Anais do IX Encontro do CELSUL Palhoça, SC, out. 2010 Universidade do Sul de Santa Catarina VARIAÇÕES NA ESTRUTURA DA ESCALA DE ADJETIVOS DE GRAU: UM ESTUDO DE CORPUS Ana Paula QUADROS GOMES* ABSTRACT: Investigating the Gradable Adjectives in a corpus representative of the variety of Brazilian Portuguese spoken in the state of Sao Paulo in 2009, a conflict between the formal theories of degree semantics and some apparent deviation of the data must be faced. Resolving the conflict, the understanding of the big picture enhances the description of the object language sample. Universals help to explain variation facts. KEYWORDS: adjectives; variation; universals; scale structure; degrees. 1. Introdução Com interesse no fenômeno da intensificação e no dos adjetivos de grau, empreendemos a análise de um corpus, constituído de programas de entrevistas (Áudio Papo, da Rádio USP) transmitidos em 2009 (pesquisa de pós-doutorado realizado no DLCV/FFLCH/USP, com bolsa Fapesp). O estudo estava inserido no “Projeto de História do Português Paulista”, por sua vez vinculado ao “Para a História do Português Brasileiro – PHPB”. Quanto ao propósito de descrever variações e/ou mudanças no português paulista, não foi possível ainda produzir uma análise comparativa, nem diacrônica nem diatópica, com base nesta análise, que trata de um só recorte sincrônico. Faltam análises do fenômeno, com o mesmo viés, no português culto falado em São Paulo em épocas distintas, ou do português culto falado de hoje em outras regiões do Brasil. Análises de outros corpora serão necessárias para separar com mais clareza o que é universal, paramétrico e/ou sujeito à variação. Não obstante, quanto a verificar o que o português contemporâneo falado em São Paulo tem a dizer sobre as características do fenômeno postuladas como comuns a todas as línguas naturais, a análise desse corpus teve desdobramentos muito interessantes. Os dados confirmam ou refutam a teoria dos universais? As respostas extraídas da investigação são pertinentes, sobretudo, de um ponto de vista metodológico e teórico, quando se atenta para o velho antagonismo entre, de um lado, as abordagens formais, abstratas, que pretendem descrever a faculdade da linguagem humana; e de outro, estudos mais concretos, que olham para os dados com o intuito de descrevê-los, compreendê-los e explicá-los. Parece-nos não só que ambas as abordagens são conciliáveis, mas, ainda, que há benefícios consideráveis em examinar um objeto linguístico da natureza de um corpus de um ponto de vista informado pela teoria formal. Afinal, são os dados que põem à prova o poder explicativo, descritivo e preditivo de teorias. Por outro lado, uma vez que não é possível um exame de dados isento de teoria, a escolha do instrumental teórico adequado facilita, e muito, a identificação das características relevantes para a compreensão do fenômeno, em meio ao emaranhado de características que constitui qualquer objeto de pesquisa. Nesse espírito, vamos “solucionar” aqui, propondo um modo de remediá-lo, um conflito entre a teoria de graus de Kennedy e McNally (2005) e o comportamento dos adjetivos de nossa mostra do português falado em São Paulo hoje. * Professora Doutora; Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1 Anais do IX Encontro do CELSUL Palhoça, SC, out. 2010 Universidade do Sul de Santa Catarina 2. A Semântica de Graus Algumas características identificam a classe dos adjetivos. Um adjetivo apresenta concordância de gênero e número com o nome (o substantivo) que modifica. Quanto à distribuição na sentença, os adjetivos tanto podem aparecer em posição predicativa ou em mini-orações (nos assim chamados predicados nominais e verbo-nominais), quanto podem estar internos a sintagmas nominais (SNs). Não são todos os adjetivos que apresentavam gradabilidade. Os adjetivos de grau (doravante, AGs) se