NÚMERO TEMÁTICO “Formação e revisão do cânone” UEMS – UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE CAMPO GRANDE REITOR Fábio Edir dos Santos Costa VICE-REITOR Eleuza Ferreira Lima GERENTE DA UUCG José Carlos Barreto dos Santos COORDENADORES DA REVELL Danglei de Castro Pereira Daniel Abrão Editores do Número Danglei de Castro Pereira Daniel Abrão Ravel Giordano Paz COMITÊ CIENTíFICO Aparecida Arguelho de Souza (UEMS) Antonio Rodrigues Belon (UFMS) Benjamin Abdala Junior (USP) Cilaine Alves (USP) Danglei de Castro Pereira (UEMS) Daniel Abrão (UEMS) Fabio Akcelrud Durão (UNICAMP) Fábio Dobashi Furuzato (UEMS) Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL) Gregório Foganholi Dantas (UFGD) José Batista Sales (UFMS) Lucilo Antonio Rodrigues (UEMS) Milena Magalhães (UNIR) Paulo Custódio de Oliveira (UFGD) Rauer Rodrigues (UFMS) Regina Zilberman (UFRGS) Rogério da Silva Pereira (UFGD) Rosana Nunes Alencar (UNIR) Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS) Sandra A. F. Lopes Ferrari (IFRO) Susanna Busato (UNESP) Susylene Dias Araújo (UEMS) DIAGRAMAÇÃO E FORMATAÇÃO Danglei de Castro Pereira e Ravel Giordano Paz O conteúdo dos artigos e a revisão linguística e ortográfica dos textos são de responsabilidade dos autores. REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO....................................................................................04 DIMENSÕES DA POÉTICA E A DESCANONIZAÇÃO DA VERDADE NA LITERATURA BRASILEIRA João Carlos de Souza Ribeiro (UFAC).......................................................05 A COMPOSIÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO E AS MARGENS INCONSTANTES DA LITERATURA OCIDENTAL Juliana Bezerra de Oliveira Sachinski (PG-UEMS)....................................20 O CÂNONE LITERÁRIO E AS EXPRESSÕES DE MINORIAS: IMPLICAÇÕES E SIGNIFICAÇÕES HISTÓRICAS Lizandro Carlos Calegari (URI-FW/RS).....................................................29 JOSEFINA PLÁ: UM EXPOENTE FEMININO NA LITERATURA HISPANO-AMERICANA Andre Rezende Benatti (PG-UFMS/Capes)................................................49 JOSELY V. BAPTISTA – UM EXEMPLO DE POESIA CONTEMPORÂNEA Adriano R. Smaniotto (PG-UFPR)..............................................................56 UM INCÔMODO ROMANCE DE JOSÉ DO PATROCÍNIO A SER REDESCOBERTO Marcos Teixeira de Souza (PG-IUPERJ).....................................................62 SEDUTORA E SEDUZIDA: UMA LEITURA DO TRÁGICO DESTINO DAS PERSONAGENS GRETCHEN, DA OBRA FAUSTO, E MARGARIDA, DE O SEMINARISTA Elisangela Redel (PG-UNIOEST) Stéfano Paschoal (UNIOEST).....................................................................80 OS PREFÁCIOS DOS ROMANCES DE JOÃO MARQUES DE CARVALHO EM FOLHETINS BELENENSES OITOCENTISTAS Alan Victor Flor da Silva (PG-UFPA) Germana Maria Araújo Sales (UFPA).........................................................99 2 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 APRESENTAÇÃO A REVELL edita seu 5º número, o 2º temático. A proposta que congrega os trabalhos aqui publicados é discutir a formação e revisão do cânone, objeto temático que resulta de atividades desenvolvidas dentro do Programa de Pós-Graduação em Letras da UEMS e nos grupos de pesquisa “Literatura, História e Sociedade” e “Historiografia, Cânone e Ensino”. Esta 5ª edição da REVELL traz contribuições de autores de várias IES do Brasil. Tão polêmica quanto atual, a questão do cânone recebe aqui abordagens diversas, que vão das revisões bibliográficas mais gerais a reivindicações/discussões canonizantes específicas, tratando, por vezes, de obras ou autores poucos conhecidos. Abre a edição um ensaio livre de João Carlos de Souza Ribeiro, que aborda de frente a questão da verdade (e/ou das verdades) como critério de formação do cânone. Em estilo rebuscado, o texto parte de uma reflexão ampla, reportando a Aristóteles, para em seguida discutir os problemas referentes à formação do cânone no Brasil, como a dependência da historiografia e a transplantação cultural; questões cujos efeitos se fazem sentir de formas diversas – e com consequências decisivas – nos diversos períodos de nossa história literária, conduzindo, na visão do autor, à necessidade de uma descanonização programática, centrada não na desqualificação dos cânones instituídos, mas na suprassingularidade dos objetos poéticos. Segue-se o artigo de Juliana Bezerra de Oliveira Sachinski, de visada igualmente ampla: partindo da etimologia da palavra “cânone”, a autora expõe e contrasta as posições sobre o tema de autores fulcrais como Borges, Bloom, Compagnon e Ítalo Calvino. Em seu artigo, Lizandro Carlos Calegari aborda a presença de mulheres, negros e gays como objetos de representação e sujeitos da escrita na literatura brasileira. Abordando narrativas de Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu e Luis Silva, o autor busca demonstrar a imbricação dos processos de seleção canônicos com as posições de poder, problemática que os escritores referidos transporiam para o âmbito da criação literária ao criar espaços de representação transgressivos. 3 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 No artigo seguinte, Andre Benatti debruça-se sobre a escritora paraguaia Josefina Plá e discute os critérios de configuração canônica na literatura hispanoamericana, incluindo aí – em vista do privilégio concedido aos escritores homens no âmbito desse cânone – as questões de gênero. Já Adriano Smaniotto tenta intervir diretamente na composição do cânone brasileiro contemporâneo, reivindicando, implícita mas incisivamente, um lugar no mesmo para a poesia de Josely V. Baptista, marcada por estruturas e procedimentos originais como o “bloco aerado”, cujas finalidades se ligariam diretamente a produções de efeitos no leitor de nosso tempo. Em seguida, Marcos Teixeira de Souza traz à cena um romance de José do Patrocínio, para o qual reivindica, quando menos, um “expressivo valor histórico e literário”, e cujo virtual desconhecimento por críticos e leitores se deveria à incômoda abordagem de temas sociais, sobretudo o mito da democracia racial brasileira. Ele próprio incômodo, o artigo de Souza é uma inquirição direta à formação do estudioso de literatura brasileira, quiçá marcada por uma lacuna a ser preenchida com urgência. No penúltimo artigo, Elisangela Redel e Stéfano Paschoal estudam o diálogo do romance O seminarista de Bernardo Guimarães com o Fausto de Goethe, por meio de suas personagens Margarida e Gretchen. Novamente se coloca, aí, a questão da representação do feminino, mas trata-se também, sem dúvida, de afirmar – ou reafirmar – um lugar canônico para o romance de Guimarães. Finalmente, Alan Victor Flor da Silva e Germana Araújo Sales estudam os prefácios do escritor paraense João Marques de Carvalho. Prefácios estes que se prestariam a embates explícitos ou implícitos não apenas com certo leitor ideal como entre o escritor – arvorado em suas pretensões canônicas – e seus pares, sobretudo os adeptos da escola romântica e, no âmbito de uma disputa específica em torno do Naturalismo, o conterrâneo Inglês de Sousa. Trazendo a público sua 5ª edição, a REVELL tem a convicção de apresentar uma contribuição modesta mas efetiva para as discussões em torno do cânone, principalmente na literatura brasileira, mas também com interessantes voos extraterritoriais. A todos, uma boa leitura. Editores do Número 05 da REVELL 4 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 ENSAIO DIMENSÕES DA POÉTICA E A DESCANONIZAÇÃO DA VERDADE NA LITERATURA BRASILEIRA POETICS DIMENSIONS AND DISCANONIZATION OF VERITY IN BRAZILIAN LITERATURE João Carlos de Souza Ribeiro – UFAC RESUMO: A questão da poética e sua verdade como construção do cânone. Dimensões do elemento literário e sua configuração no turno da Historiografia. Discurso histórico e texto artístico em disjunções epistemológicas. Formulação do pensamento canônico e o canonismo em Literatura. Falhas sistêmicas e o problema da periodização em Literatura. A literatura consagrada e o desvio das linguagens representativas. Descanonização das correntes históricas e a verdade na literatura brasileira. O embate entre a verdade imposta da canonização e a emergência do discurso das poéticas no decurso do criticismo – perspectivas. Palavras-chave: poética, cânone, representação, descanonização, criticismo. ABSTRACT: The poetical matter and its verity as a canon building. Literay component dimension and its configuration in the Historiography. Historical speech and artistic text featuring epistemological disjunctions. Canonical thinking formulation and the canonism in Literature. Sistemic failures and the Literature periodization problem. The consecrated literature and the deflection of representative languages. Discanonizaton of historical currents and brazilian literature‟s verity. The clashing between canonization established verity and speech emergency of poetics in the criticism succession – perspectives. Keywords: poetics, canon, representation, discanonization, criticism. Introdução A questão do cânone em Literatura constitui-se uma rede de complexidade, que ancora suas premissas pari passu aos postulados seculares acerca da razão de ser do que se apresenta como literário e sua origem no campo da Arte. Tal reflexão, portanto, remonta à visão helênica, clarificada por Aristóteles, que a tornou um baluarte para os estudos desta ciência ímpar, que é a Literatura; e, outrossim, por tratá-la não como manifestação divina, através do poeta, cuja representação sempre fora mal compreendida pelos leitores, de todos os níveis, que jamais conseguiram interpretar, a contento, a obra de expressão literária, a mensagem cifrada no texto artístico e o portador desta escrita, vislumbrado, muitas vezes, como um ser em transe a serviço dos 5 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 espasmos insanos das deidades. Antes, e amplificando a problemática em tela, um veículo único, que faz do artista mais do que uma deidade, mas um ser sensível, que percebe e filtra todas as realidades existentes nas camadas infinitas do Real, transportando-as para o tecido textual, alçado à condição de objeto eminentemente artístico; um corpo estético, por excelência. 1. O abstracionismo da problemática, acima referido, concorreu, por muitos séculos, desde a construção de um possível edifício teórico sobre o universo da arte escrita e sua função exeqüível, no mundo, às tentativas de teorizar o processo de criação da obra de arte, em si, para o desmantelamento de um pensamento, que projetou o constructo de uma verdade quase natimorta. Esse paradoxismo, com efeito, marcou as discussões ora apresentadas, encerrando-as, todas, sem exceção, em um labirinto sem saída e com direito à companhia bestial de um certo Minotauro, mítico, mas essencialmente mortal. Círculo vicioso, que, em sua vertente fundadora, determinara o traço distintivo de uma linguagem artística, incabível em postulados rígidos e cristalizados, dada a origem daquela, que, em análise primária, emerge do turno modelar da Poética. A Poética, neste sentido, consubstancia-se no portal único para todos os leitores compreenderem a poiesis, que confere ao texto literário a verdade percebida pelo artista, e que, por sua vez, transforma a linguagem ordinária em discurso singular, para, por fim, revelar ao mundo a escrita artística: exemplar, atraente, misteriosa e eterna. A substância, aparentemente disforme e sem margens significativas, apresentase como corpo móvel na esfera do literário, em seu porto originário, aponta para um horizonte, que destoa das visões estabelecidas, conduzindo os saberes edificados na realidade objetiva para compostos teóricos, com eixos transversais e aparelhados metafisicamente, e, finalmente, desemboca em leitos de profundidades imensuráveis. Desse modo, apartada desse tipo de abordagem, a Literatura, que eclode no Real como linguagem poética, desreferencializa, integralmente, o que é proclamado pelas diversas doxas em atuação, cada uma em seu tempo, e busca, em seu corpo/corpus, o ponto de partida para suas flexões, reflexões e inflexões. Ao desreferencializar o que está posto como lei pétrea, a linguagem poética referencializa-se, pois aquela é desarraigada das equações temporais e livre das amarras históricas. A despeito disto, portanto, não se 6 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 pode canonizar o que, per si, emerge como entidade (con)sagrada, pois as leis regentes são, irrefutavelmente, as forças vetoriais, que emergem, fenomenologicamente, do interior da malha textual, mobilizando, dessa forma, a substância poética em seu vigor imanente para, então, transcender – movimento exógeno –, e não o seu contrário – movimento endógeno –, que converge para a matéria poética postulados e/ou regras que, em essência, não se coadunam com a verdade em Literatura. A Literatura, um corpo mais do que móvel, é, de modo ambivalente, a imagem plasmada no universo, sem princípio e sem fim; flexionando-se a si mesma e refletindo a realidade sobre a qual pairam os elementos de um mundo suprassensível, segundo as tradições helênicas, e que sustentam, ainda, os pilares filosóficos daquela. Destarte, o que se conclui, a priori, é que a Literatura, ao modular-se na realidade objetiva como corpo (mais do que) móvel, navegando no tempo e no espaço, de forma arbitrária, libertária e autônoma, opera, distintamente, vários níveis de atuação sobre os quais os ditames convencionais não têm quaisquer validades, pois a mensagem poética, a posteriori, constitui-se no caminho exemplar a ser (per)seguido a fim de depurar a verdade, que, radicalizada na tessitura textual, revela a substância da poiesis, propriamente dita, em seus graus mais profundos; e promove o fenômeno da Arte, que acede ao mundo estranho e enigmático do Inefável. Inefável que transmuta a realidade e legitima no Logos fundante a Luz que os deuses, miseravelmente, tentaram ocultar dos homens, mas que, de forma indelével, desceu dos céus como chama roubada das entidades supremas. O que era, irrevogavelmente, da ordem dos deuses tornara-se, mítica e definitivamente, o emblema dos mortais: a verdade que não pode se destruída, desaparecida ou delida. Antes, através do duo presença – ausência, a voz decifrada do enigma, para a felicidade da Humanidade, acidenta esfinges, que saltam para a morte hedionda, heroiciza mancebos, que se transformam em reis, e rainhas que cumprem seus destinos no decurso dos mistérios, que são velados e desvelados, contínua e infinitamente. Ora, se o elemento de fundação da poiesis é o componente essencial, que resguarda a verdade das corrosões, de toda ordem, e que poderiam deformar o corpo sublimado, em sua expressão artística, as determinantes intrínsecas, que validam, valoram e revaloram o texto literário, transformando-o em lume de ascendência própria e fôlego peculiar, são variáveis excepcionais e separadas dos modelos impostos às letras que se revelam como reflexo duma realidade transfigurada pela íris multicolorida do 7 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 artista. Grosso modo, o elemento poético, portanto, é o ponto nodal a constituir, em escala não – dimensionável, o antimodelo. Antimodelo que se apresenta imagisticamente como algo que não pode ser definido por sentenças ou axiomas cristalizados, o que ratifica a condição da Literatura como este bólido de aparência hologramática e de essência fluídica, e que está acima das esferas invisíveis, onde as deidades habitam. Morada do Ser; morada da Linguagem; reduto unívoco da poiesis. Assim, não é a forma que determina a substância, mas, afirmativamente, é a substância que confere à forma o traço essencial e marcante do conjunto estético, em sua expressão máxima. Neste sentido, todas as teses erigidas sobre os corpos canônicos em Literatura tendem, invariavelmente, à erosão de suas proposições, que nascem inclinadas à falibilidade; todas baseadas em conceitos parcamente sedimentados, e que estão em constante desvio a partir de sua realidade de fundação; i.e., o fluxo intenso e incorruptível da Poética. Impõe-se, por este turno, uma reflexão: o ato de canonizar um texto literário é compatível com a sua natureza e função? O tema da canonização ou dos modelos canônicos em Literatura não é novidade nos estudos de teoria e crítica literárias, respectivamente. Entretanto, vale notar que, apesar dessa problemática integrar o ideário reflexivo sobre as questões epistemológicas da própria Literatura, é consenso basilar, entre os estudiosos da área, de que os planos ideológicos, que constituem as estruturas do cânon, são frágeis e, portanto, concorrentes para o seu desfazimento completo, sem prazo de garantia ou de validade. A canonização é uma prática e, simultaneamente, um vício; é uma ação metodológica marcada pela imprecisão de sua verdade e didaticamente implausível, dada a sua ineficácia ao longo de sua aplicabilidade. Assim, é factível imaginar que tal como acontecerá, um dia, na Terra, segundo a visão nórdica sobre a criação do mundo, quando os céus – Asgard –, pelo insidioso ato pecaminoso dos deuses primevos, desabarem sobre todos, matando homens e divindades, as leis canônicas também ruirão sobre suas próprias bases, pois suas forças são débeis diante da blindagem natural, que emana e envolve o corpo poético. 2. Por este equacionamento, cumpre ressaltar, a priori, que o reconhecimento dos sistemas de canonização aponta para os indícios de uma falha sistêmica, que põe em risco evidente as diretrizes, por exemplo, que norteiam determinadas produções 8 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 poéticas, suas justificativas temporais, para figurarem como textos emblemáticos e legitimados por um criticismo, bem como a importância dos referidos textos em detrimento de outrem. A ruptura dos elos de sustentação dessas cadeias, aparentemente lógicas, denuncia, em processo constante, o que, eufemicamente, os teóricos da literatura batizam por renovação do pensamento sobre a literatura em decurso, nesta ou naquela época. Aproveitam-se do fluxo dinâmico, imposto pela tessitura artística, que se renova, segundo os vetores poéticos incidentes, para justificarem, por conseguinte, a mudança dos rumos, que determinarão as regras do movimento da canonização, e que, a meu ver, constitui-se, inequivocamente, em um canonismo – um fenômeno decorrente dessa miopia, acometendo a todos que se apossam da verdade em Literatura como se fosse uma realidade absoluta. Neste direcionamento, o canonismo, segundo a minha visão poeticista, parece um corpo minúsculo e não – estranho no processo da dita canonização a corroer os fundamentos do pensamento que se postula, como causa quase pétrea, a posteriori, para estabelecer a linha temporal dos modelos de canonização e a linhagem das obras literárias, que podem ou não podem, e/ou, que devem ou não devem figurar como tomos artísticos, de ascendência ímpar, no rol dos textos representativos de uma literatura panorâmica ou específica, de acordo com a visão científica dos críticos, que buscam implementar um corpo canônico a contemplar os possíveis textos literários, de relevância, para o pensamento teórico, em um determinado fluxo temporal e em consonância com os modelos históricos e historiográficos vigentes. A abordagem sobre o problema da canonização em Literatura atinge, maciçamente, a questão em torno da periodização literária e do modus operandi da Historiografia, que, por vezes, teve seu trabalho comprometido devido às configurações nem sempre precisas em relação ao ambiente de uma produção literária vasta e sempre à guisa de classificação. Este equacionamento, que não poderia ser pautado pela logicidade, e, sim, pelo movimento oposto, concorreu, com efeito, para o desvio ou para a corrosão epistemológica, que erodiu, duplamente, o pensamento crítico e o aporte histórico. Reféns, portanto, de um descompasso acidentado por leituras equivocadas, acerca do Real em Literatura, e da miopia crescente, que acometeu a Crítica, em várias épocas, a História e a Historiografia, caminhando paralelamente, não lograram o êxito almejado ao tentarem dar alicerces sólidos para a reflexão da e sobre a Literatura, sobretudo quanto à discursividade científica. Não bastava, por esta via, classificar, arrolar e/ou ordenar as obras literárias no decurso da investigação crítica; e, de forma 9 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 simultânea, conhecer, com propriedade, o eruditismo em torno das escolas literárias, das estéticas, dos movimentos e das tendências em Literatura, quer fosse no plano diacrônico, quer fosse no plano sincrônico. Antes, era necessário que o empreendimento crítico produzisse, sobremaneira, uma linguagem própria, distante dos modismos epocais, que impingiram, nas diversas reflexões e nos vários criticismos, marcas modelares, que não correspondiam à realidade contida nas poéticas existentes. No que concerne ao aparato historiográfico, a pedra que derrubou um gigante, vinda anonimamente de uma funda incrível, também não destoou do criticismo fadado a equívocos clássicos. Davi sempre existiu e Golias sempre caiu. Assim, a ciência historiográfica não dispunha de dados verossímeis, compatíveis com uma história imparcial acerca das épocas nas quais os homens de literatura e suas obras emergiram para representar, através de suas poéticas, a verdade que deveria dialogar com a realidade vigente. A pretensa e utópica canonização é a causa inequívoca do canonismo. E o tratamento da questão científica da literatura, seja pelo viés da canonização, seja pelo viés do canonismo, implica o tema da periodização da própria Literatura. A canonização das obras de artes literárias, segundo os modelos historiográficos tradicionais, produz seus efeitos a partir de uma planificação; uma amostragem horizontal para a observação e o consequente estudo do tema e das obras eleitas, segundo tais diretrizes. A periodização, neste sentido, parece deflagrar um desgaste abusivo de uma possível canonização ou de um movimento para canonizar um grupo de obras literárias, e, respectivamente, seus autores. Vale ressaltar que um conjunto de poéticas figura como canônicas, na linhagem historiográfica, em detrimento de outras, que poderiam e/ou deveriam estar arroladas pela Historiografia, mas que, nebulosamente, não estão. As verdades impostas pelo movimento de canonização não eram críveis o suficiente para sustentarem, no tempo e no espaço, uma ou várias sentenças, com densidade, solidez; e, simultaneamente, serem cristalinas. Em última análise, tais sentenças demonstraram os vários declives por que passaram as linhas metodológicas utilizadas pela Crítica, pela Historiografia, e que, apoiadas em proposições históricas, desafortunadamente elaboraram um conjunto de pseudoverdades – uma parte relacionada estritamente às obras consideradas canônicas; e outra parte ligada simbioticamente à realidade objetiva, que forjava teses exógenas com o intento de trazer à baila a verdade do texto literário, 10 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 desconsiderando, de forma desastrosa, a natureza da escritura de torso eminentemente poético. A poeticidade, predicativo inerente ao texto literário, é a voz que não pode ser emudecida, pois, amalgamada em um corpo reconhecidamente estético, decide, para o bem ou para o mal, o itinerário a ser seguido. Não há nesta assertiva qualquer tentativa de imposição de um encantamento ou de um pensamento absurdo, improvável, que não possa ser delineado pela escrita científica. No entanto, considerando o ambiente canônico, cujos vetores tentam esmagar o universo daquilo que, sensivelmente, paira em dimensões inalcançáveis por olhos torpes, deformados, e até filhos da cegueira irremediável, cumpre ressaltar que é flagrante o desnível entre o que é apresentado por um conjunto de teorias quase perfeitas sobre a Literatura, o texto literário e a literariedade, e, por fim, a obra de arte e o texto poético, que fundam e refundam a verdade literária independentemente daquela corrente teórica, historiográfica ou da rubrica crítica, que, vampirizando a letra artística, tenta, a todo custo, extrair a essência de um líquido, que plasma a mensagem na contramão do referido canonismo, abordado nesta reflexão e que permeia a minha presente reflexão. Assim, parece-me que há uma corrida livre entre personagens díspares, cujo objetivo principal é atingir a linha de chegada para se apropriarem, com triunfo, da obra de arte literária e sua verdade universal. Neste empreendimento, existe lugar para apenas um vencedor; e o prêmio, para além da obra de arte literária, é a verdade que ultrapassa a linha do humano para revelar a linguagem universal – característica sublime da Arte, qualquer que seja a sua manifestação nas várias esferas que compõem o Real. A discussão em torno do temário em foco não é contemporânea. Ao contrário: arrasta-se por gerações desde que os pensadores sobre a Literatura, movidos por múltiplas subjetividades, concentraram seus esforços para conferir àquela uma vestimenta científica, de tonalidade própria e capaz de revelar a natureza da obra de arte literária e sua função representativa na realidade objetiva. Além disso, os estudiosos sempre buscaram compreender o criador da obra de arte literária – o Artista. Este último, um verdadeiro enigma para filósofos e teóricos. Assim, tocar esta chaga aberta é rememorar a posição tirânica de Platão, em seu texto clássico – A República –, ao vaticinar, impiedosamente, a expulsão do poeta do ambiente social daquela com sua bagagem, que incomodava, sobremaneira, o bom andamento da ordem: a obra de arte literária. Ferida exposta, que nunca cedera à cura quando Aristóteles elevou o texto 11 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 artístico e o poeta a planaltos invejáveis em sua obra modelar – Poética –, ao começar a deslindar as dimensões deste intrincado universo, que, gradativamente, abandonaria as esferas divinas para ser compreendido e integrado à atividade humana: a Techné, espaço único, onde o artista e a sua arte operavam uma linguagem própria e distinta no mundo. A trajetória da Literatura e sua representação na história ocidental parte, efetivamente, desse confronto clássico, que fora quase um embate colossal entre os deuses olimpianos, mas que, aparentemente, trouxera paz aos mortais na antiga Grécia, e, posteriormente, nos panteões de Roma. Entretanto, os subjetivismos parecem não somente ter acirrado posturas conflitantes como também provocaram sismos de outra ordem no que tange à organização dos estudos de Literatura, os diversos modelos acerca da investigação, e tudo aquilo que concernia às figurações daquela e as devidas produções, que pudessem, efetivamente, desde o início dos respectivos empreendimentos, no mundo helênico, registrar e legitimar um discurso próprio, e alheio a outras espécies de conhecimento existente. Surge, então, um problema de dimensões titânicas, pois a Literatura, no turno de sua linguagem artística, exigia de seus preclaros investigadores a habilidade sutil para transitar em duas esferas diferençadas entre si. Quais sejam: a realidade subjetiva e a realidade objetiva. Quanto à primeira, cabe salientar que havia, ao tempo da ordenação ideológica, ainda, para a compreensão da Literatura como discurso genuíno e manifestativo da Arte, uma linha tênue e imperceptível para os teóricos pioneiros, que incidia, inequivocamente, sobre a intersubjetividade do Ser da Literatura e do ser de quem imergia nas camadas mais profundas do tecido de consistência literária. Desse modo, está claro que a essência literária é o canal de eclosão da verdade textual, quer seja através da voz poemática – o eu lírico na poesia – quer seja aquela plasmada nas personagens, mais do que vivas, na prosa. O objetivo do estudioso em Literatura é, para além da conjugação, entre as subjetividades em jogo – o ludismo –, a interpretação da verdade cifrada na tessitura em processo contínuo de revelação. A consolidação monumental do interpretatio: adentrar os corpos para capturar o pólen germinal, que dá forma, cor, odor, sentido e dimensão a tudo que passa pelo crivo do ek-sistente – rubrica heideggeriana. Da subjetividade, cumpre denotar, também, que há uma zona de penumbra sobre a qual não se tem domínio; nem da parte de quem criou a obra de arte – o Artista – nem tampouco de quem a recebe, qualquer que seja a gradação deste receptor no Real – o Leitor. A obra de arte, em sua corporeidade móvel, responde a estímulos próprios; em sua constituição, 12 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 um fôlego de vida similar à respiração dos deuses. Obra, artista e leitor confundem-se em outra subjetividade, que jaz em um território indefinível, onde ninguém pode acessar. Nesta recâmara, nem os clamores das divindades são ouvidos, pois lá a força soberana e indevassável da poiesis habita silenciosa, magistral e eterna. Quem ousa enfrentar a Quimera? Quanto à realidade objetiva, cumpre ressaltar que a verdade construída sobre máximas coordenadas e pensamentos riscados por um metafisicismo indelével tende a ser uma camisa de força, que tenta sobrepujar o véu da Aletheia (verdade literária) que está oculto na mensagem poética, mais precisamente no fluxo do desvelamento ininterrupto. Esse entrechoque de forças antagônicas e oriundas de processos ímpares forja o tensionamento da subjetividade a serviço de uma objetividade temporal, estrutural e completamente inócua; o tendão de Aquiles do edifício, que representa, em análise final, a canonização dos discursos, que não são subjugáveis por fórmulas modais com valores perecíveis. A este processo deram a suave denominação de renovação, uma vez que se constitui tabu, no campo maior dos estudos literários, a declaração de culpa, por parte da plêiade de teóricos e críticos sobre o desnível existente entre a verdade que está no outro lado da margem – a verdade poética – e a verdade proclamada pelos que estão em terra firme, e que, imperiosamente, desejam dominar aquilo que floresce em sua forma onipresente; transcendentalmente ubíquo. A tarefa, portanto, resvala para a ineficácia e, por isso, parece não ter êxito. As realidades dissonantes não são invalidadas pela inflexão imposta, pois cada uma tem seu valor separadamente. A verdade contida no texto artístico, em sua modulação atemporal, é superior à verdade elaborada, que intenta alcançar outras facetas da verdade literária pelo viés da Crítica, que pretende elaborar um discurso cientificizante da obra de arte literária. O fato de a Ciência da Literatura, compreendida como um guarda-chuva gigantesco, que tenta abarcar todas as variáveis e não – variáveis relacionadas ao texto poético tornar-se o conjunto de normas e instrumentos (que buscam ser) adequados para os estudos relativos ao que é literário, não fornece garantias sobre a permanência ou não de conceitos, de definições, e, em última análise, de possíveis amostragens, nas quais o processo de canonização é elaborado e apresentado como verdade lateral. Canonização não percebida como sagração ou santificação de um texto como algo imutável; mas, antes, como correlação de forças e textos, que possam corresponder às realidades histórica e historiográfica, respectivamente. 