamava Mendonça, o autor-narrador tomava
uma xícara de café. Quando os dois iam se levantar para partir, aproxima-se um rapaz
bem vestido, embora em desalinho, muito magro e pálido, além de estar em estado de
ligeira embriaguez. Depois de alguns cumprimentos, Mendonça apresenta a Marques de
Carvalho o jovem mancebo, que despertou logo a simpatia do narrador dessa história.
Além do estado de embriaguez, Carlos encontrava-se muito doente. Crises de
tosse o interrompiam sucessivamente e vinham sempre acompanhas de algumas gotas
de sangue que brilhavam em seus lábios pálidos e manchavam o chão de vermelho vivo.
Não era, porém, apenas o álcool e a doença que o consumiam, pois Carlos também
sofria de uma grande desilusão amorosa.
Depois de muitas insistências, Marques de Carvalho e Mendonça conseguiram
convencer Carlos a se retirar do estabelecimento. Acompanharam-no até a casa onde o
jovem desiludido residia. Quando abriram a porta, um criado logo apareceu para ajudálos a despir e a deitar o patrão embriagado, doente e desiludido. Quando se dispuseram
a sair, Carlos chamou Marques de Carvalho para lhe fazer um singelo pedido:
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– Sr. Carvalho; se quer ter assunto para novecentas ou mil tiras de papel,
venha falar-me... amanhã à tarde; contar-lhe-ei a minha vida... a vida do
meu... coração... um ver... da... deiro.... ro... mance... Ah! Ah! Ah!
E riu-se de novo com aquele gargalhar fatídico, que nos resoava até ao mais
íntimo da alma...................................................................................................
...........................................................................................................................
Ao chegar à rua, eu e Mendonça chorávamos...
(Continua)
(CARVALHO, A Província do Pará, 25 mar. 1885, p. 2 e 3.)
Percebemos que Marques de Carvalho, já no prólogo de seu romance, utilizouse de uma fórmula que proporcionava sucesso ao romance-folhetim. As expressões
“continua amanhã” ou “continua no próximo número” ao fim de cada fascículo eram as
responsáveis por causar o desejo do leitor em acompanhar a continuação da narrativa,
sobretudo quando a história era, estrategicamente, interrompida no auge da expectativa.
É muito provável que os leitores tenham sentido a curiosidade de conhecer a vida de
Carlos, principalmente a história de amor que lhe causou inúmeras dores e sucessivas
decepções.
No fascículo seguinte, publicado em 27 de março de 1885, a história recomeça.
Naquela noite, Marques de Carvalho não conseguiu dormir direito, pois passara a noite
recordando a fisionomia pálida e simpática de Carlos de Medeiros e desejando conhecer
a história desse jovem rapaz. No dia seguinte, às cinco horas da tarde, totalmente
ansioso, dirigiu-se à casa de Carlos, para conhecer as revelações que tanto lhe foram
prometidas. Ao ser recebido afavelmente por seu novo amigo, o escritor paraense
reparou que o mesmo jovem da noite anterior, naquele momento, estava com as faces
mais coradas e com as linhas do semblante mais tranquilas.
Os dois conversaram sobre composições literárias, sobre o desenvolvimento da
literatura na região amazônica e no território brasileiro, sobre a pouca importância
destinada aos escritores locais, sobre a necessidade de uma academia de letras no Pará e
de uma universidade no Rio de Janeiro, entre outros assuntos. Foi apenas ao final da
conversa que Carlos começou a falar de sua própria vida. A longa e pungente narração
de sua história levou ambos às lágrimas. Às dez horas da noite, os dois amigos
despediram-se. Carlos agradeceu a visita de Marques de Carvalho e fez-lhe alguns
pedidos.