distinguem por aceitarem modificação por advérbios intensificadores (1/2) e/ou por poderem figurar em construções comparativas (3/4) (FOLTRAN & CRISÓSTIMO, 2005; KENNEDY & MCNALLY, 2005). a) b) c) d) O almoço está (muito/ bem/ bastante) gostoso. O almoço está (*muito/ *bem/ *bastante) pronto. O almoço de hoje estava mais gostoso que o de ontem. *O almoço de hoje estava mais pronto que o de ontem. Os testes apontam que ‘gostoso’ é um AG e mostram que o adjetivo ‘pronto’ não tem gradabilidade. A predicação por AGs (‘gostoso’) é vista (SEUREN, 1978; HEIM, 1985; SCHWARZSCHILD, 2002; KENNEDY & MCNALLY, 2005) como sendo uma construção comparativa (‘menos gostoso’, ’mais gostoso’, ‘tão gostoso quanto’) intrínseca. A verdade da sentença (3) requer que o grau de GOSTOSURA do argumento do adjetivo (‘o almoço de hoje’) supere o grau de GOSTOSURA do outro termo da comparação (‘o [almoço] de ontem’). Da mesma forma, para que a sentença (1) seja verdadeira, é necessário que o argumento do AG (‘o almoço’) exceda em grau de GOSTOSURA certo objeto, não denotado por nenhum SN abertamente realizado, a que o argumento do AG é implicitamente comparado. O termo de comparação que não corresponde a nenhum dos constituintes da sentença contendo o AG é chamado de “parâmetro”. Postula-se a existência de um núcleo funcional não-pronunciado, chamado de “pos”, que exerce a mesma função de “mais... que” na sentença (3): determina a ordem que os graus comparados devem manter entre si. Se substituirmos “mais... que” por “menos... que” na sentença (3), será requerido que o argumento do AG, desta feita, apresente um grau de GOSTOSURA inferior ao grau dessa mesma propriedade apresentado pelo parâmetro. Tal análise pressupõe a existência de escalas, que são conjuntos de valores positivos da propriedade ordenados em ordem crescente e estrita. O AG associa a referência de “o almoço” a certo grau na escala de GOSTOSURA, de acordo com a medida dessa propriedade que o juízo do falante atribui ao argumento do AG. O parâmetro também é levado a um grau da mesma escala, ao grau que represente a medida da propriedade que lhe é atribuída. A verdade de uma sentença com um AG, como (1), vai depender de a ordem relativa — entre o argumento do AG e o parâmetro assumido — verificada na situação em exame ser a requerida por pos. Escalas são objetos lógicos, parte do aparato cognitivo e conceptual humano; elas são necessárias, entre outras coisas, para organizar comparações. As escalas apresentam estrutura interna. A variação de estrutura que as escala podem apresentar é limitada pela lógica. De qualquer forma, o tipo de estrutura encontrado na escala de uma propriedade particular afeta o comportamento linguístico dos AGs a ela associados. Escalas fechadas são aquelas em que pelo menos um dos dois graus comparados “fecha” a escala num de seus extremos. Por exemplo, consideremos a escala de ABERTURA: 2 Anais do IX Encontro do CELSUL Palhoça, SC, out. 2010 Universidade do Sul de Santa Catarina e) A gaveta está aberta. f) A gaveta está fechada. Muitos graus de ABERTURA tornam verdadeira a sentença (5), mas a verdade de (6) requer um único grau de ABERTURA. O argumento do AG em (5) pode apresentar qualquer grau da propriedade distinto de zero, visto que, tanto entreaberta quanto escancarada, a gaveta estará ‘aberta’. Já o argumento de ‘fechado’ tem de sempre apresentar exatamente o grau zero, que é o mais inferior da escala. Nas escalas fechadas, o parâmetro é uma dimensão intrínseca do indivíduo que o SN argumento do AG denota. Em qualquer situação, uma gaveta fechada fica interna ao móvel porque é menos extensa que ele; a parte da gaveta para fora do móvel tem de ser menor que o seu cumprimento interno total, em quaisquer circunstâncias, ou a gaveta cairá. A gaveta é sempre comparada ao estado em que ela está completamente embutida no móvel. O