13 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Em verdade, o problema radical, abordado por este ensaio, está inserido na tentativa de os teóricos conferirem à Literatura uma capa de ciência quando o elemento literário, per si, é um herói que, destituído de asas ou forças mágicas, sobrevoa um firmamento sem fim. No próprio esgarçamento das tensões, as que existem, naturalmente, no embate da leitura, quando, no fenômeno da recepção, o efeito catártico revela a atemporalidade da obra de arte literária, e as que existem, em sua modalidade exógena, partindo das definições, que buscam, desenfreadamente, um estatuto científico para o que navega livre, no intermezzo da própria realidade. O elemento poético sugere, para além dos simbolismos, outro meridiano; outra tensão impossível de ser registrada. Qual seja: ágrafa, em sua constituição vertical, a poiesis, ao portar em sua morfologia invisível o som e a plasticidade do silêncio sem fronteiras, sem limites, revela o traço imponderável de sua face, pois, a partir de suas leis indeterministas, determina o não – determinável no espaço de todas as tensões; em seus gradientes inomináveis e imensuráveis; postulações do quantum, que transforma aquela na própria antimatéria: modulações atemporais no espaço infinito e ambíguo da Arte. O criticismo, então proposto, denuncia, de forma lúcida, o anacronismo dos modelos impostos, e que, com efeito, beiram à falência, em suas premissas pontuais, temporais e espacialmente imprecisas. Isto vale para as literaturas ocidentais, que planificaram suas letras artísticas, todas pautadas em verdades científicas, que remontam à esfera renascentista; aprovadas e aplicadas pelos teóricos e críticos, nos desdobramentos ideológicos do Romantismo, e agravadas, sobremaneira, pelos cientistas da linguagem, nas ondas mortais que varreram o mundo da ciência ao tempo áureo do Naturalismo e do Realismo, ao coexistirem historicamente. Tais alinhamentos constituíram-se reflexos incontestes, à época, na literatura brasileira, que, por sua vez, acomodada em uma diacronia longa e pesada, carece, em dias atuais, a meu ver, de uma revisão substancial no que concerne à organização do pensamento, que versa sobre os textos literários; e as paisagens históricas, que serviram, de fato e de direito, para o acolhimento daqueles. A literatura brasileira, balizada pela canonização, que é, ainda, reconhecida pelos circuitos acadêmicos como a verdade sobre a literatura em tela, referenda textos artísticos, que emergiram das classes, ao representarem a terra brasilis, desde os tempos da Colônia até a independência política, quando aquela alcançou o status de nação livre. A elite cultural brasileira, que fomentou o nascimento da classe dos intelectuais, cujo berço está na descendência europeia direta, concorreu para o 14 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 surgimento de um problema, que tem perseguido, impiedosamente, a intelligentsia brasileira, reconhecida como âncora de um pensamento nacional baseado na literatura emergente. Qual seja: a legitimidade de uma amostragem periodológica e, portanto, didática (canonização dos movimentos literários) face às poéticas que ascenderam ao posto de letras representacionais brasileiras em função desta relação inequívoca com as classes elitistas, que se formavam, natural e gradualmente no país, ao longo de meio milênio de existência da nação brasileira. O reconhecimento historiográfico, que elegeu os escritores brasileiros, da maneira como estão relacionados na esteira da periodização literária e, por conseguinte, canônica, e que privilegiou todas as correntes, os movimentos e as referidas estéticas, nas quais aqueles e suas obras estão inseridos, está simbioticamente relacionado à questão, de envergadura maior, que é o problema da transplantação cultural. Assim, a língua e a sua tradição vindas para o Brasil, na condição de elementos prontos e acabados do colonizador, historicamente forjaram o nascimento de uma classe pensante, que, em verdade, oscilava entre um passado luxuoso, cimeiro e portentoso e um presente rústico, incerto e completamente novo ao olhar da geração d‟além mar, que fincou raízes na terra, tornando-se, indubitavelmente, a pérola da Coroa Portuguesa: a terra brasilis. Desse modo, está claro que a concentração do poder, da economia, do pensamento, e, principalmente, da cultura, que não era brasileira, ainda, e que, portanto, pertencia à ordem lusa, determinou, inconscientemente, a formação de uma sociedade, que privilegiava as sacadas das pseudoquintas, transplantadas para os ares quentes da colônia em detrimento do chão batido, por onde passavam as gentes de toda sorte e que plasmaram o que viria a ser o Homo brasiliensis – figura emblemática, ainda distante e pouco cortejada nas narrativas nacionais. O olhar do colonizador, desse modo, era e sempre fora um olhar de cima. Suas leis e fundamentos consistiam em pesadas âncoras, que jogavam para baixo uma visão patética de uma paisagem europeia, que cederia, mais cedo ou mais tarde, espaços a um cenário verde, selvagem, virgem, promissor e ímpar, na cena histórica e cultural; nos momentos cruciais por que passaram os estágios políticos em que a futura pátria brasileira esteve ligada a Portugal. Assim, os vetores de atuação impunham, sob o pulso violento da Coroa, as regras que vigoraram por muito tempo, e que foi, tão somente, uma extensão da metrópole portuguesa no Atlântico Sul. Os colonizadores desconheceram, de forma cabal, a realidade existente, e, por isso, não perceberam a 15 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 climatização de sua própria língua, hábitos e tradições, que, paulatinamente, afeiçoaram-se a outros modos de ser; abrasileirando-se, com efeito. A comprovação, através da literatura nacional, sobre a referida imposição, em momento inicial, do poder autoritário do colonizador, está registrada na literatura catequética e logo combatida pelo corajoso Gregório de Matos, uma voz solitária a pregar (sua) uma verdade poética para um número de pessoas, que mal sabia ler e escrever, em um mundo que mais parecia uma terra sem leis. Ainda, assim, Gregório de Matos, chamado “Boca do Inferno”, sustenta, pelas rubricas da historiografia e da crítica literárias, respectivamente, uma corrente grandiosa, que, no Brasil, fazia seu pouso absoluto, porém já em seus passos derradeiros: o Barroco. Não é à toa, e sabiamente, que Alfredo Bosi, em sua imprescindível obra História Concisa da Literatura Brasileira afirma, com categoria, que no Brasil existiram somente ecos da corrente supracitada, pois o Barroco estava expirando; seus últimos suspiros foram sentidos pelas terras verdes e amarelas, sob o calor tropical da América do Sul. A saga por uma amostragem, nem sempre convincente e/ou correspondente com as realidades em voga, renderia à História da Literatura debêntures impagáveis, que pesariam sobre os punhos da Crítica, e que, hodiernamente, deve buscar a atualização dos títulos, que representam ainda o painel elucidativo da literatura nacional, além do determinismo advindo da canonização historiográfica das obras, que foram arroladas por leis convencionadas. Neste sentido, compreender a literatura nacional nos períodos em que movimentos distintos conviveram, em princípio, pacificamente, sob ordem de quem ou quando, é tarefa que causa um grande estranhamento como também incita questões, que elevam o tom das contradições aparentes e calcadas sobre o mito da consagração de um grupo de obras e artistas, que não pode ser tocado, pois estes últimos foram transformados em legendas e tabus literários pelo criticismo. Criticismo que sempre estivera em descompasso com uma realidade artística muito mais numerosa do que os títulos classificados para representarem a identidade, o curso e a brasilidade de uma cultura dita nacional. A coexistência do Arcadismo amordaçado ao lado do Barroco grandiloquente, que, findado seu tempo na literatura, ainda sobreviveu, com algum fôlego, nas esculturas, mesclou um bucolismo nascente, que navegou entre as paisagens arcádicas e a atmosfera pré-romântica. Os românticos, em processo de consolidação ideológica, acirraram o tema da fuga dos árcades, que não conseguiram realizar o sonho de uma 16 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 pátria libertada, pois a tentativa da construção de um herói, de carne e osso, fracassou em nome de um poder ditatorial, sem limites, levando à morte um homem: Tiradentes. Tal retomada, por parte dos românticos, do tema do herói, sob a tez do Índio, fabulou um escape singular, e que potencializou o protesto contra um colonialismo, tendendo a perpetuar-se no Brasil. Essas correntes, singulares, ímpares e entrelaçadas, formam um mosaico de fatos, escritas, estórias e movimentos, que não referendam a realidade existente em um país, que somente conheceria a sua verdadeira liberdade política em 1822. O movimento romântico, quiçá o mais importante para a compreensão inicial de uma nação, que apontaria para a dimensão de uma cultura polifônica, fora contemplado, de forma exemplar, em várias poéticas. José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Bernardo Guimarães, Manuel Antônio de Almeida, Gonçalves Dias, Castro Alves, Álvares de Azevedo, dentre outros, ampliaram os temas e as visões sobre uma cultura emergente, cujos atores deram não somente a densidade da corrente estética como oportunizaram as questões que, definitivamente, marcariam o rumo da literatura brasileira como letra-artística, diferenciada e ímpar no painel da escrita artística ocidental, pois a letra canônica trazia à baila o instigante tema da identidade nacional: tema questionado e criticado pelos realistas, que enxergaram o exagero das formas e da substância na pena opulenta dos românticos, e que fora retomado, mais tarde, pelos modernistas, em 1922, como plataforma principal para o descolamento ideológico de uma cultura literária, que sofria, ainda, de um europeísmo nauseante. O Realismo, por sua vez, inegavelmente, tornou-se a grande ponte para o salto que elevaria, de fato e de direito, a literatura brasileira à universalidade, por mérito, por qualidade e por decurso natural. O cientificismo e o positivismo não macularam a letra realista no Brasil, e as paisagens urbanas de uma sociedade em formação e o crescimento das futuras metrópoles no sudeste constituíram-se nas variáveis que criaram o ambiente modernista, em um período curto, mas profícuo, através da genialidade de Machado de Assis, cuja literatura deve ser apartada como corpo suspenso nas letras nacionais por estar à frente de seu tempo e por reunir os elementos fundacionais e necessários para a certificação legítima de uma literatura dita brasileira. A poética machadiana, acima das categorizações periodológicas, é a prova cabal de que o modelo da canonização das poéticas literárias brasileiras é inconsistente para demonstrar o quão 17 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 imensurável é a substância da poiesis, que cifra, para além do nome, do tempo e do espaço, uma letra-artística atemporal e universal, por excelência. O Modernismo parece cerrar as cortinas e libertar, a despeito de um criticismo discipular e em crescimento, das rédeas históricas, o Brasil; além de riscar, no Brasil, os vários Brasis, que sempre existiram, mas que foram impedidos de expressar suas idéias e emitir suas vozes. De Mario e Oswald, os Andrades, na liderança do movimento modernista, passando, efetivamente, pelo regionalismo de Raquel de Queiroz e Graciliano Ramos; pela poesia de João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade; pelo ficcionalismo sulista de Érico Veríssimo; pela introspecção de Clarice Lispector; pelo gigantismo indiscutível de Guimarães Rosa; ao grande contador de estórias, que fora Jorge Amado, dentre outros, as poéticas modernistas libertaram-se do movimento histórico oblíquo e da tentativa espúria de fazer da Literatura um reduto de estudos sem qualquer valor artístico e/ou sem função na realidade objetiva. O movimento de descanonização, neste sentido, não intenta derrubar o longo caminho pelo qual as escritas elucidativas estão presentes para configurarem a arte literária no Brasil e sua historiografia. Entretanto, é imperioso afirmar que a produção poética nacional, desde os tempos da literatura nascente aos dias atuais, cresceu, sobremaneira. É presumível salientar que há espaços para serem preenchidos e outros para serem revistos, pois a importância desta ou daquela poética não está no fato de representar esta ou aquela corrente literária, mas no vigor do texto literário, que revela a verdade, para além do turno da história. Outrossim, a descanonização deve redispor as sentenças que determinam o espaço adimensional da literatura nacional, através das obras que não foram entabuladas na periodização literária, e que concorreram para a falta de renovação do criticismo e do historiografismo – ambos amparados pela escrita monumental do último grande crítico nas letras brasileiras, e que legou um estudo de fôlego para as gerações vindouras. A saber: Afrânio Coutinho e sua obra magistral: A Literatura no Brasil. 3. A Crítica, na virada do século – XX – XXI – em conjunto com a Historiografia, deve proceder à renovação profunda de seus postulados para investigar e desvelar a verdade da literatura que decifra o Brasil, ao descobrir seus enigmas, suas mensagens; todos sob o solo profundo como verdadeiros achados arqueológicos. Raízes que nascem 18 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 de baixo para cima e não sentenças artificiais injetadas de cima para baixo. A descanonização deve apontar seus vetores não para o desmonte historiográfico das obras classicamente consagradas, mas para as poéticas como corpos mais do que singulares, cujas linguagens entrecruzam-se, atemporalmente, para traduzirem, de forma indelével, a verdade e as verdades na / da Literatura Brasileira. Bibliografia BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1985. CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Vols. I e II. 6. ed. Vol. I. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. CASTRO, Manuel Antonio de. Poética e poiesis: a questão da interpretação. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2000. COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Vols. III e IV. Rio de Janeiro: Eduff, 1986. HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência do fundamento, a determinação do ser do ente segundo Leibniz & Hegel e os gregos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1971. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 4. ed. São Paulo: São Paulo, Companhia das Letras, 1963. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994. RIBEIRO, João Carlos de Souza et al. A Poética das Cidades. Rio de Janeiro: Relume Dumará,1999. SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 1979. SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese de História da Cultura Brasileira. São Paulo: Bertrand Brasil, 2003. SUHAMY, Henry. A Poética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1986. 19 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 A COMPOSIÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO E AS MARGENS INCONSTANTES DA LITERATURA OCIDENTAL THE COMPOSITION OF THE LITERARY CANON AND THE SHIFTING MARGINS OF WESTERN LITERATURE Juliana Bezerra de Oliveira Sachinski – PG-UEMS RESUMO: Este artigo pretende tratar da composição do cânone literário ocidental, no que se refere às questões relacionadas à leitura dos clássicos e não clássicos e discutir o universo das preferências literárias, assim como valores e condições de produção em um período histórico e social. Palavras-chave: Cânone; literatura; leitura dos clássicos ABSTRACT: This article aims to address the composition of the Western literary canon, with regard to issues related to the reading of classic and non-classic and discuss the world of literary preferences, as well as values and production conditions in a historical period and social. Keywords: Canon; literature; Reading the classics Considerações iniciais “Se vi mais longe foi por estar de pé sobre ombros de gigantes.” Isaac Newton O Cânone literário, tão falado em salas de aula dos cursos de letras e cursos afins, é debatido comumente em congressos e eventos. Mas o que é o Cânone? O que o compõe? A palavra cânone vem do grego Kañon, que significa medida, régua, instrumento de medir. A palavra é usada para descrever vários objetos e situações, porém o cânone literário tem um significado mais objetivo, que é o de listar as obras literárias tidas como mais valiosas ou universais de acordo com alguns parâmetros. A prática de estabelecer um parâmetro de valores na literatura não é um ato novo. De acordo com Thomas Bonnici, tal atitude teve início no período helenístico. Sobre isso o autor afirma: A tradição de fabricar uma lista de livros considerados excelentes foi adotada em Alexandria, Egito, durante o período helenístico (323 – 30 a.C.). Rose (1959) e Howatson (2006) afirmam que os críticos alexandrianos tinham um „cânone‟ ou lista autorizada, que incluía Homero, nove poetas líricos gregos (por exemplo, Safo), dez oradores áticos (entre eles Demóstines), os cinco dramaturgos trágicos (entre eles Ésquilo, Sófocles e Eurípedes), sete autores de comédia (entre eles Aristófanes) e sete historiadores (por exemplo, Políbio). „Clássico‟ é um termo alexandrino, já que classic é a representação latina do termo grego Kanõn aplicado 20 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 às listas que as autoridades da biblioteca de Alexandria redigiam referentes aos autores que consideravam serem os parâmetros nas classificações literárias (BONNICI, 2011, p. 104). Pode-se observar que os livros que compõem o cânone literário são os chamados livros clássicos. E estes livros possuem algumas características que se concordar e se opõem. Ele pode ser ao mesmo tempo uma leitura de descoberta e aprendizado quando causar estranhamento e desconforto, como afirma o escritor Antoine Compagnon: O clássico transcende todos os paradoxos e todas as tensões entre o indivíduo e o universal, entre o atual e o eterno, entre o local e o global, entre a tradição e a originalidade, entre a forma e o conteúdo. Essa apologia ao clássico é perfeita, perfeitas demais para que suas costuras não cedam com o uso. (COMPAGNON, 1999, p. 235) E pode exatamente ser pelo desconforto, estranhamento ou identificação que um livro clássico entra para o cânone e lá permanece. Não obstante, é comum um adulto leitor afirmar que está relendo uma obra clássica. O autor Italo Calvino posiciona-se sobre o assunto da seguinte forma: Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual. Por isso, deveria existir um tempo na vida adulta dedicada a revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros permaneceram os mesmos (mas também eles mudam, à luz de uma perspectiva histórica diferente), nós com certeza mudamos, e o encontro é um acontecimento totalmente novo (CALVINO, 2007, p. 10-11). Assim, Ítalo Calvino sugere que a leitura de um clássico é sempre uma descoberta, e a releitura do clássico às sensações de descoberta se mantêm. É como se a obra não se esgotasse no fator surpresa e despertar de emoções, ou porque surpreende ou ainda porque não terminou de dizer o que o leitor tem de curiosidade, já que “o clássico tem a peculiaridade de se fazer esquecer, ao mesmo tempo em que planta uma semente”1. Mas a busca de quem escreve uma obra que pode ou não se tornar um clássico, entrando assim para a seleta lista do cânone, pode ser uma busca pelo refúgio. Nietzsche certa vez definiu a linguagem literária como uma vontade de figuração, ou mesmo o desejo de ser diferente, podendo estar em outro lugar. Tal viagem é justamente possível pelas páginas de uma narrativa literária. Para Harold Bloom, escrever significa não só ser diferente, mas escrever magistralmente em outro tempo e lugar. Assim ele afirma: 1 Professora doutora Márcia Maria de Medeiros em sala de aula no dia 07/03/2012. 21 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Literatura não é simplesmente linguagem; é também vontade de figuração, [...] isso significa em parte ser diferente de si mesmo, mas basicamente, creio, ser diferente das metáforas e imagens das obras contingentes que são nossa herança: o desejo de escrever grandiosamente é o desejo de estar em outra parte, num tempo e lugar nossos, numa originalidade que deve combinar-se com a herança, com a ansiedade da influência (BLOOM, 2010, p. 24,). O Cânone e sua formação O conjunto de características que podem provocar essa ânsia pelo diferente forma o clássico e tradicionalmente o cânone literário é formado por clássicos. Assim o termo cânone indica uma espécie de lista de obras “grandiosas” ou mesmo chamadas de “universais”. Tais obras seriam então merecedoras da academia. Essa lista não é estanque, mas geralmente sofre poucas modificações, ou ainda, as mudanças são lentas e poucas, se considerarmos o numero de obras produzidas a cada ano ou século. Sobre isso Bonnini afirma o seguinte: Embora o cânone de nenhuma literatura moderna ou contemporânea tenha sido formalizado, raro não é que vários autores específicos sejam, vez ou outra, incluídos ou excluídos da lista. Por outro lado, Shakespeare, Cervantes, Flaubert, Manzoni e Machado de Assis, por exemplo, são os mais sólidos nomes do cânone inglês, espanhol, francês, italiano e brasileiro, respectivamente (BONNINI, 2011, p. 105,). Esta lista “informal” pode influenciar inclusive a academia no que diz respeito às obras trabalhadas em pesquisas ou indicadas aos acadêmicos em sala de aula e até mesmo em projetos de pesquisa agregados às universidades, uma vez que se há a eleição de alguns livros e/ou autores como bons, valiosos, grandes ou dignos de leitura e pesquisa, em contra partida, há uma gama de autores/obras que são excluídos do cânone e tidos como baixas literaturas. O leitor precisa escolher entre tudo o que existe para leitura, uma vez que seria impossível, mesmo se uma pessoa se dedicasse única e inteiramente a isso, ler tudo o que é produzido. Mallarmé popularizou a hipérbole “a carne é triste, ai, e eu li todos os livros”. Cada leitor, independentemente de pertencer a uma instituição acadêmica ou não, precisa optar pelo que lhe apetece. Assim, como toda escolha causa exclusões, quando se elege um livro para ler, todos os outros ficam excluídos naquele momento. 22 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Sabendo-se dessa ânsia pela eleição e exclusão do leitor, autores investem em chamar a atenção dos leitores. Com uma preocupação, que segundo Harold Bloom é individual dos autores e não dos leitores, que é o fator estético. Para Borges, independente do prestígio alcançado ou não pelo autor através de suas obras literárias, a perfeição está longe de ser alcançada em qualquer obra, por melhor que seja. Sobre esse assunto ele cita: Não há poeta que seja a voz total do querer, do odiar, da morte ou do desespero. Ou seja, os grandes versos da humanidade ainda não foram escritos. Essa é a imperfeição com a qual deve alegrar-se nossa esperança (BORGES, p. 109. Apud, PERRONE-MOISÉS, p. 42. 2009). Esta literatura marginalizada, excluída do seleto grupo canônico por vezes preenche um espaço nos estudos culturais. Usando pesos e medidas diferentes para avaliar as obras julgadas como marginalizadas ou excluídas de uma lista maior, ou de maior valor literário. Sobre esse julgamento de valor, a pesquisadora Leyla Perrone-Moisés se posiciona da seguinte forma: [...] Precisamos é de um ensino literário que julgue Teócrito e Yeats com uma só balança, que julgue os mortos tão inexoravelmente quanto os escritores chatos de hoje, e que elogie a beleza antes de se referir a um almanaque (PERRONEMOISÉS, 2009, p.32). O cânone não é uma lista estanque ou até mesmo despótica. Ela pode agregar nomes e excluí-los ao longo do tempo. Porém, isso não inclui justiça ou análise mais justa de critérios de valores literários. Shakespeare, por exemplo, passou por uma trajetória de muito sucesso, adentrando o cânone, e depois amargou em ostracismo e esquecimento, até ser resgatado por Samuel Johnson e hoje permanece sendo referência em boa literatura, recebendo os louros por ser o pai da língua inglesa, mesmo com pesquisas que provam que quem criou a língua inglesa foi Geoffrey Chaucer, na segunda metade do século XIV. Sobre este valor literário criado para o cânone e sobre ele, Antoine Compagnon defende a seguinte ideia: Evidentemente, identificar a literatura com o valor literário (os grandes escritores) é, ao mesmo tempo, negar (de fato e de direito) o valor do resto dos romances, dramas e poemas, e, de modo mais geral, de outros gêneros de verso e de prosa. Todo julgamento de valor repousa num atestado de exclusão'; Dizer que um texto é literário subentende sempre que um outro não é. O estreitamento institucional da literatura no século XIX ignora que, para aquele que lê, o que ele lê é sempre literatura, seja Proust ou uma foto-novela, e negligencia a complexidade dos níveis de literatura (como há níveis de língua) numa sociedade. A literatura, no sentido 23 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 restrito, seria somente a literatura culta, não a literatura popular (COMPAGNON, 1999, p. 33). Nesta escala de valores disputadas por autores e suas obras, mormente, ninguém quer estar em seu alicerce, e sim no todo da lista, como os mais celebres e geniais a produzirem obras que ao mesmo tempo respondam as expectativas dos leitores e apresente algo de novo, inovador e surpreendente. Mas para que um seleto grupo ocupe a ponta dessa pirâmide editorial, um número muito mais elevado precisa proporcionar uma base para sustentação. São obras avaliadas pela crítica como menores, de valor literário inferior aos canônicos, e, portanto, devem ficam em uma escala abaixo dos imortalizados pelo cânone. Esse vasto grupo, segundo a pesquisadora Leyla Perrone-Moisés, é de larga importância. Sobre este assunto ela afirma: [...] Convém não esquecer que as grandes obras ocorrem tendo como chão e húmus uma cadeira ininterrupta de obras menores, e que os produtores da literatura presente são tão devedores das grandes obras do passado quanto dos milhares de obras menores que prepararam terreno para as maiores. (PERRONE-MOISÉS, 2009, p. 24) Além da escala de valores atribuída às obras, e consequentemente a seus autores, há uma gama de autores que criticam a busca incansável de respostas através da literatura. Segundo Harold Bloom, a função da literatura não é reparar injustiças sociais. E para Italo Calvino, o clássico não tem compromisso com o ensino. O autor afirma: Os clássicos não necessariamente nos ensinam algo que não sabíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber) mas descobríamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular). E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação como sempre dá as descobertas de uma origem, de uma relação, de uma pertinência. De tudo isso poderíamos derivar uma definição do tipo: Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais revelam novos, inesperados, inéditos (CALVINO, 2009, p. 12.). Embora a leitura de livros clássicos, canônicos, seja uma contradição ao ritmo de vida da modernidade, tal leitura é ainda uma forma de descoberta e entendimento humano. Quem somos? Onde chegamos? Qual o nosso espaço social? Tais questionamentos podem ser respondidos através da literatura. Embora a literatura não tenha comprometimento em trazer ao leitor nenhuma resposta às agruras sociais. Leyla Perrone-Moisés afirma sobre a história literária que: A história literária dos fatos gerais, baseada no princípio da casualidade, da regularidade das leis, do desenvolvimento-progresso, caiu pouco a pouco em descrédito. A busca da extensão dos efeitos desembocou no estudo sociológico, 24 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 que por sua natureza se vê forçado a deixar de lado as questões propriamente estéticas. Os escritores-críticos modernos, na qualidade de leitores mais diretamente interessados nas questões estéticas, foram os que mais resolutamente se desinteressaram desse tipo de história. A opção pela visada sincrônica subentende uma concepção a-histórica da arte, da literatura. Leva a falta de eternidade da poesia, de sua essência perene (PERRONE-MOISÉS, 2009, p. 49). O ritmo da vida moderna, imposto e buscado pela sociedade mundial, tem refletido também na literatura. O que ler, como ler, onde e quando ler podem trazer alterações, não só no mercado editorial como no cânone. Esta é uma eloquência de uma sociedade ocupada, com foco na tecnologia e velhas novidades, apontando sua seta para outros tipos de entretenimento que tem maior relação com as imagens em movimento, como a televisão, computadores, internet, celulares, dentre outras tecnologias, que não estão próximas às caixinhas cheias de histórias e imagens chamadas livros, mas que precisam mais que um passar de olhos para serem abertas. Esta fragmentação do tempo é comentada por Leyla Perrone-Moisés: Na segunda metade de nosso século, os teóricos da pós-modernidade viriam dar um golpe mortal na narratividade baseada na cronologia, ao decretarem o fim das “grandes narrativas”. A fragmentação de nossa percepção do tempo, correlata da fragmentação da experiência em geral, tem feito com que a historiografia prefira ultimamente as narrativas parciais, centradas em agentes particulares que não eram levados em conta nos metarrelatos, e que interessam aos agentes de hoje, grupos ou indivíduos (PERRONE-MOISÉS, 2009, p.29). O fato é que de pequenas bibliotecas particulares às grandes bibliotecas públicas, sejam elas de universidades, escolas, praças ou outros espaços, não tem nas suas leituras ou mesmo empréstimos de livros uma simultaneidade ordenada. O leitor escolhe uma obra, lê e posterior a isso escolhe outros livros sobre o mesmo tema, do mesmo autor ou simplesmente abandona aquele tipo de leitura. Ou seja, as leituras não são feitas em ordem cronológica de obras ou até mesmo de autores. O consumidor de literaturas não está, mormente, preocupado com a relatividade temporal das obras, mas com o prazer da leitura ou até com as informações nela obtidas. O tempo é relativamente outro para o leitor. Ainda sobre o quesito tempo, Harold Bloom defende que: Infelizmente, nada será o mesmo, porque a arte e a paixão de ler bem e em profundidade, que era a base de nossa empresa, dependia de pessoas que eram leitoras fanáticas quando ainda crianças. Mesmo os leitores dedicados e solitários se acham agora sitiados, porque não podem ter certeza de que vão surgir novas gerações para proferir Shakespeare e Dante a todos os demais escritores. As sombras se alongam sobre nossa terra crepuscular, e nos aproximamos do segundo milênio esperando mais escuridão (BLOOM, 2010, p. 28). 25 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Esta sociedade ocupada e com muita pressa de tudo tem como opção de leitura clássica nomes como Dante, Shakespeare, Cervantes, Flaubert dentre vários outros autores literatos clássicos e canônicos do ocidente. No entanto, mesmo sendo o cânone livre e acessível a autores e obras de valor estético evidente, resistentes ao teste do tempo e à concorrência de seus pares, o cânone acaba sendo influenciado por uma série de fatores. Dentre eles o ambiente universitário. Stelamaris Coser, doutora capixaba e pesquisadora de estudos literários e culturais, afirma o seguinte: O inimigo-mor em seus ataques acaba sendo o ambiente universitário dos Estados Unidos, por oferecer guarida a tantas tendências contemporâneas indesejáveis que, segundo Bloom, teria instaurado um domínio totalitário no país. O departamento e professores de Letras, por muito tempo aliados do cânone, exibem agora programas de publicações que acolhem escritores sem imaginação e abordagens críticas que lhe parecem meras clonagens desfiguradas (BONNINI, 2011, p. 136). O Cânone Ocidental O crítico Harold Bloom, autor do livro O Cânone Ocidental, defende o mesmo posicionamento e critica veementemente a postura de pesquisadores que defendam as linhas de pesquisa “feministas”, “marxistas”, “culturalistas”, ou quaisquer outras que não partam do objeto. Nesta linha de raciocínio, o objeto deve ser analisado pela linha de pesquisa que melhor lhe apetecer, e não o pesquisador utilizar-se de uma linha de pesquisa para enquadrar todo e qualquer objeto naquela teoria ou vertente. Bloom afirma: Fundamentalmente, o que ocorreu – e parece que agora impossível de ser revertido – foi uma coalizão de, entre aspas, “feministas”, “marxistas”, “neohistoricistas”, “materialistas culturais” e teóricos da inclinação francesa – Lacan, pseudo-Lacan, pseuso-Derrida, pseudo-Foucault. Essa coalizão apresenta hoje cerca de 70% dos professores em meio de carreira, e mais da metade deles são cultuadores fanáticos da Escola do Renascimento [...] a meu ver seu ressentimento está dirigido, antes de mais nada, contra a própria ideia de literatura como força da imaginação (BLOOM, 1995, p. 5). Esta postura agressiva do crítico Harold Bloom não agrada acadêmicos e pesquisadores que preferem posturas mais equilibradas. Até porque Bloom é radical em sua atitude e vem na contramão das vertentes pesquisadas pela maioria dos profissionais no ocidente nos dias atuais. Sobretudo porque Bloom defende um espaço plausível para esclarecimento da literatura. “Se a crítica está morta, ou quase morta, na academia 26 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 americana [...] a próxima geração de bons leitores terá que vir de fora da universidade” (BLOOM, 1995, p.5). Juntamente a está proposta, Bloom sugere que agências de publicidade, a mídia em geral, assim como agências de relações públicas dentre outras esferas, devem fomentar a leitura e a divulgação da literatura de qualidade. Tais manifestações e posicionamentos, tensos e acalorados ou até radicais como são taxados certos posicionamentos de Harold Bloom polarizam, com certa frequência, o posicionamento de estudos literários tradicionais. A pesquisadora Stelamaris Coser traça um panorama desta realidade no Brasil e em outros países como Portugal e outros países da América Latina. Ela afirma: Em vários países se repete tanto o interesse pelas novas tendências críticas, quanto a reação defensiva de disciplinas literárias estabelecidas à contaminação dos estudos culturais (traduzidos e adaptados de várias maneiras). Em Portugal, por exemplo, Machado (2001) observa que os Estudos Culturais emergem de maneira “um tanto espetacular e frequentemente bem superficial”, espécie de moda que ameaça substituir o enfoque literário com a “redução da estética à sua estrita função de produção sócio-cultural e a uma codificação de caráter históricoideológico frequentemente moralizante” (COSER, 2011, p. 139). Tanto reações favoráveis às novas tendências quanto a negação delas se repete em vários países. No Brasil, desde 1990, cresce o interesse acadêmico pelo cruzamento da literatura e cultura. Esta vertente inclui ainda expressões contemporâneas de cultura de massa, ou cultura popular. Temas relacionados a gênero, raça ou etnia e aos estudos culturais são bastante comuns nos dias atuais na academia no Brasil. Acompanhando este crescimento, a ANPOLL2 criou o GT “Mulher e Literatura”, e a Universidade Federal de Santa Catarina um encontro interdisciplinar intitulado „Fazendo Gênero‟, são alguns exemplos da expansão dessa vertente de pesquisa. Considerações finais A discussão sobre a composição do cânone literário é vasta e polêmica. Desta forma, há muitos críticos literários e outros estudiosos da literatura que desejam sua extinção. Porém a manutenção do cânone literário se faz necessária, tanto para os autores 2 ANPOLL – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística. Informações retidas do site http://www.anpoll.org.br/portal/ 27 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 que almejam um dia participar desse seleto grupo, quanto para os leitores que podem contar com um parâmetro de valores. Apesar de ser excludente, uma vez que a cada nome que é “eternizado” no rol do cânone, tantos outros ficam descartados, o cânone é necessário para que haja um padrão. A existência dele dá aos leitores uma espécie de plano de leitura, que pode ou não ser seguida, e caso seja seguida pode e deve ser questionada. Há uma importância de valores muito relevante no questionamento. O crítico Harold Bloom, por exemplo, defende n7o apêndice do livro Cânone Ocidental, uma lista chamada por ele de plano de leitura, que indica o cânone, na opinião dele. Este rol de autores e títulos é destinado aos leitores anglo-americanos, como indicação do que deve ou não ser lido por eles, caso desejem uma boa obra literária. A exclusão de inúmeros autores considerados de grande valor literário pela academia não faz da lista de Bloom inválida, como também não a faz obrigatória. Ela serve apenas de base para indicação para leitores dentro e fora da academia, uma espécie de ideograma. Referências BONNICI, Thomas. FLORY, A. Villibor. PRADO. M. Roberto. Margens Instáveis. Maringá. Eduem. 2011. BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Rio de Janeiro. Objetiva. 2005. _______. Literatura e Sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000. CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Companhia de Bolso. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso. Tradução de Cleonica Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas Literaturas: escolha e valor das obras crítica de escritores modernos. 2ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras. 2009. QUEIROZ, Rachel. Dôra, Doralina. Rio de Janeiro. José Olimpio Editora. 1989. QUEIROZ, Rachel. João Miguel. Rio de Janeiro. José Olimpio Editora. 1969. QUEIROZ, Rachel. Memorial de Maria Moura. Rio de Janeiro. Media fashion. 2008. QUEIROZ, Rachel. O Quinze. São Paulo. Editora Siciliano. 1993. 