– Venha ver-me de tempos a tempos. Muito lhe agradecerei a visita. Vivo tão
abandonado por todos... Quanto ao romance da minha história, escreva-o
depois que eu morrer, porém que seja restritamente modelado pelas
informações que acabei de dar-lhe. Não altere nem acrescente nada, a não ser
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um ou outro episódio secundário, que se faça preciso para a boa disposição
do entrecho, e os nomes dos principais personagens, que devem ser
crismados pelo senhor, a fim de evitar dissabores futuros... Ouça! –
continuou com as lágrimas a bailarem nos olhos – verbere bem o
procedimento de Georgina, para exemplo das moças que se acharem no caso
dela... Coitada! Foi mais leviana e infeliz do que criminosa... (CARVALHO,
A Província do Pará, 27 mar. 1885, p. 2)
Percebemos que Marques de Carvalho, no prólogo de seu romance, apresenta
uma pequena narrativa para introduzir uma maior. Na história narrada no prefácio, o
autor paraense explica como chegou a conhecer Carlos de Medeiros e sua mal sucedida
história de amor com Georgina, objeto de inspiração para seu romance publicado no
jornal A Província do Pará. É provável que Marques de Carvalho tenha elaborado essa
curta história com o intuito de atribuir à sua produção ficcional um caráter de verdade.
De acordo com Ian Watt, imprimir à ficção traços da realidade era uma
característica do romance moderno, pois essa nova forma literária tinha como critério
fundamental a fidelidade à experiência individual. Nesse novo estilo, o gênero
romanesco passa a destinar uma atenção maior à nomeação das personagens, à
demarcação do tempo e do espaço e à representação da vida doméstica, com a qual os
leitores se identificavam, pois a história das personagens era muito semelhante às suas.
Essas características, assim como estabelece Ian Watt, estão de acordo com o realismo
formal, o qual permite uma imitação mais imediata da experiência individual situada em
um contexto temporal e espacial (Cf. WATT, 1990). É por essa razão que o romance
exigia menos do público que os demais gêneros literários.
Ao final do prólogo, Marques de Carvalho dirige-se ao leitor, a quem depois de
muitos preâmbulos sugere que o acompanhe para conhecer a história narrada por
Carlos, como podemos visualizar no excerto a seguir.
Dois meses depois, por uma tarde chuvosa e tétrica, Carlos de Medeiros
expirava murmurando um nome:
– Georgina!...
............................................................................................................................
..........................................................................................................................
Agora, se o leitor quiser saber a lutuosa história que me contou Carlos, o
ébrio, – assim lhe chamavam, – digne-se acompanhar-me à primeira parte
deste romance.
FIM DO PRÓLOGO
(CARVALHO, A Província do Pará, 27 mar. 1885, p. 2)
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Ao término do prefácio, compreendemos que Marques de Carvalho, assim
como muitos autores dos séculos XVIII e XIX, renegou a autoria de seu romance ao
apresentar-se apenas como narrador da história vivida por Carlos. Para causar esse
efeito, o escritor paraense cria uma pequena narrativa no prólogo que conduz o leitor a
acreditar na legitimidade dos fatos narrados, pois não há nenhum indício no breve
enredo que lhe despertasse a desconfiança. Como consta no prefácio, Marques de
Carvalho prometeu ao amigo enfermo que não alteraria nem acrescentaria nada que
fugisse à história que lhe havia sido contada. Quem deixaria de acreditar numa
promessa feita a um amigo que se encontrava próximo à morte? Quem não confiaria em
uma história tão realista como a narrada por Marques de Carvalho?
Percebemos que esse leitor ideal a quem Marques de Carvalho se destina e que
acredita na realidade impressa à ficção, é um indivíduo curioso, alguém que seja capaz
de acompanhá-lo a cada fascículo a fim de descobrir qual foi o desfecho que levou
Carlos de Medeiros à desilusão amorosa. Compreendemos, portanto, que o prólogo de
caráter narrativo foi uma estratégia elaborada pelo escritor paraense para envolver e
despertar a curiosidade de seus leitores.
Ao chegar à leitura do romance, o leitor intuirá que o foco que no prólogo recai
sobre Carlos passará para Georgina. A partir do terceiro fascículo, a narrativa
apresentará principalmente os dramas da personagem feminina desenganada e perdida
entre dois amores: Carlos de Medeiros e Pedro da Silva.