parâmetro da escala de ABERTURA é o grau zero, associado a esse estado. Portanto, se, (5) for verdade, o grau de ABERTURA do indivíduo a que o SN ‘a gaveta’ se referir sempre será superior ao do parâmetro. Por outro lado, se (6) for verdade, o grau de ABERTURA do indivíduo a que o SN ‘a gaveta’ se referir sempre será igual ao do parâmetro. Assim, por o parâmetro ser “absoluto”, ou seja, ser determinado pela natureza do argumento do SN, a ordem dos graus comparados quanto à propriedade de escala fechada é previsível. Nas escalas abertas, o parâmetro é livre, o que torna impossível prever a ordem relativa entre os dois graus comparados. Tomemos, por exemplo, a escala de TAMANHO: g) Lila é pequena. h) Lila é grande. Lila é uma jovem com 1,57m de altura. Pensando na estatura média das alemãs (1,7m), julgaremos a sentença (7) verdadeira e a (8), falsa. Entretanto, se estivermos considerando a altura dos pigmeus (1,5m), teremos o resultado inverso: a sentença (7) será falsa, e a (8), verdadeira. Com dado parâmetro, o grau de TAMANHO de Lila é o menor entre os graus comparados; com outro, o grau de TAMANHO de Lila, embora apresente sempre o mesmo valor (1,57m), é o maior dos dois comparados. Se o parâmetro pode variar, o valor de verdade da sentença contendo o AG flutua, pois a ordem relativa entre os graus comparados é imprevisível. Dizemos que escalas abertas têm parâmetro “relativo” (a um ou a outro contexto). A estrutura de escala dos AGs do Português do Brasil (doravante, PB) é a mesma encontrada para sua contrapartida em inglês por Kennedy & McNally (2005). Isso é esperado, uma vez que, para a semântica de graus, a estrutura de escalas é um recurso lógico da mente humana; as relações predicativas de grau seriam, então, um universal linguístico. 3. O problema empírico: esses mal comportados dados... Encontramos diversas ocorrências do mesmo adjetivo no corpus examinado; aqui reproduzimos apenas algumas, para com elas ilustrar o problema colocado pelo corpus: i) A minha sala tem a porta aberta... j) Hoje em dia, você não tem só publicitário de dentro do Brasil, tem uma coisa muito aberta. k) [Em Cuba] tem um museu a ceu aberto. l) Aí, quando você só tem TV aberta, é uma catástrofe. 3 Anais do IX Encontro do CELSUL Palhoça, SC, out. 2010 Universidade do Sul de Santa Catarina A ocorrência anotada como a sentença (9) exemplifica perfeitamente a universalidade linguística das escalas: o AG é o polo aberto (aquele que aceita diversos graus da propriedade) de uma escala fechada, em que o parâmetro é sempre um grau extremo; no caso, é o do extremo inferior, zero. Para estar ‘aberta’, ‘a porta’ de (9) tem de apresentar qualquer grau de ABERTURA distinto do grau único do parâmetro. Em (9), tal como em (7), ‘aberta’ se comporta exatamente como ‘open’ (ver KENNEDY & MCNALLY 2005). A ocorrência reproduzida em (10), porém, não se comporta da mesma forma. O enunciador está discutindo a abertura do mercado publicitário a estrangeiros; ele compara uma época em que havia relativa reserva de mercado (a década de 1970), quando somente agências com capital 100% brasileiro cuidavam das contas governamentais, ao cenário de 2009, em que a legislação sobre capital estrangeiro em publicidade é bem mais permissiva. O SN ‘a coisa’ faz referência ao mercado publicitário de 2009. Se o parâmetro assumido for o Brasil de 1970, a sentença (10) será verdadeira. No entanto, caso o parâmetro seja o mercado publicitário de 2009 dos EUA, muito menos regulado que o brasileiro, a sentença (10) será falsa. Logo, a verdade da sentença (10) não é impermeável ao contexto, como é a da sentença (9). Em (10), ‘aberto’ se comporta como um AG relativo, não cabendo na classificação dada ao seu correlato do inglês, ‘open’, pela semântica de graus. As ocorrências reproduzidas em (11) e (12) estão ainda mais distantes da classificação de ‘open’. Elas