28 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 O CÂNONE LITERÁRIO E AS EXPRESSÕES DE MINORIAS: IMPLICAÇÕES E SIGNIFICAÇÕES HISTÓRICAS THE LITERARY CANON AND THE EXPRESSIONS OF MINORITIES: HISTORICAL IMPLICATIONS AND MEANINGS Lizandro Carlos Calegari - URI-FW/RS RESUMO: O objetivo deste trabalho consiste em tecer reflexões sobre o cânone literário, levando-se em conta os processos de seleção e exclusão de determinados grupos sociais. Considerou-se, nessa delimitação, a representação das mulheres, dos gays e dos negros na literatura brasileira. A proposta que se pretende defender é a de que tais grupos são marginalizados não apenas na sociedade, mas também figuram à margem do cânone literário. Tal exclusão, quase sempre, se dá por uma elite intelectual que procura assegurar valores conservadores. Nessa proposta, para efeito de análise, tomou-se como corpus textos de autores como Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu e Luis Silva. Palavras-chave: Cânone. Minorias. Exclusão. Abstract: This paper undertakes na approach to the literary canon, taking into account the process os selection and exclusion of certain social groups. In this delimitation, it was considered the representation of women, gays, and blacks in Brazilian literature. The proposal being defended is that such groups are marginalized not only in society, but also in literature. The exclusion, most of the times, occurs by an intellectual elite that seeks to ensure conservative values. Texts by Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, and Luis Silva undescore the present analysis. KEYWORDS: Canon. Minorities. Exclusion. As abordagens contemporâneas, calcadas ora nas premissas pós-estruturalistas, ora naquelas teorias defendidas pelos estudiosos que integram a linha dos Estudos Culturais, procuraram trazer para o centro das discussões acadêmicas aquelas produções colocadas à margem da sociedade e da história. O primeiro paradigma, por assim dizer, indagou a noção de “verdade” sustentada pelo estruturalismo e, com Michel Foucault, formulou-se a ideia de que tal conceito estabelece relações com o poder, o qual, atrelado ao conhecimento, dá acesso a modos de vigilância e controle subjetivamente internalizados. Se esse espaço que aceita e concebe os sujeitos plurais, por um lado, postulou que as identidades não podem mais ser definidas a partir das velhas concepções essencialistas, por outro, abriu portas para uma miscelânea de visões às vezes desencontradas. Os estudiosos da cultura, nesse viés, apostaram na multidisciplinaridade, mas também perceberam que os produtos culturais a serem 29 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 pesquisados não poderiam ser somente aqueles selecionados e celebrados por uma elite intelectual e artística. As implicações desses posicionamentos reverberaram num questionamento do cânone, em particular com o surgimento das críticas marxistas e femininas nos anos 1960, mas também a partir das avaliações pós-coloniais. Nesse sentido, o cânone, aos poucos, deixou de ser a expressão de valores universais e passou a se pautar na expressão das relações de poder. Assim, se, num primeiro momento, esse cânone excluía grupos minoritários e periféricos (não-brancos, mulheres, homossexuais, pobres), em virtude da necessidade de atender aos interesses dos grupos dominantes, agora, com a virada metodológica, não desancorada de condicionamentos sociais e históricos, passou a abrigar vozes dissonantes. Nessa perspectiva, como complementa Eduardo F. Coutinho (1996, p. 70), “discutir o cânone nada mais é do que pôr em xeque um sistema de valores instituído por grupos detentores de poder, que legitimaram decisões particulares com um discurso globalizante”. Ou seja, o modelo europeu, confundido com o padrão de universalidade a ser seguido, sufocava aquelas produções minoritárias situadas, muitas vezes, à margem da sociedade. Roberto Reis (1992), nessa mesma linha argumentativa, explica que o conceito de cânone se assenta num princípio de seleção e, por isso mesmo, de exclusão, não podendo, consequentemente, desvincular-se da questão do poder, pois quem seleciona e/ou exclui está investido de autoridade. O autor explica que os defensores do cânone argumentam que o critério da qualidade intrínseca de uma obra é determinante para o estabelecimento de seu valor estético – a sua “literariedade”. Nesse caso, o elemento externo não desempenharia nenhum papel na escolha de uma obra em detrimento de outra. Tal princípio, evidentemente, não se sustenta, pois mesmo aquele texto aparentemente destituído de marcas da realidade factual foi concebido dentro de uma determinada sociedade, história e época, logo formulado sob condicionamentos culturais e ideológicos específicos. Nesse sentido, como destaca o crítico em questão, “o significado de qual0quer juízo de valor sempre depende, entre outras coisas, do contexto em que foi emitido e de sua relação com os potenciais destinatários e a sua capacidade de afetá-los ou mesmo convencê-los” (REIS, 1992, p. 73). Se é possível falar da existência de um cânone, é porque ele foi concebido em algum momento. No caso da literatura ocidental, conforme observação de Reis, prepondera a exclusão de diversos grupos sociais, étnicos e sexuais, prevalecendo 30 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 autores europeus geralmente do sexo masculino, heterossexuais, brancos e pertencentes às elites. Como expõe o estudioso, “a literatura tem sido usada para recalcar os escritos (ou as manifestações culturais não-escritas) dos segmentos culturalmente marginalizados e politicamente reprimidos – mulheres, etnias não-brancas, as ditas minorias sexuais, culturas do chamado Terceiro Mundo” (REIS, 1992, p. 73). Conforme propõe o autor, não se questiona o cânone simplesmente incluindo um autor nãoocidental ou mais alguns livros escritos por mulheres, negros ou homossexuais, pois um novo cânone “não lograria evitar a reduplicação das hierarquias sociais” (REIS, 1992, p. 73). Assim, provavelmente, o problema não reside no rol de obras canônicas, “mas na própria canonização, que precisa ser destrinchada nos seus emaranhados vínculos com as malhas do poder” (REIS, 1992, p. 73). Em se tratando do conceito de literatura, é preciso pensá-lo dialeticamente. Ou seja, a partir de um conjunto de obras consideradas canônicas, define-se o conceito de literatura, e tal conceito, por sua vez, vai ditar o que é e o que não é literatura. Assim, se a produção minoritária permaneceu excluída de um determinando cânone é porque não figura ou não é concebida como literatura, logo não participa do conceito de literatura. Flávio Kothe (2002) observa que, diferentemente do que se verifica dentro do modelo acadêmico mais tradicional, a função da literatura deveria se antepor ao seu conceito. No seu entendimento, ao se conceituar o termo, estão se propondo definições fechadas, a-históricas, definitivas e, por vezes, excludentes. Do seu ponto de vista, é a função que determina a forma e a natureza do objeto: “não há uma natureza a priori, que faça com que o objeto seja de um modo ou de outro e determine a sua função. Pelo contrário, o gesto semântico inerente à formação do objeto e determinante de sua natureza decorre da relação entre elementos do real e intencionalidade humana” (KOTHE, 2002, p. 14). Assim, num momento em que as minorias parecem estar sendo reverenciadas por diversos setores da crítica, a função que tal produção desempenha na sociedade deveria abrilhantar um novo conceito de literatura. No âmbito da crítica literária, o processo de inclusão e/ou exclusão de produções pertencentes a determinados segmentos sociais postos à margem da sociedade tem implicações que atingem não somente as definições de cânone ou literatura. Conceitos como literariedade, engajamento, juízo crítico e universalidade, só para ficar em alguns, também são relativizados. Na esfera social e histórica, a rigor, esse esforço em se redimensionar o alcance da literatura pode ter significações específicas. O objetivo deste 31 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 capítulo, então, é percorrer a crítica e a produção de alguns grupos minoritários – mulheres, homossexuais e negros, mais notadamente –, procurando extrair dessa análise um sentido que justifique, em termos sociais e históricos, a emergência e a importância da literatura de minorias ou que tematizam essas minorias para os grupos marginalizados. Os textos comentados – contos, crônicas ou romances – servem de exemplo, verificação, para a proposta interpretativa que se pretende traçar. Em relação à história das mulheres, esta tem sido uma história de opressão, pelo menos depois do quarto milênio antes da era cristã, quando os homens começaram a estruturar o que se tornou o patriarcado. O esforço masculino, ao longo dos séculos, conseguiu subtrair das mulheres quase todos os seus direitos: não tinham expressão política, não eram proprietárias, não geriam negócio e não eram sequer donas de seus próprios corpos. Embora, em muitos países do mundo, as mulheres trabalhem mais do que os homens, o que, em princípio, garantiria a elas algum direito, suas capacidades sexuais e reprodutoras eram propriedades dos maridos. No mundo ocidental, aliás, exige-se que as mulheres criem seus filhos sozinhas nos limites isolados de um lar. Essa exclusão da vida política é condição para que não figurem como agentes nos rumos da história. Como se não bastasse isso, as religiões continuam corroborando a opressão feminina. A bíblia é usada como instrumento que restringe os seus desejos: não podem beber, fumar, vestir-se imodestamente ou mesmo manter relações sexuais fora do casamento. Nesse sentido, não dá para ignorar o fato de o papa ter nomeado bispos conservadores em todos os lugares do mundo. Como quer que seja, atualmente, em vários países, as mulheres são brutal e covardemente torturadas. No Irã, por exemplo, mulheres que lutam por sua preservação são mortas. Há, no país, inclusive, polícia (estranhamente composta por mulheres) que vigia o vestuário e o comportamento feminino. Na Argélia, a polícia registra, em seus arquivos, com tinta vermelha, como se fosse um crime, o nome daquelas mulheres divorciadas. No Afeganistão, elas devem vestir seus corpos com véus o tempo todo, não podem usar perfumes, bijuterias ou roupas justas, não podem andar no meio da rua, conversar, rir ou brincar com estranhos e estrangeiros. Em Israel, aumentou drasticamente o relato de abuso sexual dentro de casa, incesto e violência sexual contra mulheres. Na China do século XIX, a participação de mulheres em eventos sociais era condicionada ao uso de roupas que ressaltassem os seios e as nádegas bem como de cintas específicas que apertassem a cintura, dificultando a respiração, deformando o tórax e, em alguns casos, 32 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 provocando a morte. Muitas mulheres ligadas ao mundo muçulmano têm o genital mutilado. Todos os tipos de mutilação deformam seus órgãos, incapacitando-as ao orgasmo e à excitação sexual. Na sua forma mais severa, acarreta relações sexuais e partos dolorosos, doenças e morte. Em todos esses casos, a exigência pela virgindade, fidelidade e supressão dos desejos significa, antes de qualquer coisa, submissão, abuso de poder e violação dos direitos humanos (FRENCH, 1992). Esse conjunto de acontecimentos explica a exclusão das mulheres da literatura e, consequentemente, do cânone literário. É somente nos países ditos mais avançados da Europa – Inglaterra e França – que, no século XVIII, surgem manifestos escritos por mulheres que colocam em xeque a supremacia masculina. Assim, em virtude dessas primeiras ondas de feminismo, muitas mulheres tornaram-se escritoras, profissão até então eminentemente masculina. Entretanto, para não sofrerem retaliações, essas escritoras assinavam seus textos com pseudônimos. É o caso de George Eliot, pseudônimo da inglesa Mary Ann Evans, que publica The Mill on the Floss e Middlemarch, e George Sand, pseudônimo da francesa Amandine Aurore Lucile Dupin, autora de Valentine. No Brasil, muitas mulheres romperam o silêncio e publicaram textos de alto valor literário, denunciadores da opressão feminina, mas a crítica parece ignorar esse fato. Atualmente, reconhecem-se obras de escritoras como Adélia Prado, Clarice Lispector, Helena Parente Cunha, Hilda Hilst, Lya Luft, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Patrícia Melo e Zulmira Ribeiro Tavares – só para citar algumas poucas – que protestam contra valores e padrões patriarcais ou falam da autodescoberta feminina e a busca de identidade própria (ZOLIN, 2003). Lispector é um dos nomes mais aclamados pela crítica feminista quando o assunto é mulher. Ao lado de João Guimarães Rosa, Clarice Lispector coloca-se num dos pontos mais altos da moderna ficção brasileira de teor metafísico. Influenciada pelas tendências renovadoras oriundas da Europa, nos rastos de Heidegger e Sartre, a autora propôs um novo conhecimento do homem e do mundo. A sua produção está calcada na crise das certezas do homem. Seu primeiro livro, Perto do coração selvagem (1944), aliás, vai além disso e situa-se na introspecção psicológica de linha proustiana. A protagonista desse seu romance de estreia, Joana, busca o conhecimento do real, propõe-se a denunciar a superficialidade estéril da vida que aprisiona os indivíduos – em particular, as mulheres – na rotina cotidiana. Esse aprisionamento do personagem deve ser visto não como condição última, mas a ponta de um iceberg para se pensar a condição 33 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 feminina. Em Clarice, o íntimo toca o universal, e desse amalgama brota a grandeza de sua obra. As mulheres de Lispector vagueiam em seus textos, todas vivendo a mesmice do dia-a-dia, totalmente alienadas de suas possíveis verdades. Em Laços de família, livro de contos publicado em 1960, vários textos denunciam essa violência contra a mulher. Em “Amor”, a dona-de-casa, esposa e mãe Ana apenas percebe a mediocridade de sua existência quando, numa circunstância banal de sua rotina, vê, num cego parado mascando chicletes, um ciclo sempre igual de sua vida. Em “Uma galinha”, a condição feminina aparece alegorizada na própria figura da galinha que, pelo fato de ter posto um ovo, é poupada de seu destino: ser o almoço de domingo. O ovo representa, aqui, a capacidade reprodutiva da mulher, sendo esta respeitada pelo fato de gerar mão-de-obra. A última frase do conto é extraordinária: “[a]té que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se os anos” (LISPECTOR, 1998, p. 33). “A menor mulher do mundo” narra a história da descoberta, na África Equatorial, de uma tribo de pigmeus de pequenez surpreendente. Dentro dessa tribo, a menor das menores mulheres, de 45 cm, apelidada de Pequena Flor, torna-se objeto de atenção dos pesquisadores, que publicam sua foto no jornal de domingo, onde coube em tamanho natural. Essa mulher será ridicularizada pelas mulheres das grandes cidades. No fundo, o conto quer chamar a atenção para a falta de união entre as mulheres, elo este que foi rompido em virtude dos malogros históricos. “Preciosidade” é a história de uma adolescente que receia os olhares dos homens. Esse medo denuncia a falta de proteção e a fragilidade da mulher dentro do sistema patriarcal. É importante atentar não somente para o conteúdo da produção clariceana, mas também para o modo como a autora concebe a escrita dos seus textos. Conforme Sandra R. G. Almeida (1998, p. 190), Lispector foi a única escritora que vislumbrou um posicionamento crítico e indagador no que tange às questões de gênero. Embora inicialmente ignorada, a análise crítica do lugar da mulher enquanto sujeito-autor ganhou destaque nas vertentes modernizantes da ficção brasileira. Comparada a Virginia Woolf, a escrita de Clarice foi definida como “feminina”. De acordo com Almeida, “[e]m suas análises da situação da mulher em uma sociedade patriarcal, Lispector, assim como Virginia Woolf, utiliza, o que se poderia delinear como uma tendência modernizante em outros países, uma linguagem poética que lhe permite expressar, não somente a condição marginal da mulher, mas também a possibilidade da existência de uma escrita feminina” (ALMEIDA, 1998, p. 191). A escrita clariceana, tal 34 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 como se observa em A paixão segundo G. H. (1964), é caracterizada pela fragmentação, pela presença de monólogos, brechas e silêncios, traços esses que servem como “impulso subversivo para a expressão de uma voz feminina” (ALMEIDA, 1998, p. 192). Como complementa a autora, “tal escrita se caracteriza por um desafio no sentido que tem que enfrentar um dilema paradoxal: o desejo de subverter uma ordem imposta e a consciência inevitável de que se encontra social e culturalmente inserida no mesmo sistema que tenta transgredir” (ALMEIDA, 1998, p. 192). Como se observa, trata-se de uma escrita marginal que encontra dificuldade em tentar se expressar por meios representativos que não se encontram numa sociedade ocidental. É uma escrita oriunda de um espaço de alteridade que escapa à representação, definindo-se como uma “impossibilidade de acordo com os parâmetros lógicos e objetivos” (ALMEIDA, 1998, p. 193). Essa escrita da alteridade, que não se define pela logicidade, lida com aquilo que a sociedade patriarcal considera impossível, mas que Clarice desafia como uma possibilidade e um potencial para expressão, concebendo, assim, um espaço transgressivo. Nesse sentido, Lispector “desconstrói espaços convencionais e negativos aos quais as mulheres têm sido relegadas e, ao mesmo tempo, desestabiliza as oposições dicotômicas que reforçam a opressão feminina” (ALMEIDA, 1998, p. 193-194). Não só isso, o discurso feminino de sua prosa revisa, reescreve e mesmo parodia as noções masculinas de um espaço tradicionalmente feminino. Como complementa Almeida, é um discurso que “ataca o sistema dominante em sua própria estrutura através de um texto densamente poético e fluido que destrói convenções tradicionais – um escrita de ruptura e subversão” (ALMEIDA, 1998, p. 194). As lutas das mulheres para se libertarem das amarras do patriarcado têm contribuído muito para o desenvolvimento ético e moral das sociedades. Foram elas, e não os homens, que ensinaram a falar do corpo e da sexualidade. Para as mulheres, a sexualidade se concebe como algo salutar, que tem a ver com a ideia de uma utilização correta, saudável e benéfica do corpo, diferentemente dos homens, que tratam a sexualidade a partir de uma nomenclatura pornográfica. Com isso, os estudos feministas foram determinantes para a busca de uma nova concepção de identidade e também abriram caminho para que aquelas identidades marginais entrassem em cena. Os estudos queer, a propósito, só foram possíveis graças aos esforços depreendidos pelas mulheres para que deixassem de ser agentes do patriarcado masculino. Como a desconstrução e outros movimentos contemporâneos, a teoria queer usa o marginal, o que foi posto de 35 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 lado como perverso, para analisar a construção cultural do centro: normatividade heterossexual. Nesse sentido, a teoria queer tornou-se o espaço de um questionamento produtivo não apenas da construção cultural da sexualidade, mas da própria cultura, tal como baseada numa negação das relações homossexuais. Assim como o feminismo e versões dos estudos étnicos, ela obtém energia intelectual de sua ligação com os movimentos sociais de libertação e dos debates no interior desses movimentos sobre estratégias e conceitos apropriados. A perspectiva queer consistiria numa reação à heteronormatividade compulsória, não contra a heterossexualidade em si, pois esta não deixa de ser uma opção entre as outras. A teoria queer inclui não somente questões sexuais ou de desejos sexuais, mas principalmente um amplo quadro de dinâmicas sociais – maneiras de se vestir, aparência corporal, discurso, profissão, formas de ser no mundo, classe social – que é homologamente correlato à sexualidade enquanto discurso dominante na sociedade contemporânea. Ademais, a perspectiva queer 1) se fundamenta numa epistemologia aberta que repudia as definições fixas sobre as quais se firma o patriarcado e suas definições de sexualidade; 2) não propõe a elaboração de uma narrativa mestra, já que 3) admite a mais ampla variedade possível de interpretações e de modelos de conhecimento que podem romper com o autoritarismo (FOSTER, 2000). Em outros termos, o queer vai contra um modelo de identidade simplista e redutora da diversidade, representado, sobretudo, por uma experiência masculina, branca e de classe média. Com isso, portanto, o queer não almeja um projeto cujo objetivo é estabelecer uma verdade dos constructos sociais. Ele aceita todas as formas de identidade sexual, questionando as forças sociais e históricas que subjazem a aceitação de um modelo em detrimento de outro. Assim, o queer não condenaria as diversas atitudes dos sujeitos sociais no que tange à sexualidade, mas indagaria as origens e a preponderância dos ideologemas patriarcais. Isso significa que o patriarcado reprimiu violentamente aqueles grupos que não atendiam aos seus ideais, de forma que os homossexuais foram perseguidos e condenados imperdoavelmente. Assim, um dos dilemas que mais repugna o queer diz respeito ao fato de a homossexualidade ser tratada como doença, perversão ou um mal que deve ser abolido. Em relação à palavra heterossexual, dentro da área médica, implica o perfeito funcionamento do corpo, coincidindo, assim, com a ideia de saúde; no campo jurídico, o casamento entre indivíduos de diferentes sexos é legal, o que 36 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 garante direitos tanto para o homem quanto para a mulher; na instância religiosa, a heterossexualidade é sustentada, pois é o meio para a constituição da família nuclear, unidade social estimulada pela igreja. O homossexual, por se contrapor ao heterossexual, implicaria, então, uma definição que seria correlata à doença, à ilegalidade, ao pecado, à imoralidade. Ainda para o discurso médico e religioso, somente a estimulação dos órgãos sexuais resultaria no prazer legítimo, já que está atrelada à reprodução. Ademais, por exigir a presença de ambos os sexos, ter-se-ia a figura do dominador e a do dominado, o subalterno. Para a crítica queer, o termo homossexual não é correlato à doença, perversão, ilegalidade, pecado ou imoralidade. É um grupo de pessoas que apresenta um desejo distinto a um padrão de gosto convencional dominante, o que não seria uma condição suficiente para sofrer algum tipo de discriminação ou restrição. Nesse sentido, existe uma busca irrefreada para justificar as causas da homossexualidade (mas não da heterossexualidade). Para alguns, a definição sexual seria resultado de um gen dominante que conduz o indivíduo a uma aceitação do seu destino biológico; outros propõem que a homossexualidade resulte de uma educação familiar com um pai precário na consecução de seu papel ou então com uma mãe dominante; outros ainda defendem que é consequência de uma dinâmica de poder, em que há a lei do mais forte que impera sobre o mais fraco; há também os que acreditam que a homossexualidade masculina é consequência de uma violência inerente a um mundo homogeneamente masculino (o exército, o cárcere, o seminário, etc.) ou que o lesbianismo é consequência da marginalidade de um mundo homogeneamente feminino (os conventos, por exemplo). Em particular às causas da homossexualidade, talvez nenhuma dessas premissas (que se enquadram em parâmetros biológicos, sociais ou culturais) interferem em tal definição; talvez algumas delas sejam responsáveis; talvez todas elas, conjugadas, contribuem para um perfil sexual. Independentemente disso, o queer reage à ideia de anormalidade, inversão, ilegalidade dentro da qual a homossexualidade se circunscreve modernamente. Essas diferenças e preconceitos têm contribuído para o problema da homofobia, que consiste basicamente na utilização da violência física e psicológica para que os indivíduos cumpram com fidelidade ao heterossexismo compulsório, buscando punir qualquer gesto que pode ser considerado uma falta de lealdade a esse último. A homofobia serve tanto para legitimar as ideologias sociais que se circunscrevem em 37 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 torno do heterossexismo compulsório quanto para excluir da sexualidade legítima todos aqueles indivíduos sociais que não cumprem com as normas desse heterossexismo compulsório. Nessa perspectiva, uma das formas mais visíveis de como a homofobia se manifesta corresponde ao que pode ser chamado de aumento da metonímia. Entendendo que metonímia consiste no reconhecimento de uma totalidade a partir de um detalhe que define certo elemento – como, por exemplo, partir do detalhe de a mulher usar calças e chegar à totalidade de ser lésbica, ou partir do detalhe de o homem usar brincos e chegar à totalidade de ser gay –, a homofobia trabalha para identificar um detalhe, qualquer que seja, para chegar a uma totalidade inquestionável. É justamente isso o que faz com que a homofobia se torne perigosa: um homem usa brincos, logo ele é identificado como homossexual; como consequência, está contaminado pelo vírus da AIDS; podendo, inclusive, infectar outros. Por tudo isso, qualquer modo de extermínio desse sujeito se torna legítimo. Esse tipo de violência pode não acontecer diariamente no tecido social, mas está lá como uma ameaça constante que umedece a expressão dos direitos humanos. Na literatura brasileira, vários escritores têm dedicado atenção à temática do homoerotismo e da homofobia. Alguns nomes que podem ser citados são: Lúcio Cardoso, Gasparino Damata, Fernando Gabeira, Glauco Mattoso, Nelson Rodrigues, João Guimarães Rosa, Silviano Santiago, Lygia Fagundes Telles, Nélida Pinõn e mesmo Clarice Lispector. Caio Fernando Abreu escreveu contos e novelas em que o problema da homofobia como resultado de um processo histórico de exclusão é reiterado. O espaço narrativo dos seus escritos é povoado por subjetividades que representam um amplo quadro em que questões relativas à sexualidade ou gênero escapam dos modelos socialmente legitimados. O autor ataca qualquer sistema ideológico que pode marginalizar as diferenças ou que pode excluir o sujeito que deseja se realizar emocionalmente ou sexualmente conforme suas próprias escolhas. Os contos “Terça-feira gorda” e “Aqueles dois”, da obra Morangos mofados (1982), são exemplares nesse sentido. O primeiro narra o envolvimento de dois homens num dia de carnaval e a sua frustração perante as atitudes das pessoas que testemunham o acontecimento. Durante a festa carnavalesca, os protagonistas se aproximam e estabelecem um contato erótico, o que atrai a atenção do público à sua volta. Essa suposta desobediência às normas sociais concorre para a manifestação de preconceitos, uma vez que o contato físico e erótico 38 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 entre ambos acontece em ambiente público, onde a sociedade é testemunha das atitudes e dos comportamentos que assumem. No conto, um importante fator que intensifica a homofobia tem a ver com as circunstâncias em que tal discriminação acontece: durante uma festa carnavalesca. Por definição, no carnaval, não haveria discriminação entre atores e espectadores, todos participariam ativamente da ação carnavalesca, da vida às avessas. Ele se caracterizaria, ainda, por proceder a uma inversão do cotidiano, por corresponder à vida desviada de seu curso normal. Nesse sentido, se o carnaval aceita tal inversão de valores, os sujeitos sociais deveriam, a princípio, ser condescendentes à manifestação de práticas homoeróticas. No entanto, não é isso o que acontece: a sociedade reconhece os limites e expulsa aqueles indivíduos que profanam as normas heterossexuais. Isso significa que a homofobia, que dialoga com a violência internalizada dos sujeitos, prepondera sobre regras estabelecidas por um festejo em particular. O título, aliás, é bastante sugestivo para a interpretação do conto. A terça-feira gorda é o último dia do carnaval e antecede a quarta-feira de cinzas. O sentimento social é, pois, de aproveitar ao máximo esse último dia. No texto, a alegria está na própria festa, mas também na celebração alegre e coletiva da morte. O carnaval, nessas chaves, serviria para camuflar o que há de violência e desrespeito no tecido cotidiano das relações humanas. A violência contra os protagonistas, considerando-se que se deu durante as festas carnavalescas, se traduz numa brincadeira a mais, algo que implica a pouca importância ou o pouco valor dados aos indivíduos sociais de interesses homoeróticos. Eles são vistos como subcategorias, reduzidos à condição de objetos de bizarria e/ou de ridicularização. Todos esses episódios, em última instância, traduzem a falta de espaço e de liberdade dada aos grupos homossexuais na sociedade contemporânea. Em Morangos mofados, outro conto que problematiza a exclusão social de indivíduos que supostamente não atendem à heteronormatividade é “Aqueles dois”. Os protagonistas são Raul, 31 anos, oriundo do norte, e Saul, 29, proveniente do sul. O espaço onde acontece o encontro dos dois é uma firma. A natureza do conto é ambígua, pois detalhes que apontam para a suposta homossexualidade dos dois encontram argumentos contrários, logo não dá para afirmar com precisão a condição sexual deles. De qualquer forma, o comportamento de Raul e Saul concorre para a demissão deles da firma, a qual, por sua vez, é chefiada por um homem, um patriarca, que dita e observa as 39 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 regras de conduta e de comportamento. No texto, o prédio onde a firma funciona é adjetivado como “feio” e “parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica” (ABREU, 1984, p. 129). A sociedade onde os protagonistas vivem apresenta um comportamento homólogo a uma prisão ou a uma clínica, uma vez que, nelas, os indivíduos são vigiados e orientados a um comportamento que satisfaça às demandas sociais. A demissão dos dois é a própria exclusão a que a sociedade – representada, aqui, por homens e mulheres que obedecem a normas ditadas por um homem – os submete. Existem indícios de que Raul e Saul são homossexuais, mas não há qualquer ratificação dessa hipótese. Seja como for, aos olhos de uma sociedade preconceituosa, eles seriam homossexuais, consequentemente, anormais e doentes. “Aqueles dois” não é um conto que se volta prioritariamente à questão do homossexualismo, porque a relação dos rapazes como amantes é apenas representada obliquamente; é antes sobre homofobia, porque é essa dinâmica que é diretamente enfatizada no texto. A homofobia ameaça as aspirações de felicidade das pessoas cujo comportamento parece não atender às prerrogativas do heterossexismo compulsório e o seu discurso é inquestionável e irrepreensível. Ou seja, a mera pressuposição de que os dois indivíduos são homossexuais assegura a sua verdade. A homofobia não é generosa em seus julgamentos. Em situações em que pode haver simplesmente uma forte amizade entre sujeitos de mesmo sexo, existe a possibilidade de eles serem julgados impiedosamente. A exemplo das mulheres e dos homossexuais, a história dos negros também tem sido marcada pela violência e pela exclusão. A presença negra, no Brasil, teve início por volta de 1550 e, tanto na mineração quanto na agricultura, a mão-de-obra de escravos africanos foi explorada por portugueses, espanhóis, ingleses ou holandeses. A expansão da atividade açucareira no país favoreceu o comércio entre América, Europa e África. Cerca de três milhões de africanos foram trazidos para o Brasil, sendo que muitos deles morriam nas viagens dos navios negreiros. Os negros não eram considerados seres humanos, mas mercadorias. Viviam na promiscuidade, de modo que a dureza do trabalho e a precariedade da alimentação faziam com que a sua vida útil chegasse no máximo a dez anos. Qualquer deslize implicava severos castigos: eram açoitados com um chicote que abria fendas onde se punha sal; eram castigados com um instrumento de ferro que prendia mãos e pés; e, em caso de faltas mais graves, podiam merecer penas 40 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 mais cruéis como castração, amputação de seios, quebra de dentes a marteladas e emparedamento vivo. Apesar da enorme presença e contribuição dos negros em diversos âmbitos da economia, da política, da literatura e da cultura brasileira, eles, na maioria das vezes, foram avaliados sob uma ótica racista. No início do século XX, circularam em solo nacional inúmeros pensamentos preconceituosos e autoritários oriundos de intelectuais como Miguel Reale, Gustavo Barroso e Oliveira Vianna. Este último (1956), a rigor, formulou a ideia de que o aperfeiçoamento social do país seria possível graças a um processo de branqueamento. Com menos negros, o Brasil seria mais forte. Com tabelas e estudos investigativos amparados na concepção de ciência de seu tempo, o autor procurou demonstrar que a mestiçagem deveria caminhar no sentido de diminuição do coeficiente de negritude do país, para que a nação fosse politicamente fortalecida. Também em meio a este contexto em que circulavam ideias de intelectuais conservadores, vem a público o pensamento de Gilberto Freyre. Em seu livro Casa grande e senzala, de 1930, o autor tem um posicionamento contrário ao de Vianna. Se, para este, a presença de negros é um fator de fragilidade, para aquele, a cultura brasileira é enriquecida pela integração de elementos portugueses e africanos. Em sua tese, está o princípio de uma integração da contribuição cultural dos negros como necessidade interna da constituição da sociedade brasileira. Dito de outro modo: em vez de excluir o elemento negro rumo à purificação ariana, propõe admitir e valorizar a sua contribuição. Não obstante essas ideias contrárias, a situação do negro no Brasil contemporâneo é assunto cada vez mais presente em debates universitários que se ligam frequentemente a movimentos sociais organizados. No campo das Letras, pesquisadores de Literatura Comparada e Estudos Culturais têm avançado nas reflexões. Apesar de prevalecer algum tipo de censura, alguns trabalhos têm se destacado no âmbito dos estudos literários. Pesquisadores estrangeiros como David Brookshaw, Gregory Rabassa e Raymond Sayers dedicaram suas atenções à questão do negro na literatura brasileira. No Brasil, há pesquisas e ensaios de Eduardo de Assis Duarte, Elisa Larkin, Paulo Leminski, Regis de Morais, Roger Batiste, Thales de Azevedo e Zilá Bernd, dentre outros. Essa última (1987) cita como importante o papel do Centro de Estudos AfroOrientais da Universidade Federal da Bahia e do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Faculdade Cândido Mendes para este ramo de investigação. Este quadro não se 41 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 restringe a esses nomes. Por exemplo, no início do século XX, em 1915, mais ou menos, já surgia uma imprensa voltada para a questão do negro no Brasil. Não se pretende, aqui, apresentar uma lista exaustiva de nomes de escritores que se dedicaram à causa negra (os livros de Brookshaw [1983] e de Bernd [1987, 1988, 1992], dentre outros, o fazem muito bem); antes, busca-se demonstrar como um desses autores, Luís Silva, conhecido como Cuti, contribui para a “redescoberta” e afirmação do “eu-negro” em alguns de seus contos extraídos do livro Negros em contos, de 1996. Cuti foi um dos fundadores e membros do Quilombhoje-Literatura de 1983 a 1994, e um dos criadores e mantenedores da série Cadernos negros de 1978 a 1993. Publicou várias obras (Batuque de tocais [1982], poemas; Suspensão [1983], teatro; A pelada peluda no Largo da Bola [1988], novela juvenil; ...E disse o velho militante José Correia Leite [1992], memórias, este em coautoria como o próprio José Correia Leite) e tem textos em diversas antologias. Assim, no conto “Boneca”, Cuti problematiza a relação entre brancos e negros e tematiza o preconceito velado existente na sociedade brasileira. Trata da história de um pai que, na véspera do natal, sai à procura de uma boneca negra para sua filha. Nas várias lojas em que entra, escuta ironias finas a propósito das características do presente. Quando finalmente encontra o produto, ocorre uma série de transtornos no armazém: ele não é devidamente bem atendido, é confundido com um africano, e a moça que lhe presta serviço sofre um acidente. Essas situações demonstram que, embora perpasse no país uma ideia de democracia racial, a sociedade não está preparada para lidar com o diferente. Outro texto que marca a tensão entre brancos e negros é “O batizado”. Um casal de negros oferece o batizado de seu filho Pedrinho a um casal de brancos. Paulino, irmão do pai da criança, fica indignado com a situação e, bêbado, faz um discurso de desaprovação do gesto, algo que motiva uma desordem na festa. Em última instância, o conto retrata o preconceito que há entre os próprios negros bem como destes para com os brancos, novamente reforçando a premissa de que a igualdade racial não é tão plena como certos discursos têm procurado sustentar. Em “Ah, esses jovens brancos de terno e gravata!”, o racismo aparece de forma explícita. A fila para a entrada em um banco está demorada, e um jovem culpa, sem um motivo convincente, os negros por isso: “O Brasil não vai pra frente por causa desses preto e desses baiano. Essa gente é que é o nosso atraso. O governo devia acabar com tudo eles...” (SILVA, 1996, p. 101). A fala do rapaz chama atenção para o preconceito internalizado nas pessoas, mais 42 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 especificamente para a política de branqueamento ou extermínio sistemático como forma estratégica para solucionar os males brasileiros. Esses contos tratam das relações entre brancos e negros, macropoder e micropoder, violência pública e privada, discriminação e preconceitos. No livro de Cuti, aliás, há outros textos em que esses elementos se fazem presentes. Em “Carreto”, a disputa por algumas moedas leva meninos pobres a transportarem os carrinhos de mercadorias das senhoras que saem das compras carregadas. Muitas vezes, o duelo pela freguesia gera atrito entre os concorrentes: “Ô, macaco! Fora daqui, tição apagado!” (SILVA, 1996, p. 27). Em “Preto no branco”, Betão, um negro, namora uma moça branca, Marli, cuja família é contra o relacionamento. Depois de muitas dificuldades em função da cor, ele é promovido pela empresa onde trabalha. Surpreendentemente, quem vai até lá pedir emprego é Rubinho, o cunhado, irmão de sua companheira, mas, ao se deparar com Betão como contratante, ele grita: “Enfia o emprego no cu. Nego nenhum vai me dar ordem!” (SILVA, 1996, p. 38). Em “Vida em dívida”, um moleque é acusado por um vendedor – talvez injustamente – de furtar dinheiro de sua loja. Manoel, dono do estabelecimento, assim se refere ao garoto: “Filhos de rato! Fodo-os! Só servem pra pedir. Ou então roubar. Fodo-os! Vão roubar o diabo, se quiserem” (SILVA, 1996, p. 46). Aqui, tem-se uma metonímia, ou seja, a parte pelo todo, sendo todos os negros julgados pela atitude de um. Mulheres, gays e negros – esses grupos, ao lado de outros, por terem sido colocados à margem da sociedade, da história e da literatura, denunciam sua condição de exclusão, mas principalmente de sofrimento. Se, hoje, tais segmentos parecem surgir, ainda que às vezes timidamente, no âmbito das discussões acadêmicas, porque vinculados à produção artística, é devido ao fato de uma mudança de paradigmas e do entendimento de que avultam como parcelas que detêm uma outra história, ou seja, são indivíduos cujos relatos são portadores de uma acusação a um sistema de poder autoritário. Além disso, o surgimento de escritos que retratam a condição de humilhação das mulheres, dos homossexuais e dos negros ocorre pela necessidade de se agregarem valores cujo intuito radica em torno da afirmação de uma identidade rasgada e dilacerada pelas condições históricas. Ao que me parece, subjacente à busca dessa integração identitária, tem-se um esforço por parte de muitos escritores de superar um trauma imposto pelas circunstâncias históricas. 