Como já foi aludido anteriormente, o romance em folhetim foi suspenso
abruptamente, sem nenhuma explicação prévia. No entanto, em razão da existência do
prólogo, é possível imaginar que o desfecho da narrativa não foi feliz para as
personagens. Além da doença que o levou à morte, Carlos faleceu completamente
desiludido pelo amor. Georgina, por seu turno, terminou como uma vítima de
artimanhas de sujeitos de má índole e de sua própria leviandade.
No prólogo do romance do jornal A Província do Pará, Marques de Carvalho,
à maneira de tantos outros romancistas, utilizou-se de uma tática comumente empregada
no século XIX: negar a autoria da própria obra. No entanto, a breve narrativa no prólogo
– dividida em dois fascículos – revela uma engenhosa estratégia para induzir o leitor a
acreditar na veracidade do enredo, seduzindo-o e envolvendo-o.
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3. Um romance naturalista em folhetim: pela pena de um paraense
Em 18 de janeiro de 1887, o jornal A República apresenta uma nota a respeito
da publicação do romance naturalista de Marques de Carvalho, divulgado no mesmo dia
na página seguinte, precisamente na coluna Folhetim. Nessa nota, a figura do autor
paraense é enaltecida, sendo alvo de elogios, como “distinto acadêmico” e “ilustre
comprovinciano”:
O nosso folhetim
Começamos hoje a publicar um romance naturalista original do distinto
acadêmico paraense Marques de Carvalho.
Chamamos a atenção dos leitores de A República para essa obra do nosso
ilustre comprovinciano. (A República, Belém, 18 jan. 1887, p. 2)
Ao virar a página, o leitor logo se depara com o prefácio do romance em
folhetim O Pagé, assinado pelo próprio Marques de Carvalho. Além disso, chamamos a
atenção para a denominação “romance naturalista”, pois não era muito comum, no
rodapé das folhas periódicas, a publicação de obras que fugissem às características das
narrativas melodramáticas e às temáticas corriqueiras dos romances-folhetins. É por
essa razão que, segundo Marlyse Meyer, se todos os romances no século XIX, em
média, passam a ser publicados na coluna folhetim, nem todos podem ser considerados
romances-folhetins (Cf. MEYER, 1996). Essa afirmação significa que a divulgação de
romances no rodapé das primeiras páginas dos jornais oitocentistas não é critério
suficiente para que uma narrativa ficcional seja rotulada como folhetinesca, pois
características internas ao texto também devem ser levadas em consideração, como a
presença do melodrama, a baixa densidade psicológica das personagens e as temáticas
banais: os amores proibidos, as paternalidades trocadas, os filhos bastardos e as
heranças usurpadas.
No prefácio dessa narrativa, Marques de Carvalho afirma que cortou seus laços
com a escola romântica para se filiar ao Naturalismo, movimento em ascensão nas duas
últimas décadas do século XIX. Para o autor paraense, os romances românticos, já no
final do período oitocentista, apresentavam abusos e prolixidades, pois ofereciam
temáticas muito recorrentes e descrições extenuantes, repletas de adjetivos. É por essa
razão que Marques de Carvalho inclina-se pela nova escola literária que entrava em
voga – o Naturalismo. No texto introdutório, fica evidente que o escritor vangloria-se
por acreditar que escreveu uma obra inovadora, que foge às fórmulas e às receitas,
muito utilizadas por romancistas românticos.
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É O Pagé o primeiro trabalho de seu gênero escrito por um paraense: cabeme essa glória, tenho a máxima honra em reclamá-la. Desejei fazer um
romance que fosse simplesmente um estudo físico-psicológico desse
personagem astucioso e hipócrita que é o terror dos espíritos fanáticos do
povo de minha província; para isso, alienei-me da velha escola romântica,
desprezei-lhe os abusos e prolixidades, para deixar-me levar pela grande
orientação literária da nossa época. (CARVALHO, A República, 18 jan.