não passam nos testes de itensificação (13/14) nem no de comparação (15/16): m) n) o) p) Aí, quando você só tem TV (*bem/ *muito/ *bastante) aberta, é uma catástrofe. [Em Cuba] tem um museu a ceu (*bem/ *muito/ *bastante) aberto. #A TV paulista é menos aberta que a mineira. # O museu de Cuba está a ceu menos aberto que o de Portugal. Os testes (13/14/15/16) mostram que o adjetivo ‘aberta’/ ‘aberto’ em (11) e (12), não tem gradabilidade. Chegamos, então, a um polo positivo da escala de ABERTURA que é um AG absoluto, a ponta aberta de uma escala fechada (9); a um polo positivo da escala de ABERTURA que é um AG relativo, de escala aberta (10); e, finalmente, a um polo positivo da escala de ABERTURA que não é o de grau (11/12). Os achados levantam questões sobre o a associação entre a entrada lexical do AG e certa estrutura de escala. A variação na estrutura da escala exemplificada com ‘aberto’ foi notada entre os AGs em geral. Esse fato nos impede de tomar esses dados como um caso idiossincrático. Como tratar a variabilidade estrutural de um mesmo adjetivo, num quadro teórico como o da semântica de graus? 4. O problema teórico: o conceito de ‘entrada lexical’ Constatamos que há diversas acepções para um mesmo adjetivo, e cada uma delas tem sua própria estrutura de escala, ou, pior: enquanto algumas acepções apresentam gradabilidade, outras não têm grau. Os adjetivos denotam relações entre indivíduos e propriedades. Precisamos levar em conta que, como a natureza da propriedade é necessariamente modulada pelo significado do nome a que o adjetivo se combina, todos os adjetivos são, em princípio, polissêmicos: eles todos ganham um sentido novo a cada nome tomado por argumento. Ocorre que há acepções menos e mais marcadas. 4 Anais do IX Encontro do CELSUL Palhoça, SC, out. 2010 Universidade do Sul de Santa Catarina A idéia de que o vocabulário do falante permanece em expansão durante toda a sua vida subjaz às teorias centrais de aquisição de léxico. O vocabulário cresce à medida que os conhecimentos dos falantes nos mais diversos domínios são ampliados. Parece admissível que se aprenda primeiro o sentido mais básico de um termo polissêmico, aquele mais usual, para depois se adquirir, por meio de vivências, ou mediante algum tipo de instrução (treinamento profissional, leitura, escolarização), os sentidos mais especializados. Se for verdade que um sentido antecede os demais na aquisição, esse primeiro sentido deve ser o de uso mais frequente na comunidade de fala, aquele que pertence ao vocabulário de um número maior de falantes. Portanto, provavelmente, o sentido de domínio mais generalizado na comunidade será o mais denotativo. O conhecimento de certos sentidos, pertencentes a discursos especializados, a campos semânticos específicos, não será compartilhado por todos, mas só por falantes que leiam certas obras, atinjam certo grau de escolaridade, exerçam certa profissão etc.; enfim, só uma parcela reduzida da comunidade de fala dominará esses usos especializados do termo, enquanto a acepção menos especializada será de conhecimento mais geral. Se certa acepção de um mesmo adjetivo é conhecida por mais falantes que as outras, e se, na história o falante, ela é adquirida antes das demais, então essa acepção privilegiada poderá ser considerada a entrada lexical mais básica do adjetivo. Ela corresponderá à estrutura de escala prevista pela semântica de graus. No caso de ‘aberto’, o candidato mais plausível é o sentido de ‘porta aberta’, e não o de ‘ceu aberto’, por exemplo. O aparato lógico-conceptual cognitivo não sofre influência direta das condições de produção linguística nem da situação de uso, nem sequer das intenções do falante. Assim sendo, a história particular de cada comunidade de fala ou de um determinado falante não pode influir na estrutura de escala associada ao sentido básico de um