43 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Referências ABREU, Caio Fernando. 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ABSTRACT: This article aims to trace a small panorama of the female spanish american literature, as well as its formation. For this we gone limit the overview, to talk only about Josefina Plá, one spanish artist, who tenaciously developed his arts in Paraguay, her work are a genuine portrait of a great literature, his work is not only latin american but also universal. Therefore, Josefina Plá, can be notoriously call as one of the exponents in the spanish american literature, as such in the universal literature. Keywords: Spanish-American Literature. Female. Josefina Plá. BIOGRAFIA Seguí el camino al que me echaron dormí en la cama que me dieron me lavé la cara en las lluvias de las tormentas que vinieron comí un pan hecho con la harina que mis propios huesos molieron y bebí el agua de azul frío del pozo vuelto que es el cielo. Siguiendo el croquis del tesoro En el baúl del bucanero llegué al jardín de la ceniza para saber que soy correo de algún secreto ya borrado de no sé cuál caduco pliego polvoso mensajero errado sin otra opción que su regreso.3 (PLÁ, Josefina,1996, p. 122) 3 Trad. nossa: “Segui o caminho ao qual me jogaram/ dormi na cama que me deram/ lavei o rosto nas chuvas/ das tormentas que vieram/ comi um pão feito com a farinha/ que meus próprios ossos moeram/ e bebi a água de azul frio/ do poço virado que é o céu / / Seguindo o esboço do tesouro/ no baú do corsário/ cheguei ao jardim de cinza/ para saber que sou correio/ de algum segredo já apagado/ de não sei qual papel caduco/ poeirento mensageiro errado/ sem outra opção que seu regresso.” 45 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 1. Considerações iniciais De acordo com Thomas Bonnici, “Tradicionalmente o termo „cânone‟ refere-se a uma seleta lista de obras literárias consideradas „grandes‟, „valiosas‟, „universais‟ e „duráveis‟ e, consequentemente merecedoras de prestígio acadêmico permanente e de imprescindível imitação” (BONNICI, 2011, p.105), no entanto, quais são os instrumentos escolhidos para que esta ou aquela obra literária seja considerada canônica ou não? O que valoriza ou não uma obra para que esta seja incluída ou excluída do cânone literário? E os bons autores que ficaram esquecidos, onde colocá-los? Frequentemente nossas opiniões sobre obras são formuladas com base em experiências anteriores de julgamento, raramente lemos uma obra sem um prévio julgamento sobre esta, que se dar por diversos fatores, local de produção, idioma, no caso de obras novas ou desconhecidas ou críticas, indicações de amigos ou professores no caso de obras já conhecidas. Mas é a partir da reflexão sobre história da literatura que se pode examinar como públicos leitores aprovam ou reprovam autores e obras, com que fundamentos e critérios o fazem. O conceito de valor pode ser verificado em tensão com a noção de cânone. A atribuição de valor não se faz no vazio, mas em meio a um campo de referências historicamente firmadas, encontramos obras e autores consagrados, enumerados nos mais diversos manuais de história literária. Roberto Reis (1992) ressalta, em relação à literatura brasileira, que é necessária uma discussão a respeito do cânone literário, pois “há poucas mulheres, quase nenhum não-branco e muito provavelmente escassos membros dos segmentos menos favorecidos da pirâmide social” (REIS, 1992, p. 73), e esta não é uma realidade exclusiva da literatura brasileira, na literatura hispano-americana também ocorre o mesmo, e impressão que fica é que tais classes nunca produziram algo dito qualitativo, o que não se confirma, na literatura hispano-americana, por exemplo, são inúmeros os autores esquecidos, pelas mais diversas razões nos cursos de Letras. Nas universidades brasileiras, grande parte das pesquisas que tem como objetos de estudos obras de literatura hispano-americana concentram-se em grandes nomes tais como Gabriel García Marquéz, Júlio Cortázar, Mário Vargas Llosa, Pablo Neruda e Jorge Luis Borges, deixando de lado escritores de grande qualidade, que são algumas vezes lembrados outras não, e que por conta disso permaneces no esquecimento e na ignorância da maioria dos alunos dos cursos de Letras. Josefina Plá, escritora paraguaia, se encontra neste meio, o meio dos autores de qualidade que são esquecidos dentro dos cursos de Letras. A proposição deste artigo é um pequeno panorama da literatura hispano-americana e as contribuições de Josefina Plá para o desenvolvimento desta. 46 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 2. Da literatura hipano-americana e Josefina Plá O que se tem, hoje, por literatura hispano-americana vem se formando a partir do longo processo histórico de colonização da América espanhola. No século XVI, começa o processo de colonização da América pelos espanhóis, estes trazem da Europa toda sua cultura e a implantam na América, fundam cidades, expandem seus territórios. Com isso, grande parte ou quase toda a cultura de grandes civilizações indígenas, como os Astecas, os Maias e os Incas se perdem, no entanto, suas essências são mantidas. A partir desse fato histórico, a mistura das essências das culturas locais com a européia, se produz uma mestiçagem das culturas indígenas e européias. O resultado dessa mistura de culturas não é nem uma cultura européia fortalecida, nem uma cultura indígena fortalecida, mas sim uma síntese das duas culturas. A esta síntese se une outra cultura, a africana, trazida pelas mãos dos escravos que vêm para a América como mão de obra em alguns lugares do novo continente. Lo que vino a realizarse en América no fue ni la permanencia del mundo indígena, ni la prolongación de Europa. Lo que ocurrió fue otra cosa y por eso fue Nuevo Mundo desde el comienzo. El mestizaje comenzó de inmediato por la lengua, por la cocina, por las costumbres. Entraron las nuevas palabras, los nuevos alimentos, los nuevos usos.4 (USLAR PIETRI, A., 1990, p. 350) Os poetas e escritores que aqui chegaram, vindos de uma Europa tradicionalíssima e “culta”, depararam-se com uma explosão de cores, de cheiros, de sabores da cultura popular americana. Logo a mestiçagem, também, esta presente na literatura produzida no Novo Mundo, pois esta, a Literatura, como nos afirma Candido (2000), é projetada na realidade, o que já vem sendo posto desde as concepções aristotélica da mimesis. As primeiras manifestações literárias da América Hispânica são influenciadas pela literatura da metrópole. Nessa época, a América Hispânica importava tudo, o que seria relativo à cultura, da Espanha, porém com certo atraso. Por isso, segundo Octavio Paz (1979), não se pode falar de uma literatura estritamente hispano-americana até a aparição dos modernistas. Afirmar que é um estilo a parte da literatura espanhola é um erro. Os poetas e escritores, nessa época, não tinham uma manifestação de valorização do “ser americano”. Em seus textos, eles se referiam a lugares bucólicos e perfeitos. Somente depois do século XVII, houve uma preocupação, por parte dos hispano-americanos, pela busca de uma identidade própria, algo que não os deixassem em total dependência da Espanha, pois culturalmente não eram europeus, não eram indígenas e tão pouco africanos, a “americanidade designa, em sua reflexão, as marcas que 4 Trad. nossa: “O que veio a realizar-se na América não foi nem a permanência do mundo indígena nem o prolongamento da Europa. O que ocorreu foi outra coisa e por isso foi Novo Mundo desde o começo. A mestiçagem começou de imediato pela língua, pela cozinha, pelos costumes. Entraram novas palavras, novos alimentos, novos usos.” 47 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 a cultura e o falar populares adquirem por distanciarem-se dos padrões da norma culta emanada da Europa” (BERND, 2005, p. 21), distantes exatamente por incorporarem tudo o que está a seu redor, toda a América à sua cultura. Os hispano-americanos eram e são, até hoje, uma síntese de todos esses povos. Comentando o processo de identificação, processo esse que é de íntima relação com o assunto aqui abordado, Stuart Hall alude sobre os mecanismos de identificação que são utilizados para que se veja unido por alguns traços em comum, ele comenta: As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos [...]. As culturas nacionais ao produzir sentido sobre a “nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. (HALL, 2005, p. 50-51) A construção desses significados também passa pelas manifestações artísticas culturais que determinado povo se faz. A identidade enquanto produção de imaginário coletivo pode ser assumida por uma nação a partir de uma série de discursos fundamentadores de mentalidades. Isso quer dizer que ao longo de um processo identitário várias estratégias de significação no sentido de reunir através dos símbolos tais como o hino, a bandeira, os heróis e os fracassos que permeia a história de um estado-nação, são lançados a mão para dar ao sujeito uma noção de pertencimento a algo maior que suas individualidades, o que não acontecia totalmente na formação da América Hispânica, pois todos estes valores eram oriundos da península Ibérica. Segue-se ainda em Hall: [...] a nação não é apenas uma entidade política mas algo que produz sentidos – um sitema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; eles participam da idéia da nação tal como representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que explica seu poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade.(HALL, 2005, p. 49) A colaboração da literatura para construir esse conceito de identidade foi de grande importância no decorrer da criação do valor identitário hispano-americano. Segundo Franco (2001), os intelectuais hispano-americanos eram pessoas ligadas ao clero ou aos filhos de proprietários rurais e empregados públicos. A tradição literária era clássica e espanhola, e ficava às voltas dos temas pastoris, dos poemas de amor e dos de cunho religioso. Não havia uma literatura feita a respeito das realidades que estavam postas na América, mas não por falta de escritores de talento, e, sim, por conta da colonização sofrida. Não podiam eles absorver das 48 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 experiências imediatas de suas vidas, pois viviam como parasitas intelectuais da grande metrópole. Y aunque los escritores españoles y los ya nacidos en América pero de origen español hicieron grandes esfuerzos para encajar esta realidad dentro de las categorías que les eran familiares, las circunstancias les obligaron a menudo a seguir otros caminos.5 (FRANCO, 2001, p. 18) Como literatura do século XVI, a mais predominante foi à épica e houve também crônicas a respeito das façanhas dos conquistadores. Já, nesse século, há uma distinção entre as poesias populares e as poesias acadêmicas, latinizadas, mas, segundo Franco (2001), foi à poesia lírica a mais habitual das atividades cortesãs ao longo de todo o período colonial. Em meio a toda essa mistura de culturas, essa contradição, nos modos de vida, surge, segundo Franco (2001), a maior figura do período colonial; a monja mexicana Sóror Juana Inés de la Cruz. Pelo fato de ser mulher, Sor Juana Inés de la Cruz estava em uma posição ainda mais difícil que a de todos os outros escritores hispano-americanos, pois a mulher da época só tinha dois destinos, ou servir ao matrimonio ou a vida religiosa. Inés de la Cruz opta pela vida religiosa, depois de servir a corte, para poder permanecer o mais próximo possível do conhecimento, já que a Igreja Católica era quem possuía os livros na época. Nas palavras de Franco (2001), Inés de la Cruz, como poetisa, foi mais intelectual do que lírica. Em seus poemas, os sentimentos parecem estar em contradição com o apaixonado amor que sentia pelas ciências. Para Franco, a poetisa foi um dos exemplos de escritores cuja imaginação estava encadeada pelo ambiente da província que lhe oferecia horizontes muito pequenos para todo seu talento. Ela não só viveu em um lugar afastado da corte espanhola, mas, também, dependia da metrópole para sobreviver. No entanto, essa situação trouxe benefícios para Inés de la Cruz, pois, “sin duda alguna el convento ofrecía el tipo de protección de justificación que Sor Juana necesitaba para su vida solitaria y debía haber otras mujeres en situaciones semejantes.”6( FRANCO, 2001, p. 27,28), Historicamente, a maneira como estudamos a literatura vem privilegiando, como afirma Lemaire (1994), os grandes escritores (homens), excluindo da historiografia literária as mulheres e mostrando, por conta do patriarquismo, que “em assuntos de homem não há espaço para mulheres „normais‟.” (LAMAIRE, 1994, p.58). Esta “exclusão” das mulheres não se dá somente no meio literário, mas também em muitos outros como, por exemplo, nos discursos usados dentro das ciências humanas, em que o homem representa a mulher, em seus escritos, 5 Trad. nossa: “E ainda que os escritores espanhóis e os já nascidos na América, mas de origem espanhola fizeram grandes esforços para encaixar esta realidade dentro das categorias que lhes eram familiares, as circunstancias lhes obrigaram com freqüência a seguir outros caminhos.” 6 Trad. nossa: “Sem duvida alguma o convento oferecia o tipo de proteção de justificação que Sor Juana necessitava para sua vida solitária e devia haver outras mulheres em situações semelhantes. 49 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 como o “sexo fraco”. Esta pode ser considerada umas das representações mais radicais do poder patriarcal que desqualifica ou exclui indivíduos que, por qualquer razão, estejam fora do sistema construído pelas sociedades machistas. A presença feminina sempre foi vista como menos importante no espaço da cultura e da literatura. Como afirma Schmidt (1995), a mulher sempre estava relegada ao papel de musa, estando totalmente impossibilitada de reconhecer-se como uma autora e de se afirmar como detentora de certos pensamentos que não condiziam com a realidade da grande maioria das mulheres, especialmente as do século XIX, por exemplo. Embora tenham vivido num âmbito de padrões culturais masculinos, algumas escritoras desafiaram tais padrões e nos deixaram uma gama de obras genuinamente femininas. Apesar de desenvolvidas dentro dessa cultura masculina dominante, essas obras forçam um desequilíbrio nas relações representativas congeladas da cultura masculina. O feminino como passividade e conformidade dramatizado na “estética da renuncia”, na “temática da invisibilidade e do silêncio” ou na “poética do abandono” se desdobra na prática representacional de resistência cujo consciente que estilhaça o discurso das exclusões”. (SCHMIDT, 1995, p.187) Segundo Eduardo Frieiro (1941), para a crítica misógina, “a mulher que se entregava às letras cometia dois enganos: aumentava o numero de maus livros e diminuía o numero de mulheres”. Por causa de críticas como esta é que, no século XIX, por exemplo, as produções literárias femininas se apresentavam de modo menos prestigioso e mais acanhado que as produções masculinas. De um modo geral, até fins do século XIX, como afirma Schmidt, as poucas mulheres, que ousaram desafiar a hegemonia das sociedades patriarcais, escreveram suas obras e foram ridicularizadas ou repudiadas na sociedade em que viviam. As mulheres nunca foram impedidas de falar ou de escrever, mas a sociedade se recusava a ouvi-las ou lê-las de uma maneira universal. Em qualquer tempo na história da literatura e na história da sociedade humana, o feminino sempre mereceu um maior destaque, pois ele representa a mudança de como as sociedades masculinas vêem o mundo. Virginia Woolf, em uma de suas mais celebre obras Um teto todo seu, estava certa ao dizer que “a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se pretende mesmo escrever ficção; e isso, como vocês irão ver, deixa sem solução o grande problema da verdadeira natureza da mulher e da verdadeira natureza da ficção.” (WOOLF, 1990, p. 8), para poder despreocupar-se das imprecações de ser mulher que basicamente eram e pra muitas ainda são, cuidar dos filhos e do lar. No entanto, como em uma sociedade machista patriarcal, uma sociedade que em muitos aspectos ainda não se encontra em total desenvolvimento, o feminino se fez? 50 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Uma das respostas a este questionamento se encontra na esquecida produção literária de Josefina Plá, intelectual, artista plástica, historiadora, jornalista, dramaturga, ensaísta, catedrática e critica de arte e literatura, que de acordo com Rodríguez-Alcalá entre os intelectuais hispano-americanos possui obras “cuyos ensayos de la historia del arte y de la letras paraguayas constituyen una aportación de mérito singular.”7(RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 1999, p. 91). Nascida nas ilhas Canárias, Espanha, em 1909, muda-se para o Paraguai, em 1926, onde desenvolve toda sua magnífica obra literária. No Paraguai, Josefina se estabelece na capital, Assunção. No mesmo ano em que se muda para este país, destacam-se suas primeiras obras. Paraguai torna-se sua pátria por adoção. ‘Española de nacimiento y paraguaya por destino y apasionado amor a la tierra de su esposo’ – dice Hugo Rodríguez-Alcalá en la primera edición de esta Historia de la Literatura Paraguaya.8 (RODRÍGUEZALCALÁ, 1999, p, 324 ) Para o crítico, Josefina Plá deixou uma notável obra poética, bem como em prosa. No âmbito da narrativa, Plá esteve em quase todas as vertentes; é também autora de vários contos infantis que não são contos comuns, pueris, e, sim, contos densos, com profundidade. Seu primeiro conto paraguaio, provavelmente, é “Ciegos a Caacupé”. A partir daí, toda sua produção é ambientada no país que ela se aprofunda com assustadora percepção do povo. Josefina Plá sempre deixou clara sua preocupação com as condições da mulher nos meios sociais, em especial as paraguaias; protagonistas de inúmeras histórias suas. Com uma intensa carreira como escritora, poeta e crítica literária e com mais de cinqüenta livros publicados, Josefina Plá é, sem dúvida, um dos maiores nomes da literatura hispano-americana produzida no Paraguai. O retrato de denunciador feito dentro da literatura de Plá não se torna uma questão sociológica, pois o objetivo do texto literário, assim como de qualquer arte, não é ser um texto de crítica especificamente social, e sim um texto de crítica a algo ou alguém, pois de acordo com Candido (2000) quando isso ocorre o externo foi internalizado, pois “a arte nos faz entrar num domínio de conhecimentos absolutos” (CANDIDO, 2002, p.64). As personagens, em uma obra de arte literária, têm maior coerência que as pessoas reais devido a sua limitação das orações, segundo Rosenfeld (2002) a personagem tem, (...) maior exemplaridade, maior significação; e paradoxalmente, também maior riqueza – não por serem mais ricas do que as pessoas reais, e sim em virtude da concentração, seleção, densidade e estilização do contexto 7 Trad. nossa: “cujos ensaios da história da arte e das letras paraguaias constituem um aporte de mérito singular”. 8 Trad. nossa: “„Espanhola de nascimento e paraguaia por destino e apaixonado amor à terra de seus esposo‟ – disse Hugo Rodríguez-Alcalá na primeira edição desta História da Literatura Paraguaia.” 51 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 imaginário, que reúne os fios dispersos e esfarrapados da realidade num padrão firme e consciente. Antes de tudo, porém, a ficção é o único lugar – em termos epistemológico – em que os seres humanos se tornam transparentes ànossa visão, por se tratar de seres puramente intencionais sem referência a seres autônomos; de seres totalmente projetados por orações. (ROSENFELD, 2002, p 35) Segundo o autor, muitas vezes o leitor se depara com situações que já vivenciou ou quer vivenciar, personagens parecidos com alguém que conhecem e, Muitas vezes debatem-se com a necessidade de decidir-se em face da colisão de valores, passam por terríveis conflitos e enfrentam as situações-limite em que se revelam aspectos essenciais da vida humana: aspectos trágicos, sublimes, demoníacos, grotesco ou luminosos. ” (ROSENFELD, 2002, p 45) O próprio cotidiano quando se torna tema da ficção, adquire uma outra relevância e condensa-se na situação-limite do tédio, da angustia e da náusea. Cotidiano esse que retrata os sofrimentos e as angustias das personagens de Josefina Plá, e que retratam as mazelas que a Hispano-América sofre. Autran Dourado menciona que “o criador amassa e emprega a realidade para criar uma outra realidade, uma realidade que obedece à complicada geometria literária, ao seu sistema de forças, que nada tem a ver com as ciências física, naturais, ou sociais” (DOURADO, 1978, p.98). Lembrando que a “personagem tem mais a ver com a forma do que com a vida, embora a vida seja o seu alimento diário” (DOURADO, 1973, p.100), portanto não é espantoso que a realidade, na literatura de Plá, seja cruel. Realidades como a do conto “Siesta”, em que a sedução é transfigurada no corpo de Maria, pobre menina de onze anos, que se desventura ao ser vítima de abusos à sua condição infantil, quando é obrigada a fazer trabalhos domésticos e quando sofre assédio de seu pai. A sedução é a palavra de ordem deste conto de Plá, e esta é dada pelo contexto de ambientação a qual a primeira cena esta, e que desencadeia toda a ação posterior, “o seduzido não esta simplesmente entregue a fantasia neurótica. Há nele, antes de tudo, o desejo de entrar em outra linguagem, de sair daquele círculo em que está aprisionado (...)” (PERRONE-MOISÉS, 1998, p.17), sendo assim, Ciriaco, pai da pequena Maria, que se fecha em seu quarto, sente a necessidade, esta dada pela emanação da divina, como descrito no conto, luz solar que entra no cômodo por meio de pequenas fendas na parede, de transgredir do “mundo” em que vive, e encontra em Maria, a qual ele não reconhece por filha, um meio para tal transgressão, pois nele vê o reflexo do corpo da mãe da menina. Na narrativa Ciriaco não reconhece Maria como filha, nem ao mesmo fala com ela, no entanto ao ver a menina ele sem sente atraído fisicamente, porém não por Maria propriamente dita, mas sim pelas semelhanças da mesma com a mãe, que anteriormente foi casada com Ciriaco. O corpo de Maria passa a ser um símbolo do corpo da 52 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 mãe da menina, o ato incestuoso, condenado e animalizado dentro de nossas sociedades, somente não ocorre por que a animalização muda de lado, como em um instinto protetor da pequena Maria, que volta a um estado selvagem do homem, “la chiquilina gime afónica de terror, una reación puramente instintiva, primaria, la lleva de pronto a prender ciegamente sus dientes en la mano que la amordaza. Y muerde con una desesperación de animalito en cepo”. (PLÁ, 1996, p. 194) 9 Para Lins: a violência define o meu semelhante como um monstro e lhe dá, em situações limites, a possibilidade de subir os degraus da natureza humana e dignificá-la através de ações extraordinária. É, assim, inimiga e aliada, combatida e cultivada, um motivo de vergonha e um motivo de orgulho. (1990, p. 22) A pequena Maria escapa de seu pai, por um ato puramente instintivo, mas cega pelo mesmo ato, acaba por ser atropelada e morta em frente a sua casa, em sua última desventura desesperada. A violência a salvou, matando-a. De acordo com Miguel Angel Fernández La literatura y el arte de Josefina Plá se constituyen como espacios expresivos complejos, en el que convergen diversas rasgos culturales, dando lugar a obras notables en su constitución semántica y en sus formas expresivas10. (FERNÁNDEZ, 2011, p.1) Como podemos perceber, a Literatura de Josefina Plá, se faz de modo crítico à sociedade que a cercou durante sua vida, no entanto, com rasgos universais. Competências estas que destacam uma literatura genuína, que infelizmente é pouco estudada no Brasil, mas que merece uma maior atenção por parte dos pesquisadores de literaturas de língua espanhola, que na grande maioria das vezes centra-se no cânone deixando de lado aquilo que está oculto e por consequência esquecido. 3. Considerações finais Ainda que pouco conhecida nos meios acadêmicos brasileiros, e mesmo estrangeiros, qualquer que seja o nível de leitura que possua o leitor que se dignar a ler a obra de Josefina Plá, perceberá que seus escritos não são uma mera satisfação do impulso de escrita e sim uma literatura que estética, social e culturalmente não deixa em nada a desejar em relação aos já consagrados nomes da Literatura Hispano-americana. 9 Trad. "A menina rouca gemidos de terror, uma reação em puramente instintiva, primária, de repente prende cegamente seus dentes na mão que a mordaça. E morde com o desespero de um animalzinho sem ação."(Pla, 1996, p. 194) 10 Trad. nossa: “A literatura e a arte de Josefina Plá constituem espaços expressivos complexos, no que convergem diversos rasgos culturais, dando lugar a obras notáveis em sua constituição semântica e em suas formas expressivas.” 53 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 De acordo com Miguel Ángel Fernández: El tratamiento de sus diversos textos narrativos es, naturalmente, variable de acuerdo con su ámbito temático y su temple expresivo, pero en todos ellos se advierte siempre la rigurosa coherencia de su composición. Los niveles de lenguaje (el del narrador, el de los personajes, generalmente de pueblo) se dan en un contrapunto discreto, que configura con naturalidad los universos lingüísticos (fonético, sintáctico, semántico) de los cuentos, en su mayoría de ambiente popular paraguayo y a menudo de contenido crítico-social.´ De este modo, la estructura externa de los textos soporta con eficiencia su estructura semántica, rasgo de competencia que caracteriza toda creación auténtica en el orden expresivo.11 (FERNÁNDEZ, 2011, p. 7-8) E se o cânone literário representa obras „grandes‟, „valiosas‟, „universais‟ e „duráveis‟, o que se precisa para que Josefina Plá entre para o holl dos autores canônicos hispano-americanos é que a leiam. 4. Referências bilbiográficas BERND, Zilá, Americanidade e Americanização. In: FIGUEIREDO, Eurídice (Org.). Conceitos de literatura e cultura. Juiz de Fora: UFJF, 2005. BONNICI, Thomas. O Cânone Literário e a Crítica Literária. In:_______ (org). 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Rio de Janeiro: Rocco,1994. 11 Trad. nossa: “O tratamento de seus diversos textos narrativos é, naturalmente, variável de acordo com seu âmbito temático e sua têmpera expressiva, mas em todos eles se adverte sempre a rigorosa coerência de sua composição. Os níveis de linguagem (o do narrador, o das personagens, geralmente do povo) se dão no contraponto discreto, que configura com naturalidade os universos lingüísticos (fonético, sintático, semântico) dos contos em sua maioria de ambiente popular paraguaio e sempre de conteúdo críticosocial.” Deste modo, a estrutura externa dos textos suporta com eficiência sua estrutura semântica, traço de competência que caracteriza toda a criação autêntica de ordem expressiva. 54 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 PAZ, Octavio. Alrededores de la literatura hispanoamericana. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1979. PLÁ, Josefina. Cuentos Completos (org. 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No ensaio, o autor define algumas linhas mais visíveis para se demarcar a poesia da década de 1980, como a poesia epigramática, a poesia do fragmento, a poesia neorretórica e a metapoesia. De certa forma, os poemas de Josely V. Baptista, blocos aerados, permitem encontrar pontos de contato com o ensaio referido, além de aspectos experimentais e relações particulares com a leitura. Após a análise de alguns de seus textos é pensada a relação desta forma de poesia com a cultura Guarani, com o Neobarroco, o gênero ensaio e a velocidade midiática. Palavras-chave: Poesia Brasileira Contemporânea. Poesia paranaense. Década de 1990. Blocos aerados. ABSTRACT: This paper shows the possible relations between the book Ar of Josely Vianna Baptista - published in Curitiba, in decade of 1990 - and the essay The recent brazilian poetry: expression and form, of professor Benedito Nunes, published in 1991. In essay, the author define some lines more visible to delimit the 80‟s poetry, such as the epigrammatic, the fragment poetry, the new rethoric poetry and the matapoetry. Somehow the poems of Josely, aerated blocks, allow to find point of contact with o essay, beyond experimental aspects and particular relations with act of reading.After the analyses of some texts, is seen the relation of this form of poetry with the Guarani culture, the NeoBarroco, the essay genre and the velocity of media. Keyworks: Contemporary Brazilian poetry. Paranaense poetry. 1990 decade. Aerated blocks. 1. Introdução A poesia brasileira recente inscreve-se num terreno híbrido, propício às manifestações artísticas que conjugam seu objeto poético conforme maior assimilação e aptidão às linhas já demarcadas no decorrer da evolução da Literatura. Entretanto, ao longo dos anos, tais manifestações, que se moldam segundo as experiências e conquistas modernistas desde a semana de 22, primam ora por atitudes históricolineares, ora por “saltos sincrônicos”12. 12 Por “saltos sincrônicos” entendo as manifestações artísticas de poetas como Rubens Torres Filho, Paulo Henriques Britto, entre outros, que retomam o verso, mesmo produzindo suas obras depois da Poesia Concreta, a qual o aboliu. 56 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Em ensaio sobre a poesia da década de 1980, o professor Benedito Nunes(1991, 171-183) demarcou o quadro referido, apontando quatro possíveis direções: a linha neo-retórica, a poesia do fragmento, a linha epigramática e a metapoesia. Dentro de tais perspectivas é plausível, dada a relevância do ensaio, remeter determinada obra que se queira analisar às linhas propostas, na tentativa de maior apreensão estética e cultural. O intuito desta exposição centra-se em relacionar a poética da paranaense Josely Vianna Baptista com àquelas linhas, explicitando seus pontos de contato, bem como seus afastamentos estéticos, propiciando, desse modo, um olhar mais cuidadoso para uma poesia que não comunga com só uma das linhas, e que, a exemplo do concretismo, pode ser admirada à luz das artes visuais. 