1887, p. 1)
Observamos ainda que Marques de Carvalho se enaltece ao se considerar o
pioneiro entre os escritores paraenses a escrever uma obra de cunho naturalista. O autor
de textos em prosa de ficção em folhetim, no entanto, parece ignorar ou desconsiderar a
existência de seu conterrâneo Inglês de Sousa, que, antes do lançamento da obra O Pagé
em 1887, já havia publicado três romances inseridos na mesma estética literária: O
cacaulista (1876), História de um pescador (1877) e O coronel Sangrado (1877).31
Portanto, considerando-se as datas de publicação das obras, Marques de
Carvalho equivocou-se em sua afirmação ao se esquecer de seu conterrâneo ou tentou,
intencionalmente, diminuir – ou mesmo apagar! – a importância de Inglês de Sousa no
cenário da produção literária no estado Pará, para que garantisse unicamente para si o
prestígio de ser o primeiro paraense a escrever uma obra de cunho naturalista.
Por filiar-se ao Naturalismo, Marques de Carvalho, no prefácio de seu
romance, projeta uma imagem acerca de seu público-leitor e elabora uma ideia a
respeito da recepção de sua obra:
À força de muito labutar consegui levantar uma obra sobre documentos
humanos autênticos e notas tomadas longa e pacientemente em diversos
lugares e épocas.
Bem sei que este livro causará escândalo na família paraense, pela rudeza de
suas cenas copiadas da vida real com o maior e mais consciencioso
escrúpulo. Tenho quase que uma certeza dos ataques violentos que me vão
ser dirigidos pelos conservadores românticos, dos quais a resistência em
permanecerem na esquecida escola é deveras contristadora. Mas eu não me
acovardo, não volto atrás: espero que a justiça me seja feita um dia, quando a
evolução, beneficamente fatal, houver curvado todas as cabeças à moderna
fórmula literária. Aqueles que pateiam hoje o realismo aplaudi-lo-ão
amanhã, logo que o tenham compreendido. (CARVALHO, A República, 18
jan. 1887, p. 1)
31
Lúcia Miguel Pereira afirma que essas três obras de Inglês de Sousa não se comparam às de Aluísio de
Azevedo, como O mulato (1881), Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). A autora acredita que,
talvez, seja por essa razão que o título de precursor do movimento naturalista no Brasil tenha sido
atribuído ao escritor ludovicense, que publicou O mulato (1881) somente quatro anos após a obra O
coronel Sangrado (Cf. PEREIRA, 1988). Entretanto, não se pode negar que, independente da técnica ou
da densidade literária das obras, Inglês de Sousa foi o precursor do Naturalismo não apenas na Amazônia,
como igualmente no Brasil.
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Fica claro nesse prefácio que Marques de Carvalho parece esperar julgamentos
severos destinados a seu romance por parte de seus leitores mais conservadores,
afeiçoados aos romances românticos e aos romances-folhetins, gêneros romanescos com
temáticas melodramáticas que atraiam o interesse do público-leitor no século XIX, não
apenas no Brasil como também nos países europeus. É por essa razão que Marques de
Carvalho critica seus leitores imaginários, pois acredita que a população paraense não
seria capaz de compreender seu projeto literário.
No entanto, apesar de seu discurso ríspido e ofensivo, é possível também que
Marques de Carvalho tenha se utilizado do espaço do prefácio para fazer uma espécie de
propaganda de seu romance, qualificando-o como proibido. Robert Darnton, em seus
estudos sobre os livros licenciosos na França pré-revolucionária, afirma que, no século
XVIII, bastava que uma obra fosse censurada para que se tornasse um verdadeiro bestseller (Cf. DARNTON, 1998). Seguindo o mesmo raciocínio, é provável que o autor
paraense, com a intenção de chamar a atenção dos leitores a partir de uma forma de
publicidade às avessas, tenha escrito um prólogo ressaltando as cenas possivelmente
inescrupulosas que constariam em seu romance e atribuindo a ele, consequentemente,
uma posição de obra proibida. Assim, é plausível que os leitores curiosos, a fim de
conferir o que haveria de tão audacioso e chocante para que o romance naturalista de
Marques de Carvalho seja alvo de críticas severas, lê-lo-iam fascículo a fascículo.
Seja por acreditar que seu público não compreenderia satisfatoriamente sua
obra, seja por utilizar o espaço do prefácio para fazer uma espécie de publicidade às
avessas, todas essas hipóteses dependem de uma imagem que Marques de Carvalho
formula de si e de seu leitor.