AG. Pelo contrário: espera-se que o adjetivo em ‘porta aberta’ e o adjetivo em ‘open door’ apresentem a mesma estrutura de escala. Assim, não será “coincidência” se as entradas lexicais básicas de uma língua germânica e uma românica apresentem a mesma estrutura de escala. Isso está previsto pela concepção de léxico assumida. A polissemia evita que o dicionário mental seja inflado de formas mórficas completamente distintas, o que dificultaria o aprendizado do léxico. Existe variação na estrutura de escalar, mas ela tem direção fixa, ou seja, é governada por princípios como o Princípio de Economia. Operações sintáticas podem “abrir” escalas fechadas, mas não poderão “fechar” escalas abertas. Escalas fechadas são estruturas mais complexas que escalas abertas. Vindo na numeração, as estruturas mais complexas não têm custo. Mudar estruturas de base mais simples em estruturas derivadas mais complexas teria custo alto. Por isso, escalas fechadas não são encontradas nas acepções especializadas, mas apenas na entrada lexical básica dos adjetivos. Uma entrada lexical de escala aberta, relativa, nunca poderá ser “absolutizada” devido ao seu contexto de uso ou a razões discursivas. 5. O peso do fator sintático A influência da sintaxe na interpretação dos adjetivos vai além da obediência ao Princípio de Economia, mencionada na seção anterior. Em línguas românicas, os adjetivos ditos intensionais ocorrem antes do nome que modificam (‘o futuro decano’/ *‘o decano futuro’). Assumindo que, em PB, a configuração sintática especificador-núcleo é a única que admite um segundo argumento para o adjetivo — o qual vem a ser uma variável sobre mundos possíveis, situações ou tempo —, fica claro porque adjetivos intensionais só ocorrem nessa configuração. 5 Anais do IX Encontro do CELSUL Palhoça, SC, out. 2010 Universidade do Sul de Santa Catarina Já os chamados adjetivos extensionais ocorrem após o nome modificado (‘maçã verde’/ ‘*verde maçã’). Alguns adjetivos podem vir pós ou pré-nominais, mas com mudança de sentido: ‘o grande professor’ é um profissional muito competente; ‘o professor grande’ é um homem de porte físico acima da média. Em PB, a configuração núcleo + complemento (nome + adjetivo) é necessária para a restrição de domínio. ‘Maçã verde’ é hipônimo de ‘maçã’: a extensão do nome não-modificado pelo adjetivo inclui, além das maçãs verdes, as vermelhas. À direita do nome, o adjetivo pode atuar como uma função característica, dividindo o domínio do nome ainda não modificado em dois subdomínios; então a predicação sentencial vai incidir apenas sobre um deles. É esse o caso das ocorrências de “aberto/a” sem grau (11/12). Há museus em espaços fechados; nem todo museu é ‘a ceu aberto’ (11). E, como existe TV a cabo, nem todas as TVs são instanciações de ‘TV aberta’ (12). A predicação sentencial ‘é uma catástrofe’, em (12), recai sobre localidades que contam exclusivamente com TV aberta, sem aplicar-se a locais que também têm TV a cabo. Os sintagmas adjetivais com grau em (11) e (12) não têm a mesma extensão dos nomes que lhes servem de argumento tinham anteriormente à modificação. Por exemplo, ‘TV aberta’ não pode fazer referência a todos os indivíduos a que o nome ‘TV’ pode se referir. Já ‘a porta aberta’ (9) e o nome não-modificado ‘a porta’ podem ter o mesmo referente; ‘coisa muito aberta’ (10) e ‘coisa’ podem fazer referência ao mesmo indivíduo. Isso indica que há outra via de mão-única na variação da estrutura de escalas. A restrição de domínios está associada à ausência de gradabilidade. A ordem nome + adjetivo produz a restrição de domínios, operação que pode (ou não) resultar em acepções sem grau para entradas lexicais básicas com gradabilidade. Mas adjetivos pré-nominais nunca perdem o grau associado à sua entrada lexical básica. A posição pós-nominal é a única que permite o “apagamento” do grau associado