2. O bloco aerado enquanto elemento norteador do ritmo e destruidor da estrofe convencional O aspecto formal de maior destaque na póetica de Josely concentra-se na disposição visual de cada poema, na qual as palavras possuem espaçamentos que dão ao poema a aparência de bloco com poros, ou no dizer da autora, blocos aerados 13. Tal disposição confere ao poema outra estrofação que não a linearmente conhecida e, por consequência, outro ritmo: um dia eufórica outro s por fora um dia eng agée outro remtombée a puro um dia outro rig ore o dia urzes e alca çuzes vezes que bruxa o utras que musa se um d ia blanco os outros sa lvos um dia desfeita ou tros perfeita um outro em dia um dia um out r o d i a s e m d n e m v o c ê (BAPTISTA, 1991, p. 13) Desse modo, o primeiro encontro com o texto de Josely impõe ao seu leitor uma barreira na sequência lógica de leitura que lhe é peculiar, pois o processo de compreensão e interpretação é barrado pela incapacidade advinda dessa presença “aérea” que interfere sensoriamente no leitor, impedindo-o de apreender toda a palavra, tanto morfológica quanto semanticamente: 13 A definição bloco aerado pode ser encontrada em uma das entrevistas concedidas pela autora à UFPR. 57 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 utras que musa se um d ia blanco os outros sa lvos um dia desfeita ou t r o s p e r f e i t a u m o u t r o (BAPTISTA, 1991, p. 13) No fragmento acima ia é parte de d do verso anterior, formando num primeiro momento o substantivo dia,mas pode ser lido como o verbo ir no pretérito, pertencendo a outra sentença, o que influi no aspecto semântico e numa leitura fragmentada. O mesmo ocorre com ou que pode ser lido como conjunção ou parte do pronome outros, permitindo várias leituras e sentidos. Não custa mencionar a constante presença da poesia Concreta, enquanto escola que ensinou a ver as palavras semântica, sonora e graficamente; nesse sentido o termo salvos pode ser lido s alvos, ou ainda, sem alvos, como oposição à sentença se um dia blanco. Desse modo, a interrupção à leitura é inerente à disposição estrófica, norteadora da práxis poética da autora. Trazendo à tona as noções de estética da recepção (ISER, 1999) e de leitor-modelo (ECO, 1999) que prezam pela singularidade interpretativa por parte do leitor, os blocos aerados podem ser pensados como “estratos impositivos de leituras singulares”14, cujas sínteses dependerão não só da capacidade cognitiva (intelectual), mas também da capacidade sensorial (perceptiva e respiratória). Há, portanto, um apelo para que o leitor crie seu ritmo, enquanto sua respiração, visão, percepção e intelecto conseguirem estar conciliados, não adiantando aqui a intenção primordial de ler o que o autor intentou que fosse lido. Ou seja, um procedimento formal que afasta de vez qualquer estatuto que a palavra Autor ainda ouse conter. A autora chama de “estrofação sensível” a esse seu procedimento formal, pois acredita que “aí a poesia funciona com pneuma, ciência da respiração, na qual os blocos aerados combinam-se ao ritmo de cada leitor”15. Todavia, passados estes primeiros encontros com o poema através da respiração, ao se retomar a leitura é possível lê-los de acordo com uma sintaxe retóricodiscursiva, pois também estão estruturados dessa maneira: “Um dia eufórica outros por fora / um dia engagée outro retombée / apuro um dia outro rigor / e o dia urzes e alcaçuzes / vezes que bruxa outras que musa” 14 15 O termo é meu. Entrevista já citada. 58 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 (BAPTISTA, 1991, p. 11). Este caráter de leitura híbrida funciona como a pedra de toque para a confluência de duas linhas poéticas marcadas por Benedito Nunes: a linha neo-retórica e a linha da poesia do fragmento, mas a estas acrescenta aspectos herdeiros da trato visual legado pela poesia Concreta devido à constante objetivação experimental que cada texto propõe. 2.1. Outros aspectos formais O cuidado formal revela-se também através de jogos paranomásticos, assonâncias, espelhamentos rítmicos, choques sonoros que intentam uma sensualização da linguagem, uma babel feliz, “O prazer do texto é Babel feliz” (BARTHES, 1999, p. 8), que comunga a verbivocovisualidade da poesia concreta. i s s o t u d o j á p a s s a d e a r t i f í c i o : s e r i a f ó s s i l , n ã o f o s s e i n í c i o , s e r i a t r a ç a , n ã o f o s s e m í s s i l (BAPTISTA, 1991, p. 22) No entanto, o não prescindir ao verso remete tal poética para uma lírica descoberta sob o experimentalismo, conciliando as lições concretas às lições metapoéticas e sagradas: d d h d d o u e á e e e l o s o l l i t o s o l s o l a r e s o l o a s o l et halo a s o l a s o u l m a r s (BAPTISTA, 1991, p. 46) Os trocadilhos com a sonoridade, a forma e o sentido trazem inferido o labor do poeta, seu fazer poético de sol a soul. Também há espaço para a brevidade, como nesse haikai aerado: n a m a d r u g a d a a g u d a q u 59 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 a l a d a g a a á g u a p i n g a (BAPTISTA, 1991, p.30) 3. A temática neo-barroca Em tempos de relativização, nos quais vêm abaixo conceitos outrora sólidos como Autor, Sujeito, Nação, Identidade, entre outros, é comum o estabelecimento de tensões, de situações híbridas que obrigam um constante espelhamento, um olhar para a alteridade implícita nos valores que norteiam a sociedade mercadológica. Nesse sentido, a antítese torna-se uma alegoria indispensável à reflexão, um instrumento que relativiza o discurso, seja ele qual for. É ponto comum entre a intelectualidade pensar no oposto, revitalizando qualquer questionamento dogmático. Admitida a possibilidade de transferência do jogo de contrários, da esfera cultural para a estética, os poemas de Josely podem ser encontrados nesse ambiente claro-escuro, de opostos, e em relação àqueles temas, como “lápides barrocas”16 suplantadas pela voz lírica que não só opõe contrários, mas questiona o próprio fazer poético: q u e r i a e t r e v e r o s e q u i m e r a s, v á r i o s r i g o r e s e r i m a s r a r a s, q u e r i a m enires e quireras, que o que desde ra se reouvera. queria trevos e r isos feros, leros serenos, querela s b e l a s, r e l a r d e p e l e s a r r e p i a d a s, c h o r a r c o m u m o l h o e r i r c o m o o u t r o. q u e r i a e s p e r a s e n ã o d e m o r a s, s e o l e s t e e s c u r o o s u l s e g u r o, q u e r i a g u e r r a, c a ç a e a m o r e s, e p o r u m p r a z e r , s e m d o r e s . ( n o i t e ) (BAPTISTA, 1991, p.5) Transita na maioria dos poemas, entre as antíteses, um lirismo questionador da experiência com a palavra, da sensualidade, do metafísico, do cotidiano, do existencial. 4. Uma poética ensaística Cada vez mais, dada a conjuntura cultural norteada principalmente pelo fenômeno da globalização, parece firmar-se a proposta de viver-se ensaisticamente, como sugere de maneira implícita, Richard Forster, que analisa, entre outros assuntos, o legado do filósofo alemão Walter Benjamin, o qual , para o autor, só foi possível devido à miscelânea cultural, social, intelectual e existencial que marcou a vida de Benjamin. (FORSTER, 1991). Nesse sentido a poesia de Ar pode ser entendida 16 O termo é do poeta Régis Bonvincino. 60 como a REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 necessidade de conjugar diferentes práticas rumo a uma maior apreensão da realidade. Dentro deste prisma, Josely consegue conciliar diferentes “mundos” (estéticos, mitológicos, históricos) no pequeno grande mundo do poema. Assim, a influência dos simbolistas franceses - como Rimbaud e Mallarmé – e da poesia Concreta, visível na experimentação da linguagem, alia-se à tradição sacralizante das peças de literatura oral guarani, tudo isso possível graças à ponte que a temática neo-barroca proporciona. Da mesma forma que o ensaio admite aberturas metodológicas e textuais impensáveis no paper, racional e sistemático, os poemas de AR confluem um leque de influências e leituras que os impossibilitam de serem olhados à luz de uma única exegese. Talvez aí esteja a grande conquista da poética dos nossos dias: a comunhão ao invés da exclusão de signos. 5. O bloco aerado e a velocidade midiática Admitida a necessidade de se percorrer um caminho sacro rumo à exegese dos poemas de AR, deve-se considerar que tal direcionamento metodológico supõe um certo tempo, o qual não se resolve de forma breve. De fato, as lápides necessitam sofrer a erosão do tempo, a qual na arte está a cargo da reflexão e contra o tecnicismo dromológico, que é a ditadura da velocidade a que estão submetidos os sistemas culturais por intermédio da mídia. ( FURTADO, 1999. p.113-125.) O simulacro comum da mídia impele a ditadura da velocidade, na qual a brevidade e a representação facilmente substituível tornam-se as forças reguladoras de tal discurso. O que se lê, o que se come, o que se vê, o que se ouve deve condizer com o efêmero e incompleto, para que a ânsia aumente, como nos diz Bauman: Para abrir caminho na mata densa, escura, espalhada e “desregulamentada” da competitividade global e chegar a ribalta da atenção pública, os bens, serviços e sinais devem despertar desejo e, para isso, devem seduzir os possíveis consumidores e afastar seus competidores. Mas, assim que o conseguirem, devem abrir espaço rapidamente para outros objetos de desejo, do contrário a caça global de lucros e mais lucros (rebatizada de crescimento econômico) irá parar. (BAUMAN, 1996, p. 86) Nesse sentido, a poética de Josely ou qualquer outra que não compactue com tais simulacros pode ser mencionada como uma resistência em nome da reflexão, uma vez que poemas que exigem respiração, releitura, entre outras aptidões, certamente não condizem com a falta de tempo dos nossos dias, nem podem ser avaliados por sistemas excludentes. 61 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 6. Conclusão Com base nas implicações expostas até agora, a poética de Josely ganha melhor contorno se olhada como um produto híbrido das linhas propostas pelo professor Benedito Nunes, incorporando, ainda, aspectos mais atuais que contradizem a relação mercadológica que nos rodeia, por exemplo, a não-brevidade e a necessidade de releitura e apreensão sensorial. Desse modo, trata-se de uma poesia que traz através de si muito do modernismo brasileiro, mas sem cair no lugar-comum da diluição, pois propõe outros estratos como o corte estrófico e a constante experimentação objetivo-reflexiva. Por tudo isso, o livro AR é representativo de uma poética contemporânea. Referências bibliográficas BALMAN, Zigmunt. Turistas e Vagabundos. In: BALMAN, Z. Globalização: As Consequências Humanas. 3a ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. BARTHES, Roland. O prazer do texto. 5a ed. São Paulo: Perspectiva, 1999. BAPTISTA, Josely V. Ar . 1a ed. São Paulo: Iluminuras, 1991. ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Trad. P. de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1999. FORSTER, Richard. La Deriva como Aprendizaje. In: FORSTER, R. El Ensayo como Filosofia. Buenos Aires: Ediciones Nueva Vision, 1991. FURTADO, Fábio. A literatura na cena finissecular. In: Globalização e Literatura. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999. p.113-125. ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. J. Krestschmer. São Paulo:ED. 34, 1999. NUNES, Benedito. Expressão e Forma. In: Novos estudos. Pará: CEBRAP, 1991. n° 31. p. 171 – 183. 62 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 UM INCÔMODO ROMANCE DE JOSÉ DO PATROCÍNIO A SER REDESCOBERTO A NUISANCE NOVEL BY JOSÉ DO PATROCÍNIO TO BE REDISCOVERED Marcos Teixeira de Souza – PG-IUPERJ RESUMO: Muitas vezes o cânone explicita um pensamento hegemônico em uma sociedade. Assim, autores e obras referentes a questões contrárias ao pensamento dominante tendem a ser renegadas ou esquecidas intencionalmente. O romance Motta Coqueiro ou a pena de morte (1877), de José do Patrocínio, salienta este debate sobre o cânone, na medida em que, a despeito de suas qualidades intrínsecas, é virtualmente desconhecido ou ignorado pela crítica brasileira. Palavras-chaves: José do Patrocínio. Literatura. cânone. ABSTRACT: Often the canon explains explicitly one hegemonic thinking in a society. Thus, authors and works concerning matters contrary to dominant thinking tend to be denied or forgotten intentionally. The novel Motta Coqueiro ou a pena de morte (1877), by José do Patrocínio, reinforces this debate about the canon, since, despite its inherent qualities, is virtually unknown or ignored by Brazilian critics. Keywords: José do Patrocínio – Literature – canon. Os estudos sobre Memória social têm ofertado aos pesquisadores das ciências humanas e sociais olhares novos sobre o cânone. Não que em outros momentos este não fosse questionado, mas que, por meio das concepções sobre Memória e Silêncio, como marcas reveladoras de poder político, social e cultural, têm motivado alguns pesquisadores da área de Literatura a remexer nos arquivos públicos e privados, nas bibliotecas e em outros locais guardiões de Memória social, nomes e obras literárias que, ora esquecidos, podem e devem ser retomados pelas historiografias para que se espelhe assim com mais completude a riqueza da Literatura Brasileira. Tanto para historiadores quanto para pesquisadores da área de Literatura, a existência de determinados autores e obras esquecidas ou omitidas na Literatura Brasileira, ao serem postas a lume, fornecem pistas ou esclarecem pormenores encobertos pela História dita oficial, e oportunizam para que se ouçam atores e falas que foram outrora impostas ao silêncio pelas historiografias, preenchendo deste modo lacunas outrora tidas como inexistentes. Neste sentido, o presente artigo visa a discutir o esquecimento de José do Patrocínio como um romancista digno de ser revisto na historiografia literária brasileira. 63 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Paradoxalmente, lembrado pela História como um dos mais eminentes abolicionistas, oradores e jornalistas do século XIX, e esquecido na Literatura, José do Patrocínio foi uma das figuras políticas centrais nas últimas décadas do século XIX. Como romancista, permanece ainda muito desconhecido pela crítica literária e pelas gerações de leitores de brasileiros que o sucederam, embora tenha sido um dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras, tenha escrito inúmeros artigos nos grandes jornais de sua época; e tenha escrito três romances, dentre estes, Motta Coqueiro ou a pena de morte (1877), cuja obra fora concebida em um momento de transição entre escolas literárias, isto é, do Romantismo para o Realismo-Naturalismo, o que, pela circunstância, necessitaria de um olhar cauteloso no que se refere a alocar o romance nesta ou naquela escola literária. Motta Coqueiro ou a pena de morte (1877) figura como um romance em que é visível notar a desenvoltura literária de Patrocínio. Tendo como base em um fato verídico, ocorrido em 1853, numa província de Campos dos Goycatazes, no Rio de Janeiro, o romance narra a história de Motta Coqueiro, influente político e fazendeiro do norte-fluminense que é acusado pelo bárbaro homicídio, com requintes de crueldade, de uma família de agregados que vivia em suas terras, na província de Macabu. A família de agregados, formada por Francisco Benedito, sua esposa, suas três filhas moças, seu filho moço, chamado Juca, e mais duas crianças, viera de outras terras e, num primeiro momento, conquista a simpatia da família de Coqueiro, excetuando somente o vício de Francisco Benedito pela bebida alcoólica. No enredo, as três filhas do casal de agregados – Antonica, Mariquinhas e Chiquinhas – despertavam, por serem lindas, a atenção masculina da localidade, em especial, o interesse de três homens: Oliveira Viana, Manuel João e Sebastião, os quais, ao longo do romance, procurarão, cada um a seu modo, conquistar uma das filhas do agregado. Entre os três referidos rapazes, um deles se destaca na narrativa de Patrocínio: Manuel João, que se questiona, por ser mestiço (ou negro), sobre possibilidade de uma moça branca e bela, como Mariquinhas, desejá-lo. No íntimo, Manuel João desconfia de uma suposta afronta de Motta Coqueiro contra a virgindade da moça. Essa suspeita é também alimentada pelos dois companheiros de Manuel João, que veem muita liberdade das filhas do agregado com o fazendeiro, o qual, em sua propriedade, mantinha também vários escravos. 64 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Uma das escravas, chamada Balbina, é singular no romance. Após ser expulsa da Casa grande, onde cuidava do filho do patrão, e ser lançada à senzala e ao trabalho no eito, ela se torna uma pessoa consciente, na própria pele, da aflição e da condição imposta à etnia negra, sendo a principal voz dissonante diante do status quo colonial. O trágico assassinato da família de agregados e suspeita da autoria de Motta Coqueiro criam uma atenção propícia ao romance. Motta é condenado à pena capital, isto é, ao enforcamento aparentemente sem um julgamento adequado e com ares de conotação política, pois sua morte abra a terceiros o controle político da cidade. Além disso, o romance conta com a suspeita viável em torno de outros personagens, entre elas, da esposa de Coqueiro, que desconfiava da fidelidade do marido. Há ainda outras tensões secundárias, que são bem exploradas por Patrocínio, como o dilema racial. Neste primeiro romance, os discursos e memórias dos personagens alçam importância, pois emolduram como a memória e o silêncio (e a quebra deste) reavivam ou silenciam as tensões raciais e sociais, clarividentes na sociedade da época do escritor, que repartira os louros do sucesso literário e a atenção da imprensa e do público com o já então consagrado Machado de Assis que, na ocasião, acabara de publicar o romance Iaiá Garcia, conforme salienta Magalhães Junior (1969:55). Não se trata obviamente de elevar o nome de Patrocínio ao de Machado de Assis, o que seria incabível. Mas de reconhecer, em Patrocínio, um literato que legou uma obra de expressivo valor histórico e literário, obra esta esquecida por certamente levantar assuntos incômodos para a nação, colidindo fortemente contra as teses da suposta democracia racial no Brasil, que seria uma das bases da formação identitária brasileira. Logo, não se estranha que Motta Coqueiro ou a pena de morte tenha sido pouco reeditado, a exemplo de uma das obras de Monteiro Lobato, O choque das raças presidente negro, de 1926, redescoberta apenas, e muito reeditada, após Barack Obama vencer as eleições nos Estados Unidos e entrar para a História como o primeiro presidente negro daquele país. A despeito da diversidade e magnitude de poetas e prosadores brasileiros na História da Literatura Brasileira, lidos e reconhecidos internacionalmente, como Machado de Assis, Cruz e Souza, Jorge Amado, só para citar alguns, são escassas obras de crítica literária de envergadura semelhante a estes autores citados, bem como de reintrodução de nomes e obras esquecidas, mas que foram e são relevantes para o estudo literário. Salvo raras exceções, não se encontram muitas obras capazes de refletir com 65 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 maestria a historiografia literária brasileira. Neste aspecto, um dos primeiros e mais renomados críticos brasileiros, Sílvio Romero, já em 1888, Romero (1980), dizia àquela época que: As pátrias letras, entre outras muitas lacunas, mostram bem claramente a grande falha causada pela ausência de trabalhos históricos. Se não existe uma história universal escrita por brasileiro, se a nossa própria história política, social e econômica tem sido apenas esboçada e foi mister que estrangeiros no-la ensinassem a escrever, no terreno da literatura propriamente dita a pobreza nacional ostenta-se ainda maior. (ROMERO, 1980, 1980, p. 51) O que dissera Romero (1980) naquele momento ainda parece prevalecer, ao se debruçar sobre muitas obras de crítica e historiografia literária brasileira, produzidas depois da obra de Patrocínio até algumas críticas literárias produzidas no século XX. No entanto, alguns historiógrafos da Literatura Brasileira têm contribuído para o conhecimento de diversos poetas e prosadores. Assim, partindo de algumas das principais historiografias literárias brasileiras escritas depois da primeira edição da obra Motta Coqueiro, uma pergunta se torna crucial para situar José do Patrocínio na historiografia brasileira: até que ponto o nome e a obra literária de Patrocínio são lembrados na Literatura Brasileira? Partindo de Ronald Carvalho (1953), Lúcia Miguel-Pereira (1973), Gregory Rabassa (1965), Alfredo Bosi (2006), Sílvio Romero (1980), José Guilherme Merquior (1996), Afrânio Coutinho (2002) e Nilo de Freitas Bruzzi (1959), pode-se perceber as disparidades e as semelhanças das visões acerca de Patrocínio na historiografia literária brasileira. A opção por verificar nestas obras citadas varia: ou pela relevância ou temática sugestiva da obra; ou pela abundância de prosadores citados e estudados na obra escolhida; entre outras motivações. Obviamente existem outras obras de historiografia literária brasileira que poderiam ser fontes de pesquisa, no entanto, em razão da dimensão e proposta deste artigo, acredita-se que, examinadas as sugeridas, é possível que a questão crucial formulada no tocante à relevância do nome e da obra de Patrocínio na Literatura brasileira pode, se não completa, pelo menos, ser satisfatoriamente respondida, uma vez que estas obras sugeridas para verificação gozam, a maioria, se não todas, de boa reputação no meio literário. Ronald Carvalho (1953), em sua Pequena História da Literatura Brasileira, na qual concebe a historiografia literária mediante a subdivisão dela em três períodos distintos (1500 a 1750), (1750 a 1830) e (1830 em diante), nominando-os 66 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 respectivamente em período de formação, de transformação e autonômico, em momento nenhum cita Patrocínio como um literato, um romancista. Carvalho (1953) o inclui na galeria dos oradores e publicistas: Na prosa, o último período apresenta muitos escritores consideráveis. Entre os romancistas e dramaturgos, sobressaem Martins Pena, Manuel Macedo, José de Alencar, Bernardo Guimarães, Escragnolle Taunay, Franklin Távola, Agrário de Souza Menezes, Artur Azevedo e Machado de Assis, que é, sem favor, o maior romancista da língua portuguesa; entre os críticos literários e historiadores distinguem-se Francisco Adolfo, Varnhagen, José Manuel Pereira da Silva, João Francisco Lisboa, Alexandre José de Melo Morais, Joaquim Noberto de Souza Silva, Joaquim Caetano da Silva, Tobias Barreto, Silvio Romero, Euclides da Cunha, Capistriano Abreu, Rocha Pombo, José Verissimo; entre os oradores e publicistas, são dignos de nota Bernardo Pereira de Vasconcelos, Maciel Monteiro, José Maria do Amaral, José Bonifácio de Andrada e Silva, Antônio Ferreira Viana, Francisco Otaviano de Almeida Rosa, Tôrres Homem, Tavares Bastos, Alcindo Guanabara, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, cujo estilo é dos mais apurados e elegantes, não pela correção da linguagem senão também pela formosura das imagens e dos tropos. (CARVALHO, 1953, p. 51) Não há também vestígio na historiografia de Carvalho (1953) concernente a Patrocínio como jornalista, profissão que o abolicionista campista exerceu prodigiosamente. Carvalho insiste em abrigar Patrocínio mais uma vez como um orador, desta vez, porém, destacando seu papel político: No Brasil, com uma ou outra exceção de maior ou menor monta, não se tem praticado a oratória com o relevo de uma arte verdadeiramente literária. Desde os pregadores dos séculos XVI e XVII, os Nóbrega, os Anchieta, os Eusébio de Matos, os Antônio de Sá, até os Souzas Caldas, os Mont‟Alverne, no alvorecer do século XIX; desde os oradores políticos dos primeiros embates da independência, e da Constituinte, de 1823, como Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, até os propagandistas do abolicionismo e da República, como José do Patrocínio, Silveira Martins, Tobias Barreto, e muitos outros, que a eloqüência, neste país de oradores, não tem mostrado a força e o prestígio que era lícito esperar da sua exuberância realmente notável. (CARVALHO, 1953, p. 333). Outra historiografia literária que desprestigia Patrocínio é a de José Guilherme Merquior, em De Anchieta a Euclides Breve História da Literatura Brasileira I (1996). Nela, embora haja uma competente exposição de literatos e uma caracterização usual dos períodos literários, fica muito evidente que Merquior (1996) não reconheceu, quer por ignorância ou por critério próprio, Patrocínio como um romancista. As duas citações contidas nesta obra de Merquior (1996) sobre Patrocínio destacam-no como abolicionista: “Seu corpo foi trasladado para o Rio num veículo de transporte de cavalos, mas o grande abolicionista José do Patrocínio custeou-lhe e enterro em São 67 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Francisco Xavier.” (MERQUIOR, 1996, p. 192). Patrocínio, como descrito em outras obras historiográficas da Literatura Brasileira, permaneceria notadamente à sombra de Joaquim Nabuco: “Durante dez anos, no Parlamento e na praça pública, “Quincas o belo” discursará contra o regime servil, tornando-se, com Patrocínio, o mais ardente dos tribunos abolicionistas e um dos maiores paladinos da idéia federalista.” (MERQUIOR, 1996, p. 253) Podendo ser listada no mesmo grupo de Carvalho (1953) e Merquior (1996), em razão de três características comuns – a de ser uma obra que se diz concisa, semelhante aos termos pequena e breve respectivamente das obras dos historiadores citados; a de citar apenas por duas vezes o nome de Patrocínio; e a de ver nele um abolicionista e não um romancista – a História concisa da Literatura Brasileira (2006), de Alfredo Bosi, detém uma marca de mais de quarenta edições, ocupando o posto de uma das mais lidas pelos estudiosos da Literatura Brasileira. Embora o título da obra de Bosi carregue o termo de concisa, há nela uma expressiva quantidade de literatos e obras, renomados e não tão conhecidos, comentados. Entretanto, Bosi não cataloga o nome de Patrocínio entre os literatos, o que se supõe pelo fato de possivelmente vê-lo tão-somente um como um abolicionista, e não exatamente um romancista, ou pelo desconhecimento da produção literária deste. A primeira referência de Bosi a Patrocínio é a presença e influência do abolicionista na obra A conquista (1899), de Coelho Neto. Nesta primeira referência percebe-se que o nome de Patrocínio figura entre tantos outros, e não desfrutando de qualquer proeminência, como se observa: Em 1899, Coelho Neto escreve mais um romance documento, desta vez fortemente autobiográfico: A Conquista. A memória da sua juventude boêmia, que coincidiu com as lutas finais da Abolição e da República, achase presente em muitíssimos passos da sua obra, mas domina soberana dois de seus romances: A Conquista e Fogo-Fátuo. Avultam as figuras de Patrocínio, Paula Ney (Neiva), Pardal Mallet (Pardal), Guimarães Passos (Fortúnio), Aluísio Azevedo (Ruy Vaz), Olavo Bilac (Olavo Bivar), Muniz Barreto, (Montezuma), além do próprio autor (Anselmo), envoltos em uma aura de panache que, no entanto, não chega a ofuscar verossímil da reminiscência. (BOSI, 2006, p. 202). A segunda referência situa Patrocínio no capítulo intitulado As letras como instrumento de ação: Iniciado ao tempo das campanhas pela Abolição (v. Joaquim Nabuco) e pela República, e coincidindo com a mudança do regime e as agitações dos seus 68 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 primeiros anos, o período realista conheceu amplamente o uso da palavra como forma de ação política. O que, em alguns casos, interessa à história literária, conforme a maneira pela qual se comunicam e se configuram os materiais ideológicos. A linha mestra de toda essa fase foi a luta pela liberdade. Em nome dela discutiam e escreveram líderes antiescravocatas como Nabuco, José do Patrocínio e André Rebouças. (BOSI, 2006, p. 255). Há mais referências a Nabuco do que a Patrocínio na historiografia realizada por Bosi, ainda que Nabuco, como disse o próprio Bosi, “não foi um espírito original” (BOSI, 2006, p. 164). É curioso que, uma vez que Bosi comenta que as campanhas abolicionistas e o período realista suscitaram a Palavra como uma ação política, não tenha citado o primeiro romance de Patrocínio como um exemplo desta ação política através do uso da palavra, nem, ainda mais, tenha-se lembrado de mencionar a intensa ação de Patrocínio nos artigos políticos publicados neste período em jornais fluminenses. Neste sentido, Bosi (2006) descuida, portanto, em sua historiografia literária de elencar o nome de Patrocínio não só como um romancista, mas também na qualidade de um jornalista relevante na campanha abolicionista. Fica em suspenso se Bosi tinha ciência de Patrocínio como romancista, que escrevera três romances; ou se fora opção própria de não se delongar em citar as obras literárias de Patrocínio. Provavelmente a segunda opção parece ser a mais indicada, uma vez que cita Nabuco, cuja obra literária tivesse sido menos expressiva do que a do jovem campista. Não resta dúvida, porém, que Bosi (2006) segue o pensamento dominante ao enxergar Patrocínio como abolicionista, e não como romancista. Diante deste quadro até então visto em Carvalho (1953), Merquior (1996) e Bosi (2006), no qual se tem um Patrocínio abolicionista, e não um Patrocínio enxergado como romancista, percebe-se, a fim de se convencer com mais segurança de como é visto Patrocínio na Literatura Brasileira, a necessidade de adentrar nas páginas de obras de maior vulto literário, nas quais a historiografia, os literatos e as obras literárias tenham sido objeto de mais densa e demorada pesquisa. Duas obras se enquadram neste patamar: a História da Literatura Brasileira (1980), de Sílvio Romero; e a Literatura no Brasil, organizada por Afrânio Coutinho. Sílvio Romero acredita que o século XIX tenha sido o período mais fértil, ou nas palavras dele, “o mais brilhante de nossa literatura” (ROMERO, 1980, p. 1819). Seu entusiasmo referente a esta consideração se deve principalmente aos nomes de dezesseis prosadores que, segundo Romero, figuram como “reis da palavra escrita no Brasil” 69 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 (1980:1819). Nesta lista empreendida por Romero (1980), na qual se encontram, dentre outros, os nomes de Gonçalves Dias, José de Alencar, Machado de Assis, Rui Barbosa; Romero inscreve o nome de Patrocínio como um dos dezesseis maiores prosadores do século XIX no Brasil. Ao citar um a um dos dezesseis prosadores concernente à sua ou às suas características que os particularizam e lhes davam o status de gozar tal glória, Romero sobre Patrocínio: “José do Patrocínio, a vibração das palavras, a eloqüência dos reptos.” (ROMERO, 1980, p. 1820). Ainda falando sobre os prosadores, Romero não economiza palavras, e diz sobre os dezesseis prosadores: “Tais são os reis da palavra escrita no Brasil.” (ROMERO, 1980, p. 1821). Como outros historiógrafos, Romero reconhece Patrocínio como um eloqüente orador. Distingue-o como uma eloqüência forense, tribunícia e acadêmica. (ROMERO, 1980, p. 1810). E considera Patrocínio como um dos prosadores pelo meio-naturalismo tradicionalista e campesino. (ROMERO, 1980, p. 1806) Além disso, Romero dedica um capítulo para contextualizar e historiografar Patrocínio. Inicia com uma observação-chave: “José do Patrocínio é duplamente reclamado pela história: a história literária e a história política.” (ROMERO, 1980, p.1748). Ao contrário de Carvalho (1953), Merquior (1996) e Bosi (2006), que vêem em Patrocínio um abolicionista e/ou orador, Romero avança em relação aos historiógrafos citados ao reconhecer Patrocínio como um romancista e um jornalista. De acordo com Romero, o que credencia a um lugar de destaque como romancista na Literatura Brasileira: (...) entre os romancistas, porque foi um dos primeiros que mais afoitamente levaram para a novelística as questões sociais entre os brasileiros, estudando em Motta Coqueiro – um caso singularíssimo do modo de julgar em nossas justiças locais; em Pedro Espanhol, um exemplo de banditismo existente ainda hoje em todo o Brasil e nos começos do século passado existente na capital da Colônia; em Os Retirantes – a pintura terrível do fenômeno das secas no Ceará e das cenas pungentíssimas que as determinam; finalmente, no capítulo dos jornalistas – sua presença se imporá. Tinha razão Romero ao afirmar que a condição de jornalista é a que teve mais peso na carreira profissional de Patrocínio, já que o jornal, como escreve Romero, era “a arena predileta de suas lutas, foi o laço que prendia o homem de letras ao político.” (1980:1748). Fica no ar se este posicionamento de Romero (1980) realmente é dissonante entre os historiógrafos, uma vez que entre os pesquisados, Romero se singulariza ao ver Patrocínio como um importante romancista do século XIX. Assim, é 70 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 recomendável observar como é visto Patrocínio em outra obra historiográfica de renome e relevância: A Literatura no Brasil (2002), organizada por Afrânio Coutinho. Esta obra distingue-se dentre outras historiografias citadas por conter um volume maior de informações, por ser uma obra realizada por um coletivo de críticos literários, e por apresentar um trabalho muito meticuloso, excetuando a de Romero, tornando-se, portanto, imprescindível seu espaço entre as grandes obras da historiografia literária brasileira. Patrocínio, nesta obra, é visto como um romancista. Para Coutinho (2002), o nome de Patrocínio e sua obra não floresceram, não exatamente pela qualidade do autor campista, mas pelo declínio do Naturalismo no Brasil: Não será fora de propósito lembrar alguns nomes de romancistas, muitos deles de vocação autêntica, que foram sacrificados pelo crepúsculo do Naturalismo. Horácio de Carvalho, Pardal Mallet, Papi Júnior, Rodolfo Teófilo, José do Patrocínio, Marques de Carvalho, Antônio de Oliveira. (COUTINHO, 2002, p. 89). Outra menção digna de nota é o fato de Coutinho situar Patrocínio entre os pioneiros da Literatura regionalista no Brasil, o que reveste o autor de mais importância. Observando as historiografias mencionadas – Carvalho (1953), Merquior (1996), Bosi (2006), Romero (1980) e Coutinho (2002) – vê-se um Patrocínio que varia entre ao quase anonimato no âmbito literário até ao posto, para Romero (1980), de um dos mais importantes prosadores do século XIX. Em comum, todas estas obras de historiografias tentam dar conta de, pelo menos, três séculos de Literatura Brasileira, desde a literatura produzida pelos primeiros portugueses no Brasil, passando pelas mais diversas expressões literárias, como o Arcadismo, o Romantismo (com toda uma variedade de particularidades), até as escolas literárias do século do fim do século XIX, e, em algumas das obras citadas, até as tendências literárias contemporâneas. Tal empreitada destas obras, passível de argumentação, fica inviabilizada de tratar um literato e uma obra determinada com mais atenção, o que justificaria, em tese, a ausência ou ligeireza do nome e da obra de Patrocínio. Recorrendo-se então a uma obra de Lúcia Miguel-Pereira (1973), pelo recorte temático que a obra pressupõe oferecer; a uma de Gregory Rabassa (1965), pela perspectiva praticamente singular entre as historiografias literárias brasileiras; e uma de Nilo de Freitas Bruzzi (1959), pelo reconhecimento de José do Patrocínio como romancista, novas considerações acerca de Patrocínio são tecidas, além das comumente encontradas nos compêndios já vistos. 