Sobre o leitor idealizado pelos escritores nos prefácios de suas obras, é possível
identificar quatro categorias para classificar o grupo adepto à leitura de romances,
considerando a maneira como os romancistas dirigem-se ao público-leitor ao qual
pretendem atingir. A primeira categoria é destinada às leitoras, frequentemente
mencionadas nos textos introdutórios, pois o desenvolvimento da instrução feminina no
Brasil do século XIX propiciou a inclusão da figura feminina no grupo de leitores de
romances. A segunda classificação está relacionada ao leitor benévolo e benigno, aquele
de quem o autor pode obter a solidariedade na leitura de sua obra. Essa classe de
público, supostamente, acolhe e recebe a obra do romancista com benevolência e
complacência, sem fazer críticas severas. A terceira categoria é dirigida ao leitor erudito
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e crítico, a quem o autor escreve algo que julga que lhes será útil como informação e
instrução. A essa categoria, enquadra-se, da mesma forma, o leitor conhecedor de outros
idiomas, capaz de ler epígrafes escritas em língua estrangeira e de reconhecer as
referências a obras clássicas ou a personagens históricas. Na última categoria, há os
leitores que leem romances em busca de entretenimento e distração. Nesse grupo, existe
o leitor ocupado e o leitor ocioso. A este as obras são destinadas com a única função de
entreter e de passar o tempo. Aquele, por sua vez, dedica algumas horas de seu dia à
leitura de romances, pois não pode perder muito tempo com obras consideradas frívolas
(SALES, 2003).
No prefácio do romance O Pagé, o leitor a quem Marques de Carvalho destina
sua obra não se enquadra em nenhuma das categorias aqui elencadas, pois o autor
paraense não se dirige ao público feminino, não acredita que os leitores seriam
benevolentes com a recepção de sua obra nem que seriam capazes de compreendê-la
satisfatoriamente, bem como seu romance não seria adequado para as horas de lazer.
Consideramos que é possível, então, definir uma nova categoria de leitor diante
desse prefácio, pois o público ao qual se dirige o romancista em seu prólogo pode ser
considerado ingênuo, conservador e, sobretudo, preconceituoso. Essa conclusão é
plausível porque o romancista, pelo menos aparentemente, acredita que os leitores de
sua obra não conseguiriam compreender a proposta de seu trabalho fundamentado na
estética naturalista, uma vez que, assim como define o próprio escritor paraense, seu
romance apresentaria cenas agressivas e repugnantes, copiadas da vida real com o maior
e mais consciencioso escrúpulo. É provável, portanto, que o projeto romanesco de
Marques de Carvalho não tenha conseguido, de fato, a adesão nem a preferência dos
leitores acostumados com romances da escola romântica, principalmente em razão do
conservadorismo e do preconceito.
Sabemos ainda que era muito comum, no século XIX, os prosadores afirmarem
em seus prefácios que seus romances foram baseados em fatos verídicos. Em geral, essa
era uma tática empreendida pelos romancistas para aproximar a ficção da realidade.
Dessa maneira, os leitores seriam conduzidos a acreditar na veracidade dos
acontecimentos narrados e, consequentemente, poderiam se identificar com a descrição
de alguma personagem ou com alguma situação que já vivenciaram (SALES, 2003).
Assim como os escritores de meados do século XIX, Marques de Carvalho se
utilizou da mesma estratégia, pois afirmou que seu romance apresenta cenas
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reproduzidas da vida real. No entanto, será que o autor paraense fez uso dessa tática
com a mesma finalidade ambicionada pelos romancistas românticos?
Os escritores naturalistas, influenciados pela observação científica e pelas
novas teorias cientificistas, interpretavam o comportamento humano aproximando-o de
sua natureza animal, de forma a procurar demonstrar a influência de tal natureza sobre
suas personagens, explorando temas como a sexualidade, o incesto, o desvio de conduta
e o desequilíbrio emocional, envolvendo personagens dominadas por seus instintos e
desejos. Então, de acordo com esse princípio, um autor naturalista não se preocupava
com a descrição psicológica porque não era seu objetivo a revelação do caráter humano.