à acepção mais conotativa do adjetivo. A anteposição de AGs, digamos, de ‘grande’, nunca produzirá acepções sem grau. GAs podem vir antes ou depois do nome justamente porque tomam como argumento um SN que denota um indivíduo; assim, a incidência da predicação sentencial (aquela que recai sobre o sintagma adjetival contendo o GA) não depende da delimitação da extensão do nome pelo adjetivo. Tanto em ‘o grande professor’ quanto em ‘o professor grande’, temos AGs; em ‘o professor grande’, temos um adjetivo pós-nominal de grau. GAs remetem um indivíduo ao grau da propriedade que lhe cabe na escala da propriedade, conforme a medida da propriedade que esse indivíduo apresente na situação relevante; logo, GAs não delimitam o domínio sobre o qual recairá a predicação. Os adjetivos sem grau diferem sintaticamente dos AGs por só estes últimos projetarem o sintagma de grau (SG), cujo especificador pode abrigar intensificadores como ‘muito’, cujo núcleo é sempre ocupado por pos e cujo complemento é o adjetivo. A projeção de grau completa, que é própria de AGs, sempre entra em relação de imediata adjunção (irmandade) com um segmento da projeção nominal em que está o argumento do AG. Os adjetivos sem grau não contam com essa projeção própria e se abrigam em projeções sintáticas independentemente motivadas, como especificadores ou adjuntos, seja em relação de inclusão ou de continência. A configuração sintática exclui algumas possibilidades de interpretação. Não há adjetivo pré-nominal sem grau, com a entrada lexical básica de um AG. Por outro lado, uma mesma configuração sintática pode permitir mais de uma interpretação. Por exemplo, é preciso distinguir o adjetivo pós-nominal que tem grau (‘o professor grande’) do que não tem (‘TV aberta’). Para isso, o falante recorre ao seu conhecimento semântico sobre o tipo de relação que há entre o indivíduo (denotado pelo SN) e a propriedade (denotada pelo adjetivo). 6 Anais do IX Encontro do CELSUL Palhoça, SC, out. 2010 Universidade do Sul de Santa Catarina Os argumentos de GAs são afetados ou incrementais — ‘a porta aberta’ (9) está no estado em que tem esse grau de ABERTURA em razão de um processo ou pela ação de alguém —; ou, minimamente, apresenta um estado que pode ser alterado (a porta pode deixar de estar aberta). Já a ABERTURA associada ao adjetivo em (11) — em ‘ceu aberto’ — não é determinada por um processo, nem por uma mudança de estado; ela sequer está associada a um estado (inerente ou provisório) do indivíduo. 6. Comentários Finais A perspectiva teórica é um trunfo na descrição linguística. Combinando semântica e sintaxe, podemos explicar a gênese da variação na estrutura dos adjetivos. Leituras relativas de adjetivos primordialmente absolutos ocorrem, mas o oposto não. Na configuração sintática apropriada, o grau do adjetivo pode ser apagado, com o adjetivo funcionando como restritor do domínio da predicação sentencial. Entretanto, um adjetivo com entrada lexical primária sem grau jamais ganhará grau no curso da derivação sintática. Mesmo mecanismos sintáticos proporcionam escolhas aos falantes que os manejam. Primeiramente, o falante põe ou não pos na numeração, o que determina se o SG (Sintagma de Grau) será ou não projetado. Além disso, configuracionalmente, o falante pode construir o AG dentro ou fora do sintagma nominal. Se o AG for interno ao SN, será movido para a periferia esquerda da projeção nominal máxima sempre que o falante quiser estabelecer uma comparação entre o grau da propriedade inerente ao argumento do adjetivo e o grau dessa mesma propriedade inerente a outro indivíduo. A variação na estrutura de escalas de adjetivos não é incompatível com a associação de uma escala em particular a cada entrada lexical. Para cada ocorrência de um adjetivo, a escala associada à sua entrada é dedutível de uma combinação entre fatores semânticos