71 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Em História da Literatura Brasileira – Prosa de Ficção – de 1870 a 1920, (1973), Lúcia Miguel-Pereira faz um considerável apanhado de autores do período citado no subtítulo, destrinchando a contribuição, sobretudo, dos grandes autores da Literatura Brasileira naquela ocasião. Adotando uma linha de pensamento semelhante a outros compêndios e manuais sobre a história da Literatura Brasileira, em que se busca amoldar os autores e obras literárias segundo uma periodização literária, esta obra de Miguel-Pereira (1973) teve entre os méritos o de trazer e perfilar os nomes dos prosadores Lindolfo Rocha, Alcides Maya, entre alguns outros, que desconhecidos e/ou desprezados em outros compêndios literários, podem então ser passíveis de conhecimento e exame pelo leitor. Sobre Patrocínio na obra de Miguel-Pereira (1973), persegue a constância em têlo num patamar inferior entre os principais prosadores do século XIX. O nome do abolicionista na obra é citado poucas vezes. Na primeira das citações, abordando as características presentes nos romances brasileiros, no tocante ao apreço por trazer para a narrativa os costumes, o amor como um elemento centralizador, a moral, etc.; e afirmando que o romance brasileiro foi uma narrativa mais sujeita à liberdade de criação, há um reconhecimento, por parte da autora em situar Patrocínio entre os pioneiros do romance histórico na Literatura Brasileira: Em suma, embora já deixasse, aqui e ali, perceber novas tendências, embora fizesse excursões pela história, com Franklin Távora e José do Patrocínio, pelo regionalismo com Inglês de Souza e Apolinário Porto Alegre, o romance foi então sobretudo sentimental. (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 25) Mais à frente em seu texto, ao falar dos autores que empreenderam romances históricos, Miguel-Pereira (1973) caracteriza a obra Mota Coqueiro ou a pena de morte como novela, e não como um romance, se diferenciando neste aspecto de muitos outros críticos literários, que classificam a obra como um romance. É verdade que a distinção entre o que seja um romance ou uma novela normalmente seja imprecisa entre os estudiosos da Literatura, devido a semelhanças entre ambas, mas, pelo conjunto de características presentes, como enredo complexo, diversidade de personagens, etc. a primeira obra literária em prosa de Patrocínio se encaixaria melhor perfilada como romance. A proposição de Miguel-Pereira (1973) de definir Mota Coqueiro ou a pena de morte como novela chama relativa atenção, mas não surpreende de tal maneira quanto a essas percepções: 72 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Entre os senhores e escravos, que aparecem em seu livro, o jornalista da Abolição, soube manter o equilíbrio, não pondo de um lado a virtude e de outro a maldade. Esse seu feitio, aliado à naturalidade dos diálogos, classifica-os entre os ficcionistas que reagiram contra as deformações românticas. (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 37) Ao equilíbrio entendido pela autora, o mais adequado seria pensar em aparente equilíbrio. Perpassa no primeiro romance de Patrocínio um jogo muito bem articulado entre as características psicológicas e os papéis sociais dos personagens, que misturadas entre si, fogem do lugar-comum do senhor branco perverso e do negro vitimizado, em razão disso haver um Motta Coqueiro como um senhor branco de boa índole num papel social de carregado de crueldade, ou ainda, uma tia Balbina que ora abdica do papel de vítima da escravidão para alçar papéis de confronto contra o sistema escravocrata, sendo esta oscilante ao longo da trama entre a condição de vítima e a de vilã. No entanto, fica para o leitor a sensação de aparente equilíbrio, quando não a de dúvida entre saber ao certo se determinado personagem ocupa na trama o papel de antagonista ou protagonista, de saber ao certo quem fora mais vitimizado pelo sistema econômico e político: os escravos, Motta Coqueiro, a família de Francisco Benedito, etc. Em relação ao fato de Miguel-Pereira (1973) alocar Patrocínio entre os que reagiram as deformações românticas, traz à torna um debate – só não mais intenso devido ao restrito número de críticas literárias realizadas sobre o autor e sua obra – de situar o primeiro romance de Patrocínio no Romantismo, no Realismo ou no Naturalismo. Esta constatação de Miguel-Pereira (1973) só corrobora a tese de que Motta Coqueiro ou a pena de morte, de certo modo, particulariza-se em relação a muitas obras na Literatura Brasileira e, se não se encontra entre uma ou outra escola literária, deve-se possivelmente a razão do ano em que foi escrita, sendo uma obra de transição, quiçá inaugural da escola realista ou naturalista. Tal peculiaridade, além da natureza e do conteúdo em si, deveria e deve ser um dos motivos a mais para se estudar a fundo esta obra literária. Além do equilíbrio entre os personagens defendido por Miguel-Pereira (1973) e da classificação do romance na periodização literária, há outro comentário gerador de polêmica, e suscetível de ser uma sutil contradição de Miguel-Pereira (1973:37). Num primeiro momento classifica a obra como: “Esta novela sem muito importância, escrita à maneira de folhetim, com lances dramáticos visivelmente destinados a deixar o leitor em suspenso, revela entretanto uma qualidade pouco comum: a isenção objetiva...” e no 73 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 mesmo parágrafo desta citação, alça Patrocínio, por meio desta obra, dita por ela mesma, „sem maior importância’, como um dos precursores contra as deformações românticas. A desconsideração de Miguel-Pereira com a obra de Patrocínio se desfaz com a própria menção que ela faz da capacidade que o primeiro romance de Patrocínio tem de manter o leitor em suspenso. Para um romance escrito em folhetim como o Motta Coqueiro ou a pena de morte conter em si esta possibilidade de manter o leitor em suspenso constitui praticamente uma via segura para o sucesso, como de fato se deu com a obra citada à época, como expressa Renato César Möller (2007), em sua tese de doutorado A fera de Macabu: memórias de um crime, uma pena de morte e uma maldição: Os fatos viriam mostrar que Patrocínio fizera um bom investimento. Suas crônicas sobre a tragédia de Motta Coqueiro, difundidas pela imprensa carioca, tornaram-se um sucesso, comprovado pelo aumento das vendas da Gazeta de Notícias, jornal que as editara. Em 1878, o autor publica o drama retratado nas crônicas em um romance intitulado “Mota Coqueiro ou a pena de morte”, impresso na Tipografia da Gazeta de Notícias. (MÖLLER, 2007, p. 11) A sina, porém, de descaso ou desapreço pelas obras literárias de Patrocínio por parte intelectualidade brasileira fica mais uma vez evidente numa nota de rodapé em que Miguel-Pereira (1973), em sua pesquisa, comprova a escassez de exemplares de outra obra de Patrocínio: (27) Também José do Patrocínio e Araripe Júnior devem ter abordado o tema da seca, já que escreveram livros com o título de Os retirantes. Do primeiro não foi possível descobrir um único exemplar, e do segundo consta ter ficado nos dois capítulos publicados na revista O Vulgarizador. (MIGUELPEREIRA, 1973, p. 36) Como a primeira edição desta obra de Miguel-Pereira data de 1950, é provável que ela a tenha escrita nos fins da década de 40. Ou seja, a autora escreve sua história da Literatura Brasileira entre 65 a 70 após a publicação da primeira edição de Os retirantes, em 1879, logo era, em tese, para se encontrar alguns exemplares, até porque esta segunda obra literária de Patrocínio figurava como inaugural, ao tratar com expressividade o drama do nordestino. Além disso, a autora vivia no estado do Rio de Janeiro, o que leva a supor que teria mais chances de adquirir um exemplar do segundo 74 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 romance de Patrocínio, se não fosse, é claro, a real escassez de exemplares de Os retirantes. Esta nota de rodapé é importante para confirmar novamente o esquecimento de que a obra de Patrocínio padece na Literatura Brasileira. Explicitando inclusive o esquecimento em relação a Patrocínio na Literatura Brasileira, Gregory Rabassa, em O negro na ficção brasileira (1965), depois de abrir um capítulo sobre o negro na literatura universal, dedica-se a discorrer sobre o negro na Literatura Brasileira, seja ele – negro – no papel de autor ou de personagem, na poesia e na prosa, enfatizando o legado e a importância destes autores e obras para a ficção brasileira. Ao analisar as contribuições em poesia e em prosa de autores brasileiros, Rabassa (1965) sentencia: O romance é, sem dúvida alguma, o gênero literário que produziu a mais clara caracterização dos negros na literatura brasileira do século XIX. Isso se deve ao fato de que a poesia, por suas próprias limitações, não pode analisar a fundo um personagem literário em detalhes menores, enquanto que o ensaio no século XIX estava intrinsecamente envolvido com a questão da Abolição e, assim, tendia a ser bastante especializado em seu tratamento aos negros. (RABASSA, 1965, p. 91) Não só a Abolição centraliza a temática sobre o negro no século XIX. Indubitavelmente a Abolição – e a busca por ela – permeia grande parcela dos personagens e autores negros, tanto na prosa quanto na poesia sobre a denúncia do sofrimento do negro no ambiente social (principalmente rural), de sua posição subalterna e humilhante na sociedade, do atraso social da escravidão ante ao desenvolvimento econômico, enfim, norteia as problematizações sobre o negro em muitas obras literárias escritas no século XIX. Embora o romance, como bem frisa Rabassa (1965), seja um campo de expressão fértil sobre as caracterizações, ou ainda, as representações sociais do negro na literatura, a poesia de Castro Alves inaugurou, numa perspectiva de combate ao sofrimento do negro, uma insistente denúncia anti-escravocata, e um prenúncio de campanha, com tons emotivos, pró-abolição, o que leva a perfilar a poesia também, ao lado do romance, como um importante canal de expressão da temática do negro e da Abolição, ainda que o romance irrompesse com mais vigor as temáticas Escravidão e Abolição. Tal irrupção se devia porque, além ter havido mais prosadores negros do que poetas negros, estes prosadores escrevem nas últimas décadas do século XIX, se não todos, a ampla maioria, nos moldes do Realismo e do Naturalismo, o que lhes garantiam mais proximidade com temais sociais e inquietantes, socialmente falando, e, portanto, 75 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 mais favoráveis a pensar, por meio da Literatura, o negro diante da conjuntura social e política formada neste período. Contemplando o romance Motta Coqueiro ou a pena de morte, Rabassa (1965) estranha o esquecimento (ou distração) dos críticos literários de até então, que não conheciam ou reconheciam esse romance na historiografia literária brasileira. Um dos lutadores mais ativos contra a escravidão no século XIX foi José do Patrocínio. É estranho, portando, que um romance que ele escreveu como protesto contra a escravidão tenha caído no esquecimento. Chama-se Motta Coqueiro e é uma descrição da vida de fazenda do século XIX. É uma oportunidade para que se compare a vida daquele tempo e a vida que é vista hoje pelos romancistas contemporâneos da vida nas plantações. (RABASSA, 1965, p. 95). A estranheza de Rabassa (1965) não é solitária. Modesta, porém, não menos digna de observação, a obra José do Patrocínio, romancista (1959), de edição única, rara, e de autoria de um poeta mineiro, estabelecido no Rio de Janeiro, por nome Nilo de Freitas Bruzzi, figura entre as obras descontentes com a descaso com a produção literária do tigre da Abolição. Além de ocupante de cargos como de Procurador Geral do Estado do Espírito Santo, de Procurador da Fazenda do Estado do Rio de Janeiro, dentre outros de natureza alheia à Literatura, Bruzzi era poeta, tendo publicado diversas obras Luar de Verona (1920), O Antunes (1920), Livro de Amor (1926), Dona Lua (1938), Flor de Silvestre (1953), entre outras, totalizando mais de duas dezenas de obras, compostas em prosa, poesia, conto, etc., porém, todas elas de menor expressão diante das produzidas por seus contemporâneos como Clarice Lispector, Érico Veríssimo, Guimarães Rosa, etc. Entusiasta da Literatura Brasileira, talvez sua maior contribuição a ela tenha sido suas obras Casimiro de Abreu (1949) que, aliás, teve uma segunda edição, em 1957, a referente a José do Patrocínio (1959) e Literatura Histórica (1930). Em José do Patrocínio, romancista (1959), Bruzzi analisa os três romances de Patrocínio, esboçando linearmente os pontos marcantes de cada um dos romances do abolicionista, sem se ater a uma metodologia específica. Ao abordar cada um dos romances, argumenta a favor de Patrocínio, evidenciando ao leitor a estilística e criatividade do autor campista em certas passagens dos romances. Mais importante do que a obra em si, cuja análise pode até ser considerada sinóptica, por trazer de forma sucinta os três romances de Patrocínio, são as informações pessoais e as memórias trazidas ao lume por Bruzzi (1959), perfilando 76 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 assim muita relevância para a compreensão de aspectos importantes ligados à obra literária de Patrocínio. Estas informações e memórias pessoais de Bruzzi estão carregadas de um tom confessional, em que o autor despeja nas páginas de sua obra suas percepções sobre a distorção do lugar real e o ideal ocupado por Patrocínio e pelas obras dele no cenário da Literatura Brasileira. Em sua obra concernente a Patrocínio, a seção Dedicatória e as primeiras linhas do Pórtico mostram que Bruzzi tinha contato com, pelo menos, alguns acadêmicos da Academia Brasileira de Letras (ABL), o que leva a crer que seu apreço para a Literatura ultrapassava a produção pessoal. São ainda nas primeiras linhas que Bruzzi revela ao leitor o motivo ou um dos motivos de sua obra referente a Patrocínio: a ocasião favorável, por se tratar do centenário do nascimento do escritor abolicionista, publicando-a primeiramente, em 1953, durante três domingos no Jornal do Comércio, e alguns anos depois em livro (1959). Bruzzi expõe ao leitor que o acadêmico da ABL Múcio Leão chegou a cogitar uma publicação da obra de Bruzzi, concernente a Patrocínio, na Revista da Academia Brasileira de Letras: Múcio Leão teve a iniciativa de propor fosse meu trabalho recolhido às páginas da Revista da Academia Brasileira de Letras, fornecendo os recortes do jornal. Cheguei a ver as provas relativas aos dois primeiros capítulos, mas a cousa parou aí e nunca mais foi cogitado o assunto. (BRUZZI, 1959, p. 05) Este comentário de Bruzzi acentua o nível de descrédito ou esquecimento, imposto aos romances de Patrocínio, bem como ao próprio abolicionista. Ou então, deixa nas entrelinhas um questionamento sobre a qualidade do material produzido por Bruzzi, por não ter sido aceito por um membro da ABL. A segunda hipótese pode ser possível e verdadeira, mas de alguma forma não anula consideravelmente a primeira, já que, embora houvesse notícias de menções e comemorações feitas pela ABL no tocante ao centenário de nascimento ou morte de Patrocínio, não se realizou a republicação dos romances do abolicionista naquelas ocasiões. O posicionamento de Bruzzi (1959) sobre o descuido da sociedade brasileira e, sobretudo, da Casa, a qual Patrocínio ajudou a fundar se torna passível de validade, à medida que se percebe que as referências que se encontram sobre Patrocínio na intelectualidade e na sociedade lhe reservam quase sempre a figura de abolicionista e jornalista, e raramente de romancista. No entender de Bruzzi (1959:08), o reconhecimento de Patrocínio, como primeiramente um romancista em detrimento de uma abolicionista ou jornalista 77 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 colaboraria muito para perpetuar a memória de Patrocínio na sociedade brasileira. Tal pensamento encontra respaldo ao pensar na capacidade, em geral, que obras literárias clássicas têm consigo de se perdurarem no tempo, em comparação a artigos pontuais, a títulos de nobreza, a escritos em folhetins, a outros meios de registro escrito nãocanônico. “Acentuo tais pormenores querendo salientar a pouca sorte que sempre acompanhou o romancista José do Patrocínio, ora fazendo perder-se no esquecimento os seus livros, ora entravando as tentativas para lembrá-lo, como foi a minha.” (BRUZZI, 1959, p. 06). Neste desabafo de Bruzzi, há uma particularidade que chama atenção: o termo ‘tentativas’, que se encontra pluralizado e insinua que houve talvez por parte do próprio Bruzzi e de conhecidos seus algumas tentativas de evocar a memória de Patrocínio no cenário brasileiro. Não se sabe se foi um quê de hipérbole de Bruzzi ou se realmente muitas tentativas foram empreendidas para que se fizesse uma comemoração ou lembrança relativas ao centenário de nascimento de Patrocínio. A certeza que Bruzzi menciona é esta: “O certo é que meu entusiasmo pelo romancista não teve eco e ele continua ignorado, com seus romances esquecidos, apenas caídos no domínio público.” (BRUZZI, 1959, p. 06). Esta certeza incomoda não só Bruzzi, mas a muitos outros pesquisadores e entusiastas das Letras brasileiras. O esquecimento de autores e obras literárias significativos como Patrocínio para a construção e fortalecimento da Literatura brasileira causa a sensação de uma perda muito grande não só para as Letras, mas também para o povo brasileiro, ainda que esta sensação não seja visível pela maioria dos membros da sociedade brasileira. Neste sentido, Bruzzi (1959) levanta uma crítica interessante dirigida ao povo fluminense (e por extensão ao brasileiro): a de ser um povo que sabe só citar nomes. O Rio de tornou-se uma cidade só de nomes apenas. Ruas e ruas com placas contendo nomes que ninguém sabe de quem são. No fim esses nomes só vivem do crime. Aparecem nos jornais, no noticiário policial, quando alguém dá um tiro ou mete uma facada em outro ali naquela rua que tem aquela placa com nome de homem... (BRUZZI, 1959, p. 07). Esta crítica, que também indiretamente se dirige aos jornais que se ocupam em rechear suas páginas com tragédias, aborda o problema de o povo brasileiro ser considerado um povo sem memória. Não se evidencia uma preocupação clara e consistente, do ponto de vista historiográfico, em legar aos filhos da pátria uma 78 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 memória nacional coletiva, cujo conteúdo mencione e reverencie grandes nomes de brasileiros que se opuseram ao status quo de opressão ao povo, já que deter uma memória de luta e vitórias, como a de Patrocínio, significa deter conhecimentos e mobilizá-los a lutar em busca de desfazer os interesses de uma minoria que explora uma massa de cidadãos, como preconizava Patrocínio em suas poesias e prosas. Desse modo, ao verificar as historiografias mencionadas, tem-se uma dívida com Patrocínio, uma dívida que só aumenta à medida que não se repense a obra-prima do romancista Patrocínio ante ao cânone nas Letras brasileiras. Referências bibliográficas BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 43ª Ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2006. BRUZZI, Nilo. José do Patrocínio, romancista. Rio de Janeiro: Editora Aurora, 1959. CARVALHO, Ronald de. Pequena História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia Editores, 1953. COUTINHO, Afrânio (org.) A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002. MAGALHÃES JUNIOR, Raimundo. A vida turbulenta de José do Patrocínio. Rio de Janeiro: Editora Sabiá, 1969. MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: Breve história da literatura brasileira I. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996. MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. História da Literatura Brasileira: Prosa de ficção de 1870 a 1920. Rio de Janeiro: Livraria J. 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Existe, no entrecruzamento dos enredos, um elemento comum – dentre outros – que permite a comparação entre as personagens citadas: o amor como caminho à destruição, para o qual convergem questões como o risco e atributo da beleza e as condições sociais e religiosas que delinearam a identidade e atuação da mulher na sociedade. O destino trágico está inscrito no corpo das personagens, e se anuncia, por um lado, como lição da igreja àquelas que se desviam dos preceitos morais por ela estabelecidos, e por outro lado, se revela como a confirmação da sina daquela que outrora nascera mulher, bela, mas sem dote, resignada aos códigos sociais e a tutoria do homem. PALAVRAS-CHAVE: Fausto; O Seminarista; amor; tragicidade. ABSTRACT: This work stick to a comparative reading of the trajectory of the characters Gretchen, from the German work Faust (1808), by Johann Wolfgang von Goethe, and Margarida, from the Brazilian work O Seminarista (1872), by Bernardo Guimarães. There is, in the lathing of the plots, a common elemente – among others – which allows the comparison between these two characters: the love as a path to destruction, to which issues converge, as the risk and beauty attribute and the social and religious conditions that outlined the woman‟s identity and acting in society. The tragic destiny is in the characters‟ dimension, and it is announced, on one hand, as church‟s lesson to those who divert from the moral precepts established by it, and confers the woman the label of the original sin, of Eva‟s offense. On the other hand, it reveals as a confirmation of the destiny of the one who once was born woman, beautiful, but with no marriage portion, resigned to the social code and to a man‟s tutoring. KEYWORDS: Faust; O Seminarista; love; tragedy. Das personagens Este trabalho se aterá ao estudo comparativo da trajetória de duas personagens da literatura alemã e da brasileira, a saber, Gretchen, da obra Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe, e Margarida, da obra O Seminarista, de Bernardo Guimarães. Após a composição do esboço Urfaust (Proto-Fausto, ou Fausto Zero), publicado, 80 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 postumamente, em 1887, em 1791 Goethe escreveu Faust, ein Fragment (Fausto, um fragmento), cuja versão definitiva, publicada pela primeira vez em 1808, ficou intitulada Faust, eine Tragödie (Fausto, uma tragédia). Neste trabalho, será utilizada apenas esta primeira parte da obra, editada em 1981, traduzida por Jenny Klabin Segall e publicada conjuntamente pela editora Itatiaia e a editora da Universidade de São Paulo. O romance O Seminarista, do escritor mineiro Bernardo Guimarães, foi publicado pela primeira vez em 1872, mas a edição utilizada para a presente análise data de 1999, lançada pela editora Ática. Embora as obras tenham sido concebidas em diferentes épocas e culturas, a análise aqui proposta pode ser justificada pela pretensão, segundo os pressupostos teóricos de Walter Benjamin, de libertar o objeto histórico do fluxo da história contínua (BENJAMIN, 1984 p.19)17, linear, homogênea e, por conseguinte, canônica, para concebê-lo sob um universo constelar. Para que um novo fenômeno seja originado, é necessário restaurar e reproduzir o passado, que, por conseguinte, se encontra incompleto e inacabado para o futuro. Temse, aqui, o eterno processo que Benjamin chama de “vir-a-ser”, na medida em que se constrói o presente por meio do processo de rememoração do passado, e permite, consequentemente, a construção do futuro por ele estar em potência no presente. Nesse sentido, a metáfora da constelação é eficaz para entender o trabalho do comparatista, que originará novas leituras a partir das infinitas possibilidades de realizar um traçado entre os fenômenos, fazendo emergir, como elucida Gagnebin (2007, p. 15), momentos privilegiados para fora da cronologia: “graças a esta ligação, dois elementos, (ou mais) adquirem um novo sentido e desenham um novo objeto histórico, até aí insuspeitado, mais verdadeiro e mais consistente que a cronologia linear [...]” (grifo nosso). Com isso, e pensando-se nas teorias literárias pós-coloniais, tem-se a tarefa de revisitar e questionar o passado, o cânone, a hierarquia, a cronologia, o etnocentrismo e o eurocentrismo, não no propósito da inversão de valores, e sim na inclusão de literaturas marginais, e de novas propostas de leituras e interpretações. De acordo com Compagnon (1999, p.123), “se o fato de a literatura falar da literatura não impede que ela fale também do mundo”, volta-se ao regime do mais ou menos, da ponderação e do aproximadamente, como diz o autor. Não se trata de 17 A origem do drama barroco alemão, de Walter Benjamin, foi publicada pela primeira vez em 1928, em Berlim. Neste trabalho, estaremos utilizando da edição de 1984. 81 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 escolher entre o Eu ou o Outro, de substituir valores, mas, sim, de entender a natureza híbrida que perpassa a humanidade. Embora as obras estejam abrigadas em épocas e culturas distintas, existe em seus enredos um tertium comparationis: o amor como caminho à destruição, para o qual convergem questões como o risco e atributo da beleza e as condições sociais e religiosas que delinearam a identidade e atuação da mulher na sociedade. Além disso, é indiscutível o fato de que o romance de Bernardo Guimarães, estando inserido na estética romântica, dialoga de modo subliminar com o trabalho de Goethe, embora este não seja um “romântico no sentido restrito”. Há um entrecruzamento das duas trajetórias. A obra O Seminarista (1999) narra a trágica história de amor entre Eugênio e Margarida, no interior de Minas Gerais. Ambos cresceram em íntima convivência, até o momento em que o senhor Antunes, pai de Eugênio, resolve tornar o filho padre, enviando-o ao seminário. Embora distantes, Margarida e Eugênio, o amor entre eles tornou-se mais forte com o passar do tempo e, em função desse sentimento, Margarida sofreu as maiores desgraças de sua vida. Bela, porém desamparada e pobre, a jovem e sua mãe foram expulsas das terras dos Antunes e passaram a viver, miseravelmente, à mercê dos perigos do mundo. A alegria e o sossego, antes presentes na vida de Margarida, deram espaço à saudade e ao sofrimento. Repudiada pelos pais de Eugênio, a frágil criatura ficou exposta a todos os embates de um destino cruel e a todas as seduções e azares de um mundo libertino. Mais tarde, com a morte de sua mãe, sua situação tornou-se ainda mais agravante diante dos esforços de sedutores em arrastá-la à prostituição. Ordenado padre, Eugênio volta à sua terra natal para celebrar sua primeira missa, na qual se encontra o cadáver de Margarida. A trajetória de Gretchen, na primeira parte de Fausto (1981), apresenta características semelhantes às de Margarida. Encantada por suas promessas e presentes, Gretchen entrega-se a Fausto, indivíduo que, desiludido com o conhecimento de seu tempo, faz um pacto com Mefistófeles. Assim como Margarida, Gretchen chamava atenção por sua beleza. Órfã de pai, ela morava com a mãe e o irmão, que estava no exército. Desprotegida pela ausência da figura masculina, Gretchen aceita se encontrar às escondidas com Fausto. 82 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 O local dos encontros é a casa de Marta, sua vizinha. Para tanto, o casal dá uma dose exagerada de soporífero para a mãe de Gretchen. Seu irmão, Valentin, tentando defendê-la da perdição, é morto por Fausto. A partir de então, Gretchen, que era um exemplo de devoção a Deus, é perseguida por espíritos do mal e lançada à perdição. Diante de uma gravidez inesperada, e julgada pela morte de sua mãe e de seu filho, sofre alucinações e começa a definhar na loucura. No entanto, Gretchen se arrepende e recebe a salvação, livrando-se, assim, do sofrimento. Ou seja, o destino trágico das personagens se anuncia, por um lado, como lição moral da igreja àquelas que se desviam dos preceitos morais por ela estabelecidos, e propaga à imagem da mulher o selo do pecado original, e do mal inscrito em se corpo. Por outro lado, revela-se como a confirmação da sina daquela que outrora nascera mulher, bela, mas sem dote, resignada aos códigos sociais e à tutoria do homem, como destacou Beauvoir (1980). Nesse sentido, a morte de Margarida representa e, duplamente, critica o poder centralizado e dominante da sociedade burguesa e do clérigo. Com a personagem Gretchen, tem-se a mesma crítica, no entanto, ela se dá por meio do perdão e da salvação da mulher pecadora. Quem a perdoa, vale ressaltar, é Fausto, enquanto representação da existência do bem e do mal no ser humano, e do profundo poder do perdão, da reconciliação e do amor na alma do homem. Atração e repreensão: o paradoxo da beleza Nahoum-Grappe (1990) assevera que a beleza feminina é considerada um elemento que prenuncia o destino da mulher. É ameaça de ruína e de condenação, sobretudo àquelas que nasceram sem dote, mas marcadas pela beleza. “[...] A rapariga bonita e pobre está destinada a ser presa da sua beleza visível: quando aparece, os vis sedutores seguem-na com o olhar” (NAHOUM-GRAPPE, 1990, p. 121-122) e, este olhar alheio, ao passo que é repreendido pela dignidade da moça, é paradoxalmente atraído pela beleza inscrita em seu corpo. A pobreza é a falta, o elemento que faz da mulher bonita o alvo indefeso, que atrai e define o sedutor e a conduz ao pecado original, cometido por Eva, personagem bíblica que, seduzida pela serpente, comeu do fruto proibido. Ela fraqueja diante da 83 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 tentação, ora uma maçã, ora uma jóia ou promessa, para “depois cair, numa queda definitiva, inscrita no seu próprio corpo” (NAHOUM-GRAPPE, 1990, p. 127). É nesse sentido que se pretende configurar, inicialmente, as personagens Gretchen e Margarida, ou seja, sob o viés da beleza como fator decisivo do destino trágico de ambas, aliado a outro fator agravante de suas condenações, a situação econômica e social. Paradoxalmente, como já citado, a aparência física das personagens é o atributo e o risco que possuem, é o dote que atrai os olhares para o objeto desejável, e as conduz aos desejos carnais. Na obra O Seminarista, Margarida é descrita por Eugênio como ser tentador e desejável: A tez era de um moreno delicado e polido, como resvalando uns reflexos de matiz de ouro. Os olhos grandes e escuros tinham essa luz suave e aveludada, que não se irradia, mas parece querer recolher dentro da alma todos os seus fulgores à sombra das negras e compridas pestanas, como tímidas rolas, que se encolhem, escondendo a cabeça debaixo da asa acetinada; as sobrancelhas pretas e compactas davam ainda mais realce ao mavioso da luz que os inundava, como lâmpadas misteriosas de um santuário. Os cabelos, uma porção dos quais trazia soltos por trás da cabeça, lhe rolavam negros e luzidios sobre os ombros como as catadupas enoveladas de uma cachoeira. Ao mais leve sorriso, que lhe entreabria os lábios, cavam-se-lhe nas duas mimosas faces com uma graça indefinível essas feiticeiras covinhas, que o vulgo chama com tanta propriedade – grutas de Vênus. A boca onde o lábio inferior cheio e voluptuoso dobrava-se graciosamente sobre um queixo redondo e divinamente esculturado, a boca era vermelha, fresca e úmida como uma rosa orvalhada. O colo, os ombros, os braços, eram de uma morbidez e lavor admiráveis. Sua fala era uma vibração de amor que alvoroçava os corações, o olhar como luz de lâmpada encantada que fascina e desvaira, o sorriso era um lampejo de volúpia que fazia sonhar com as delícias do Éden. Era, enfim, o tipo mais esmerado da beleza sensual, mas habitado por uma alma virgem, cândida e sensível. Era uma estátua de Vênus animada por um espírito angélico [...] (GUIMARÃES, 1999, p. 39 - grifo nosso). De modo semelhante, foi a beleza de Gretchen que atraiu o olhar de Fausto: [...] Por Deus, essa menina é linda! Igual não tenho visto ainda Tanta virtude e graça tem A par do arzinho de desdém A boca rubra, a luz da face Lembrá-las-ei até o trespasse! O modo por que abaixa a vista Fundo em minha alma se registra. Sua aspereza e pudicícia Aquilo então é uma delícia [...] (GOETHE, 1981, p.147). 84 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 À mulher feia nada se pede, comenta Nahoum-Grappe (1990, p. 132), pois ela não interessa nem ao romancista, e nem à sociedade, ou seja, sua falta de beleza não incide no desvio dos olhares. No entanto, deve-se lembrar de que a questão da beleza está associada à ordem do tempo, uma vez que, esquecido o seu efeito, ela desaparece: “a beleza feminina é suspeita: o corpo da mulher bela está ligado à morte, cujo esqueleto grotesco e assexuado a abraça, a fixa por detrás do espelho, e enlaça o seu corpo, já desnudado, mas ainda ornamentado” (NAHOUM-GRAPPE, 1990, p. 137). Ou seja, a beleza, não sendo eternamente duradoura, tende a seguir sua ordem natural, estabelecida pelos efeitos do tempo. Enquanto belas, Gretchen e Margarida são o alvo dos olhares da sociedade. Entretanto, se desprovidas dessa beleza, seu corpo metaforiza a morte, que cresce em seu âmago. E, essa morte anunciada, pode-se dizer, está inscrita na mulher como objeto simbólico do pecado original que a leva à condenação, à queda. Essa tentação se apresenta para Margarida pela promessa de amor eterno entre ela e Eugênio, concedida furtivamente à sombra do silêncio da noite, sem testemunhas nem constrangimentos: Os dois amantes, pondo de parte toda a reserva e timidez, deram livre expansão aos seus afetos, e pela primeira vez falaram sem rebuço de amor, casamento, de felicidade futura nos braços um do outro, e os beijos, aqueles beijos, que à luz do sol apenas esvoaçavam tímidos à flor dos lábios e morriam no limbo dos desejos, soltaram o vôo, encontraram-se através das grades, e imprimiram-se férvidos e trementes nos lábios de um e de outro amante (GUIMARÃES, 1999, p. 51). A jovem acreditava no amor e nas promessas de Eugênio, “mas não tinha fé no destino, nesse poder implacável, e tirânico, que zomba dos mais firmes protestos e das juras mais leais” (GUIMARÃES, 1999, p. 70). A tentação de Gretchen se revela ora pelas promessas de amor de Fausto, ora pelas joias que recebe para a ele se entregar. Por ser extremamente temente a Deus, foi esta a tática encontrada por Fausto e Mefistófeles para seduzi-la: Que linda caixa! Como veio ter cá? O cofre não fechei, quiçá? É esquisito! dentro, que haverá? Talvez a dessem em penhor A minha mãe. A chave oscila No laço do cordão de cor, Não sei se posso ... vou abri-la! 85 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Que é isso? Deus do céu! À fé, Em minha mão não vi cousa igual! Que adorno! A uma fidalga, até, Não ficaria em festas santas mal! Ornar-me-ia o colar? que tal? De quem tanto esplendor, meu Deus? (GOETHE, 1981, p. 130 - grifo nosso). As duas personagens se entregam às promessas de Fausto e de Eugênio. Margarida, apesar de provida de muitas virtudes, era humilde. Agregada a fazenda do Sr. Antunes, auxiliava sua mãe, Umbelina, nas tarefas: Entre esses agregados contava-se dona Umbelina, que com sua filha Margarida e uma velha escrava, ocupava a casinha [...]