Sua principal finalidade era encarar o homem, levando em consideração sua dimensão
biológica e patológica, seu envolvimento com um destino que não consegue mudar e
sua determinação pelo meio em que vive. É nesse sentido que Émile Zola afirma que o
romancista é um observador e um experimentador:
O romancista é feito de um observador e de um experimentador. Nele, o
observador apresenta os fatos tal qual os observou, define o ponto de partida,
estabelece o terreno sólido no qual as personagens vão andar e os fenômenos
a se desenvolver. Depois, o experimentador surge e instituí a experiência,
quer dizer, faz as personagens evoluírem numa história particular, para
mostrar que a sucessão dos fatos será tal qual a exige o determinismo dos
fenômenos estudados. [...] O romancista sai em busca de uma verdade.
(ZOLA, 1982, p. 31)
Para ser, portanto, condizente aos princípios naturalistas, Marques de Carvalho
propôs-se a escrever uma obra de ficção baseada em fatos reais, pois a verossimilhança
nos romances vinculados a essa estética literária não é uma categoria relacionada à
coerência interna da obra, cujo enredo não precisa necessariamente ser uma cópia fiel à
realidade. Para o Naturalismo, no entanto, a verossimilhança manifesta-se no plano
externo, uma vez que a coerência da obra revela-se na transposição dos fatos reais,
assim como são observados, para o enredo do romance. Talvez seja por esse motivo que
Marques de Carvalho tenha afirmado que as cenas de seu livro foram copiadas da vida
real com o maior e mais consciente escrúpulo, justamente com o intuito de defender a
estética naturalista e de mostrar-se como um verdadeiro conhecedor dos princípios da
nova escola literária.
Considerando-se a hipótese de que os romances naturalistas não tenham sido, a
princípio, bem-aceitos pelo público-leitor, uma vez que estes não estavam acostumados
a temáticas extravagantes, como a sexualidade, o incesto, o desvio de conduta e o
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desequilíbrio emocional acentuado, ou achavam que o conteúdo dessas obras era um
crime contra os bons costumes, é possível inferir que a interrupção inesperada do
romance O Pagé tenha, talvez, ocorrido porque os leitores, indignados com as cenas
abomináveis que liam na coluna Folhetim, enviaram cartas aos jornais, prática muito
comum à época, solicitando ao editor do jornal a suspensão do romance. É provável
também que, apesar do prefácio mordaz, o romance tenha sido suspenso porque não se
mostrou tão chocante quanto o público-leitor esperava.
Além da representação que construiu acerca de seus leitores, Marques de
Carvalho estabelece uma imagem de si mesmo no prefácio desse romance. Sobre o
papel que os romancistas concebem de si mesmos diante de seu público, Germana Sales
indica algumas categorias de análise para qualificar as múltiplas naturezas de autoria
representadas por meio da voz dos escritores. A autora propõe que há os romancistas
que classificam a escrita como uma prática trabalhosa, que exige tempo, dedicação e
inúmeras revisões para que seja concluída e chegue até as mãos dos leitores. Além dos
escritores laboriosos, há os que se identificam com a figura paterna, pois se posicionam
como verdadeiros pais de suas obras, consideradas como se fossem as filhas de sua
prática de escrita. Uma terceira categoria é destinada aos escritores modestos, cujos
prefácios são repletos de excessos de humildade e de acentuado comedimento, pois
avaliam que suas obras necessitam de consertos, por apresentarem defeitos que
precisariam ser corrigidos. O próximo grupo é dedicado aos prosadores que negam a
autoria da própria obra ficcional, uma vez que se mostram como tradutores ou
compiladores de manuscritos dos quais se apoderaram, como editores de cartas que
supostamente encontraram por acaso ou ainda como contadores de histórias que lhes
foram relatadas por terceiros. Na última categoria, ao contrário dos escritores que se
passam por modestos e humildes, há os que se apresentam como militantes ou como
indivíduos eruditos, instruídos e sábios. Estes introduzem epígrafes em línguas
estrangeiras no início de seus prefácios ou inserem um discurso favorável a seu
romance, proferido por algum crítico consagrado ou por alguma figura importante da
época. Aqueles, por seu turno, promovem discursos em seus prólogos a serviço de
causas sociais, políticas ou literárias.