e sintáticos. Podemos manter que a estrutura de escala associada à entrada lexical primária dos AGs em PB é a mesma associada à sua contraparte em inglês. Quanto ao uso, consideramos que a diversidade na especialização de discursos cria novos sentidos para um mesmo adjetivo. Propusemos, entretanto, identificar a entrada lexical básica de um adjetivo por dois fatores. O primeiro fator leva a escolher como entrada lexical a acepção de uso mais generalizado na comunidade de fala. O segundo fator é que a entrada lexical básica é exatamente a adquirida primeiramente pelo falante. Portanto, o discurso mais comum aos falantes é preferido ao mais especializado, e o sentido denotativo vem primeiro, em detrimento dos conotativos, quando se quer identificar a entrada lexical do AG. Vimos que a semântica de graus provê instrumentos para prever que estruturas de escala terão os novos usos dos adjetivos já conhecidos, e até as daqueles sentidos que ainda serão criados. Ou seja: a lógica das estruturas de escala regula o uso do adjetivo. Há uma dependência estreita entre a interpretação da relação predicativa introduzida pelo adjetivo e a estrutura sintática em que adjetivo e argumento estão configurados. Quanto à estrutura de escala proposta para o adjetivo de grau por Kennedy & McNally (2005), ela se sustenta como universal nos achados do corpus. A polissemia está associada a adjetivos em geral, já que os adjetivos relacionam uma propriedade a um indivíduo, e a natureza da relação instaurada varia conforme as características de ambos os elementos relacionados. Mesmo mantida a propriedade, cada particularidade da natureza do indivíduo a que ela é aplicada vai resultar numa diversificação da relação. Os dados indicam que não há total liberdade na criatividade: a nova relação consagrada pelo uso obrigatoriamente exibirá uma estrutura de escala sempre menos complexa que a relação expressa pela entrada lexical básica do adjetivo. 7 Anais do IX Encontro do CELSUL Palhoça, SC, out. 2010 Universidade do Sul de Santa Catarina O comportamento dos adjetivos no corpus pode ser explicado por universais semânticos e sintáticos, tais como a estrutura de escalas, a projeção de grau contendo pos e a adjacência estrita. Ele é moldado, também, por parâmetros da sintaxe e da semântica das línguas naturais, como o assinalamento de um operador diferente em Forma Lógica para cada uma das duas regiões internas à projeção do SN, a periferia esquerda e a região mais central. O comportamento dos adjetivos no corpus também depende da ordem sintática particular ao PB. A identificação de variantes próprias do português culto contemporâneo falado em São Paulo fica para pesquisa futura, pois depende de que análises da mesma monta sejam realizadas sobre mostras de outras comunidades de fala. Porém, entendemos que a identificação daquilo que é universal ou paramétrico, nesta mostra, abre caminho para a correta identificação das características próprias da variedade de fala representada por ela, quando o exame dos adjetivos em outras mostras tornar a comparação possível. Referências FOLTRAN, Maria José & CRISÓSTIMO, Gisele. Os adjetivos participiais no português. In: Revista de Estudos Linguísticos, v. 13, n.o 1, p. 129-154, Belo Horizonte, jan./jun. 2005. HEIM, Irene. Notes on comparatives and related matters. Ms., University of Texas, Austin. 1985. KENNEDY, Christopher & MCNALLY, Louise. Scale structure, degree modification, and the semantics of gradable predicates. Language 81, p. 345-381. 2005. SCHWARZSCHILD, Roger. The grammar of measurement. In: JACKSON, Brendan (ed.) Proceedings of SALT XII. Ithaca, NY: CLC Publications. 2002. SEUREN, Pieter A. M. The structure and selection of positive and negative gradable adjectives. In: FARKAS, D. et al. (eds.), Papers from the Parasession on the Lexicon, CLS14. University of Chicago. 1978. 8