. Umbelina vivia de sua pequena bitácula à beira da estrada vendendo aguardente e quitandas aos viandantes, cultivando seu quintal, vendendo frutas, hortaliças e leite para tirar um sofrível rendimento (GUIMARÃES, 1999, p.14). Na obra Fausto (1981), Gretchen também se configura como moça humilde, responsável por todos os afazeres domésticos e cuidados com a casa: Sim, nossa casa é miúda, um nada, Contudo tem de ser tratada. Não temos serva; eu coso, eu lavo, e corro à miúdo. E esfrego cada nicho; E tem a minha mãe em tudo Tanto capricho! (GOETHE, 1981, p.114 - grifo nosso). Haja vista que a mãe de ambas as personagens assume, pela ausência da figura paterna, seu lugar, são as filhas Margarida e Gretchen que compartilham do trabalho legado à mãe, à dona de casa. Este descompasso familiar, ou seja, a ausência da figura paterna como elemento protetor do sexo feminino – sobretudo quando se refere a um contexto patriarcal – constitui-se em fator que contribui para a perdição das personagens. É a invisibilidade da mulher dentro da sociedade, a fragilidade e inferioridade delegada ao sexo feminino, que não permite que a mãe das personagens garanta a segurança e destino das filhas. Este quadro social se agrava com a morte de Umbelina, mãe de Margarida, e a morte do irmão e da mãe de Gretchen, e mostra a situação de limitação e dependência da mulher, ao tentar construir seu espaço numa sociedade estigmatizada como é aquela do século XVIII alemão e do século XIX brasileiro. Cisão e ambivalência do sagrado e do profano Embora se incorra na tentativa de conciliar o sagrado e o profano, na trajetória de Gretchen e de Margarida, a prática do pecado torna irremediável a perdição das 86 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 personagens. Na obra Fausto (1981), é a falta de cristianismo do personagem homônimo que se apresenta como obstáculo para o amor entre ele e Gretchen: Dize-me pois, como é com a religião? És tão bom homem, mas será mister Ver que tens pouca devoção [...] [...] Ouvindo-o assim, soa a razão; Mas mesmo assim erro, ao que cismo Porque te falta o cristianismo (GOETHE, 1981, p. 157). Na obra O Seminarista (1999), é a carreira clerical, desejada pelos pais de Eugênio, o empecilho para a concretização do amor entre ele e Margarida: “E pensas tu que eu hei de consentir que deixes de seguir uma carreira tão bela e honrosa, para o que não tenho poupado dinheiro nem cuidados, por amor de uma ... miserável?” (GUIMARÃES, 1999, p.60). Nesse sentido, é a falta de cristianismo de Fausto, e a “vocação” de Eugênio para com a religião, um dos aspectos que rompe com a possibilidade de união entre Margarida e Eugênio, Gretchen e Fausto. As duas personagens analisadas praticam atos considerados profanos pela moral social da época, o que aponta para uma profunda dialética que subjaz ao homem: sua essência revela a cisão entre o bem e o mal, inerente ao ser humano, ao passo que a sociedade busca conscientizá-lo de sua incapacidade em servir a duas forças antagônicas. O homem, dessa forma, deverá adorar apenas parte do mundo, e não o seu todo, pois, a partir do momento em que Gretchen e Margarida optam pelo princípio do prazer e do amor, projetam suas próprias desgraças. A relação entre o homem e a mulher, não consagrada pelo ritual do casamento, dos códigos sociais e religiosos, configurou-se como ato perverso, pois, como BEAUVOIR explica, A civilização patriarcal votou a mulher à castidade: reconhece-se mais ou menos abertamente ao homem o direito a satisfazer seus desejos carnais, ao passo que a mulher é confinada no casamento: para ela o ato carnal, em não sendo santificado pelo código, pelo sacramento, é falta, queda, derrota, fraqueza; ela tem o dever de defender sua virtude, sua honra; se ‘cede’, se 18 ‘cai’, suscita o desprezo [...] (BEAUVOIR, 1980 , p. 112 - grifo nosso). À luz destas convenções, os encontros de Gretchen com Fausto, e de Margarida com Eugênio, incidem no desprezo, na desonra e na punição das moças, pois estas, ao invés de tentar defender sua virtude, se deixaram seduzir pelos instintos profanos. 18 O Segundo Sexo, I e II, de Beauvoir, foi publicado pela primeira vez em 1949. Utiliza-se neste trabalho da edição de 1980, traduzida por Sérgio Milliet. 87 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Paralelamente, há outro fator que transforma essa “derrota” da mulher em grave perigo: a ameaça de um filho. É o obstáculo que, definitivamente, obstrui o retorno da rua para a casa. Um filho. Um filho ilegítimo é, na maioria das civilizações, um tal handicap social e econômico para a mulher não casada, que há jovens que se suicidam em se sabendo grávidas, e mães solteiras que esganam o recém-nascido; semelhante risco constitui um freio sexual bastante forte para que muitas jovens observem a castidade pré-nupcial exigida pelos costumes (BEAUVOIR, 1980, p. 125). Esta castidade, tão exigida pelos costumes, rompe-se para Gretchen no momento em que percebe que espera um filho de Fausto. É a prova de sua derrota e destino. Embora Margarida também tenha infringido a moral social e religiosa da época, a consumação do ato sexual, que sempre traz à mulher o risco da gravidez, não ocorre, com vistas aos indícios oferecidos pelo romance. A ilusão do amor como caminho à felicidade Precocemente a menina acredita ter atingido a idade do amor. Ela projeta no homem características míticas e perfeccionistas, na tentativa de convencer a si mesma da felicidade ao lado de seu “libertador”, como afirma Beauvoir (1980, p. 34). Isto se explica pelo fato de que, Desde a infância, tendo querido realizar-se como mulher ou superar as limitações de sua feminilidade, a menina esperou do homem realização e evasão: ele tem o semblante deslumbrante de Perseu, de São Jorge, é o libertador, é tão rico e poderoso que detém em suas mãos as chaves da felicidade: é o príncipe encantado (BEAUVOIR, 1980, p. 61). Assim, desde cedo, a menina prevê seu destino ao lado do homem, ela “adivinha sua dependência que a destina ao homem, ao filho, ao túmulo” (BEAUVOIR, 1980, p. 48), como aponta a autora. Metaforizado pelo túmulo, esse destino se explica pelo fato de a mulher renunciar a si mesma, a seus desejos e sentimentos para, paradoxalmente, renascer como esposa e mãe, e ter sua morte anunciada por essa transição. Seu fim é certeiro e a passagem do universo infantil para o de esposa ocorre de modo brusco. Interrompe “a evolução harmônica de uma evolução contínua” (BEAUVOIR, 1980, p.110) para dar início a um novo ciclo, uma nova experiência, cujo retorno é irreversível. 88 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 A ilusão do amor, como caminho à felicidade, diz respeito a um profundo sentimento que opera sobre as mulheres, essência que as diferencia, por exemplo, do sexo oposto. Buscando se libertar das ordens do seu primeiro protetor, o pai, e construir seu futuro, a jovem projeta sua vida na figura masculina. O destino da mulher depende do homem, mas, paradoxalmente, a presença e/ou a ausência dele define, do mesmo modo, o fim da mulher: a sua morte. Em outras palavras, “lavar, passar, coser, descobrir os flocos de poeira escondidos sob a noite dos armários, é recusar a vida, embora detendo a morte” (BEAUVOIR, 1980, p. 201). Há, entretanto, uma relação dialética entre o homem e a mulher quando se trata de amor, uma vez que, Em certos momentos de sua existência, alguns homens puderam ser amantes apaixonados, mas nenhum há que possa definir como “um grande apaixonado”; nunca abdicam totalmente, mesmo em seus mais violentos transportes; ainda que caiam de joelhos diante de sua amada, o que desejam afinal é possuí-la, anexá-la; permanecem no coração de sua vida como sujeitos soberanos; a mulher amada não passa de um valor entre outros; querem integrá-la em sua existência, e não afundar nela uma existência inteira. Para a mulher, ao contrário, o amor é uma demissão total em proveito de um senhor (BEAUVOIR, 1980, p. 411 - grifo nosso). Todavia, as personagens Margarida e Gretchen desconstroem a ordem “natural” pré-concebida para a mulher, de ceder e se casar, sem amor, em virtude de um rito institucional e social. Malograda a felicidade desejada, elas optam pela solidão. Sobre o destino feminino tradicional: Quase todas as mulheres sonharam com “o grande amor”: conheceram sucedâneos deste, aproximaram-se dele; sob aspectos de figuras inacabadas, magoadas, irrisórias, imperfeitas, mentirosas ele as visitou; mas muito poucas lhes consagraram realmente a existência. As grandes amorosas são, o mais das vezes, mulheres que não usaram o coração nos amores juvenis; aceitaram primeiramente o destino feminino tradicional: marido, casa, filhos; ou conheceram uma dura solidão; ou confiaram em alguma empresa que malogrou [...] (BEAUVOIR, 1980, p. 413 - grifo nosso). O amor que Gretchen e Margarida buscavam não se consagrou. Ele apenas as visitou sob a máscara de mágoas e mentiras. Ambas preferem conhecer a solidão à possibilidade de aceitar o destino tradicional imposto à mulher, modelo arquetípico que se introjeta como objeto do homem, e que renuncia aos seus desejos e sentimentos. Abdicam, assim, do casamento, como contrato social, simulacro da união pelo amor. Tal escolha implicará na expulsão de Margarida, bem como de sua mãe, das terras do senhor Antunes: “Um belo dia, pois, Umbelina e sua filha tiveram de arrumar a sua 89 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 trouxa e de dizer eterno adeus à sua linda casinha, ao risonho e pitoresco vale, ao córrego e às paineiras que por tantos anos tinham sido o abrigo e a companhia de sua feliz e pacífica existência” (GUIMARÃES, 1999, p.71). Pobre e frágil, a moça estava totalmente exposta aos embates de um destino cruel, às seduções e azares de um mundo libertino. Não faltaram sedutores que, dispondo de dinheiro, empregassem grandes esforços para arrastá-la ao caminho da prostituição: “Atraídos pela beleza de Margarida, como dissemos, alguns rapazes freqüentavam a casa de Umbelina, e lhe requestavam a filha. Esta, porém, não lhes dava a mínima atenção, e em sua cândida inocência nem mesmo suspeitava o verdadeiro motivo, por que tanto a festejavam” (GUIMARÃES, 1999, p. 54). No entanto, outra desgraça estava por vir: “[...] Umbelina, afrontada de desgosto, velhice e enfermidades, faleceu deixando a pobre órfã mais desvalida e angustiada que nunca. Um feroz destino como que se comprazia em recalcá-la cada vez mais na erragem do infortúnio” (GUIMARÃES, 1999, p.86). Margarida, mesmo depois de reencontrar Eugênio, sabia que não viveria por muito tempo: “Sofro muito, muito! ... parece que a cada momento se me rebenta o coração – mas agora ... como o senhor veio, sinto-me feliz; já não morro tão sozinha... tão desamparada!” (GUIMARÃES, 1999, p.92). Depois da morte da mãe, ela apenas aguardava rever Eugênio e, passivamente, resigna-se ao seu destino: a morte. De modo distinto, a morte assolou a vida de Gretchen sob outros limiares. A primeira delas é a morte de seu irmão Valentin, em uma discussão com Fausto, por sua irmã, que tanto defendia, ter arruinado sua honra: Valentim: quando, de início, a infâmia nasce, Trazem-na ocultamente ao mundo, E põem-lhe o manto mais profundo Da noite sobre o ouvido e a face; Matar-na-iam, até, com gosto. Mas, quando fica alta e crescida, Também de dia anda despida, Sem que lhe embeleze o rosto. E quanto mais cresce em feiúra, A luz do dia mais procura. Já vejo o tempo, francamente, Em que todo burguês decente, Qual de um cadáver roto e infecto, Fugir-te-á, marafona, o aspecto! Vai se gelar teu coração, Quando encontrares seu olhar! Na igreja não te deixarão Chegar aos pés do santo altar! 90 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Com colar de ouro e flor na trança, Já não te alegrarás na dança! Em negros antros e jazigos Hás de ocultar-te mendigos; E se o Céu te outorgar mercê, Maldita sobre a terra sê! (GOETHE, 1981, p. 171). Nesta citação, Valentim condena os atos de Gretchen, que se igualam aos de uma prostituta. Roga o desprezo com que todos os olhares a cercarão, e as portas dos céus e da igreja que para ela não mais serão abertas. Após este acontecimento, a fim de se encontrarem às escondidas, Fausto exagera na dose de soporífero que dá para a mãe de Gretchen, levando-a a morte: Margarida: Dormisse eu só! Com que abandono Deixar-te-ia hoje o trinco aberto; Mas minha mãe! Tão leve tem o sono: E se nos surpreendesse, é certo Que eu morreria de mil mortes! Fausto: Meu coração, com isso não te importes. Eis um vidrinho! Junta-lhe à poção Três gotas só, dentro da taça, Que em fundo sono a envolverão (GOETHE, 1981, p. 161). Além disso, Gretchen também acusava Fausto de ter matado seu filho. Os espíritos do mal a perseguiam e, levada à perdição, foi julgada ao inferno por ter cedido aos desejos profanos: Quão outra, Gretchen, te sentias Quão ainda plena de inocência Deste altar santo te acercavas A balbuciar do livre gasto As orações Em parte folgas infantis Em parte deus no coração! Gretchen! Tua cabeça, onde anda? No coração, tens que delito? Pela alma de tua mão oras Que adormeceu por ti a interminável pena? De quem o sangue em teu umbral? E borbulhante, já não se move algo sob o teu coração, E te angustia, a ti e a si, Com existência pressagiosa? (GOETHE, 1981, p.172). Há um simbólico desencontro, portanto, no desfecho da trajetória das personagens. Margarida foi rejeitada e destinada às margens da sociedade brasileira do século XIX, renunciada como símbolo da tentação do diabo e do pecado original, foi 91 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 “malvista e repudiada por eles, pobre e frágil criatura exposta a todos os embates de um destino cruel e a todas as seduções e azares de um mundo corrupto e libertino” (GUIMARÃES, 1999, p. 75). Em Margarida há uma dimensão mítica, que a associa à simbologia que a serpente conferiu à humanidade: A pequena Margarida, apenas na idade de dois anos, estando a brincar no quintal, desgarrou-se por um momento da companhia da rapariga que a vigiava, e da de seu camarada de infância. Quando este deu pela falta e foi procurá-la, encontrou-a assentada na relva junto de uma fonte a brincar ... com que, Santo Deus! ... a brincar com uma formidável e truculenta jararaca. A cobra enrolava-se em anéis em volta da criança, lambia-lhe os pés e as mãos com a rubra e farpada língua, e dava-lhe beijos nas faces. A menina a afagava sorrindo, e dava-lhe pequenas pancadas com um pauzinho que tinha na mão, sem que o hediondo animal se irritasse e lhe fizesse a mínima ofensa (GUIMARÃES, 1999, p. 15). Será, portanto, em analogia a Eva pecadora que Margarida será lembrada pela família Antunes, e mesmo por Eugênio no seminário, que encontrava exata relação do incidente da infância de Margarida e o episódio do livro de Gênesis: “Já para ele não havia dúvida: aquele acontecimento era um aviso do céu; aquela serpente fatídica era o demônio; e Margarida, nova Eva por ele seduzida, lhe oferecia o ponto fatal, e o leva ao caminho do exílio e da perdição eterna” (GUIMARÃES, 1999, p. 79). Tais imagens, a propósito da serpente, são asseguradas no tempo por uma revelação histórica, “é a manifestação de Deus no Tempo que assegura, aos olhos dos cristãos, a validade das imagens e dos símbolos” (ELIADE, 1991, p. 161). E, além disso, essas imagens, segundo o autor, permitem a passagem para um mundo transhistórico, uma abertura para o transcendente que engendra e decifra os sinais da presença divina. A dimensão mítica e arquetípica, aliás, é necessária à alma do ser humano, pois “o que importa é a significação da existência humana, e essa significação é de ordem espiritual” (ELIADE, 1999, p. 168). Também é de ordem complexa e dialética, visto que sua essência compreende duas forças antagônicas, o bem e o mal e, ao se falar em deus, fala-se também no diabo, e vice-versa. À igreja cabia relembrar à sociedade o terrível mito do Éden, como explica Araújo (2000). O Estado e a Igreja, juntamente com a vigilância do sexo masculino, confluíam para um mesmo objeto que, segundo o autor, era “abafar a sexualidade feminina que, ao 92 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 rebentar as amarras, ameaçava o equilíbrio doméstico, a segurança do grupo social e a própria ordem das instituições civis e eclesiásticas” (ARAÚJO, 2000, p.45). Sobretudo, era a igreja que exercia maior poder sobre o destino e adestramento das mulheres, o que era justificado pelo fato de o homem ser superior, e se as mulheres eram sujeitas a Cristo, também o deveriam ser aos seus maridos. Dessa forma: [...] a mulher estava condenada, por definição, a pagar eternamente pelo erro de Eva, a primeira fêmea, que levou Adão ao pecado e tirou da humanidade futura a possibilidade de gozar da inocência paradisíaca. Já que a mulher partilhava da essência de Eva, tinha de ser permanentemente controlada (ARAÚJO, 2000, p.46 - grifo nosso). Nesse sentido, Margarida é a metonímia da mulher de seu tempo que, reprimida e controlada, tinha seu destino traçado pelas leis da igreja e da sociedade. Sobre este último aspecto, Freyre (2000, p. 125) explica que o homem tinha “todas as liberdades de gozo físico do amor e limitando o da mulher a ir para a cama com o marido, toda a santa noite que ele estiver disposto a procriar. Gozo acompanhado da obrigação, para a mulher, de conceber, parir, ter filho, criar menino” (grifo nosso). Ao perfil da moralidade patriarcal também se acrescentava limitar “as oportunidades da mulher ao serviço e às artes domésticas, ao contato com os filhos, a parentela, às amas, às velhas e aos escravos. E, uma vez por outra, num tipo de sociedade católica como a brasileira, ao contato com o confessor” (FREYRE, 2000, p. 125 - grifo nosso). Em contramão aos ditames católicos e puritanos, Margarida não compartilha do casamento como contrato social, uma vez que “reconciliar o casamento com o amor é uma tal façanha que se faz preciso nada menos do que uma intervenção divina para consegui-lo” (BEAUVOIR, 1980, p. 181). Ao se casar e se tornar mãe, Margarida teria a chance de se afastar da imagem de Eva pecadora, e se aproximar da Virgem Maria – uma vez que a sociedade associou a mãe a um ser santo, sagrado e sem impulsos sexuais, por exemplo. Julgada às margens da sociedade, Margarida é desprezada e punida, tendo como fim trágico a morte. À sua transgressão “Deus” não lhe concede o perdão. Como explica Araújo, O ideal de adestramento completo, definitivo, perfeito, jamais foi alcançado por inteiro. A igreja bem que tentava domar os pensamentos e sentimentos, muitas vezes até com algum sucesso, mas nem todo mundo aceitava 93 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 passivamente tamanha interferência quando o fogo do desejo ardia pelo corpo ou quando as proibições passavam dos limites aceitáveis em determinadas circunstâncias. Contudo, parece que o normal era a introjeção, por parte das próprias mulheres, dos valores misóginos predominantes no meio social; introjeção imposta pela Igreja e pelo ambiente doméstico, mas também por diversos mecanismos informais de coerção, a exemplo da tagarelice dos vizinhos, da aceitação em certos círculos, da imagem a ser mantida neste ou naquele ambiente [...] (ARAÚJO, 2000, p. 53 - grifo nosso). De acordo com a citação acima, sublinha-se a influência devastadora que a moral da igreja exercia, e que se alastrava e se introjetava na consciência e no modo de viver do homem. No capítulo Mulheres nas Minas Gerais, Figueiredo (2000) trata da política familiar em Minas, e revela a importância que o modelo cristão de organização familiar assumia, bem como “cabia disciplinar não apenas os papéis sociais, mas também os afetos e o uso do corpo. No entanto, a vida cotidiana das comunidades mineiras pareceu resistir a tanta coerência” (FIGUEIREDO, 2000, p. 167). Assim, considerando-se que o casamento, no qual o ato sexual “era um dever a ser cumprido com serenidade e pureza na alma para que os prazeres da carne não contaminassem o espírito, afastando o homem de Deus. A presença do ardor no ato significava incorrer no mortal pecado da luxúria, onde a paixão rompia a domesticação” (FIGUEIREDO, 2000, p. 176) estava inerente a essa organização social, é possível afirmar que Margarida se encontra ao avesso da moral cristã. Em contraposição, Gretchen é liberta da prisão e da loucura, perdoada ao rogar a Deus pela salvação e misericórdia de sua alma. Apesar de seu delito, ela recebe uma segunda chance, como a figura bíblica Maria Madalena que, conforme o evangelho de João, capítulo oito e versículo sete, é apedrejada pela sociedade, mas salva pelas palavras de Jesus: “Que aquele de vós que estiver sem pecado seja o primeiro a atirarlhe uma pedra”. No entanto, não será Eugênio ou Fausto que condenarão Margarida e Gretchen, uma vez que Eugênio enlouquece com a morte de Margarida e Fausto se desespera pelo destino terrível de Gretchen: FAUSTO: Na desventura, em desespero! Miseravelmente errante sobre a terra e finalmente prisioneira! Encarcerada como criminosa, entregue a sofrimentos cruéis, a meiga, infausta criatura! Até este ponto! – e mo ocultaste tu, traiçoeiro, infame Gênio – Pois sim, queda-te ali! Resolve em fúria os olhos demoníacos dentro da fronte! Provoca-me com teu aspecto odioso! Encarcerada! Em infortúnio irremediável! Entregue a gênios maus e à humanidade justiceira e impiedosa! - E a mim, no entanto, embalas com insultas diversões, dela me ocultas o crescente desespero e a entregas, indefesa, à perdição! (GOETHE, 1981, p.194). 94 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 É a igreja e a sociedade que as entregam a um destino cruel e irremediável, como a típica lição de moral, presente nos contos de fadas tradicionais. Desse prisma, chama-se a atenção para o fato de que a figuração cristã das obras oscila entre um Deus castigador, semelhante à fúria dos titãs, que severamente pune a mulher seduzida, que “mordeu a maçã proibida”, “abrira a caixa de Pandora” ou “cortara os cabelos de Sansão”; e outro que, apesar do pecado cometido, a perdoa e a salva. Sobre a crítica à salvação, ou não, da mulher seduzida, comenta Silva (1984), em Fausto na obra Europeia, obra organizada por João Barrento: Todavia, apesar desse milagre de amor inebriante, Fausto toma o partido da ingenuidade e da paixão da jovem que não consegue resistir à adulação atrevida de um senhor fidalgo e bem mais velho do que ela, para se ver envolvido numa trama que nunca desejaria (Fausto é responsável pelas mortes da mãe, do irmão e até do filho de Margarida e pelo abandono desta ao seu terrível destino). Sabemos que Goethe queria, através do amor, da culpa e do suplício de Margarida, combater a moral austera e os preconceitos rígidos de uma burguesia atrasada, moralista e intolerante, que castigava com impiedade a mulher seduzida, ao ponto de a levar ao infanticídio (SILVA, 1984, p. 74-75 - grifo nosso). Portanto, Goethe realiza contundente crítica à burguesia, à igreja e à sociedade, que denegava à mulher seduzida uma segunda chance, pois sua queda, seu fracasso, deveria suscitar o desprezo, a morte. Semelhante crítica é realizada por Bernardo Guimarães contra a burguesia e o clérigo. Margarida tem como fim a solidão e a morte, porque foi vítima da opressão social, e da severa moral propagada pelo clérigo. A esta não foi concebida salvação. Ao contrário, ela se tornou símbolo do mau, da tentação do diabo e do pecado original. A desonra é experimentada por ambas as personagens analisadas, pois são julgadas como mulheres indecentes que se entregaram aos desejos carnais e se expuseram às tentações do prazer. O sofrimento de Gretchen e de Margarida é a lição que os dogmas da igreja e da sociedade anunciam àquelas que ousam afrontar suas regras. Além disso, Gretchen e Margarida se constituem como metáfora da mulher que, sabendo-se condenada, desde a infância, a depender e servir ao homem, prefere servir a Deus – que, ressalta-se, segundo a cultura judaico cristã, não deixa de ser um Homem. E, paradoxalmente, essa sua escravidão é transfigurada como liberdade. BEAUVOIR afirma: 95 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Encerrada na esfera do relativo, destinada ao macho desde a infância, habituada a ver nele um soberano a quem não lhe é dado igualar-se, a mulher que não sufocou sua reivindicação de ser humano sonhará em ultrapassar-se para um desses seres superiores, em unir-se, confundir-se com o sujeito soberano. Não há para ela outra saída senão perder-se de corpo e alma em quem lhe designam como o absoluto, o essencial. Como de qualquer maneira se acha condenada à dependência, a obedecer a tiranos – pais, marido, protetor – prefere servir um Deus; escolhe querer tão ardosamente sua escravidão que esta se apresentará a ela como a expressão de sua liberdade; esforçar-se-á por superar sua situação de objeto inessencial assumindo-a radicalmente; através de sua carne, de seus sentimentos, de suas condutas exaltará soberanamente o amado, pô-lo-á como a realidade e o valor supremos; aniquilar-se-á diante dele. O amor para ela torna-se uma religião (BEAUVOIR, 1980, p. 412). A citação se exemplifica ora com Margarida que, no embate com a sociedade, renuncia ao caminho da prostituição, e permanece temente a Deus até seus últimos dias, ora com Gretchen, que se entrega à fé. Ou seja, a escravidão ao homem transfigura-se em obediência a Deus. Considerações finais Este trabalho mostrou a possibilidade de comparar literaturas tão distintas e, paradoxalmente, perceber a semelhança entre a trajetória das personagens Gretchen e Margarida, que se distinguem, no entanto, pelo final diverso: a morte de Margarida e a escravidão transfigurada como liberdade de Gretchen, desdobramento este que se conecta, novamente, no desaguar final de cada obra: a crítica à moral cristã e burguesa, que condena à morte a mulher seduzida. Assim, a imagem de Gretchen e de Margarida oscila entre a concepção de inferioridade da mulher e sua necessidade por orientação masculina, e a constante reprodução de Eva pecadora, que tem o poder de seduzir e arruinar o homem. Centrada numa mentalidade puritana, sobressai a visão negativa do sexo, e a ênfase na salvação da alma, de modo que pecar contra a castidade implica ser julgado ao inferno. A mulher, desta perspectiva, deve manter uma vida espiritual de pureza, renunciando ao prazer sexual, que deve ser restrito à reprodução humana. Ou seja, o corpo é pensado como lugar do pecado original. Todavia, ninguém nasce mulher, diz Beauvoir (1980, p. 9), mas torna-se mulher: “nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto [...]. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro”. Nesse 96 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 sentido, como já destacado, a morte de Margarida representa e, duplamente, critica o poder centralizado e dominante da sociedade burguesa e do clérigo. Com a personagem Gretchen, tem-se a mesma crítica, no entanto, ela se dá por meio do perdão e da salvação da mulher pecadora. É a essência humana, contraditória, que transcende as gerações, que foge às palavras, aos conceitos e às convenções. Referências bibliográficas BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1985. ARAÚJO, Emannuel. A arte de sedução: sexualidade feminina na colônia. In: PRIORI, Mary Del (org.). História das Mulheres no Brasil. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2000. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardi, et al. 2. ed. São Paulo: UNESP/Hucitec, 1990. BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Trad. Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: UFMG, 1999. COUTINHO, Eduardo E. Literatura Comparada na América Latina. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. DA SILVA, Maria Helena Gonçalves. 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GUIMARÃES, Bernardo. O Seminarista. São Paulo: Ática, 1999. NAHOUM-GRAPPE, Verónique. História das Mulheres: do Renascimento à Idade Moderna. São Paulo: Afrontamento, 1990. 98 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 OS PREFÁCIOS DOS ROMANCES DE JOÃO MARQUES DE CARVALHO EM FOLHETINS BELENENSES OITOCENTISTAS THE PREFACES OF JOÃO MARQUES DE CARVALHO IN SERIAL NOVELS FROM BELEM IN NINETEENTH-CENTURY Alan Victor Flor da Silva – PG-UFPA Germana Maria Araújo Sales- UFPA RESUMO: João Marques de Carvalho nasceu no dia 6 de novembro de 1866, em Belém, no estado do Pará, e morreu no dia 11 de abril de 1910, em Nice, na França, aos 43 anos. Durante sua vida, foi diplomata, político, jornalista e escritor. Atuou não apenas como colaborador de jornais que fizeram parte da constituição da história da imprensa paraense, como Diário de Belém, A Província do Pará e A República, como também ajudou a fundar jornais de pequeno porte e vida efêmera, como A Arena e Comércio do Pará. Nessas folhas periódicas, deixou grande parte de sua produção ficcional, como poemas, contos e romances. A partir dos prefácios dos romances em folhetim A leviana: história de um coração (1885) e O Pagé (1887), publicados, respectivamente, nos jornais A Província do Pará e A República, objetivamos, com este trabalho, traçar o perfil do leitor idealizado por Marques de Carvalho e a construção que o autor faz de si mesmo em relação a seu papel de escritor nos prólogos dessas narrativas. Palavras-chave: Marques de Carvalho; prefácios; público-leitor; folhetim; jornais. ABSTRACT: João Marques de Carvalho was born on November 6th, 1866, in Belém, Pará State, and died on April 11th, 1910, in Nice, France, at the age of 43. During his lifetime, he worked as a diplomat, politician, journalist and writer. He served not only as a contributor to the newspapers that were part of the history constitution of Pará press, such as Diário de Belém (Belém Daily News), A Provincia do Pará (Pará Province), and A República (Republic), but also helped to found small newspapers whose lifetime was very short, such as A Arena (Arena) and Comércio do Pará (Pará Trade). In such newspapers, he published most of his fictional productions, such as poems, short stories and novels. In the present work, from the prefaces of the serialized novels A leviana: história de um coração (The flighty: story of a heart [1885]) and O Pagé (The Healer [1887]), which were published respectively in A Província do Pará and A República, we aim to draw the profile of the reader idealized by Marques de Carvalho and the construction that the author makes of himself towards his role as a writer in the prologues of these narratives. Keywords: Marques de Carvalho; prefaces; the reader; serials; newspapers. 1. Para início de conversa... Os prefácios, quando escritos pelos próprios romancistas, funcionam como um espaço reservado ao diálogo entre autores e leitores. Nesse texto introdutório ao romance, os escritores, em tom de conversa, expõem suas opiniões, suas confissões, 99 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 suas queixas e seus pensamentos aos possíveis leitores de sua obra, justamente com a finalidade de envolvê-los e seduzi-los. É por essa razão que os prefácios nos permitem compreender qual seria o leitor pretendido ou idealizado pelo romancista, quais seriam as estratégias empreendidas pelo escritor para atrair o público-leitor e quais eram as discussões empreendidas em torno do próprio gênero romance ou do movimento literário em vigor. No Brasil, algumas pesquisas que tomam os prefácios escritos pelos próprios romancistas como objeto de estudo já foram desenvolvidas. No livro Formação do romance inglês: ensaios teóricos (2007), Sandra Vasconcelos reuniu os prólogos de romances ingleses do século XVIII para discutir as definições e as características do romance moderno, a figura do leitor e o papel do romancista na Inglaterra setecentista. Na Tese de doutoramento Palavra e sedução: uma leitura dos prefácios oitocentistas (2003), Germana Sales, por sua vez, compilou os prefácios de romances brasileiros durante o Romantismo, especificamente desde 1826 até 1881, com a finalidade de analisar a imagem que o romancista constrói do leitor, do gênero romance e de si mesmo. Inspirado nessas pesquisas, este trabalho pretende considerar apenas os prefácios dos romances de Marques de Carvalho publicados na coluna folhetim dos jornais belenenses oitocentistas.19 Porém, antes de avaliar os prólogos propostos para este estudo, são necessárias algumas informações biográficas a respeito do romancista paraense para situar o leitor. Marques de Carvalho dedicou grande parte de sua vida ao jornalismo e colaborou tanto para jornais que fizeram parte da história da imprensa periódica paraense, como Diário de Belém, A Província do Pará e A República, quanto para jornais de pequeno porte e vida efêmera, como A Arena e Comércio do Pará. Assim, o romancista aliou sua carreira jornalística à de escritor e utilizou-se de um espaço específico dos jornais oitocentistas, muito usado por escritores estrangeiros e nacionais para divulgação de parte de sua produção ficcional. Este espaço era a coluna Folhetim20. 19 Esses periódicos encontram-se acessíveis ao público em rolos de microfilme, disponíveis no Setor de Microfilmagem da Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves (FCPTN), localizada em Belém, capital do estado do Pará. 20 A coluna folhetim foi uma seção específica da imprensa periódica de quase todo século XIX e do início do século XX, passando por um período de ascensão, de auge, de declínio e de desaparecimento. Originária da imprensa jornalística francesa oitocentista, essa coluna tinha uma peculiaridade em relação às outras: localizava-se precisamente no rodapé das primeiras páginas dos jornais, sendo separada das demais por uma linha horizontal. Essa coluna era dedicada especialmente à publicação de diversos 100 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Nessa seção do jornal A Província do Pará, por exemplo, Marques de Carvalho publicou quatro textos em prosa de ficção no ano de 1885, como o romance A leviana: história de um coração 21 e os contos “A Cereja”22, “A comédia do amor”23 e “Que bom marido!..”24. No rodapé do jornal A República, divulgou, em 1887, o romance O Pagé25. Na coluna Parte Literária do jornal Diário de Belém, ocupando quase totalmente a primeira página, o escritor lançou, em 1889, o conto “O preço das pazes”26. No periódico literário A Arena, destinado apenas à publicação de textos assinados apenas por autores paraenses, publicou, em 1887, os contos “Ao soprar da vela”27, “História incongruente”28 e “A medalha do soldado”29. Desses textos ficcionais, apenas os romances em folhetim – A leviana: história de um coração e O Pagé – serão considerados para avaliação, pois são os únicos textos em prosa de ficção que apresentam prefácios. Sobre esses romances, é importante saber que, no dia 25 de março de 1885, Marques de Carvalho divulgou na coluna Folhetim do jornal A Província do Pará, em trinta e oito fascículos, o romance A leviana: história de um coração. Após sua trigésima oitava publicação, no dia 4 de agosto de 1885, a narrativa, sem nenhum aviso prévio, foi inesperadamente suspensa, embora seu enredo ainda não tivesse chegado ao fim. Do mesmo modo, no dia 18 de janeiro de 1887, o sortimentos de textos considerados frívolos: artigos críticos; crônicas; comentários sobre acontecimentos mundanos; piadas; receitas de beleza e de culinária; boletins de moda; resenhas de teatro, de literatura e de artes plásticas, além de outros gêneros relacionados ao entretenimento. Interessados no sucesso que a coluna fazia naquela época entre o público-leitor francês, Émile de Girardin, proprietário do jornal francês La Presse, e seu ex-sócio e pirateador Dutacq, proprietário do jornal Le Siècle, lançaram pela primeira vez nesse rodapé ficções em fatias seriadas, principalmente os romances, os quais, mais tarde, ficaram conhecidos no Brasil pelo nome romance-folhetim. O resultado foi um grande sucesso. A fórmula “continua amanhã” ou “continua no próximo número”, que a ficção em série proporcionava ao folhetim, alimentava paulatinamente o apetite e a curiosidade do leitor diário do jornal e, obviamente, como resposta, fazia aumentar a procura pelo gênero, proporcionando-lhe maior tiragem e, consequentemente, barateando seus custos. O reinado do romance-folhetim estendeu-se na França até o começo do século XX. Vários escritores e obras levaram o público ao delírio da expectativa e, às vezes, ao exagero da comoção. Em razão do sucesso que fazia na França, o novo gênero rompeu os limites geográficos de sua produção e conquistou adeptos, plagiadores, tradutores e fiéis leitores no mundo inteiro (Cf. MEYER, 1996). 