Embora essas categorias abarquem grande parte dos romancistas brasileiros,
acreditamos que Marques de Carvalho não se adequa em nenhuma. É bem certo que o
escritor paraense poderia ser enquadrado no grupo de romancistas eruditos e sábios,
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pois se demonstra conhecedor dos princípios naturalistas e utiliza como argumento de
autoridade o discurso dos irmãos Goncourt32, como ilustra a citação a seguir:
Num belo romance dos irmãos de Goncourt encontro as linhas seguintes que,
por conterem uma ideia adequada ao assunto e interpretarem o meu
pensamento, vão servir para deste pequeno prefacio:
« Ele (o público) é apaixonado pelas obrinhas brejeiras, pelas memórias de
prostitutas, pelas porcarias eróticas, pelo escândalo que uma estampa ostenta
nas vitrines das livrarias e aquilo que vai ler é severo e puro. Que não espere
a fotografia decotada do Prazer: o estudo que aí vai é a CLINICA DO
AMOR.
............................................................................................................................
.......................
............................................................................................................................
.......................
........................................... « com a sua triste e violenta distração, este livro
foi feito para contrariar-lhe os hábitos e prejudicar-lhe a
higiene ».............................................................................................................
.......................
« Agora, que seja caluniado este livro, pouco lhe importa. Hoje que o
Romance alarga-se e cresce; hoje que começa a ser a grande forma séria,
apaixonada, viva do estudo literário e da inquirição social; hoje que se muda,
pela pesquisa psicológica e pela análise, na Historia moral contemporânea;
hoje que o Romance tomou sobre si os estudos e tarefas da ciência, pode
revindicar as liberdades e franquezas dela. » (CARVALHO, A República, 18
jan. 1887, p. 1)
No entanto, Marques de Carvalho exalta-se de antemão com seus leitores e
demonstra-se como um escritor arrogante, provocador e intransigente, capaz de subjugar
duramente os romancistas românticos e de menosprezar os presumíveis desejos e os
supostos julgamentos do público-leitor, bem como de apagar a existência de seu
conterrâneo Inglês de Sousa como precursor do Naturalismo, não apenas na Amazônia
como também no Brasil.
No prólogo de seu romance, notamos que Marques de Carvalho defende
ferrenhamente o Naturalismo, desconsiderando – antes mesmo de recebê-las! – as
críticas que possivelmente lhe seriam destinadas por seus leitores, os quais,
acostumados com romances românticos e romances-folhetins, talvez não tenham visto
com bons olhos uma obra que se apresentava aos moldes naturalistas, com cenas
supostamente abomináveis e com presumíveis personagens em situações de
desequilíbrio emocional ou psicológico acentuados, temas próprios ao Naturalismo,
movimento literário que Marques de Carvalho adotou, defendeu e compartilhou durante
sua carreira de escritor.
32
Os irmãos Goncourt foram dois escritores naturalistas franceses do século XIX, Edmond de Goncourt e
Jules de Goncourt, que escreveram conjuntamente romances e a obra L’art du dix-huitième siècle (A Arte
no século XVIII).
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3. Referências bibliográficas
ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. Campinas: Mercado de Letras; Associação de
Leitura do Brasil (ALB); São Paulo: FAPESP, 2003.
DARNTON, Robert. Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária. São
Paulo, Companhia das Letras, 1998.
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
PEREIRA, Lúcia Miguel. Prosa de ficção (de 1870 a 1920): história da literatura
brasileira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
SALES, Germana Maria Araújo. Palavra e sedução: uma leitura dos prefácios
oitocentistas (1826-1881). Campinas: UNICAMP, 2003. 387 f. Tese (Doutorado) –
Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP).
VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira. A formação do romance inglês: ensaios
teóricos. São Paulo: Aderaldo & Rothschild: Fapesp, 2007.
ZOLA, Émile. O romance experimental e o Naturalismo no teatro. São Paulo:
Perspectiva, 1982.
WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São
Paulo: Mercado de Letras, 1990.
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