21 Esse romance foi publicado entre os dias 25 de março e 4 de agosto de 1885, em trinta e oito fascículos. 22 Esse conto foi publicado entre os dias 15 e 23 de agosto de 1885, em sete fascículos. 23 Esse conto foi publicado entre os dias 6 e 15 de setembro de 1885, em seis fascículos. 24 Esse conto foi publicado no dia 25 de dezembro de 1885, em um único fascículo. 25 Esse romance foi publicado entre os dias 18 de janeiro e 20 de fevereiro de 1887, em 23 fascículos. 26 Esse conto foi publicado no dia 2 de fevereiro de 1889, em único fascículo. 27 Esse conto foi publicado nos dias 17 de abril e 1º de maio de 1887, em dois fascículos. 28 Esse conto foi publicado no dia 22 de maio de 1887, em um único fascículo. 29 Esse conto foi publicado no dia 9 de junho de 1887, e sua continuação, anunciada para a semana seguinte, não foi encontrada. 101 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 autor paraense lançou na coluna Folhetim do jornal A República o romance naturalista O Pagé. No dia 20 de fevereiro de 1887, após sua vigésima terceira aparição, também sem nenhuma explicação antecipada, a narrativa foi interrompida. É por essa e outras razões que pretendemos suscitar algumas questões e tentar respondê-las: a qual categoria de leitores Marques de Carvalho se dirigia nos prefácios de seus romances? Qual era o perfil ou a construção do leitor idealizado por Marques de Carvalho nos prólogos de seus romances? Quais são as hipóteses que podem ser levantadas para inferir por que os romances em folhetim do autor paraense foram inesperadamente interrompidos?30 2. A leviana: história de um coração: um romance baseado em fatos verídicos? Desde quando o romance tornou-se o gênero mais bem aceito, como também o mais lido no mundo ocidental, os romancistas passaram a se utilizar de inúmeros estratagemas e artimanhas para afiançar a confiança dos leitores e para garantir elogios. Entre essas estratégias, Márcia Abreu cita uma que causava muitos debates entre os detratores e os defensores dos romances: a atribuição de veracidade aos enredos: A narrativa de Altina sintetiza os mais sérios perigos percebidos pelos detratores do gênero: a confusão entre realidade e ficção, favorecida pelo fato de os romances insistentemente declararem-se verídicos; a frustração com relação à própria vida, julgada interessante quando comparada às narrativas; o desejo de fazer, na vida real, o mesmo que fazem os personagens. No caso de Altina, o problema dizia respeito às origens e ao pertencimento à nobreza. Em outros textos, a questão é de natureza amoroso-sexual, o que torna ainda mais complicado o desejo de transpor para a vida o que se lê nos textos. (ABREU, 2003, p. 284-285) *** A dificuldade em distinguir realidade e ficção pode ser creditada à ingenuidade dos leitores, mas também contribuíram as estratégias empregadas pelos romancistas para conferir veracidade aos enredos. Até mesmo as mais fantásticas histórias sobrenaturais podiam ser apresentadas como extraídas diretamente da realidade, como o fez Daniel Defoe em um dos prefácios às suas “True Ghost Stories”. (ABREU, 2003, p. 298-299) 30 Considerando-se que os textos introdutórios foram escritos no século XIX seguindo a ortografia vigente na época, optamos por fazer a atualização ortográfica de todos os excertos que utilizamos neste artigo para facilitar a compreensão do leitor. 102 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Atribuir veracidade aos enredos constituiu uma prática muito comum entre os romancistas nos séculos XVIII e XIX. Assim como Daniel Defoe e diversos outros romancistas, Marques de Carvalho adotou essa técnica. De forma engenhosa e perspicaz, no prólogo do romance A leviana: história de um coração, publicado na coluna folhetim do jornal A Província do Pará, o escritor paraense induz o leitor a acreditar que a trama dessa narrativa foi baseada em fatos verídicos. Se não fosse pela presença do vocábulo “Prólogo” antes do texto em si, seria possível acreditar que o público-leitor pensaria que a história foi iniciada sem preâmbulos, pois os elementos da narração – enredo, tempo, espaço, foco narrativo e personagens – aparecem logo no começo, como ilustra o excerto a seguir: Eram dez horas da noite de 18 de março de 18... As salas do Café Carneiro regurgitavam de habitues que, ou jogavam bilhar, ou passeavam pacatamente de um para outro lado, desfilando por junto à mesa onde eu me achava saboreando o conteúdo de uma chávena de café, em companhia de um amigo. Íamo-nos já a retirar, quando se acercou de nós um rapaz bem trajado, – posto que com algum desalinho, – muito pálido e magro, andando a custo. À primeira vista conhecia-se logo que estava quase ébrio. (CARVALHO, A Província do Pará, 25 mar. 1885, p. 2) Na história narrada no prólogo, Marques de Carvalho é o narrador-personagem que conta ao leitor como conheceu Carlos de Medeiros. Sentado no Café Carneiro às dez horas da noite com um amigo que se chamava Mendonça, o autor-narrador tomava uma xícara de café. Quando os dois iam se levantar para partir, aproxima-se um rapaz bem vestido, embora em desalinho, muito magro e pálido, além de estar em estado de ligeira embriaguez. Depois de alguns cumprimentos, Mendonça apresenta a Marques de Carvalho o jovem mancebo, que despertou logo a simpatia do narrador dessa história. Além do estado de embriaguez, Carlos encontrava-se muito doente. Crises de tosse o interrompiam sucessivamente e vinham sempre acompanhas de algumas gotas de sangue que brilhavam em seus lábios pálidos e manchavam o chão de vermelho vivo. Não era, porém, apenas o álcool e a doença que o consumiam, pois Carlos também sofria de uma grande desilusão amorosa. Depois de muitas insistências, Marques de Carvalho e Mendonça conseguiram convencer Carlos a se retirar do estabelecimento. Acompanharam-no até a casa onde o jovem desiludido residia. Quando abriram a porta, um criado logo apareceu para ajudálos a despir e a deitar o patrão embriagado, doente e desiludido. Quando se dispuseram a sair, Carlos chamou Marques de Carvalho para lhe fazer um singelo pedido: 103 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 – Sr. Carvalho; se quer ter assunto para novecentas ou mil tiras de papel, venha falar-me... amanhã à tarde; contar-lhe-ei a minha vida... a vida do meu... coração... um ver... da... deiro.... ro... mance... Ah! Ah! Ah! E riu-se de novo com aquele gargalhar fatídico, que nos resoava até ao mais íntimo da alma................................................................................................... ........................................................................................................................... Ao chegar à rua, eu e Mendonça chorávamos... (Continua) (CARVALHO, A Província do Pará, 25 mar. 1885, p. 2 e 3.) Percebemos que Marques de Carvalho, já no prólogo de seu romance, utilizouse de uma fórmula que proporcionava sucesso ao romance-folhetim. As expressões “continua amanhã” ou “continua no próximo número” ao fim de cada fascículo eram as responsáveis por causar o desejo do leitor em acompanhar a continuação da narrativa, sobretudo quando a história era, estrategicamente, interrompida no auge da expectativa. É muito provável que os leitores tenham sentido a curiosidade de conhecer a vida de Carlos, principalmente a história de amor que lhe causou inúmeras dores e sucessivas decepções. No fascículo seguinte, publicado em 27 de março de 1885, a história recomeça. Naquela noite, Marques de Carvalho não conseguiu dormir direito, pois passara a noite recordando a fisionomia pálida e simpática de Carlos de Medeiros e desejando conhecer a história desse jovem rapaz. No dia seguinte, às cinco horas da tarde, totalmente ansioso, dirigiu-se à casa de Carlos, para conhecer as revelações que tanto lhe foram prometidas. Ao ser recebido afavelmente por seu novo amigo, o escritor paraense reparou que o mesmo jovem da noite anterior, naquele momento, estava com as faces mais coradas e com as linhas do semblante mais tranquilas. Os dois conversaram sobre composições literárias, sobre o desenvolvimento da literatura na região amazônica e no território brasileiro, sobre a pouca importância destinada aos escritores locais, sobre a necessidade de uma academia de letras no Pará e de uma universidade no Rio de Janeiro, entre outros assuntos. Foi apenas ao final da conversa que Carlos começou a falar de sua própria vida. A longa e pungente narração de sua história levou ambos às lágrimas. Às dez horas da noite, os dois amigos despediram-se. Carlos agradeceu a visita de Marques de Carvalho e fez-lhe alguns pedidos. – Venha ver-me de tempos a tempos. Muito lhe agradecerei a visita. Vivo tão abandonado por todos... Quanto ao romance da minha história, escreva-o depois que eu morrer, porém que seja restritamente modelado pelas informações que acabei de dar-lhe. Não altere nem acrescente nada, a não ser 104 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 um ou outro episódio secundário, que se faça preciso para a boa disposição do entrecho, e os nomes dos principais personagens, que devem ser crismados pelo senhor, a fim de evitar dissabores futuros... Ouça! – continuou com as lágrimas a bailarem nos olhos – verbere bem o procedimento de Georgina, para exemplo das moças que se acharem no caso dela... Coitada! Foi mais leviana e infeliz do que criminosa... (CARVALHO, A Província do Pará, 27 mar. 1885, p. 2) Percebemos que Marques de Carvalho, no prólogo de seu romance, apresenta uma pequena narrativa para introduzir uma maior. Na história narrada no prefácio, o autor paraense explica como chegou a conhecer Carlos de Medeiros e sua mal sucedida história de amor com Georgina, objeto de inspiração para seu romance publicado no jornal A Província do Pará. É provável que Marques de Carvalho tenha elaborado essa curta história com o intuito de atribuir à sua produção ficcional um caráter de verdade. De acordo com Ian Watt, imprimir à ficção traços da realidade era uma característica do romance moderno, pois essa nova forma literária tinha como critério fundamental a fidelidade à experiência individual. Nesse novo estilo, o gênero romanesco passa a destinar uma atenção maior à nomeação das personagens, à demarcação do tempo e do espaço e à representação da vida doméstica, com a qual os leitores se identificavam, pois a história das personagens era muito semelhante às suas. Essas características, assim como estabelece Ian Watt, estão de acordo com o realismo formal, o qual permite uma imitação mais imediata da experiência individual situada em um contexto temporal e espacial (Cf. WATT, 1990). É por essa razão que o romance exigia menos do público que os demais gêneros literários. Ao final do prólogo, Marques de Carvalho dirige-se ao leitor, a quem depois de muitos preâmbulos sugere que o acompanhe para conhecer a história narrada por Carlos, como podemos visualizar no excerto a seguir. Dois meses depois, por uma tarde chuvosa e tétrica, Carlos de Medeiros expirava murmurando um nome: – Georgina!... ............................................................................................................................ .......................................................................................................................... Agora, se o leitor quiser saber a lutuosa história que me contou Carlos, o ébrio, – assim lhe chamavam, – digne-se acompanhar-me à primeira parte deste romance. FIM DO PRÓLOGO (CARVALHO, A Província do Pará, 27 mar. 1885, p. 2) 105 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Ao término do prefácio, compreendemos que Marques de Carvalho, assim como muitos autores dos séculos XVIII e XIX, renegou a autoria de seu romance ao apresentar-se apenas como narrador da história vivida por Carlos. Para causar esse efeito, o escritor paraense cria uma pequena narrativa no prólogo que conduz o leitor a acreditar na legitimidade dos fatos narrados, pois não há nenhum indício no breve enredo que lhe despertasse a desconfiança. Como consta no prefácio, Marques de Carvalho prometeu ao amigo enfermo que não alteraria nem acrescentaria nada que fugisse à história que lhe havia sido contada. Quem deixaria de acreditar numa promessa feita a um amigo que se encontrava próximo à morte? Quem não confiaria em uma história tão realista como a narrada por Marques de Carvalho? Percebemos que esse leitor ideal a quem Marques de Carvalho se destina e que acredita na realidade impressa à ficção, é um indivíduo curioso, alguém que seja capaz de acompanhá-lo a cada fascículo a fim de descobrir qual foi o desfecho que levou Carlos de Medeiros à desilusão amorosa. Compreendemos, portanto, que o prólogo de caráter narrativo foi uma estratégia elaborada pelo escritor paraense para envolver e despertar a curiosidade de seus leitores. Ao chegar à leitura do romance, o leitor intuirá que o foco que no prólogo recai sobre Carlos passará para Georgina. A partir do terceiro fascículo, a narrativa apresentará principalmente os dramas da personagem feminina desenganada e perdida entre dois amores: Carlos de Medeiros e Pedro da Silva. Como já foi aludido anteriormente, o romance em folhetim foi suspenso abruptamente, sem nenhuma explicação prévia. No entanto, em razão da existência do prólogo, é possível imaginar que o desfecho da narrativa não foi feliz para as personagens. Além da doença que o levou à morte, Carlos faleceu completamente desiludido pelo amor. Georgina, por seu turno, terminou como uma vítima de artimanhas de sujeitos de má índole e de sua própria leviandade. No prólogo do romance do jornal A Província do Pará, Marques de Carvalho, à maneira de tantos outros romancistas, utilizou-se de uma tática comumente empregada no século XIX: negar a autoria da própria obra. No entanto, a breve narrativa no prólogo – dividida em dois fascículos – revela uma engenhosa estratégia para induzir o leitor a acreditar na veracidade do enredo, seduzindo-o e envolvendo-o. 106 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 3. Um romance naturalista em folhetim: pela pena de um paraense Em 18 de janeiro de 1887, o jornal A República apresenta uma nota a respeito da publicação do romance naturalista de Marques de Carvalho, divulgado no mesmo dia na página seguinte, precisamente na coluna Folhetim. Nessa nota, a figura do autor paraense é enaltecida, sendo alvo de elogios, como “distinto acadêmico” e “ilustre comprovinciano”: O nosso folhetim Começamos hoje a publicar um romance naturalista original do distinto acadêmico paraense Marques de Carvalho. Chamamos a atenção dos leitores de A República para essa obra do nosso ilustre comprovinciano. (A República, Belém, 18 jan. 1887, p. 2) Ao virar a página, o leitor logo se depara com o prefácio do romance em folhetim O Pagé, assinado pelo próprio Marques de Carvalho. Além disso, chamamos a atenção para a denominação “romance naturalista”, pois não era muito comum, no rodapé das folhas periódicas, a publicação de obras que fugissem às características das narrativas melodramáticas e às temáticas corriqueiras dos romances-folhetins. É por essa razão que, segundo Marlyse Meyer, se todos os romances no século XIX, em média, passam a ser publicados na coluna folhetim, nem todos podem ser considerados romances-folhetins (Cf. MEYER, 1996). Essa afirmação significa que a divulgação de romances no rodapé das primeiras páginas dos jornais oitocentistas não é critério suficiente para que uma narrativa ficcional seja rotulada como folhetinesca, pois características internas ao texto também devem ser levadas em consideração, como a presença do melodrama, a baixa densidade psicológica das personagens e as temáticas banais: os amores proibidos, as paternalidades trocadas, os filhos bastardos e as heranças usurpadas. No prefácio dessa narrativa, Marques de Carvalho afirma que cortou seus laços com a escola romântica para se filiar ao Naturalismo, movimento em ascensão nas duas últimas décadas do século XIX. Para o autor paraense, os romances românticos, já no final do período oitocentista, apresentavam abusos e prolixidades, pois ofereciam temáticas muito recorrentes e descrições extenuantes, repletas de adjetivos. É por essa razão que Marques de Carvalho inclina-se pela nova escola literária que entrava em voga – o Naturalismo. No texto introdutório, fica evidente que o escritor vangloria-se por acreditar que escreveu uma obra inovadora, que foge às fórmulas e às receitas, muito utilizadas por romancistas românticos. 107 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 É O Pagé o primeiro trabalho de seu gênero escrito por um paraense: cabeme essa glória, tenho a máxima honra em reclamá-la. Desejei fazer um romance que fosse simplesmente um estudo físico-psicológico desse personagem astucioso e hipócrita que é o terror dos espíritos fanáticos do povo de minha província; para isso, alienei-me da velha escola romântica, desprezei-lhe os abusos e prolixidades, para deixar-me levar pela grande orientação literária da nossa época. (CARVALHO, A República, 18 jan. 1887, p. 1) Observamos ainda que Marques de Carvalho se enaltece ao se considerar o pioneiro entre os escritores paraenses a escrever uma obra de cunho naturalista. O autor de textos em prosa de ficção em folhetim, no entanto, parece ignorar ou desconsiderar a existência de seu conterrâneo Inglês de Sousa, que, antes do lançamento da obra O Pagé em 1887, já havia publicado três romances inseridos na mesma estética literária: O cacaulista (1876), História de um pescador (1877) e O coronel Sangrado (1877).31 Portanto, considerando-se as datas de publicação das obras, Marques de Carvalho equivocou-se em sua afirmação ao se esquecer de seu conterrâneo ou tentou, intencionalmente, diminuir – ou mesmo apagar! – a importância de Inglês de Sousa no cenário da produção literária no estado Pará, para que garantisse unicamente para si o prestígio de ser o primeiro paraense a escrever uma obra de cunho naturalista. Por filiar-se ao Naturalismo, Marques de Carvalho, no prefácio de seu romance, projeta uma imagem acerca de seu público-leitor e elabora uma ideia a respeito da recepção de sua obra: À força de muito labutar consegui levantar uma obra sobre documentos humanos autênticos e notas tomadas longa e pacientemente em diversos lugares e épocas. Bem sei que este livro causará escândalo na família paraense, pela rudeza de suas cenas copiadas da vida real com o maior e mais consciencioso escrúpulo. Tenho quase que uma certeza dos ataques violentos que me vão ser dirigidos pelos conservadores românticos, dos quais a resistência em permanecerem na esquecida escola é deveras contristadora. Mas eu não me acovardo, não volto atrás: espero que a justiça me seja feita um dia, quando a evolução, beneficamente fatal, houver curvado todas as cabeças à moderna fórmula literária. Aqueles que pateiam hoje o realismo aplaudi-lo-ão amanhã, logo que o tenham compreendido. (CARVALHO, A República, 18 jan. 1887, p. 1) 31 Lúcia Miguel Pereira afirma que essas três obras de Inglês de Sousa não se comparam às de Aluísio de Azevedo, como O mulato (1881), Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). A autora acredita que, talvez, seja por essa razão que o título de precursor do movimento naturalista no Brasil tenha sido atribuído ao escritor ludovicense, que publicou O mulato (1881) somente quatro anos após a obra O coronel Sangrado (Cf. PEREIRA, 1988). Entretanto, não se pode negar que, independente da técnica ou da densidade literária das obras, Inglês de Sousa foi o precursor do Naturalismo não apenas na Amazônia, como igualmente no Brasil. 108 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 Fica claro nesse prefácio que Marques de Carvalho parece esperar julgamentos severos destinados a seu romance por parte de seus leitores mais conservadores, afeiçoados aos romances românticos e aos romances-folhetins, gêneros romanescos com temáticas melodramáticas que atraiam o interesse do público-leitor no século XIX, não apenas no Brasil como também nos países europeus. É por essa razão que Marques de Carvalho critica seus leitores imaginários, pois acredita que a população paraense não seria capaz de compreender seu projeto literário. No entanto, apesar de seu discurso ríspido e ofensivo, é possível também que Marques de Carvalho tenha se utilizado do espaço do prefácio para fazer uma espécie de propaganda de seu romance, qualificando-o como proibido. Robert Darnton, em seus estudos sobre os livros licenciosos na França pré-revolucionária, afirma que, no século XVIII, bastava que uma obra fosse censurada para que se tornasse um verdadeiro bestseller (Cf. DARNTON, 1998). Seguindo o mesmo raciocínio, é provável que o autor paraense, com a intenção de chamar a atenção dos leitores a partir de uma forma de publicidade às avessas, tenha escrito um prólogo ressaltando as cenas possivelmente inescrupulosas que constariam em seu romance e atribuindo a ele, consequentemente, uma posição de obra proibida. Assim, é plausível que os leitores curiosos, a fim de conferir o que haveria de tão audacioso e chocante para que o romance naturalista de Marques de Carvalho seja alvo de críticas severas, lê-lo-iam fascículo a fascículo. Seja por acreditar que seu público não compreenderia satisfatoriamente sua obra, seja por utilizar o espaço do prefácio para fazer uma espécie de publicidade às avessas, todas essas hipóteses dependem de uma imagem que Marques de Carvalho formula de si e de seu leitor. Sobre o leitor idealizado pelos escritores nos prefácios de suas obras, é possível identificar quatro categorias para classificar o grupo adepto à leitura de romances, considerando a maneira como os romancistas dirigem-se ao público-leitor ao qual pretendem atingir. A primeira categoria é destinada às leitoras, frequentemente mencionadas nos textos introdutórios, pois o desenvolvimento da instrução feminina no Brasil do século XIX propiciou a inclusão da figura feminina no grupo de leitores de romances. A segunda classificação está relacionada ao leitor benévolo e benigno, aquele de quem o autor pode obter a solidariedade na leitura de sua obra. Essa classe de público, supostamente, acolhe e recebe a obra do romancista com benevolência e complacência, sem fazer críticas severas. A terceira categoria é dirigida ao leitor erudito 109 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 e crítico, a quem o autor escreve algo que julga que lhes será útil como informação e instrução. A essa categoria, enquadra-se, da mesma forma, o leitor conhecedor de outros idiomas, capaz de ler epígrafes escritas em língua estrangeira e de reconhecer as referências a obras clássicas ou a personagens históricas. Na última categoria, há os leitores que leem romances em busca de entretenimento e distração. Nesse grupo, existe o leitor ocupado e o leitor ocioso. A este as obras são destinadas com a única função de entreter e de passar o tempo. Aquele, por sua vez, dedica algumas horas de seu dia à leitura de romances, pois não pode perder muito tempo com obras consideradas frívolas (SALES, 2003). No prefácio do romance O Pagé, o leitor a quem Marques de Carvalho destina sua obra não se enquadra em nenhuma das categorias aqui elencadas, pois o autor paraense não se dirige ao público feminino, não acredita que os leitores seriam benevolentes com a recepção de sua obra nem que seriam capazes de compreendê-la satisfatoriamente, bem como seu romance não seria adequado para as horas de lazer. Consideramos que é possível, então, definir uma nova categoria de leitor diante desse prefácio, pois o público ao qual se dirige o romancista em seu prólogo pode ser considerado ingênuo, conservador e, sobretudo, preconceituoso. Essa conclusão é plausível porque o romancista, pelo menos aparentemente, acredita que os leitores de sua obra não conseguiriam compreender a proposta de seu trabalho fundamentado na estética naturalista, uma vez que, assim como define o próprio escritor paraense, seu romance apresentaria cenas agressivas e repugnantes, copiadas da vida real com o maior e mais consciencioso escrúpulo. É provável, portanto, que o projeto romanesco de Marques de Carvalho não tenha conseguido, de fato, a adesão nem a preferência dos leitores acostumados com romances da escola romântica, principalmente em razão do conservadorismo e do preconceito. Sabemos ainda que era muito comum, no século XIX, os prosadores afirmarem em seus prefácios que seus romances foram baseados em fatos verídicos. Em geral, essa era uma tática empreendida pelos romancistas para aproximar a ficção da realidade. Dessa maneira, os leitores seriam conduzidos a acreditar na veracidade dos acontecimentos narrados e, consequentemente, poderiam se identificar com a descrição de alguma personagem ou com alguma situação que já vivenciaram (SALES, 2003). Assim como os escritores de meados do século XIX, Marques de Carvalho se utilizou da mesma estratégia, pois afirmou que seu romance apresenta cenas 110 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 reproduzidas da vida real. No entanto, será que o autor paraense fez uso dessa tática com a mesma finalidade ambicionada pelos romancistas românticos? Os escritores naturalistas, influenciados pela observação científica e pelas novas teorias cientificistas, interpretavam o comportamento humano aproximando-o de sua natureza animal, de forma a procurar demonstrar a influência de tal natureza sobre suas personagens, explorando temas como a sexualidade, o incesto, o desvio de conduta e o desequilíbrio emocional, envolvendo personagens dominadas por seus instintos e desejos. Então, de acordo com esse princípio, um autor naturalista não se preocupava com a descrição psicológica porque não era seu objetivo a revelação do caráter humano. Sua principal finalidade era encarar o homem, levando em consideração sua dimensão biológica e patológica, seu envolvimento com um destino que não consegue mudar e sua determinação pelo meio em que vive. É nesse sentido que Émile Zola afirma que o romancista é um observador e um experimentador: O romancista é feito de um observador e de um experimentador. Nele, o observador apresenta os fatos tal qual os observou, define o ponto de partida, estabelece o terreno sólido no qual as personagens vão andar e os fenômenos a se desenvolver. Depois, o experimentador surge e instituí a experiência, quer dizer, faz as personagens evoluírem numa história particular, para mostrar que a sucessão dos fatos será tal qual a exige o determinismo dos fenômenos estudados. [...] O romancista sai em busca de uma verdade. (ZOLA, 1982, p. 31) Para ser, portanto, condizente aos princípios naturalistas, Marques de Carvalho propôs-se a escrever uma obra de ficção baseada em fatos reais, pois a verossimilhança nos romances vinculados a essa estética literária não é uma categoria relacionada à coerência interna da obra, cujo enredo não precisa necessariamente ser uma cópia fiel à realidade. Para o Naturalismo, no entanto, a verossimilhança manifesta-se no plano externo, uma vez que a coerência da obra revela-se na transposição dos fatos reais, assim como são observados, para o enredo do romance. Talvez seja por esse motivo que Marques de Carvalho tenha afirmado que as cenas de seu livro foram copiadas da vida real com o maior e mais consciente escrúpulo, justamente com o intuito de defender a estética naturalista e de mostrar-se como um verdadeiro conhecedor dos princípios da nova escola literária. Considerando-se a hipótese de que os romances naturalistas não tenham sido, a princípio, bem-aceitos pelo público-leitor, uma vez que estes não estavam acostumados a temáticas extravagantes, como a sexualidade, o incesto, o desvio de conduta e o 111 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 desequilíbrio emocional acentuado, ou achavam que o conteúdo dessas obras era um crime contra os bons costumes, é possível inferir que a interrupção inesperada do romance O Pagé tenha, talvez, ocorrido porque os leitores, indignados com as cenas abomináveis que liam na coluna Folhetim, enviaram cartas aos jornais, prática muito comum à época, solicitando ao editor do jornal a suspensão do romance. É provável também que, apesar do prefácio mordaz, o romance tenha sido suspenso porque não se mostrou tão chocante quanto o público-leitor esperava. Além da representação que construiu acerca de seus leitores, Marques de Carvalho estabelece uma imagem de si mesmo no prefácio desse romance. Sobre o papel que os romancistas concebem de si mesmos diante de seu público, Germana Sales indica algumas categorias de análise para qualificar as múltiplas naturezas de autoria representadas por meio da voz dos escritores. A autora propõe que há os romancistas que classificam a escrita como uma prática trabalhosa, que exige tempo, dedicação e inúmeras revisões para que seja concluída e chegue até as mãos dos leitores. Além dos escritores laboriosos, há os que se identificam com a figura paterna, pois se posicionam como verdadeiros pais de suas obras, consideradas como se fossem as filhas de sua prática de escrita. Uma terceira categoria é destinada aos escritores modestos, cujos prefácios são repletos de excessos de humildade e de acentuado comedimento, pois avaliam que suas obras necessitam de consertos, por apresentarem defeitos que precisariam ser corrigidos. O próximo grupo é dedicado aos prosadores que negam a autoria da própria obra ficcional, uma vez que se mostram como tradutores ou compiladores de manuscritos dos quais se apoderaram, como editores de cartas que supostamente encontraram por acaso ou ainda como contadores de histórias que lhes foram relatadas por terceiros. Na última categoria, ao contrário dos escritores que se passam por modestos e humildes, há os que se apresentam como militantes ou como indivíduos eruditos, instruídos e sábios. Estes introduzem epígrafes em línguas estrangeiras no início de seus prefácios ou inserem um discurso favorável a seu romance, proferido por algum crítico consagrado ou por alguma figura importante da época. Aqueles, por seu turno, promovem discursos em seus prólogos a serviço de causas sociais, políticas ou literárias. Embora essas categorias abarquem grande parte dos romancistas brasileiros, acreditamos que Marques de Carvalho não se adequa em nenhuma. É bem certo que o escritor paraense poderia ser enquadrado no grupo de romancistas eruditos e sábios, 112 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 pois se demonstra conhecedor dos princípios naturalistas e utiliza como argumento de autoridade o discurso dos irmãos Goncourt32, como ilustra a citação a seguir: Num belo romance dos irmãos de Goncourt encontro as linhas seguintes que, por conterem uma ideia adequada ao assunto e interpretarem o meu pensamento, vão servir para deste pequeno prefacio: « Ele (o público) é apaixonado pelas obrinhas brejeiras, pelas memórias de prostitutas, pelas porcarias eróticas, pelo escândalo que uma estampa ostenta nas vitrines das livrarias e aquilo que vai ler é severo e puro. Que não espere a fotografia decotada do Prazer: o estudo que aí vai é a CLINICA DO AMOR. ............................................................................................................................ ....................... ............................................................................................................................ ....................... ........................................... « com a sua triste e violenta distração, este livro foi feito para contrariar-lhe os hábitos e prejudicar-lhe a higiene »............................................................................................................. ....................... « Agora, que seja caluniado este livro, pouco lhe importa. Hoje que o Romance alarga-se e cresce; hoje que começa a ser a grande forma séria, apaixonada, viva do estudo literário e da inquirição social; hoje que se muda, pela pesquisa psicológica e pela análise, na Historia moral contemporânea; hoje que o Romance tomou sobre si os estudos e tarefas da ciência, pode revindicar as liberdades e franquezas dela. » (CARVALHO, A República, 18 jan. 1887, p. 1) No entanto, Marques de Carvalho exalta-se de antemão com seus leitores e demonstra-se como um escritor arrogante, provocador e intransigente, capaz de subjugar duramente os romancistas românticos e de menosprezar os presumíveis desejos e os supostos julgamentos do público-leitor, bem como de apagar a existência de seu conterrâneo Inglês de Sousa como precursor do Naturalismo, não apenas na Amazônia como também no Brasil. No prólogo de seu romance, notamos que Marques de Carvalho defende ferrenhamente o Naturalismo, desconsiderando – antes mesmo de recebê-las! – as críticas que possivelmente lhe seriam destinadas por seus leitores, os quais, acostumados com romances românticos e romances-folhetins, talvez não tenham visto com bons olhos uma obra que se apresentava aos moldes naturalistas, com cenas supostamente abomináveis e com presumíveis personagens em situações de desequilíbrio emocional ou psicológico acentuados, temas próprios ao Naturalismo, movimento literário que Marques de Carvalho adotou, defendeu e compartilhou durante sua carreira de escritor. 32 Os irmãos Goncourt foram dois escritores naturalistas franceses do século XIX, Edmond de Goncourt e Jules de Goncourt, que escreveram conjuntamente romances e a obra L’art du dix-huitième siècle (A Arte no século XVIII). 113 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 3, v.2, Número 5 – TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2012 3. 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